MEL avinagrado
O Movimento Europa e Liberdade apresenta-se como “um grupo de cidadãos independentes ou militantes, simpatizantes e eleitores, unidos pela construção de um horizonte de futuro para Portugal e pela dignificação da imagem política na sociedade Portuguesa”.
Temos a burra nas couves: a construção de um horizonte de futuro é coisa de má publicidade de um empreendimento de construção civil; e a dignificação da imagem etc. é uma frase redonda significando nada. A tradição que têm entre nós as organizações, públicas e privadas, de dizerem coisas empoladas quando querem apresentar a sua missão ganharia em desaparecer: simplicidade, pá, deixem lá as doutorices.
Indo-se ao Manifesto percebe-se ao que vem o Movimento, sem que todavia a toada pedante do discurso desapareça. Adiante, que isso é o menos.
É coisa de mérito, e aderiria se não fosse o ponto 3, que reza:
A participação no processo de formação e desenvolvimento da União Europeia é uma parte necessária e configuradora do horizonte estratégico de Portugal, que precisa dessa partilha de soberania numa escala superior para poder exercer a sua soberania no seu espaço nacional.
Que Deus perdoe aos autores: Temos pelos vistos duas soberanias – uma numa escala superior, que precisa de ser partilhada, e outra doméstica, cuja condição para existir é destruir a primeira. O que este palavreado abstruso significa sei eu, e seria o suficiente para, se o Movimento precisasse de mim, lhe dizer delicadamente: Epá, eu até acho muito positivas as vossas preocupações e espero que as vossas iniciativas induzam mudanças políticas que são necessárias; assim como o grau de endividamento do país não permite sequer pensar no regresso a um módico de independência; mas isso não é a mesma coisa que tomar como adquirido que a construção federal europeia é uma fatalidade.
Neste ponto, aliás, e dependendo do grau de confiança com a pessoa com quem estivesse a falar, entraria possivelmente numa litania de impropérios, dos quais o pior seria decerto que não tenho excessiva paciência para traidores.
Adiante mais uma vez, que não é esse o meu ponto. Este é a Convenção nos passados dias 25 e 26 de Maio.
Não faltaram intervenções com interesse, que não são todavia fáceis de encontrar (o site do MEL é a característica moxinifada feita com os pés – talvez esteja lá tudo e um qualquer adolescente encontre, mas não são adolescentes típicos quem procura estas coisas). Retive sobretudo o discurso de Nuno Palma, que está no YouTube (os primeiros 25 min do vídeo) para onde não sei já quem me remeteu.
Palma diz, entre outras coisas, que o regime do Estado Novo foi mais eficaz, no plano económico, que o democrático em que vivemos desde fins de 1975, e di-lo com abundância de números ilustrativos. Mas dá-se ao trabalho de esclarecer que de modo algum está a fazer a apologia do regime deposto em 25 de Abril de 1974, por cima de cujos aspectos negativos para as liberdades cidadãs não passa uma esponja. A sua voz (que é autorizada por ser um historiador económico com obra de mérito publicada) vem assim trazer uma lufada de ar fresco ao sufocante clima intelectual falseador, ignorante e interesseiro que enterra o salazarismo/marcelismo com o labéu de regime falhado na aproximação com a média dos restantes países europeus – que não foi.
E Palma circunscreveu a sua intervenção a alguns aspectos mais salientes – o que coube no tempo que lhe foi alocado. Não falou, por exemplo, nos pontos de partida que um e outro regime encontraram, nem no clima de hostilidade internacional que o primeiro teve, pelo menos depois da II Guerra Mundial. Mas refere-se ao de simpatia e apoio de que o actual tem beneficiado, com abundantes transferências de recursos desde a adesão à CEE. Que porém constata terem desaparecido num poço de malbaratamento tão permanente e consistente que chega a parecer loucura que se imagine que novos fundos vão conseguir os resultados que os anteriores nunca alcançaram, razão por que, sem ambages, acharia melhor que tais fundos não existissem. Assim como passou ao de leve na dívida himalaica que o regime democrático produziu, tão conspícua que se toma como um corpo inerte que, desde que não cresça, faz parte do mobiliário da velha casa comum.
Em suma, Nuno Palma fez serviço público. E a importância da sua intervenção não vem apenas do interesse científico em corrigir uma historiografia vesga e superficial; vem também da utilidade prática em perceber por que razão é que um regime mau acertou onde um regime bom falhou. Poderia ter ficado por aqui, e já seria muito, mas adiantou alguns pontos de vista, discutíveis mas nem por isso menos interessantes e legítimos, sobre o que o futuro nos reserva.
A razão do falhanço mora, é claro, nas políticas de esquerda – nada que não venha sendo trombeteado há décadas, sem porém o benefício de se poderem comparar metodicamente, com análises rigorosas, quatro décadas com quatro décadas.
Daí que o mundo oficial tenha diligentemente ignorado esta parte do evento. Todo o mundo oficial? Não, o celebrado Pacheco Pereira, uma espécie de oráculo do equívoco em forma de política (o homem é há muito socialista, excepto naquelas fases em que o PSD quer ser um PS mais eficiente, caso em que oferece os seus préstimos como conselheiro) ficou como uma barata: ele, aos do MEL, do Observador, dos think tanks e da galáxia comunicacional, percebe-os bem de mais – é o que diz, com invejável argúcia.
Mas percebe o quê? As intenções. Aquele Palma foi para ali enunciar uns factos e Pacheco, com uma habilidade que o honra, entende que contra factos há argumentos: “Numa altura em que a direita radical tenta recuperar o conjunto da sua história no século XX, ou seja, os 48 anos em que governou Portugal em ditadura, porque precisa de reforçar a sua legitimidade limpando-se do seu passado, para demonizar à vontade o dos ‘outros’, vale a pena olhar para o que foi esse período negro etc. etc.”
Portanto, Palma o que quer é o regresso ao fascismo – ele e os outros, aquela cambada que, mesmo quando tem menos de 60 anos, pretende passar uma esponja no seu vergonhoso passado - isto das direitas é, no fundo, tudo igual ao litro. E é por isso que apresentam um estendal de verdades inconvenientes, das quais pretendem retirar não ensinamentos mas um pretexto para a mudança do regime.
De modo que o bom do Pacheco foi lá aos cafundós da sua papelada e escabichou uma série de episódios pouco edificantes, típicos embora numa ditadura. E a conclusão implícita é: ou tendes uma ditadura eficiente sob o aspecto económico, mas abominável sob todos os outros, ou uma admirável democracia em que eu, e outros pachecos menores, pontificamos, mas desastrosa do ponto de vista económico.
Gente decerto mais ambiciosa, ou talvez apenas mais ingénua, mas seguramente mais patriótica, acha que é possível democracia com desenvolvimento e que não está inscrito nos fastos o nosso destino de lanterna vermelha da Europa.
Estavam lá muitos desses, na Convenção do MEL. Pacheco Pereira, coerentemente, não.