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Delito de Opinião

Oliveira: o ruído e o silêncio

Pedro Correia, 04.04.15

Apreciei a atitude austera de John Malkovich no funeral de Manoel de Oliveira. Os "directos" televisivos, inimigos da contenção verbal, buscavam declarações dele sobre o cineasta, mas o consagrado actor norte-americano optou por um lacónico recolhimento - o que constitui quase sempre a melhor forma de respeitar alguém nos momentos de luto e dor. E mais ainda um realizador que trabalhava desde os dias do cinema mudo.

Vivemos infelizmente numa época nada propícia ao silêncio. E até na hora da morte irrompem as palmas que noutros tempos eram reservadas nestas ocasiões aos artistas de palco - eles sim, habituados desde sempre ao sonoro fragor dos aplausos. Desta vez não faltou sequer o ruído político, bem expresso nas insensatas declarações do secretário de Estado da Cultura ao reclamar sem demora os restos mortais do cineasta do Porto para o Panteão em Lisboa - frase típica de quem só ambiciona 15 segundos de relevo momentâneo nos telediários.

 

Mas houve também palavras inteligentes e sentidas que merecem ser valorizadas. Apontamentos de repórteres em directo - destaco o trabalho de Pedro Cruz, da SIC - informando sem estridências nem frases em excesso, relatando com sobriedade, como o bom senso e o bom gosto impõem. Houve declarações doridas e dignas, como a de Luís Miguel Cintra, lembrando que a melhor forma de homenagearmos o cineasta é ver e rever a sua obra - projectada em sala, não no televisor doméstico. Houve frases de pura emoção, como a do neto Ricardo Trêpa: «Agradeço a quem olha por nós, a essa entidade omnipotente, por me ter dado um avô como o meu avô Manuel.» Houve a oportuna ironia de João Botelho, estabelecendo a indispensável distinção entre cinema e filmes - o cinema eleva o espírito, os filmes mastigam-se como as pipocas: «Levou o cinema com ele para o céu. Porque os filmes estão hoje no inferno dos centros comerciais.»

 

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Mas o pormenor televisivo que mais me tocou nesta Sexta-Feira Santa em que Manoel de Oliveira ficou sepultado no jazigo de família no cemitério de Agramonte foi um plano que devemos ao operador de imagem da SIC apontado ao interior da viatura onde se sentava a viúva do realizador, Maria Isabel, à saída da igreja do Cristo-Rei. Plano longo e mudo, da senhora de mãos postas como em prece, prolongando para além das contingências da morte física o elo com o marido após um casamento que durava desde 1940.

Um momento extraordinário de televisão. Extraordinário também, em todos os sentidos, por não necessitar de ruído algum. A imagem dizia tudo.

E que melhor homenagem para celebrar Oliveira senão esta da sua companheira de toda a vida continuando a dialogar com ele agora que o cineasta já cá não está?

Memória de um jovem de 90 anos

João André, 03.04.15

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© - Caminhos do Cinema Português

 

Tal como o Pedro, também eu tive uma pequena experiência com Manoel de Oliveira. Em 1999, estava eu em Coimbra, fiz parte da equipa que organizou os Caminhos do Cinema Português VI. Nessa altura convidámos Manoel de Oliveira para a cerimónia abertura, onde, se a memória não me falha, passámos a versão restaurada de Douro Faina Fluvial.

 

Nessa altura ainda ele tinha uns muito verdes 90 anos de idade, mas para os jovens que éramos, ele parecia já uma figura venerada, um ancião cuja saúde física víamos como necessário cuidar. Assim, no dia em que chegou a Coimbra, de comboio, fomos buscá-lo e lá o levámos, de táxi, para ir jantar à baixa. No momento de pedir a comida, Manoel de Oliveira começa por nos surpreender. Ao invés de pedir um simples peixe grelhado (que era o tipo de comida que esperaríamos de alguém com a sua idade) decidiu-se por outro prato, o qual não recordo mas que seria algo do género de um cozido, uma chanfana ou algo de semelhante.

 

- E para acompanhar, mestre?

- Ora essa. Isto não se come sem vinho. Escolho eu?

 

No final do jantar, durante o qual ele assumiu as despesas da conversa, falando do cinema em geral, do cinema em Portugal, contando inúmeras histórias de vida (tenho dois colegas que a seguir ao jantar pegaram em blocos de apontamentos e escreveram tudo de que se recordaram), tínha bebido o equivalente a três quartos de uma garrafa de vinho e comido uma bela pratada, além da sobremesa.

 

No momento de regressar pedimos-lhe que nos desse uns minutos para ir chamar o táxi.

 

- Ora essa. Então depois deste jantar não vamos de carro. Não podemos ir a pé?

- Claro mestre, mas o caminho ainda é íngreme (a Avenida Sá da Bandeira era capaz de desencorajar a maioria dos jovens).

- Estamos com pressa?

- Não, ainda temos muito tempo até a cerimónia começar.

- Vamos então a pé. A noite está bonita e temos de fazer a digestão.

 

A cerimónia de abertura estava, a meu ver, algo vazia. Esperava algo de mais concorrido dada a presença de Manoel de Oliveira. O Manuel de Oliveira. Senti-me algo triste por isso e por ele, por aquela figura que tinha vindo de tão longe, aos 90 anos, num acto de gentileza, para participar numa iniciativa feita por amadores de vinte e poucos anos.

 

Foi no final dessa cerimónia, onde aceitou uma recordação nossa, que notei o quanto lhe agradou a viagem. Uma actividade destas, organizada precisamente por amadores de vinte e poucos anos era o que lhe dava a energia que precisava. Viu-se depois o enorme prazer que teve em todos os contactos e que lhe davam o aspecto de ter não mais que uns 50 ou 60 anos de idade. Na energia e na bonomia, contudo, era mais jovem que nós.

 

O cinema de Manoel de Oliveira pertence à história. Não será consensual nem ele o desejaria. Em mim deixa por vezes impressão e por vezes indiferença. A pessoa, o homem, esse não deixará a minha memória. Viverá sempre como aquele jovem que um dia espantou os velhos ao pedir vinho e querer subir a Sá da Bandeira.

«Não tens pernas para andar?»

Pedro Correia, 02.04.15

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 Maria Isabel e Manoel de Oliveira no dia do casamento (4 de Dezembro de 1940)

 

Há pessoas que imaginamos imortais. Manoel de Oliveira - contemporâneo de Griffith, Chaplin e Eisenstein - começou a trabalhar na Sétima Arte ainda no tempo dos filmes mudos e, enquanto actor, teve um papel de destaque na primeira longa-metragem sonora inteiramente rodada em Portugal (A Canção de Lisboa, 1933). Com uma carreira que se prolongou por oito décadas, obteve o reconhecimento generalizado dos seus contemporâneos - algo de que poucos artistas se podem gabar. Reconhecimento merecido: basta lembrar que é dele o melhor filme português de sempre.

Mas agora, que acabo de saber que o cineasta rumou enfim à eternidade, só me apetece recordá-lo num episódio bem prosaico e terreno. Ele e a esposa, Maria Isabel, vinham com frequência a Lisboa e costumavam instalar-se num hotel situado nas imediações do Marquês de Pombal. Nessas ocasiões almoçavam num restaurante da Rua Eça de Queirós, o Cacho Dourado, onde se come muito bem a preços módicos.

Eu, que à época trabalhava no Diário de Notícias, também costumava almoçar ali. E já me era familiar a presença do simpático casal, que jamais revelava o menor indício de petulância ou presunção. Mestre Oliveira teria 97 ou 98 anos por essa altura e, embora usasse bengala, percebia-se que não necessitava verdadeiramente dela.

Num certo dia, após um almoço tardio (em que não dispensou um copinho de vinho, que apreciava), o cineasta quis saber o que havia para sobremesa. O empregado fez um gesto vago em direcção a uma vitrina que se encontrava ao fundo da sala. E, em jeito de doce repreensão, logo a esposa do cineasta disse ao marido, com aquela intimidade própria dos casais que há muito aprenderam a cultivar a arte do convívio doméstico: «Não tens pernas? Vai lá ver...»

Acto contínuo, mestre Oliveira dirigiu-se à vitrina dos doces. Em passo ligeiro, sem que à primeira vista ninguém lhe atribuísse sequer menos vinte anos do que a data inscrita no seu bilhete de identidade.

Ao tomar conhecimento do seu desaparecimento físico, é deste singelo episódio que me lembro. E volto a sorrir à simples menção daquela frase que ficou a ecoar-me na memória: «Não tens pernas para andar?»

Teve-as até ao fim.

É possível sonhar em qualquer idade

Pedro Correia, 14.12.10

                              

 

No domingo à noite, certamente sem a mínima intenção de ofender, Júlio Magalhães perguntou a Marcelo Rebelo de Sousa se "ainda tem" planos para o futuro. O professor, que estava a ser confrontado inesperadamente com o tema em directo na TVI, a propósito do seu 62º aniversário, admitiu que sim, sem se mostrar melindrado. Mas pus-me a pensar como esta pergunta, só pelo facto de ter sido feita num país onde a esperança de vida é cada vez maior, revela bem como andamos obcecados com o culto da juventude e da novidade - como é evidente, desde logo, nos ecrãs televisivos, onde os cabelos grisalhos de Marcelo são uma excepção à regra.

Como não ter planos aos 62 anos? Ainda na véspera ouvira Manoel de Oliveira, com 102 completados nesse dia, falar entusiasticamente nos projectos que tem em mente e espera ver concretizados. Estas declarações, por parte de quem integrou o elenco do primeiro filme sonoro realizado em Portugal e tem idade para ser avô de Marcelo, pareceram-me uma extraordinária lição de vida: é possível sonhar em qualquer idade.

Outra lição de vida deu-nos ontem Mário Soares, em entrevista ao jornal i. "Todos os dias tenho a sensação, quando me levanto, que é um dia novo para viver. E eu gosto da vida e de viver. Sempre pensei que tinha coisas a fazer. Às vezes demais. Nunca tive um dia em que dissesse: 'Que aborrecimento! Hoje não tenho nada para fazer.' Desde rapaz sempre tive coisas para fazer, interesses, curiosidades a satisfazer..." Palavras do ex-Presidente da República, que acaba de festejar o 86º aniversário.

Júlio Magalhães não necessita de perguntar a Soares se "ainda" tem planos...