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Delito de Opinião

MEL avinagrado

José Meireles Graça, 07.06.21

O Movimento Europa e Liberdade apresenta-se como “um grupo de cidadãos independentes ou militantes, simpatizantes e eleitores, unidos pela construção de um horizonte de futuro para Portugal e pela dignificação da imagem política na sociedade Portuguesa”.

Temos a burra nas couves: a construção de um horizonte de futuro é coisa de má publicidade de um empreendimento de construção civil; e a dignificação da imagem etc. é uma frase redonda significando nada. A tradição que têm entre nós as organizações, públicas e privadas, de dizerem coisas empoladas quando querem apresentar a sua missão ganharia em desaparecer: simplicidade, pá, deixem lá as doutorices.

Indo-se ao Manifesto percebe-se ao que vem o Movimento, sem que todavia a toada pedante do discurso desapareça. Adiante, que isso é o menos.

É coisa de mérito, e aderiria se não fosse o ponto 3, que reza:

A participação no processo de formação e desenvolvimento da União Europeia é uma parte necessária e configuradora do horizonte estratégico de Portugal, que precisa dessa partilha de soberania numa escala superior para poder exercer a sua soberania no seu espaço nacional.

Que Deus perdoe aos autores: Temos pelos vistos duas soberanias – uma numa escala superior, que precisa de ser partilhada, e outra doméstica, cuja condição para existir é destruir a primeira. O que este palavreado abstruso significa sei eu, e seria o suficiente para, se o Movimento precisasse de mim, lhe dizer delicadamente: Epá, eu até acho muito positivas as vossas preocupações e espero que as vossas iniciativas induzam mudanças políticas que são necessárias; assim como o grau de endividamento do país não permite sequer pensar no regresso a um módico de independência; mas isso não é a mesma coisa que tomar como adquirido que a construção federal europeia é uma fatalidade.

Neste ponto, aliás, e dependendo do grau de confiança com a pessoa com quem estivesse a falar, entraria possivelmente numa litania de impropérios, dos quais o pior seria decerto que não tenho excessiva paciência para traidores.

Adiante mais uma vez, que não é esse o meu ponto. Este é a Convenção nos passados dias 25 e 26 de Maio.

Não faltaram intervenções com interesse, que não são todavia fáceis de encontrar (o site do MEL é a característica moxinifada feita com os pés – talvez esteja lá tudo e um qualquer adolescente encontre, mas não são adolescentes típicos quem procura estas coisas). Retive sobretudo o discurso de Nuno Palma, que está no YouTube (os primeiros 25 min do vídeo) para onde não sei já quem me remeteu.

Palma diz, entre outras coisas, que o regime do Estado Novo foi mais eficaz, no plano económico, que o democrático em que vivemos desde fins de 1975, e di-lo com abundância de números ilustrativos. Mas dá-se ao trabalho de esclarecer que de modo algum está a fazer a apologia do regime deposto em 25 de Abril de 1974, por cima de cujos aspectos negativos para as liberdades cidadãs não passa uma esponja. A sua voz (que é autorizada por ser um historiador económico com obra de mérito publicada) vem assim trazer uma lufada de ar fresco ao sufocante clima intelectual falseador, ignorante e interesseiro que enterra o salazarismo/marcelismo com o labéu de regime falhado na aproximação com a média dos restantes países europeus – que não foi.

E Palma circunscreveu a sua intervenção a alguns aspectos mais salientes – o que coube no tempo que lhe foi alocado. Não falou, por exemplo, nos pontos de partida que um e outro regime encontraram, nem no clima de hostilidade internacional que o primeiro teve, pelo menos depois da II Guerra Mundial. Mas refere-se ao de simpatia e apoio de que o actual tem beneficiado, com abundantes transferências de recursos desde a adesão à CEE. Que porém constata terem desaparecido num poço de malbaratamento tão permanente e consistente que chega a parecer loucura que se imagine que novos fundos vão conseguir os resultados que os anteriores nunca alcançaram, razão por que, sem ambages, acharia melhor que tais fundos não existissem. Assim como passou ao de leve na dívida himalaica que o regime democrático produziu, tão conspícua que se toma como um corpo inerte que, desde que não cresça, faz parte do mobiliário da velha casa comum.

Em suma, Nuno Palma fez serviço público. E a importância da sua intervenção não vem apenas do interesse científico em corrigir uma historiografia vesga e superficial; vem também da utilidade prática em perceber por que razão é que um regime mau acertou onde um regime bom falhou. Poderia ter ficado por aqui, e já seria muito, mas adiantou alguns pontos de vista, discutíveis mas nem por isso menos interessantes e legítimos, sobre o que o futuro nos reserva.

A razão do falhanço mora, é claro, nas políticas de esquerda – nada que não venha sendo trombeteado há décadas, sem porém o benefício de se poderem comparar metodicamente, com análises rigorosas, quatro décadas com quatro décadas.

Daí que o mundo oficial tenha diligentemente ignorado esta parte do evento. Todo o mundo oficial? Não, o celebrado Pacheco Pereira, uma espécie de oráculo do equívoco em forma de política (o homem é há muito socialista, excepto naquelas fases em que o PSD quer ser um PS mais eficiente, caso em que oferece os seus préstimos como conselheiro) ficou como uma barata: ele, aos do MEL, do Observador, dos think tanks e da galáxia comunicacional, percebe-os bem de mais – é o que diz, com invejável argúcia.

Mas percebe o quê? As intenções. Aquele Palma foi para ali enunciar uns factos e Pacheco, com uma habilidade que o honra, entende que contra factos há argumentos: “Numa altura em que a direita radical tenta recuperar o conjunto da sua história no século XX, ou seja, os 48 anos em que governou Portugal em ditadura, porque precisa de reforçar a sua legitimidade limpando-se do seu passado, para demonizar à vontade o dos ‘outros’, vale a pena olhar para o que foi esse período negro etc. etc.”

Portanto, Palma o que quer é o regresso ao fascismo – ele e os outros, aquela cambada que, mesmo quando tem menos de 60 anos, pretende passar uma esponja no seu vergonhoso passado - isto das direitas é, no fundo, tudo igual ao litro. E é por isso que apresentam um estendal de verdades inconvenientes, das quais pretendem retirar não ensinamentos mas um pretexto para a mudança do regime.

De modo que o bom do Pacheco foi lá aos cafundós da sua papelada e escabichou uma série de episódios pouco edificantes, típicos embora numa ditadura. E a conclusão implícita é: ou tendes uma ditadura eficiente sob o aspecto económico, mas abominável sob todos os outros, ou uma admirável democracia em que eu, e outros pachecos menores, pontificamos, mas desastrosa do ponto de vista económico.

Gente decerto mais ambiciosa, ou talvez apenas mais ingénua, mas seguramente mais patriótica, acha que é possível democracia com desenvolvimento e que não está inscrito nos fastos o nosso destino de lanterna vermelha da Europa.

Estavam lá muitos desses, na Convenção do MEL. Pacheco Pereira, coerentemente, não.

Sócrates em 2011 e Sócrates em 2014: descubra as diferenças

Pedro Correia, 27.03.14

 

Parte 1: CONTRA A REESTRUTURAÇÃO DA DÍVIDA

«Quem fala em reestruturação não sabe do que está a falar»

José Sócrates, no debate com Francisco Louçã (SIC, 10 de Maio de 2011):

«O que é que Francisco Louçã propõe para resolver o problema? Diz assim [na moção aprovada na convenção do BE]: "Vamos reestruturar a dívida." O que é que significa reestruturar a dívida? Reestruturar a dívida é um termo técnico. Isto significa não pagar parte da nossa dívida.»

(«Isso seria trágico para Portugal, engenheiro José Sócrates?», pergunta a moderadora, Clara de Sousa)

«Absolutamente trágico.»

(«Quais eram as consequências para o País?», insiste a jornalista)

«Isso significaria calote aos credores. Isso significaria, em primeiro lugar, Portugal passar imediatamente a fazer parte de um lote de países que não cumprem. Da lista negra. Isso significaria desde logo o colapso do sistema financeiro, porque nenhum dos nossos bancos, nenhuma das nossas grandes empresas, se poderia financiar. Isso teria consequências gravíssimas na nossa economia, nas empresas e nos trabalhadores. Pagaríamos isso com desemprego, com falências e com miséria. É por isso que essa proposta é absolutamente irresponsável. (...) A última vez que houve uma reestruturação da dívida foi na Argentina. E o que é que significou? Significou o seguinte: a Argentina tinha uma dívida de 100 e disse que só pagaria 70 ou 80, que não pagaria o resto. Isso significa uma falência.»

(«Em que circunstâncias admitiria a reestruturação da dívida?», pergunta Clara de Sousa)

«Em nenhuma circunstância. Reestruturar a dívida significaria um prejuízo absolutamente gigantesco e monumental para o nosso país. Reestruturar uma dívida significa pagar um preço em miséria, em desemprego e em falências. E pior que isso: significa pôr em causa o projecto europeu, pôr em causa a moeda única. É por isso que aqueles que falam em reestruturação da dívida não sabem do que estão a falar.»

 

 

Parte 2:  A FAVOR DA REESTRUTURAÇÃO DA DÍVIDA

«Manifesto pela reestruturação é correcto, eu apoio-o»

José Sócrates, entrevistado por José Rodrigues dos Santos (RTP, 23 de Março de 2014):

(«O senhor defendeu que não se fizesse a reestruturação da dívida», lembra o jornalista)

«Não. Eu falei do perdão da dívida.»

(Rodrigues dos Santos não desarma: «Perdão. Tenho aqui uma notícia de Maio de 2011: "Sócrates garante que em nenhuma circunstância pedirá a reestruturação da dívida. E afirmou que isso significaria o colapso financeiro do País, que seria pago com falências, desemprego e miséria, e significaria um calote aos credores".»)

«Eu afirmei isso num debate com o Francisco Louçã. Sabe o que o Bloco de Esquerda defendia?»

(«Defendia a reestruturação da dívida», diz o jornalista)

«Não! Não. Está muito enganado. E é daí que vem o equívoco. E é aí que você é levado ao engano. O Bloco de Esquerda defendia o perdão da dívida. Mais: defendia até que parte da dívida devia ser considerada ilegítima. Isto é: "parte da dívida, não a pagamos nem a reconhecemos". E é aí que eu digo: "Desculpe, isso não pode ser. Isso vai afundar o País e desacreditar o País." Não tem nada a ver com este manifesto [assinado, entre outros, por Francisco Louçã em defesa da reestruturação da dívida]. Essa é uma forma de enganar as pessoas! E pelos vistos também o enganaram a si... (...) Eu sempre fui contra o perdão da dívida. Sempre. Nessa altura como agora. (...) Sempre defendi que ao nível europeu devíamos ter uma política de mutualização da dívida, de baixa de juros e de aumento das amortizações. É isso que o manifesto defende. Vê que o próprio José Rodrigues dos Santos foi enganado? A isso chama-se desonestidade. Desonestidade na forma de discutir. Porque nós estamos a discutir o manifesto. Eu pronunciei-me sobre o manifesto. Disse: "o manifesto é correcto, eu apoio-o". Mas não está lá nenhum perdão da dívida, nos termos em que o Francisco Louçã defendia.»

Sobre o manifesto (9)

Pedro Correia, 24.03.14

O comentário da semana

Pedro Correia, 23.03.14

«Aplaudi o Memorando quando saiu - e aplaudo na mesma a ideia geral por detrás dele, de reforma integral do País. Da mesma forma, estou agradecido aos nossos credores - especialmente os novos (BCE e FMI) - por se disponibilizarem para nos "tirar" desta alhada. Mas nada disto tem influência numa constatação (e não numa impressão) de que o volume de dívida é demasiado elevado para poder ser resolvido no curto prazo (e isto independentemente da política financeira e económica interna seguida).
O que me interessa é o aspecto moral da coisa. Este problema começou por ser um problema moral de um governo eleito (do PS) e continua a ser um problema moral para o governo em funções. Quando se olha para o conjunto de medidas tomadas ao longo deste tempo, nota-se que as mesmas têm sido (na quase totalidade) dirigidas ao tecido "não-reactivo" da despesa. Corta-se salários porque é fácil (e, apesar de tudo, reclamam pouco), corta-se reformas porque é fácil, sobe-se comparticipações pelos mesmo motivos. As verdadeiras reformas estruturais da estrutura estatal estão por fazer (quantas direcções-gerais, institutos, organismos, etc, é que foram extintos?), a reforma fiscal (tirando pequenos ajustes no IRC) está por fazer, as benesses não foram de todo afectadas (as PPP quase nada e a energia absolutamente nada), a "reforma" da estrutura administrativa do território devia ter sido liminarmente recusada pela Troika (com a justificação de que não vinham cá para gozarem com a cara deles) e exigida uma efectiva reforma, com fusão de munícipios (e deixavam as freguesias em paz) e posso continuar por aqui fora.
Moralmente, é inteiramente verdade que o governo tem sido forte com os fracos e fraco com os fortes. Os sacríficios não foram transversais nem tocaram a todos. E, assim sendo, é igualmente verdade que é legítimo que um reformado (mesmo um que receba 5000 euros ou mais) considere justo que se lhe cortam a reforma também cortem nos credores. Contratos são contratos e deveriam ser iguais independentemente do tipo e com quem são assinados.
Ao perder o pé moral, e este ajustamente peca nesse aspecto, então a única justificação seria a de eficiência. E nesse caso é exígivel que o mesmo seja processado num prazo curto (até 10 anos). Se tal não é possível, então que se passe para uma negociação com os credores. E os credores que exijam reformas DE FACTO.»

 

Do nosso leitor Carlos Duarte. A propósito deste meu texto.

Sobre o manifesto (8)

Pedro Correia, 21.03.14

Tem sido gabado o mérito das propostas do chamado manifesto dos 70 no plano económico-financeiro ou da cidadania, por vezes com frases que surpreendem pela grandiloquência: chega a haver quem ache que este documento constitui a prova viva de que estamos "condenados à liberdade".

Mas será assim?

Entendamo-nos: nada do que nele vem expresso, no plano económico, é original. Pouco se concretiza -- e, desse pouco, quase nada depende dos decisores nacionais. O Economista Português destaca a "fraqueza das propostas construtivas" do manifesto. Exemplo: "O texto sobre a competitividade é um selecto acervo de lugares-comuns desprovidos de operacionalidade". Enquanto o insuspeito Jorge Bateira, no jornal i, considera a que a proposta dos signatários "assenta em dois pilares muito frágeis: a viabilidade política da renegociação das dívidas na União Europeia e a capacidade de crescimento da economia portuguesa com os instrumentos de política de uma região autónoma, sob tutela do Tratado Orçamental".

 


Mais: "Como é que é possível que este manifesto escamoteie totalmente todos os custos associados a uma reestruturação da dívida, apresentando-lhe apenas os benefícios? Como é possível fazer escolhas informadas só com a metade boa da informação?" Interrogações de Pedro Braz Teixeira (também em artigo no jornal i), cuja perplexidade partilho.
Facto inegável: o manifesto passa praticamente ao lado do problema fulcral da economia portuguesa, que é o crescimento. E de outro, que se tornou iniludível e em grande parte se relaciona com o primeiro: a necessidade de conter a espiral da despesa pública. Nos últimos cem anos, a nossa década de menor crescimento foi precisamente a primeira do século XXI, quando continuávamos a receber fundos estruturais no âmbito do quadro comunitário de apoio.
Isto significa que o mal já vem de longe e não pode ser solucionado, no todo ou em parte, com as receitas que nos trouxeram aqui. Receitas que nos conduzem não aos três D de 1974 mas aos três D de 2014: despesa, dívida e défice.

 


De qualquer modo, o manifesto é relevante do ponto de vista político. Não por trazer a assinatura de algumas personalidades de direita, aliás quase todas comprometidas com as políticas que conduziram Portugal à presente situação, mas por incluir personalidades de grande peso político situadas à esquerda do PS. Com destaque para Francisco Louçã e Fernando Rosas, que descolam das habituais posições de trincheira dessa área política para um singular aggiornamento, indiciando estar enfim algo a mover-se na esquerda portuguesa rumo a soluções governativas de futuro. Sem necessidade sequer do recém-nascido partido Livre para desempenhar essa missão.
Isto mesmo foi intuído por Francisco Assis, com notável sentido premonitório, no seu texto de ontem no Público.
"O que é estranho não é a assinatura desses homens e dessas mulheres oriundos da direita -- é, pelo contrário, a adesão de um dirigente histórico do Bloco de Esquerda [Louçã]. Esse acontecimento tem um grande significado. É possível uma política diferente", escreve o cabeça de lista do PS às eleições europeias.
Degelo à vista na esquerda, pondo fim a um dos principais bloqueios da política portuguesa? Se o manifesto servir para isto, já terá utilidade. O resto é sobretudo folclore político-mediático, algo em que manifestamente o País não sofre de qualquer défice.

Sobre o manifesto (7)

Pedro Correia, 20.03.14

Quem critica o manifesto "dinamizado por João Cravinho e Francisco Louçã", na definição do Público, vem sendo acusado de se concentrar na contestação a quem o assina e não no conteúdo do documento, que teria um carácter irrefutável.

Sou sensível a este argumento.

Deixemos portanto de lado quem propõe e concentremo-nos naquilo que é proposto. Por que motivo será indefensável, neste momento, a "reestruturação" da dívida pública portuguesa?

Nada como dar a palavra a quem mais percebe do assunto. António Bagão Félix, por exemplo.

O que tinha ele a dizer sobre isto há cinco meses, a 3 de Outubro de 2013?

Ouçamos:

 

 

Recapitulando, se bem escutei:

 

"Quando se fala de reestruturação da dívida - entenda-se: não pagar parte da dívida -, se isso acontecer, o FMI e os outros credores preferenciais não se sujeitam a este corte a menos que haja acordo. E quem iria apanhar sobretudo o corte se eventualmente houvesse acordo? Quem pagaria isso seriam os bancos portugueses. E, apanhando os bancos portugueses um corte desses, quem apanhava era a própria capacidade de solvabilidade dos bancos e, por tabela, os depositantes. Por isso falar de reestruturação da dívida fora do contexto efectivo de quem são os detentores dessa dívida, parece-me relativamente imprudente."

 

E o que aconteceria se houvesse um perdão de dívida que afectasse os bancos portugueses?

 

"Seria terrível. Suponha que 40 ou 50 por cento da dívida era perdoada. Os recebimentos nacionais têm 62 mil milhões de euros neste momento. Significava que 25 mil milhões desapareciam de repente das companhias de seguros, dos fundos de pensões e sobretudo da banca. Alguns bancos estariam, em termos de solvabilidade, numa solução bem pior. Depois ter-se-ia que recapitalizar esses bancos. Em última análise, quem apanha no fim são aqueles que emprestam dinheiro aos bancos, que são os depositantes, que são os últimos credores."

 

Por mim, sinto-me esclarecido.

A coisa está ficando preta

Sérgio de Almeida Correia, 20.03.14

"Robert Pollin e Michael Ash são outros dois subscritores do manifesto. Estes dois nomes ganharam notoriedade no ano passado, quando detectaram erros de cálculos e no Excel de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, contrariando assim a tese dominante até então de que um elevado endividamento condenava uma economia a um crescimento lento. Reinhart e Rogoff inspiraram muitos dos que defenderam a austeridade e a redução da dívida como fórmula para superar a crise."

 

Poderão sempre acusá-los de oportunistas, free riders, socratistas, vendedores de ilusões, keynesianos ou, simplesmente, troca-tintas, a estes e aos outros que também lá estão, mas será mais difícil acusá-los de não saberem fazer contas, de andarem metidos no Freeport, nas PPP's ou de fazerem favores a troco de pratos de lentilhas.

A minha dúvida é se depois disto os membros da comissão de acompanhamento também o vão assinar, mas vou aguardar que José Gomes Ferreira e os nossos comentadores, que mudam de identidade de post para post e aqui dão lições de economia política e finanças públicas, e que são quem verdadeiramente sabe destas coisas e os conhece a todos de ginjeira, nos venham esclarecer sobre o sentido de tudo isto e quais as "negociatas" que estarão por trás de uma tomada de posição desta envergadura.

Sobre o manifesto (6)

Pedro Correia, 19.03.14

Este assinaria o manifesto. Apesar de há três anos se ter oposto categoricamente a tal solução, argumentando que isso constituiria um "calote aos credores" por parte do Estado português. "Reestruturar uma dívida significa pagar um preço em miséria, desemprego e falências e, pior que isso, significa pôr em causa o projecto europeu e a moeda única única", sustentou então.

Este também lá poria a assinatura. Ao lado daquele de quem dizia, em 20 Junho de 2009, que enquanto continuasse em cena "a vida política portuguesa [permaneceria] muito conflitual e instável, não [seriam] possíveis reformas, nem as políticas consistentes e difíceis que a crise exige".

É um momento emocionante. Um momento em que dois grandes espíritos enfim convergem. Como acontece a Rick Blaine e ao capitão Renault em Casablanca, pode ser o início de uma bela amizade.

Tácticas velhas

João André, 19.03.14

Sobre o manifesto, ou melhor, a reacção ao mesmo, disse o essencial. Faltou-me uma coisa: o ataque ao respeito pela constituição. O governo vive mal com a constituição que herdou, isso é certo e inegável. Não gosta dela e gostaria de a remover e substituir por outra ideologicamente menos carregada - como o próprio governo. Nisso, fora a completa falta de ideias do porquê, nada há de mal. As constituições são elaboradas, adoptadas e vão sendo mudadas, revistas ou substituídas de acordo com os tempos e as vontades dos políticos eleitos. Este governo poderia dizer (e há quem o diga) que a constituição está excessivamente pesada pelo lado socialista, que tem artigos a mais, que não está adequada aos tempos modernos, etc. Aquilo que lhe falta será apresentar uma alternativa. Há 3 anos que andam a falar em reformar o estado e até ao momento entregaram-nos uma redacção da 4ª classe que estava morta ainda antes de a tinta secar. De permeio demonstraram o desprezo que têm por qualquer constituição ao entregar orçamentos atrás de orçamentos ilegais.

 

Agora, aquilo que se vê é que os defensores deste governo parecem querer que a constituição seja letra morta de facto (como escrevi, o governo já a ignora há muito). Quaisquer medidas de controlo da dívida que respeitem o orçamento são - na estranha cabeça desta gente - convites ao despesismo. O branco e preto e o preto é aquilo que nós queremos, parecem dizer. E como a constituição é esquerdista, esta gente que quer obedecer ao orçamento também só o pode ser. Pelo meio faz-se o elogio à clareza de Jerónimo de Sousa, que disse o mesmo mas com mais propostas e mais clareza. Ergo, os 70 são todos uns comunistas.

 

Obviamente que não pensam assim. Sabem bem que se virem um Bagão Félix ou uma Manuela Ferreira Leite ou um Adriano Moreira pela frente se urinam todos de excitação ou medo pela desanda que levariam. Sabem que tais personalidades não são de esquerda. Sabem que o manifesto foi pouco concreto em propostas porque um manifesto assinado por Adriano Moreira e Francisco Louçã nunca poderá ser concreto para além do seu mote essencial: renegociar a dívida. Sabem também que o manifesto demonstra o oposto daquilo que o governo tem feito: um diálogo que gerou um consenso. Sabem tudo isto porque não são burros. Mas ignoram.

 

Ignoram porque há eleições a chegar. Ignoram porque em breve chegará o referendo ao governo na forma de legislativas e convém começar a pintar o inimigo como um extremista perigoso. Ignoram porque sabem que é preciso manipular a história, mesmo que para tal seja preciso mentir, assustar, intimidar. Ignoram porque sabem que isso é preciso para eviar falar nas mentiras dos governos, nos atropelos às liberdades comuns, nos ataques à imprensa livre. Ignoram porque o mestre manipulador das luzes e sombras está de volta. Ignoram porque ainda haverá muito poleiro para distribuir.

 

No fundo, ignoram as verdades que conhecem porque seguem as cartilhas mais manipuladoras da propaganda: assusta o eleitorado; faz do teu adversário um inimigo; agita as águas; mente até que a mentira seja aceite como uma verdade; usa toda a euqalquer boa notícia até à exaustão e estica-a quase até se partir. São cartilhas conhecidas de todos. Sabendo que uma boa parte dos nossos liberais são antigos marxistas, maoístas ou trotskistas, isso não surpreende. Até o último voto ser contado e reportado, ainda muito lixo vai voar.

Sobre o manifesto (5)

Pedro Correia, 18.03.14

Manifesto por um orçamento equilibrado. De Mário Amorim Lopes, n' O Insurgente.

Manifesto por menos dívida. De João Miranda, no Blasfémias.

Manifesto dos 70 ou Albergue Espanhol dos 70? De Pinho Cardão, na Quarta República.

E sobre o manifesto dos 70. De Pedro Pita Barros, no Momentos Económicos... e não só.

Três notas sobre o manifesto da reestruturação da dívida pública. De Pedro Romano, no Desvio Colossal.

O manifesto vai nu. Do Mr. Brown, n' Os Comediantes.

Eufemismos... Do Luís Aguiar-Conraria, n' A Destreza das Dúvidas.

Reestruturar o dinheiro dos depósitos. Do Carlos Guimarães Pinto, n' O Insurgente.

Reestruturar antes a despesa. De Tiago Mestre, no Viriathus Oeconomia.

Os ex-. De Vital Moreira, na Causa Nossa.

Eleições divertidas. Do Luís Naves, no Fragmentário.

"A Alemanha do pós-guerra também viu a sua dívida ser reduzida". De Vasco Lobo Xavier, no Corta-Fitas.

O mundo da (nossa) dívida de hoje. De Manuel Puerta da Costa, n' O Insurgente.

Sobre o manifesto (4)

Pedro Correia, 17.03.14

Tomada de posse do V Governo Provisório (8 de Agosto de 1975)

 

Houve vários governos muito efémeros em Portugal. Mas nenhum teve vida tão curta como o governo mais à esquerda que até hoje vigorou entre nós: durou 42 dias -- entre 8 de Agosto e 19 de Setembro de 1975 -- e só mereceu o apoio do PCP, que havia recolhido apenas 12,5% dos votos na eleição para a Assembleia Constituinte, realizada três meses antes. PS, PPD e CDS, cujos deputados somavam quase 75% dos lugares no hemiciclo de Sao Bento, não estavam representados nem se reconheciam neste Executivo liderado pelo general Vasco Gonçalves, compagnon de route dos comunistas.

Foi o tristemente célebre V Governo Provisório. Tão distante da vontade popular que começou a dissolver-se mal foi empossado. Tão extremista e tão sectário nas suas proclamações doutrinárias que cavou logo à nascença um abismo face à esmagadora maioria dos portugueses.

"Unificação progressiva da vanguarda política da revolução e do seu suporte social; estruturação progressiva dos órgãos unitários de base em ligação com o M.F.A. [Movimento das Forças Armadas]; desenvolvimento da consciência social do processo em curso, pela revolução cultural e utilização correcta e responsável dos meios de comunicação social; superação da crise resultante do desmantelamento do poder monopolista do grande capital; criação de condições para uma economia planificada, controlada pelos trabalhadores e orientada eficazmente para a transição para o socialismo; descentralização administrativa em articulação com a orgânica do planeamento; adopção de acções consequentes na política externa, em obediência ao princípio da independência nacional e promovendo esquemas de cooperação que contribuam efectivamente para a construção do socialismo em Portugal."

Eis algumas frases-chave do programa do V Governo Provisório. Que pretendia intensificar o "processo revolucionário rumo ao socialismo", procurando "acelerar a intensificação de relações com os países socialistas do Leste" [pertencentes ao bloco soviético].

Em matéria económica, previa-se a "socialização dos meios de produção", o "controlo organizado da produção pelos trabalhadores" e a "ultimação da fase de nacionalização sistemática". Além (pasme-se!) da "completa reestruturação de todo o sistema de relações sociais". Como se Lisboa, nesse Verão quente de 1975, fosse uma réplica da efervescente Petrogrado de 1917.

 

Era um Governo tão sui generis que incluía até uma inédita Secretaria de Estado da Cooperação Económica com os Países Socialistas. O que diz tudo sobre o seu pendor ideológico.

Porque me lembrei eu agora deste Executivo que marcou o auge do desvario revolucionário em Portugal? Porque dois dos seus membros figuram hoje entre os promotores do manifesto para a reestruturação da dívida: Manuel Macaísta Malheiros, ministro do Comércio Interno, e Alberto Ramalheira, secretário de Estado do Orçamento.

Os ventos revolucionários dissiparam-se há muito: certamente nenhum destes respeitáveis signatários advoga hoje a "completa reestruturação de todo o sistema de relações sociais". Eis a melhor prova: outro dos subscritores do documento é Adriano Moreira, que quando o V Governo Provisório tomou posse estava exilado no Brasil, por ter sido demitido da função pública.

 

"Melhorar é mudar, ser perfeito é mudar regularmente." Palavras de Winston Churchill, o mais reputado conservador de sempre. Palavras que bem podiam aplicar-se aos que pugnaram em 1975 pelo "desmantelamento do poder monopolista do grande capital" e hoje, mais comedidos, apenas querem "reestruturar a dívida pública para libertar e canalizar recursos minimamente suficientes a favor do crescimento".

Insuportáveis reformistas, diriam de si próprios naquele tempo em que se imaginavam a "ultimar a fase de nacionalização sistemática" integrando a "muralha de aço" do "companheiro Vasco". Para que Portugal fosse mais uma estrela de cinco pontas a brilhar no incomparável firmamento socialista.

Sobre o manifesto (3)

Pedro Correia, 16.03.14

- É nesta altura, em que estamos a dois meses da saída da tróica, que nós vamos ter com os nossos credores e dizemos: "Desculpem lá, mas afinal não podemos... temos de repensar a maneira como os bancos nos pagam."

- Não sei se leu o papel...

- Li.

- Bom. Espero que o tenha assimilado convenientemente.

- (...)

- Há um conjunto de criaturas que se lembra de reflectir sobre um papel e os mercados ficaram todos assarapantados. Eu penso mesmo que devemos ter tirado o sono à senhora Merkel e com isso eu fico preocupada: não era nossa intenção retirar o sono a ninguém. Há-de concordar que isto é ridículo!

- E o argumento da agenda política de alguns dos subscritores?

- Considero que isso é um insulto! Como não há mais nada para dizer agora insultam-se as pessoas. Estamos numa sociedade livre e democrática. Fizemos uma mera reflexão sobre um tema. Não pusemos esse tema em nenhum jornal estrangeiro, não criámos nenhum problema de natureza política que pudesse criar alguma instabilidade. (...) As pessoas que assinaram aquela reflexão poderão dizer o que entenderem. Eu, pela parte que me toca, repudio completamente. (...) Sou uma pessoa livre, independente e que tenho este grande benefício: não tenho nada para agradecer nem nada para pedir.

- Este manifesto fez rolar duas cabeças, de dois assessores da Casa Civil da Presidência da República...

- Eu não... aah... tudo quanto eu posso dizer é que são duas pessoas de quem sou amiga e por quem tenho enormíssima consideração mas é evidente, como bem compreende, não vou falar de um assunto que desconheço.

- Mas sendo uma sociedade democrática e tendo as pessoas direito à opinião...

- Desculpe, mas eu para analisar uma situação dessas teria de saber exactamente os contornos do que é que se passou. E eu não sei. Como não sei, não falo.

 

Senhora [Manuela Ferreira] Leite, em diálogo com o jornalista Paulo Magalhães.

TVI 24, 13 de Março

Sobre o manifesto (2)

Pedro Correia, 15.03.14

 

Releio o manifesto dos 70, autêntica "sopa de pedra" cheia de palavras mas sem propostas concretas para além de renegociação da dívida pública. Para o mesmo efeito, mas com muito mais clareza, prefiro a linguagem do PCP. Sem rodriguinhos nem punhos de renda.

Ouçamos Jerónimo de Sousa, o precursor: o secretário-geral comunista já defendia em 2011 o que todos os signatários do documento agora preconizam. Com palavras que não iludiam ninguém: "Face à situação insustentável que está criada, o PCP considera que o Estado português deverá assumir, em ruptura com a actual política, a renegociação imediata da dívida pública portuguesa, com reavaliação dos prazos, das taxas de juro e dos montantes a pagar, para aliviar o Estado do peso do actual serviço da dívida, canalizando recursos para a promoção do investimento produtivo, a criação de emprego e outras necessidades do País."

Concordemos ou não com o fundo, a forma correcta é esta. Porque a política exige clareza. Algo impossível de proporcionar por aqueles que hoje defendem uma coisa e amanhã defendem o seu oposto. Em palavra ou no papel.

(via A Destreza das Dúvidas)

Sobre o manifesto (1)

Pedro Correia, 15.03.14

 

Li finalmente o manifesto de que tanto se fala. Para encurtar razões, digo desde já que sobre o assunto subscrevo o essencial do que escreveram os dois directores de jornais especializados em temas económicos.

«O manifesto da reestruturação da dívida sublinha, claro, que Portugal deve cumprir, sem hesitações, as boas regras orçamentais, "de acordo com as normas constitucionais", o que, para bom entendedor, quer dizer que o Governo pode fazer tudo, desde que não reforme o Estado, o sistema de pensões e o modelo de organização da Função Pública. Sim, pode fazer tudo o resto, até aumentar ainda mais os impostos», escreve António Costa no Diário Económico.

«Na vida, por vezes, queremos seguir um caminho e acabamos a actuar de tal maneira que seguimos na direcção oposta. Acabamos a ter o que não queríamos. É o caso do Manifesto dos 70 de apelo à "preparação da reestruturação da dívida". Se o que fizeram – até mais do que aquilo que escreveram - tivesse tido algum impacto europeu, a esta hora estaríamos mais longe de conseguir aliviar o peso da dívida pública» , escreve Helena Garrido no Jornal de Negócios.

 

Mas a minha reacção perante este documento, mais do que de rejeição, é sobretudo de estupefacção. Por verificar que entre os 70 signatários figuram algumas das personalidades que permaneceram mais tempo em funções governativas nas últimas quatro décadas em Portugal. Incluindo três ex-responsáveis da pasta ministerial das Finanças.

Consulto os meus arquivos. E concluo que estas três personalidades desempenharam funções governativas em 12 dos 19 executivos que se sucederam no nosso país desde o 25 de Abril de 1974. Perfazendo, no seu conjunto, 20 anos e dois meses de actividade no Executivo.

É tocante vê-las dar este salto. Da permanência no Conselho de Ministros ao assento etéreo nas pantalhas televisivas, passando pela elaboração de manifestos em que desdizem hoje o que disseram ontem, com o conta-quilómetros a zero, transfiguradas em treinadoras de bancada.

Como se não tivessem a mais remota responsabilidade pelo estado a que isto chegou.

Manifesto-me perante o manifesto

João André, 14.03.14

Quando saiu o "manifesto dos 70" estava longe de pensar no ataque brutal que os seus subscritores sofreram. Veja-se o grupo como se quiser, uma coisa eles não são: ideologicamente próximos. Terão feito as suas previsões económicas, feito as contas e chegado à conclusão que não é possível cumprir o acordado com a troika.

 

A discordância que se pode ter é com as previsões económicas. Aquelas que "os 70" terão usado serão diferentes das do governo (o qual nem sequer é honesto em relação a elas). No entanto, em vez de discutir se será razoável esperar um crescimento médio de 2%, com 3% de excedente orçamental e juros "alemães" de 3,5% ao longo dos próximos 19 anos (segundo os cálculos neste sistema), o ataque tem sido ad hominem, do mais abjecto que vi desde que este governo foi eleito.

 

Questiona-se a motivação dos subscritores. Que estarão mais interessados em proteger as suas pensões, que não querem ver os seus "direitos" (aspas de quem os ataca) removidos. Torna-se para mim difícil levar a sério esta argumentação quando entre os subscritores estão pessoas como Adriano Moreira ou Freitas do Amaral ou Pinto Balsemão. Também se diz que entre os subscritores estão alguns dos responsáveis por se chegar a esta situação. Fantástico, quando entre outros responsáveis estão o Presidente da República ou o Presidente da Comissão Europeia. Pede-se ainda que não se agitem as ondas, que os mercados poderão não gostar e poderão piorar as taxas de juro quando queremos voltar aos mercados. Brilhante, num país que quer ser democrático.

 

Vou ser brutal: quem escreve artigos como este (que inventa conclusões), este (que não gosta de outras opiniões) ou este (que pidescamente quer logo castigar os criminosos) só pode ser classificado de sabujo. Não há um argumento. Não há uma opinião. Há apenas um latido raivoso contra quem não gosta do dono.

 

Não tenho competências para discutir de forma técnica os indicadores económicos. Podem "os 70" estar completamente errados (não o creio, mas a minha opinião vale o que vale), mas tanto quanto sei, dar uma opinião é um direito que lhes assiste e pelo qual uma boa parte lutou. Este governo e a matilha que o segue não o aceita. Isso só por si assusta-me muito mais que qualquer austeridade.

A ler

Sérgio de Almeida Correia, 13.03.14

Com a devida vénia ao Expresso e a Nicolau Santos, e sem prejuízo da oportunidade do manifesto poder não ter sido a melhor, adiante trasncrevo o artigo de hoje. Os erros devem ser corrigidos, mesmo depois de consolidados, como ainda recentemente se provou com a libertação de um inocente julgado e condenado por homicídio depois de estar encarcerado durante 26 anos. Os fundamentos do Estado de direito, a infraestrutura do sistema constitucional e democrático, não podem ser postos em causa por razões empresariais, de oportunismo, tacticismo ou de conjuntura. Por muito que isso custe.

 

"O Presidente da República disse há tempos que só quem é masoquista fala na reestruturação da dívida. O primeiro-ministro lembrou ontem esse qualificativo para se referir ao manifesto dos 70. Eduardo Catroga acrescentou que entre os subscritores há alguns inocentes úteis. E os jornalistas da área económica zurziram sem dó nem piedade os que ousaram assinar o documento, que já teve duas vítimas: Vítor Martins e Sevinate Pinto, consultores de Belém, que pediram a sua exoneração.

Eu confesso que vejo com alguma dificuldade que Adriano Moreira seja masoquista. Ou Bagão Félix. Ou Alberto Ramalheira. Ou António Saraiva. Ou Diogo Freitas do Amaral. Ou Fausto Quadros. Ou João Vieira Lopes. Ou José Silva Lopes. Ou Luís Braga da Cruz. Ou Manuel Porto. Ou Manuela Ferreira Leite. Ou Miguel Cadilhe, que não assinou mas publicou um artigo concordando no essencial com ele e lembrando que há mais de dois anos defende uma renegociação "honrada" da dívida. Ou Vítor Martins e Sevinate Pinto.

Eu confesso que vejo com alguma dificuldade que no Governo tenham existido pessoas que, por estes critérios, podem ser consideradas masoquistas, como Vítor Gaspar, que conseguiu estender os prazos de pagamento da dívida e descer as taxas de juro aplicadas.

Eu confesso que vejo com alguma dificuldade que o Conselho das Finanças Públicas, presidido por Teodora Cardoso, seja um ninho de masoquistas, já que mesmo com números superiores aos apresentados pelo primeiro-ministro (excedente primário de 2,5% e crescimento nominal de 3,5% contra 1,8% e 3% defendidos por Passos) isso só permitirá reduzir a dívida para 84,7% do PIB em 2035. 

Eu confesso que vejo com alguma dificuldade que a Comissão Europeia seja constituída por um grupo de masoquistas, já que mandatou um grupo de peritos para apresentar propostas para a criação de um fundo europeu para a amortização da dívida antes das próximas eleições para o Parlamento Europeu, que são já a 25 de maio.

Eu confesso que vejo com alguma dificuldade como é que este grupo de masoquistas não se vai alargar exponencialmente, dentro e fora de portas, quando em setembro entrarem em vigor as novas regras de contabilização da dívida pública definidas pelo Eurostat e que vão levar a que a nossa dívida pública aumente em cerca de 10 pontos percentuais, aproximando-se dos 140%.

Falar sobre a reestruturação da dívida é masoquismo. Cortar salários e pensões de forma definitiva, aumentar brutalmente impostos, assistir a enormes cortes nos apoios sociais do Estado - e fazê-lo de formam sistemática e continuada desde há três anos é refresco. Para os outros, claro.

Eu, por mim, estou do lado dos masoquistas. E tenho a certeza de que até ao final do ano vai haver muitos mais, para lá dos 70 que assinaram o documento."- aqui

Com as armas que temos na mão

Sérgio de Almeida Correia, 12.03.14

Os comentários do primeiro-ministro e do ministro Poiares Maduro ao manifesto mostram a distância que vai da ideia ao projecto, e desta à realidade. Daí que, ao verificar-se que no grupo de subscritores aparecem os nomes de dois conselheiros do próprio Presidente da República, mais um catedrático e ex-reitor que foi mandatário de Cavaco Silva no Algarve e ali responde pelo Banco Alimentar contra a Fome, mais uma mão cheia dos melhores economistas portugueses e gente com o estatuto de um Adriano Moreira, de um Bagão Félix, de uma Ferreira Leite, de um João Cravinho, de um Ricardo Bayão Horta ou dos presidentes da CIP e da CCP, talvez se perceba porque não conseguiu Passos Coelho transformar a Tecnoforma, com a sua brilhante gestão, num "player" do mercado.

O histrionismo é um mal que não se confina às fronteiras da Coreia do Norte e é capaz de se manifestar, como se vê, no mundo ocidental pelas mais diversas formas.

Não sendo especialista em coisa alguma, e limitando-me a olhar para a realidade com os olhos de quem quer apenas ver sem a pretensão de querer que os outros usem as mesmas lentes, creio que Pinto Balsemão disse em poucas palavras tudo o que havia a dizer sobre a reacção de Passos Coelho: "reestruturar a dívida é, muitas vezes, um acto de boa gestão das empresas". Quem diz das empresas também diz do país.

Uma simples frase que, conjugada com o que se viu já e se sabe do longo e brilhante passado empresarial do primeiro-ministro, explica o credo e a capacidade de liderança do primeiro-ministro.

Passos Coelho é presidente do PSD. Um partido que se reclama, diz ele, da social-democracia, embora isso não tenha qualquer correspondência na prática política. Mas se tivesse o mesmo discurso estando no PCP ou num qualquer partido da esquerda radical ninguém estranharia. Em 1975 havia quem quisesse afundar-nos a cantar o "venceremos". Em 2014 temos um primeiro-ministro que quer afundar-nos a  cantar o "não reestruturamos".

E é isto, apenas isto, que basta para mostrar a insensatez do caminho que nos quer obrigar a percorrer nos próximos trinta anos. E diz tudo sobre a sua cega agenda e irracional ortodoxia neoliberal ("we define neoliberalism as a utopian theory and elite-poltical project that proposes that 'human well-being can best be advanced by liberating individual entrepreneurial freedoms and skills within an institutional framework characterized by strong private property rigths, free markets, and free trade", Harvey, citado por Ferdi De Ville e Jean Orbi, 2014, British Journal of Politics and International Relations, Vol. 16, 149-167).

O manifesto "um novo rumo"

Luís Menezes Leitão, 23.11.11

 

Mário Soares constitui seguramente a figura mais emblemática do regime saído do 25 de Abril. É por isso com tristeza que o vejo associar-se a uma iniciativa tão absurda como a deste manifesto. Estou totalmente em desacordo com a política financeira de Vítor Gaspar e aposto singelo contra dobrado que daqui a dois anos o país vai estar ainda pior do que está hoje. No entanto, a oposição pressupõe a afirmação de alternativas, não bastando a apresentação de um texto mal escrito, em estilo de redacção escolar, sem uma mínima proposta consistente.

 

Qual a razão do manifesto? A resposta é esta: "Não podemos assistir impávidos à escalada da anarquia financeira internacional e ao desmantelamento dos estados que colocam em causa a sobrevivência da União Europeia". Alguém percebe esta construção gramatical? Afinal são os estados que colocam em causa a sobrevivência da União Europeia? Ou é o seu desmantelamento?

 

Como é que se combate a crise? O manifesto dá a resposta: "Os signatários opõem-se a políticas de austeridade que acrescentem desemprego e recessão, sufocando a recuperação da economia". Qual é a alternativa? "Apelamos à participação política e cívica dos cidadãos que se revêem nestes ideais, e à sua mobilização na construção de um novo paradigma".

 

Há, no entanto, uma explicação singela para o manifesto. Como se pode ver aqui, em 1981, quando defrontou Salgado Zenha e o Secretariado, Mário Soares apresentou ao Congresso do seu partido uma noção intitulada "Novo rumo para o PS", tendo na altura arrasado os seus opositores internos. Trinta anos depois parece querer repetir o processo, atacando claramente a estratégia de António José Seguro. Daí a clara referência às "correntes trabalhistas, socialistas e sociais-democratas adeptas da 3ª via (…)" que "foram colonizadas na viragem do século pelo situacionismo neo-liberal". Este "novo rumo" é assim na verdade um reeditar trinta anos depois da moção "novo rumo para o PS". Não me parece é que António José Seguro esteja na disposição de ter o mesmo destino de Salgado Zenha. 

 

Já em relação ao país, uma coisa tenho por certa. A actual política governamental é um desastre, mas este "novo rumo" não conduz a lugar nenhum.