Oliveira: o ruído e o silêncio
Apreciei a atitude austera de John Malkovich no funeral de Manoel de Oliveira. Os "directos" televisivos, inimigos da contenção verbal, buscavam declarações dele sobre o cineasta, mas o consagrado actor norte-americano optou por um lacónico recolhimento - o que constitui quase sempre a melhor forma de respeitar alguém nos momentos de luto e dor. E mais ainda um realizador que trabalhava desde os dias do cinema mudo.
Vivemos infelizmente numa época nada propícia ao silêncio. E até na hora da morte irrompem as palmas que noutros tempos eram reservadas nestas ocasiões aos artistas de palco - eles sim, habituados desde sempre ao sonoro fragor dos aplausos. Desta vez não faltou sequer o ruído político, bem expresso nas insensatas declarações do secretário de Estado da Cultura ao reclamar sem demora os restos mortais do cineasta do Porto para o Panteão em Lisboa - frase típica de quem só ambiciona 15 segundos de relevo momentâneo nos telediários.
Mas houve também palavras inteligentes e sentidas que merecem ser valorizadas. Apontamentos de repórteres em directo - destaco o trabalho de Pedro Cruz, da SIC - informando sem estridências nem frases em excesso, relatando com sobriedade, como o bom senso e o bom gosto impõem. Houve declarações doridas e dignas, como a de Luís Miguel Cintra, lembrando que a melhor forma de homenagearmos o cineasta é ver e rever a sua obra - projectada em sala, não no televisor doméstico. Houve frases de pura emoção, como a do neto Ricardo Trêpa: «Agradeço a quem olha por nós, a essa entidade omnipotente, por me ter dado um avô como o meu avô Manuel.» Houve a oportuna ironia de João Botelho, estabelecendo a indispensável distinção entre cinema e filmes - o cinema eleva o espírito, os filmes mastigam-se como as pipocas: «Levou o cinema com ele para o céu. Porque os filmes estão hoje no inferno dos centros comerciais.»
Mas o pormenor televisivo que mais me tocou nesta Sexta-Feira Santa em que Manoel de Oliveira ficou sepultado no jazigo de família no cemitério de Agramonte foi um plano que devemos ao operador de imagem da SIC apontado ao interior da viatura onde se sentava a viúva do realizador, Maria Isabel, à saída da igreja do Cristo-Rei. Plano longo e mudo, da senhora de mãos postas como em prece, prolongando para além das contingências da morte física o elo com o marido após um casamento que durava desde 1940.
Um momento extraordinário de televisão. Extraordinário também, em todos os sentidos, por não necessitar de ruído algum. A imagem dizia tudo.
E que melhor homenagem para celebrar Oliveira senão esta da sua companheira de toda a vida continuando a dialogar com ele agora que o cineasta já cá não está?