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Delito de Opinião

O Prémio Camões

jpt, 03.02.18

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O Prémio Camões é um prémio político. É-o porque é estatal (e por natureza tudo o que o Estado produz é um acto político). Mostra-o o "costume", que é orientação explícita, da alternância anual luso-brasileira da premiação (e não me venham com coisas, que conheço um punhado de ex-jurados, e isto é uma verdade factual). Um critério nacional, administrativo, assim um critério político, extravasando completamente a questão literária. Isso não o indignifica. O que o pode indignificar é o que os Estados podem fazer dele. Morreu, "de morte matada", nessa sua condição política, no ano passado com o silêncio português (é um prémio luso-brasileiro) aquando do inaceitável discurso do ministro da cultura brasileiro quando o gigante Nassar o recebeu. Estou a falar de política e de representação do Estado: o ministro brasileiro, um fascistóide agredindo de modo inaceitável o premiado, também reclamou (como se en passant) para o seu Estado o monopólio da premiação. A apatetada representação portuguesa calou-se. E o "campo literário" português nem tugiu nem mugiu. Não veio mal ao mundo. Mas mostrou a tralha em questão, a do prémio e a das gentes do tal "campo". Adiante.
 
O Camões vale assim o que vale. Sendo, como é, e repito-me, um prémio político, consta no seu pacote, e nisso extravasando critérios literários, de quando em vez ser atribuído a um escritor "africano", vulgo "lusófono". Nesse estreito âmbito o facto de um monstro como o polissémico, múltiplo, ambivalente, grandioso, único, verdadeiramente único, sublinho, uma lente solitária na literatura em português, Ruy Duarte de Carvalho nunca ter sido premiado mostra totalmente a irrelevância dos "cordatos" critérios que premeiam. E não me venham dizer que eu não sou especialista: sou leitor. Ou seja, o mais especialista que a literatura pede, e assumo o populismo do dito. E só me posso rir com um prémio dado aos angolanos Vieira e Pepetela e que não lhe foi atribuído - sublinhando que para a "África lusófona" se premeia fundamentalmente segundo critérios da história política da literatura. E nem história social é, porque então outras coisas haveria para dizer sobre Xitu ou sobre as magníficas páginas da desequilibrada obra do Khosa (e que mais pedir a um demiurgo do que ser desequilibrado?). Mas isto já me faz entrar em Moçambique, num corpo literário que me convoca o riso, entristecido, diante do Camões atribuído neste XXI antes de o ser a Borges Coelho, mas enfim, são os critérios da "africana" lusófona .... Inenarrável. E letal para qualquer vontade prestigiadora do prémio CPLP da literatura, vulgo "Camões", nome do desgraçado poeta, que morreu miserável e 430 anos depois ainda é assim aviltado.
 
Dito tudo isto, que desagradará alguns amigos queridos, ex-jurados, escritores e, mais do que tudo, leitores militantes (os "grandes leitores" como se disse em milénios passados), o Camões só me serve para me convocar às livrarias ("ihh, o Trevisan!!!", exclamei há anos, envergonhando-me do esquecido que andava, embrenhado noutros assuntos). Por isso nem me choca que agora tenha sido dado a Alegre. Um prémio político para um político que é poeta menor e ficcionista irrelevante, o corolário da cultura do funcionalismo público português (e, muito provavelmente, do silêncio dos académicos brasileiros agora jurados, envergonhados com a horrorosa cena do ano passado). Um prémio político para um político, qual a surpresa?
 
Agora o que me choca é estas patetas declarações (o "discurso") do premiado aquando da recepção da honraria, que decerto serão indiscutidas pelo tal "campo" da literatura, desistido e cúmplice, na ânsia das prebendas, pois o prémio e o passado político convocam à sacralização das suas doutas (não "santas" que o homem é socialista, republicano e laico) palavras. Diz Alegre, sobre o estrado da premiação (e da inconcebível proposta para o Nobel), que a poesia é o território da "resistência", assim não só postulando a sua mundividência mas também legitimando-se como laureável.
 
Francamente ...!, estamos em 2018.E ainda temos que ouvir isto e até anuir ao dislate. A poesia é o lugar da desistência, da rendição, do desabar, da desgraça, do triunfo, do júbilo, da ejaculação, da resistência (sim, também), do tudo e do nada. E vem-me este homem tonitruar o vazio. Demagógico? Apenas pobre. De facto aquilo que alhures se diz (desvaloriza) como poesia de combate.
 
E mais, pior ainda, fazendo jus ao epíteto de "Pateta Alegre" (que saudades do meu pai António) na converseta "lusófona", que nem ideologia (aquilo da "falsa consciência" a la Marx) é. Nisso das ruas africanas, americanas, asiáticas (os PALOPs) que "falam Camões". Não ó Alegre, não falam. Fala-se, não só mas também, português. Não "Camões". Que é aquele, como me diziam agora mesmo na Ilha, com candura, o "monstro que está a pedir dinheiro", aquela estátua do Camões na Ilha, incompreendida no hiato que existe. Essa estátua, essa Ilha, esse mundo, e o próprio Camões que nele andou, que Jorge de Sena (um verdadeiro "Prémio Camões" avant la lettre) soube interpretar e que estes laureados e seus sequazes incompreendem. Tal como incompreendem o mundo. Para eles de "Camões". Lusófono. Enfim, o "destes" prémios.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 13.06.16

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Livro dez: Bairro Ocidental

Edição D. Quixote, 2015

55 páginas

 

Acompanho com interesse o que se vai escrevendo de poesia em Portugal. Não faltam vozes talentosas, que dominam bem a carpintaria do idioma e exprimem uma paleta larga de emoções poéticas – umas vezes num imediatismo espontâneo quase comovente, noutras vezes num minucioso rendilhado nunca isento de erudição.

Mas não cesso de me espantar com a persistente ausência nesta poesia de um olhar disponível para o mundo contemporâneo. Aqui não me refiro aos chamados versos de intervenção, que confundiam arte literária com propaganda política, mas ao escritor enquanto sujeito de uma oração que exige verbo e complemento directo. A produção poética actual transborda de sujeitos em transe solipsista. Como se esbracejassem no vácuo. Como se a realidade circundante pudesse conspurcar o círculo imaculado mas restrito do seu imaginário.

 

Por vezes penso que falta um Manuel Alegre pronto a sacudir o marasmo desta poesia tão incapaz de interpretar os sinais do vento como de captar os ruídos da rua. Mas não falta. Porque Alegre, com  80 anos enérgicos recém-completados, continua a escrever e a publicar poesia. O seu mais recente título, Bairro Ocidental, estabelece aliás uma curiosa rima interna com os dois iniciais, Praça da Canção e O Canto e as Armas.

Não há amores como os primeiros: meio século depois, o poeta revisita um território afectivo que tão bem conhece. É um território partilhado, a que ele chama pátria sem pedir licença aos patrulheiros de turno.

Indigna-se em ‘Variações sobre o desconcerto do mundo’: “Está tudo inverso: o longe o perto o certo o incerto / no grande desconcerto tudo aberto / direito avesso um verso onde tropeço / e um som disperso um tom onde me perco / horizonte encoberto.”

Magoa-o a ‘Hora inversa’: “Como chegar onde ninguém responde? / Sombra de sombra um rosto vem e foge / não há tempo no tempo não há onde. / Harpas do vento trazem-me o arpejo / de um desejo a morrer na praia extrema.”

Sente-se habitante de um amargo ‘Bairro Ocidental’: “Na Eurolândia tudo é permitido / bruxela-se um país berlina-se outro / um dia ao acordares estás eurodido / e o teu país efemizado é só um couto.”

E canta a ‘Libertação’: “Contra as palavras que não são de aqui / contra o cifrão contra a agiotagem / contra o défice nosso de cada dia.”

 

É uma poesia que se intromete no quotidiano e se compromete com a cidadania sem se submeter a cartilhas de feira ideológica: “A História entrou pelas meias pelas botas / entrou até pelo fato camuflado. / Entrou na pele e ficou lá. Como ser / neutro inespacial intransitivo?”

O melhor Alegre de volta. O melhor Alegre que nunca deixou de estar no local de sempre.

Os patriarcas (5)

Pedro Correia, 11.05.16

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 Manuel Alegre com os filhos Francisco, Joana e Afonso

 

Admiro pessoas que não cedem à tentação da renúncia nem andam na vida de braços cruzados. Admiro pessoas que se mantêm activas muito para além da data legal prevista para a reforma. Admiro pessoas que nunca se esquecem de que a cidadania, mais do que um direito, é um dever. E há muitas formas de exercê-la, como faz Manuel Alegre, que parece cada vez mais imune às inclemências do tempo. No ano passado legou-nos um dos seus melhores livros de poemas, Bairro Ocidental, que estabelece uma surpreendente rima interna com as suas primeiras obras, Praça da Canção e O Canto e as Armas. Há poucas semanas reuniu uma invulgar recolha de textos dispersos, atribuindo-lhes um título feliz: Uma Outra Memória. Li-o em dois dias, com o prazer de um leitor já antigo deste magnífico prosador que Alegre também é.

Ele não tem de pedir licença a ninguém para pensar como pensa. Nem molda o discurso ao sabor das modas: por isso gosta de pronunciar na sua voz bem timbrada a palavra pátria, que outros condenam ao ostracismo. Nem autoriza que os ignorantes de turno lhe imponham listas de consoantes prontas a mutilar como tábuas de uma nova lei: ele foi um dos  quatro deputados (em 230) que na Assembleia da República votaram contra a entrada em vigor do "acordo ortográfico”, rejeitado pela esmagadora maioria dos escritores portugueses. Nem necessita das funções de conselheiro de Estado, para as quais terá sido convidado e desconvidado com manifesta falta de cortesia: receber o Prémio Pessoa ou o Prémio Vida Literária da Sociedade Portuguesa de Autores são honrarias maiores. Tal como a certeza de saber que milhares de portugueses conhecem de cor os seus poemas, recitados ou cantados.

Também não necessitou do beneplácito de chefe algum para concorrer à Presidência da República fez agora dez anos, num longo e gratificante périplo pelo País que tive o gosto de acompanhar passo a passo como repórter. Ouvi-o falar largas dezenas de vezes: nunca o ouvi amesquinhar um adversário ou sequer tratá-lo com deselegância. A crítica, para dar provas de contundência, nunca necessita baixar de nível – ele, que é mestre das palavras, sabe isso melhor que ninguém. Leiam, neste seu mais recente livro, o tocante testemunho inédito sobre Mário Soares: não há ali uma palavra deslocada nem o menor vestígio de azedume. É um texto notável, a vários títulos. Também pelo pudor que revela na recusa em reabrir feridas porventura mal cicatrizadas.

Manuel Alegre tem um porte fidalgo e modos um pouco deslocados nesta época tão propícia aos sarrafeiros de turno, à esquerda e à direita. Além disso é alguém com biografia, o que parece dispensável neste tempo de celebridades-proveta, tão instantâneas como os pudins de pacote e com prazo de validade mais breve do que um iogurte.

Muito para lá das conjunturas políticas, quando estiverem extintas as fogueiras ateadas pelas paixões de circunstância, o autor de Senhora das Tempestades – um dos mais belos livros da poesia portuguesa do século XX – sobreviverá pela sua obra, que permanece inacabada.

Privilégio dele, privilégio nosso também.

 

Manuel Alegre, nascido a 12 de Maio de 1936, faz amanhã 80 anos.

"Vivemos só na espuma dos dias"

Pedro Correia, 07.04.16

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  Foto: Nelson Garrido

 

Faz falta mais clareza de opiniões na nossa vida cívica, nos nossos meios culturais e nos nossos debates políticos. Pensei nisto ao fim da tarde de hoje, no auditório da Biblioteca Nacional, enquanto assistia ao lançamento do mais recente livro de Manuel Alegre, intitulado Uma Outra Memória. Um livro com notória carga confessional, em que o autor de Senhora das Tempestades percorre na sua prosa límpida diversos episódios da sua biografia pessoal, da sua vida literária e da sua intervenção política. Com saborosos e expressivos retratos de figuras tão diversas como Sophia de Mello Breyner, Amália Rodrigues, Humberto Delgado, Pedro Homem de Melo, Mário Soares, Álvaro Cunhal, Fernando Assis Pacheco, Eugénio de Andrade, José Afonso e Herberto Helder, entre vários outros.

Numa breve intervenção, após detalhada apresentação da obra por José Manuel dos Santos, Alegre fez um vibrante apelo à generalização do "estudo da História" - vital, como sublinhou, neste tempo de dispersão colectiva à mercê dos impulsos momentâneos das redes sociais, tão fugazes como ondas que se dissipam na superfície das praias.

"Há hoje uma grande crise de memória. Vivemos todos apenas na espuma dos dias", declarou o poeta, reclamando contra os "inaceitáveis preconceitos" que nos levam a ocultar factos estruturantes do nosso percurso como antiga nação de corpo inteiro: "Ninguém fala de Aljubarrota para não chatear os espanhóis."

Quantas pessoas se expressam em Portugal com tanta clareza nos dias que vão correndo?

Felizmente Manuel Alegre, em vésperas de festejar 80 primaveras, foge à regra e insiste em falar sem comer vogais nem mutilar consoantes ou ocultar ideias. Que nunca a voz lhe doa.

Confissões de Mário Soares

Pedro Correia, 18.05.12

 

A imprensa regional é felizmente um viveiro de talentos jornalísticos. Nem sempre compreendidos, nem sempre reconhecidos. Digo isto a propósito de uma entrevista a Mário Soares que acabo de ler no semanário Jornal de Leiria. Uma entrevista muito interessante, assinada por Maria Anabela Silva e João Nazário.

Transcrevo aqui, com a devida vénia, um excerto dessa entrevista ao ex-Presidente da República, com uma pergunta e a respectiva resposta:

«- Se a política lhe abriu caminho para muitas amizades, também lhe custou alguns amigos como Salgado Zenha, Manuel Alegre ou Rui Mateus. Foi um preço caro?

- Salgado Zenha foi, para mim, uma espécie de irmão. Nunca deixei de ser amigo dele. Manuel Alegre, que sempre considerei - e considero - um grande poeta, foi um incidente político desagradável. Não mais do que isso. Rui Mateus foi diferente: foi um camarada mas não um amigo. É uma pessoa sem princípios nem valores.»

Soares franco e frontal. E o Jornal de Leiria a confirmar que a imprensa regional portuguesa está em boa forma.

A ortografia faz parte da estética

Pedro Correia, 28.02.12

Mais duas vozes se somam a tantas outras na rejeição liminar do impropriamente chamado "acordo ortográfico" que quer pôr os portugueses a escrever várias palavras do nosso idioma de modo diferente do que escrevem brasileiros (em palavras como 'recepção' e 'percepção'), angolanos e moçambicanos. Refiro-me a dois conselheiros de Estado: António Bagão Félix e Manuel Alegre. No programa Avenida da Liberdade, transmitido sábado na RTP Informação, Bagão Félix salientou justamente: «O património de uma língua não se faz da unicidade, faz-se da diversidade.» E Alegre - um dos três deputados que votaram contra o "acordo" quando foi aprovado na Assembleia da República - pronunciou-se sobre o tema com a autoridade que lhe advém de ser um dos nossos escritores mais prestigiados e premiados: «A ortografia faz parte da estética, do sentido histórico e da identidade da língua. [O acordo] desfigura e descaracteriza a língua portuguesa. Com moderação e bom senso, devia ser repensado. Neste momento a língua parece uma caricatura.»

Alegre desfez qualquer dúvida: ele continua e continuará «a escrever da mesma maneira.» Milhões de portugueses farão como ele.

Depois de Marcelo...

Helena Sacadura Cabral, 23.02.12

 

"Não tenho vocação de polícia, mas as infelicidades estão a ser muito exploradas por gente ligada ao Governo", referiu Manuel Alegre, sublinhando que recusa aderir ao "desporto de tiro ao Cavaco".

 

Depois de Marcelo, proto candidato, que quer fazer concorrência a Durão Barroso, eventual futuro candidato, agora vem o ex-candidato Alegre dizer o mesmo?!

Hum! Cheira-me, como é evidente, a rato escondido com rabo de fora...  

O debate.

Luís M. Jorge, 20.05.11

Vai ocorrer à noite, mas suponho que podemos resumi-lo já. Sócrates acusa o candidato Passos Coelho e a irresponsabilidade do PSD. Passos Coelho, de olhar vácuo, lamenta que o senhor engenheiro nos tenha colocado na situação em que estamos. Sócrates castiga Passos Coelho pela crise política que o PSD provocou enquanto ele próprio tentava salvar Portugal.  Passos Coelho, compungido, recorda que o PSD ajudou o PS a atravessar as dificuldades, etc. Sócrates recorda ao país que o PSD quer acabar com o Estado Social e reduzir milhões de pensionistas a uma miséria escalavrada, ao opróbrio, ao Bangladesh. Passos Coelho responde que na actual conjuntura, e perde-se um bocadinho no seu argumento. Sócrates pergunta ao candidado Passos Coelho o que fez ele pelo país. Passos Coelho não responde à pergunta, Sócrates repete a pergunta, Passos Coelho fica um pouco emburrado com a pergunta e perdido nos seus pensamentos mas diz uma merda qualquer. Sócrates aponta para o homem que quer privatizar a água, criar uma saúde só para ricos e fazer subir o preço do pão. Passos Coelho diz que os portugueses o conhecem (não conhecem), que os portugueses sabem (não sabem, nem ele explica), e que o senhor Presidente da República. Nos minutos finais Sócrates jura ao país que precisamos de um líder capaz de enfrentar, e que a estabilidade e os tempos difíceis. Passos Coelho, num notável esforço de memorização, sustenta que Portugal está numa encruzilhada. Sócrates ganha o debate e Passos Coelho — o Zé Maria da política — ganha as eleições.

Telhados de vidro

Rui Rocha, 20.04.11

Manuel Alegre desceu ao povoado para acusar Passos Coelho de desrespeitar o Parlamento e as figuras do PSD com a escolha de Nobre. Ora, mesmo que se pudesse aceitar a razoabilidade intrínseca da crítica, parece-me importante salientar dois pontos relativamente a esta posição. Antes de mais, pela mesma lógica, deve reconhecer-se que a escolha de Sócrates pelo PS (e por Manuel Alegre) como candidato a próximo primeiro-ministro constitui um desrespeito bem mais grave pelo país e pelos eleitores. Depois, importa constatar que, apesar da gravidade implícita na decisão de reiterar a escolha do autor moral e material da governação que nos empurrou para o estado de Bancarrota em que nos encontramos, as figuras do PS não parecem estar nada incomodadas, dedicando-se, como faz Alegre, a criticar o que se passa em casa alheia. Este é pois um caso em que a galinha da vizinha é sempre pior do que a minha. E em que, na verdade, os evidentes telhados de vidro que Alegre tem em casa aconselhariam uma atitude de recatado silêncio.

Alegre nunca esteve tão só

Pedro Correia, 11.02.11

 

Como escrevi antes do escrutínio presidencial, Manuel Alegre terminou esta segunda corrida a Belém ainda mais isolado do que na primeira apesar de contar agora com o apoio oficial do Partido Socialista e do Bloco de Esquerda. A primeira estocada foi-lhe dada por José Sócrates na própria noite eleitoral ao declarar que os eleitores haviam optado pela "estabilidade política": uma tentativa canhestra de reaproximação a Cavaco Silva lançando para cima dos ombros de Alegre o labéu da "instabilidade". A segunda - e decisiva - estocada foi-lhe dada ontem por Francisco Louçã ao anunciar no Parlamento a primeira moção de censura pós-presidenciais ao Governo socialista, deitando por terra toda a estratégia de convergência das esquerdas que Alegre tentara construir nos últimos dois anos como plataforma para a sua candidatura presidencial. Por mero tacticismo político, apenas com o objectivo de medir forças com o PCP em radicalismo de esquerda, o líder do BE acaba de dizer aos portugueses, escassos 18 dias após a contagem dos votos, que a candidatura de Alegre não teve o menor significado político nem deixou rasto de qualquer espécie. Convém não abusar da perda de memória: o Louçã que anuncia a moção contra o Governo é o mesmo que há três semanas surgia com destacados dirigentes socialistas nos comícios do candidato apoiado simultaneamente pelo PS e pelo Bloco.

Alegre, de facto, nunca esteve tão só.

O purgatório pode esperar

Pedro Correia, 26.01.11

 

Domingo à noite, logo após terem sido conhecidos os resultados eleitorais, José Sócrates revelou-se um digno aprendiz de Maquiavel. Em poucas frases colou-se ao vencedor, com o pragmatismo de um jogador de casino ao reconhecer que os dados estão lançados. E deu um abraço de urso a Manuel Alegre, como se nunca tivesse amarrado o PS a estratégias erráticas e derrotistas em dois sucessivos escrutínios presidenciais.

Lesto em sacudir a água do capote, o primeiro-ministro proclamou: "Estas são eleições presidenciais e os portugueses sempre souberam distinguir entre opções políticas nas legislativas - em que os partidos estão directamente envolvidos - e eleições presidenciais, que são baseadas em candidaturas individuais". E logo a seguir, com aquela ligeireza que o caracteriza, acentuou: "Foi com orgulho que todos os socialistas estiveram ao seu lado [de Manuel Alegre]." Esta frase, além de contradizer a anterior, estava totalmente longe da verdade, pormenor irrelevante no habitual fio discursivo do primeiro-ministro, um hábil manipulador de pessoas e factos.

Marxismo puro, tendência Groucho: "Se estes princípios não servem, arranjam-se outros." Alegre, tal como Mário Soares antes dele, acaba de ser arrumado na galeria de troféus do pragmatismo socrático. Foi, naturalmente, um chefe do Governo com ar tranquilo que na noite eleitoral garantiu ao País que "os portugueses optaram pela estabilidade política" ao elegerem Cavaco Silva, a quem Sócrates se apressou a prometer "cooperação institucional". Subentende-se que Alegre traria instabilidade: é quase uma declaração a posteriori de voto contra o malogrado candidato socialista, duplamente derrotado no dia 23 - primeiro nas urnas, a 33 pontos percentuais do vencedor; depois na oratória daquele que é ainda o líder do seu partido, resta ver por quanto tempo.

Este Sócrates de verbo fácil e manha expedita fez-me lembrar o Marco António de Shakespeare dirigindo-se aos romanos logo após o assassínio de César às mãos de Bruto. "Friends, Romans, countrymen, lend me your ears; / I come to bury Caesar, not to praise him; / The evil that men do lives after them, / The good is oft interred with their bones."

A pressa é muita: ele veio para enterrar o candidato socialista, não para o louvar. E prestar desde logo tributo ao César de Boliqueime, renascido politicamente para novo mandato, cumprindo à risca o mandamento maquiavélico: há que "manter o ânimo dos súbditos aturdido e em suspenso", evitando que possam "urdir tranquilamente algo contra ele".

O purgatório pode esperar.