Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

De Famalicão a Lisboa

jpt, 04.02.24

famalicão.jpg

Ontem, em Lisboa, umas duzentas pessoas manifestaram-se em Lisboa contra a imigração de islâmicos. Antes havia sido proibida uma manifestação similar, decisão estatal peculiar - e muito problemática - devida a expectativas de perturbação da ordem pública. É certo que o mote da manifestação é desagradável, acintoso até. E também é consabido que o tipo de gente atreita a participar neste tipo de eventos é infrequentável - alguns dos seus integrantes mesmo com passado escandaloso - tanto pelas suas crenças como pelo seu comportamento colectivo. Mas daí a retirar-se-lhe, a priori, o direito a se manifestarem vai um passo demasiado longo. Entretanto, e como uma organização reincidiu na organização da arruada, a pequena mole xenófoba congregou-se em prol das suas crenças e sensações, ao que consta sem prejuízo da paz municipal.

Também para ontem estava agendada a realização de um jogo de futebol em Vila Nova de Famalicão, integrado no campeonato nacional da I divisão, entre o clube local e o Sporting Clube de Portugal. A polícia faltou - o que haveria de conduzir ao cancelamento do jogo, adiado para data ainda incerta. Face à ausência da polícia, de imediato surgiram confrontos entre os adeptos dos clubes que ali iriam jogar, dos quais resultaram vários feridos, óbvia perturbação da ordem pública. Sendo que estes confrontos entre adeptos de clubes desportivos constituem já uma longa tradição, como é do conhecimento geral. Os quais desde há décadas vão sendo dinamizados pela constituição de grupos orgânicos (as ditas claques), que inclusivamente assumem cenografias para-militares. E que são muito potenciados pela fervorosa cobertura mediática às acções desses grupos  - os grandes jogos com imensa cobertura televisiva dos seus antecedentes são verdadeiros momentos da sua exaltação, de glória claquística -, bem como de alguns dos seus dirigentes, tornados figuras públicas apenas devido ao seu destaque nesses "grupos de choque". 

Ou seja, é óbvio  que cada jogo de futebol, e mesmo já de outros desportos colectivos, em particular os que implicam grandes rivalidades nacionais ou regionais, se tornou um momento em que será de esperar grandes perturbações violentas da ordem pública. Por isso convocando imensa cobertura policial. Assim sendo, qual é a razão do Estado, por antevisão de confrontos, proibir uma manifestação  - ainda para mais atractiva para meia-dúzia de gatos pingados, por raivosos que sejam - e não proibir estes jogos de futebol, e não só, que convocam milhares de gatos pingados, raivosos que são?

Finalmente, é mais do que possível que os agentes policiais tenham razões para reinvidicarem junto do governo, usando as formas que lhes são legalmente concedidas. Acontece que ontem se recusaram a trabalhar no jogo em Vila Nova de Famalicão. Não através de um qualquer formato de greve que lhes seja possível, mas sim alegando doença, entregando atestados de baixa médica. Os quais, dado estarem concertados, são evidentemente fraudulentos. Assim sendo o Estado tem a obrigação - até para salvaguardar a ordem pública, que assenta no respeito pelas ... "forças da ordem" - de punir rispidamente estes agentes desonestos. E ainda mais tem a obrigação de punir ao mais extremo nível que possa os médicos falsários que exararam esses atestados. 

E isto nem tem a ver com as simpatias políticas de cada um, ou a compreensão por quaisquer reinvidicações de grupos laborais. Quando numa situação destas o presidente de um sindicato policial (Sindicato dos Profissionais da Polícia), o agente Paulo Macedo, vem lamentar que o primeiro-ministro não tenha "desejado as melhoras" aos agentes que simularam doença, isso demonstra que os polícias já atingiram o mais baixo nível da desonestidade política, e sindical. "Estão a brincar com a tropa", como se dizia. Ou melhor, estão a brincar com o povo. E quem assim despreza os cidadãos não pode estar incumbido de funções policiais.

Manifestações

José Meireles Graça, 29.01.24

Para 3 de Fevereiro foi marcada para o Martim Moniz, em Lisboa, uma manifestação anti-islamização na Europa que está a causar alguma comoção e justificou, parece, uma proibição por parte da Câmara Municipal local, que não autoriza “toda e qualquer manifestação de caráter violento, racista ou xenófobo na cidade”.

Ao que sei, aquela zona da cidade é frequentada por muçulmanos de proveniências várias e assim pode ser interpretada, e seria, por aqueles imigrantes, como um acto hostil. Por outro lado, e posteriormente, “coletivos antirracistas” decidiram preparar uma manifestação de “pessoas de todas as cores”, para o mesmo dia e zona.

Há portanto, e duplamente, um potencial de conflito violento, conforme previne a PSP. E fosse esse, e apenas esse, o fundamento da proibição para aquele local, nada haveria a objectar. Não há falta de sítios em Lisboa onde semelhante manifestação poderia decorrer sem mais inconvenientes do que aqueles que as manifestações normalmente acarretam. E mesmo que os tais colectivos antirracistas (no essencial comunistas, bloquistas e alguns moços com muita seborreia e pouco juízo) pudessem aparecer, e haver confrontos, o papel da polícia deveria ser contê-los porque nessa hipótese seriam eles os provocadores e fautores da agitação. Se os promotores desta manifestação são de extrema-direita (é assim que os classificam os senhores jornalistas, uma alegação que pode ou não corresponder à verdade porque aquela variedade de formadores da opinião pública tende a ter opiniões enviesadas e sumárias), os contramanifestantes são de extrema-esquerda, em nada se distinguindo uns dos outros no que toca à agressividade e a intolerância.

O art.º 45º da Constituição garante o direito de manifestação. Porém, “não são [artº seguinte] consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista”.

Que as organizações fascistas não sejam permitidas não se percebe quando se permitem organizações comunistas – umas e outras são inimigas da democracia parlamentar e se os partidos comunistas estão de tal modo enfraquecidos no mundo ocidental que jogam ordeiramente o jogo democrático, nada permite supor que organizações fascistas iriam muito além do folclore. E depois conviria dar conteúdo ao que se entende por fascismo, palavra que se tornou entre todas equívoca por ter uma extensão que depende de quem a usa. Mas enfim, a Constituição di-lo, e é por o dizer que se classificam como “fascistas” estas iniciativas.

Mas, é claro, nada têm de fascistas porque a rejeição de imigrantes que não são pela maior parte susceptíveis, nem os seus descendentes, de se integrarem, não é mais do que a manifestação de compreensível medo a quem, pelas suas crenças, defende soluções que ofendem valores alcançados ao cabo de muito tempo nas sociedades do Ocidente, como por exemplo a igualdade de direitos entre os sexos ou a natureza não-confessional dos regimes.

Medo mais do que legítimo. Porque não há sociedades islâmicas com costumes e ordenamentos penais susceptíveis de aceitação no Ocidente. E isto é verdade mesmo naquelas que estão mais próximas, como a Turca, em permanente risco de regressão. E medo também porque em países como a Suécia, a Bélgica, o Reino Unido e a França já há enclaves dentro de cidades onde as leis desses países são sistematicamente desrespeitadas.

Medo também por causa da evolução demográfica. As mulheres de muitas sociedades ocidentais (noutras longitudes também, mas não curemos disso agora) não têm filhos em quantidade suficiente para repor os mortos. Ainda não se encontrou o antídoto para essa tendência negativa e enquanto não se encontre são precisos trabalhadores importados. Porém, se as comunidades islâmicas não são susceptíveis de integração e são todavia, por razão de costumes e organização social, muito mais férteis, do que estamos a falar a prazo é de suicídio, a menos que se entenda que todas as sociedades estão no mesmo estado de adiantamento civilizacional e por isso tanto faz.

É uma questão de dimensão: em tendo números suficientes estes corpos expatriados começam a tentar impor as suas mundividências. Os poderes públicos podem, se quiserem, e infelizmente querem muitas vezes, ignorar isto, prestando uma intolerável vassalagem à esquerda, que vê em todos os imigrantes e minorias os antigos explorados e oprimidos, a sua clientela.

Há falta de imigrantes potenciais? Não há. Os manifestantes vão provavelmente defender discriminações e fazem bem. Desde quando desapareceu o direito de cada país decidir quais são os estrangeiros que deve acolher?

Estes que já cá estão têm direito, desde que cumpram as leis, à mesma protecção de que gozam os nacionais, por maioria de razão se tiverem adquirido a nacionalidade ou tiverem cá nascido. Mas as portas escancaradas são a estupidez e a imprevidência feitas política. A qual se devorará a si mesma porque quanto maior for a visibilidade, e quanto mais crescer o desconforto, se os partidos do dia fecham os olhos haverá extrema-direita, ou o que isso chamam, para lhes tomarem os lugares.

De fascismo estamos conversados, portanto. E de racismo ainda mais porque onde raio se veem raças nisto (admitindo que certas características, como a cor da pele ou o formato dos olhos, servem para este efeito, o que é discutível)? A religião é uma raça?

Os organizadores acham que há uma ameaça para a Europa nas vagas de imigrantes islâmicos. Que essa ameaça exista em Portugal é duvidoso porque o nosso país não é um destino particularmente atraente. Opinião discutível, decerto, que, tal como as a expender pelos manifestantes, está protegida pelo art.º 37º da Constituição.

E a decisão da Câmara de Lisboa, nos termos em que foi formulada, está protegida pelo quê? Pelo abuso de poder.

15 de Fevereiro de 2003

João Pedro Pimenta, 25.02.23

É certo que a efeméride que agora se comemora é outra, mas não queria deixar de recordar outra, mais antiga, que tem uma ténue ligação à da invasão da Ucrânia. Há pouco mais de uma semana passaram vinte anos sobre uma data que não teve grande eco nestes dias, mas que na altura não só era nota de primeira página como se tornou um marco da globalização. Refiro-me às enormes manifestações contra a invasão do Iraque, que acabaria mesmo por acontecer pouco mais de um mês depois, e que terão sido as primeiras realmente globais convocadas pela internet, ainda antes dos smartphones e das redes sociais, mas já com os blogues a despontar (e a dar-nos alguns dos melhores debates sobre a matéria).

O dia era 15 de Fevereiro de 2003. Tinham decorrido dez dias sobre o discurso de Colin Powell na Assembleia Geral das Nações Unidas, que, com a história das "armas de destruição maciça", tinha praticamente garantido que os Estados Unidos avançariam mesmo sobre Bagdade, assim cumprindo a primeira parte do plano contra o "Eixo do Mal" urdido pelos entusiastas neoconservadores, que na altura influenciavam decisivamente o Partido Republicano e a Casa Branca com a sua ideia de democratizar o Mundo e levar a pax americana a todo o lado nem que fosse à bomba (se bem que hoje, olhando para o GOP, quase tenha saudades deles). 

Apesar dos apoios, em especial dos tradicionais aliados dos EUA, começando pelo Reino Unido e Portugal e continuando pela "nova Europa", a reação seria dura, precisamente vinda da "velha Europa", com a França a liderar a oposição à guerra, secundada pela Alemanha, no que seria até uma mini-guerra cultural. Se uns clamavam contra os "belicistas" e "falcões", outros falavam em "covardia" e "anti-americanos" e acusavam a França de ser um país que estava habituado a render-se e que tinha sido graças aos EUA que a Europa se tinha livrado dos nazis (embora também se lembrasse com propriedade que os Estados Unidos deviam a sua existência à França pela ajuda decisiva na Guerra da Independência). O corolário dessa discussão seria a patética questão das "freedom fries", um nome aplicado efemeramente às "french fries", ou seja, às batatas fritas de palito, que algumas vozes com melhor memória lembraram ser belgas e não francesas (a isto se poderia chamar o síndrome Poirot).

E a 15 de Fevereiro, um Sábado, vieram as tais manifestações. Um pouco por todo o Mundo, mas particularmente na Europa e nos EUA, precisamente nos países cujos governos apoiavam a invasão. Socorrendo-me da Wikipedia, à falta de dados mais eficazes, a maior manifestação terá sido em Roma, com mais de dois milhões de pessoas na rua, seguindo-se Madrid, Londres (ou seja, as capitais dos países que apoiavam a guerra), Berlim, Paris, etc. Um pouco menos participadas, as manifestações nos EUA tiveram ainda assim largas dezenas de milhar espalhadas por todo o território. Havia de tudo: anarquistas, artistas, freiras, estudantes, reformados, etc.

 
 
Curiosamente, o "resto do Mundo", que se deveria ter mobilizado mais contra a guerra, demonstrou uma tímida oposição popular. Na Rússia, que tantas vezes invoca esta invasão para se justificar, houve escassa contestação, na China nem houve, na Ásia, mesmo no Médio Oriente, e em África, quase nem se viu. E se se pode sempre justificar com os regimes destes países, repare-se que no Brasil, de onde tenho visto críticas à "hipocrisia dos europeus", estiveram pouco mais manifestantes do que em... Malta.

 

 

Em Portugal também as tivemos. Na de Lisboa pontificava Mário Soares, ao lado de oitenta mil pessoas. No Porto bastante menos, cerca de cinco mil. Lembro-me de ir a essa, com epicentro na Praça dos Poveiros, por oposição à guerra mas também por alguma curiosidade sociológica. Por uma vez Ferro Rodrigues estava carregado de razão: na véspera, o então secretário geral do PS declarara que embora estivesse totalmente contra a guerra não iria apoiar oficialmente a manifestação (embora não estivesse contra) porque certamente haveria gente que aproveitaria para branquear o regime de Saddam Hussein. Dito e feito: entre os oradores, não faltaram aqueles que, claramente ligados ao PC, diziam conhecer o Iraque, afirmavam não haver quaisquer perseguições políticas e que Saddam o tinha transformado num país próspero e dinâmico. Ainda houve outras diatribes semelhantes, com discursos pró-Palestina e alguma propaganda, essa sim, anti-americana, como cartazes com insultos à porta do McDonalds por jovenzinhos anticapitalistas de ar pouco cuidado. Mas não dei a tarde por perdida. A causa fundamental era nobre e até reencontrei a minha velha professora da 1.ª classe, que me ensinou a ler.

Esse dia ficaria na história, como disse, como a primeiro e provavelmente maior, até agora, manifestação global da História. Acho estranho não ter sido mais recordada, embora tivesse deixado claras sementes, e até Ian McEwan escreveu um romance, Sábado, baseado nesse dia. Mas achei importante recordá-lo, não apenas pelo momento em si mas pelo actual. É que tenho ouvido muito boa gente dizer que o Ocidente apoiou todo a Invasão ao Iraque, e que particularmente os europeus são "hipócritas" porque reclamam conta a invasão da Ucrânia e apoiaram a do Iraque. Pois este dia 15 de Fevereiro de 2003, e não só, prova que isso é mentira. É mesmo o contrário. Vai-se a ver e a França, o estado francês, opôs-se-lhe bem mais do que a Rússia e a China, e os europeus manifestaram-se em massa contra a guerra, em claro contraste com a inacção de chineses, russos, brasileiros, indianos e do resto do mundo em geral. Houve muito mais indignação popular na Europa e nos Estados Unidos do que naqueles que agora se recusam a condenar a invasão da Ucrânia com a tese da invasão do Iraque (como se uma impedisse a outra, e aí está Sean Penn a prová-lo). E por cá, o PCP bramia contra a invasão de Bush mas vem sonsamente acusar a NATO de ser culpada da guerra na Ucrânia e Zelensky de ser "antidemocrático" e outras coisas que nunca disseram de Saddam. Por isso, quando ouvirem alguém com esta conversa desmemoriada e ignorante (ou de má fé) sobre a "hipocrisia dos europeus" e os "dois pesos e duas medidas" entre a invasão do Iraque e a da Ucrânia, recordem-lhes isto e mostrem que não eles têm qualquer moral para invocar whataboutismos falsos. A memória do 15 de Fevereiro cá está para lhos recordar.

A ignorância climáxima

João Pedro Pimenta, 21.10.22

O JPT já tinha mencionado neste post, mas estas novas “acções climáticas” têm-se multiplicada de forma particularmente aberrante. Já havia uma líder espiritual, Greta Thunberg, que sabia melhor como governar os povos do que todos os líderes eleitos, conforme se viu naquela reunião da ONU, que a tantos deixou embevecidos (apesar da própria já estar a crescer nalguns aspectos). O seu exemplo de não ir à escola tem feito escola, se me permitem o contrassenso.

Há dias, num especial creio que da RTP, assisti a um conjunto de jovens “activistas” e às suas ideias para aplacar a crise climática. Diziam os frequentadores do ensino secundário que iam fazer jornadas de greve às aulas e exigiam nada menos que a proibição de uso de combustíveis fósseis, imediatamente. Em paralelo, diziam que se o Mundo não tinha futuro, então de nada lhes servia aprender, daí a greve às aulas. E também que o voto era uma coisa desnecessária, que mais importante para a cidadania era “o activismo de rua”. E quando surgiam os seus nomes, reais ou “de guerra”, aparecia também por baixo, à laia de profissão, a palavra “activista”.

Isto preocupou-me, confesso. Sei que dementes, seitas e figuras auto-messiânicas sempre as houve. Como a natureza humana não muda de um século para o outro, a actualidade não havia de ser diferente. A diferença é que a comunicação e as formas de propaganda são hoje infinitamente maiores. E permitem que qualquer grupelho radical espalhe as suas mensagens com o beneplácito de algumas instituições.

Devo desde já dizer que não sou um céptico de mudanças climáticas (embora pense que as previsões a longo prazo são problemáticas e que o homem não é necessariamente o seu único causador) e muito menos da protecção do ambiente. Fiz parte de várias associações ambientalistas e das listas do MPT, justamente o único partido ecologista português sem radicalismos urbanos. Por isso mesmo, sei que as ideias mais nobres redundam normalmente em fanatismos aberrantes. É o caso.

descarregar.jpg

Temos, portanto, jovens do ensino secundário a fazer o elogio da ignorância, da não aprendizagem e da recusa da democracia, ou pelo menos a defender uma espécie de “democracia de rua”. Coisas tão importantes, como o direito ao voto e à escolaridade, pelas quais tantos se bateram, são postas de lado por imberbes que têm tudo por adquirido. Talvez por isso alguns atentam contra obras de arte com perguntas estúpidas como “o que é que vale mais, este quadro ou o ambiente”, como se fossem comparáveis e a destruição da arte de alguma forma ajudasse o clima, mas perguntar isso seria demasiado complicado a semelhantes amibas. E também querem acabar de imediato com os combustíveis fósseis, ou seja, parar por inteiro a sociedade. Como se deslocariam? Como se aqueceriam? Quem lhes traria os seus produtos vegan? “Ah, mas para se deslocarem há as bicicletas, as trotinetes e o metro”. Brilhante, da parte de quem vive nas cidades com alguma dimensão. Vão perguntar aos agricultores de Trás-os-Montes ou do Alentejo se não se querem deslocar dessa forma. Transportar produtos agrícolas de trotinete em Vimioso deve ser espectacular. E também lhes podiam relembrar que existe uma penosa guerra na Ucrânia que está a conduzir a uma crise energética, económica e financeira. Não se terão dado conta disso? Talvez fosse bom olhar para fora da bolha.

Ainda um efeito nefasto destas novas seitas climáticas: o fanatismo vai levar muitos a afastar-se e a recusar práticas mais favoráveis ao ambiente. Numa altura em que pululam as teorias da conspiração de toda a ordem, já se fala da farsa do ambientalismo”, do “great reset climático”, etc. Esta gente, com as suas acções cretinas que apenas prejudicam, ou visam prejudicar, a vida de tantos, só vai dar mau nome à ecologia, afastando potenciais defensores criando novos inimigos e polarizações. Um enorme tiro de canhão no pé. E, no entanto, são razões de magna importância, que não mereciam ser prejudicadas pelos fanáticos climáticos sem mais nada para fazer (ou por oportunistas conhecidos para fazer aproveitamente político, mal começam a fazer misturas com o anticapitalismo, antiracismo, etc). Mas, quem sabe, mais do que proteger o ambiente, a ideia deles seja mesmo causar polarização extrema, ainda mais. Parece que está na moda. E agora noto que utilizei uma palavra, “ecologia", que passou de moda. E é pena, grande pena.

Os psicopatas americanos no Congresso

João Pedro Pimenta, 09.01.22

American Psycho, ou Psicopata Americano, é um romance, chamemos-lhe assim, escrito no início dos anos noventa por Bret Easton Ellis que retrata de forma crua, amoralmente ostensiva e exaustivamente descritiva a idade de ouro dos yuppies na segunda metade dos anos oitenta, no pré-crash de 1987. A narrativa centra-se no modo de vida de Patrick Bateman, um financeiro de Wall Street com menos de trinta anos, de início mais nas suas obsessões materiais - a casa, a decoração, os aparelhos de alta fidelidade, os produtos de beleza e de higiene, o culto do corpo, os fatos, as gravatas, os restaurantes de luxo, as drogas, as amantes e as prostitutas - e mais à frente na sua faceta (ainda) mais negra que justifica o título da obra, tudo entrecortado pelas detalhadas críticas musicais dos músicos favoritos da personagem, que surgem como curiosa Hybris normalmente em situações inesperadas.  

O livro, já de si um sucesso comercial e de crítica, foi adaptado ao grande ecrã em 2000, com Christian Bale a compor um impressivo Bateman num desempenho que projectou a sua carreira. Como já se percebeu, o protagonista espelha uma ganância e uma obsessão materialista tais (de que é exemplo o seu acesso de fúria só porque os correligionários têm cartões de apresentação mais caros e polidos que os dele, o que terá consequências funestas) que é capaz de transformar Gordon Gekko, outra personagem fictícia deste peculiar mundo dos yuppies, num voluntário caridoso. É claro que nem todas as partes das descrições torrenciais de Ellis puderam ser transpostas para o filme, mas o essencial manteve-se.

Uma das alusões na obra a figuras reais, mais presente no livro que na película, é o culto do peculiar universo que rodeia Bateman pelos bilionários ostensivos, em geral, mas com uma especial admiração: Donald Trump. Sim, Trump e as festas que ele dá, os locais que frequenta e os seus carros. Trump é o modelo, a bússola e farol, aquilo que esta mole de gente endinheirada, entediada e amoral pretende ser.

Recordei-me de novo do livro/filme e das suas alusões a propósito do primeiro aniversário da invasão do Capitólio por aquela horda estranhíssima e alucinada, que deixou como resultado cinco mortos e uma imagem de ultraje e vergonha à democracia americana, mais própria de um país do interior de África. Tinham vindo de vários pontos dos Estados Unidos, numa das alturas mais gélidas do ano, para ouvir o discurso de Trump em frente ao congresso. Um discurso aliás de acusação e de incitamento directo contra a câmara legislativa, na senda da não aceitação do resultado das eleições de dois meses antes e das alusões a supostas fraudes. As palavras eram demasiado explícitas para que não se possa ligá-las ao que sucedeu a seguir. Aliás, até parecia que alguns adoradores trumpistas, mesmo deste lado do Atlântico, já o estavam a pressentir, referindo-se a "demonstrações do triunfo do "America First" que iriam surgir em Washington. Até tinham razão, como se viu.

Trump flutua entre um instinto político eficaz e uma mitomania que se torna pública muitas vezes. Era sem dúvida este último sentimento que o dominava naquele dia. Provavelmente, no embalo daquele discurso a meio caminho entre um ditador sul-americano e o general Custer lançando ordens contra os índios, não previu que as consequências pudessem ser tão funestas. Mas foram (por pouco não o foram para o próprio Mike Pence) e são indissociáveis do seu discurso de raiva que levou aquela mole desvairada habituada a "informar-se" no Qanon a cometer um acto tão grotesco.


O contraste entre esta gente e a retratada em American Psycho é gritante, a começar pela forma de trajar e a acabar na capacidade económica. As respectivas mundividências também são abissalmente diferentes. O que as une é a admiração e a confiança quase ilimitada em Trump, embora por razões diversas. Mas é bem mais compreensível vinda dos segundos, já que Trump é ele próprio um símbolo do materialismo (e de muito exibicionismo, como se observa na sua Trump Tower e no seu avião, por exemplo) e da ganância de um lado mais perverso do "sonho americano", além de ser nova-iorquino e de ter vivido quase sempre na Big Apple. Já da parte dos invasores do Capitólio é bem menos lógico, pois falamos de gente mais proveniente do Midwest e do Deep South, menos cosmopolita e mais susceptível a propaganda e com muito menos poder económico. Trump e a fauna de Wall Street estão a anos-luz desta massa de proletários sem rumo, em muitos casos desprezando-os até, e são o oposto aos princípio cristãos (com uma interpretação muito própria do cristianismo, é certo, muito WASP) e aos modelos de família por eles defendidos.

Em suma, Patrick Bateman admira Trump não só pelas suas posses mas sobretudo por não olhar a meios para atingir os seus fins e por possuir um ego do tamanho do mundo - pela fortuna, antes de mais, e depois pelo poder político - o que o faz sentir-se quase uma divindade omnipotente perante os outros seres que o rodeiam. Combina o dinheiro, o poder e o sexo, a avaliar pelas suas bravatas. Aquela frase de que "podia dar um tiro a alguém na Quinta Avenida que não perdia um voto" seria certamente do agrado de Bateman e poderia perfeitamente ser dita por ele. Ao criar a personagem, Ellis pôs muito de Trump nela, embora não pudesse prever que uma tal levaria à invasão do Capitólio. Com a diferença de que Patrick sabe certamente muito mais de música popular contemporânea do que Donald.

Violência

Maria Dulce Fernandes, 08.06.20

21828617_5qC2m.jpeg

 

É imperativo combater a violência. 

É necessário combater todo o tipo de violência, porque há violências bem mais violentas do que a violência física,  passe o pleonasmo. 

É importante a manifestação e o protesto. Mas também é importante não desrespeitar as fracas leis com que a sociedade dos homens se cose.

Incentivar à violência redunda neste tipo de aberrações. As intenções podem ser boas, as mensagens também, mas os receptores seguramente não são.

Porque há quem não entenda e exacerbe a violência ao estado de triste vergonha.

O país político e o país real

Pedro Correia, 07.06.20

20200606_212216-1-1.jpg

Ontem de manhã, na Ericeira: Presidente de máscara na praia, acompanhado por pessoas nunca demasiado próximas, fazendo apelos à "precaução" contra o Covid-19

 

IMG-20200606-WA0014.jpg

Ontem de tarde em Lisboa, região com 92% das infecções por Covid-19 no País: manifestação junta milhares de pessoas mandando "precaução" às malvas

Infecções

José Meireles Graça, 19.04.20

O 25 de Abril, sem guerra colonial, não teria tido lugar em 25 de Abril, e quantos anos ainda o regime duraria é anybody’s guess. A “revolução” foi um golpe de um exército cansado de uma guerra sem fim à vista, bem-sucedido porque ninguém estava disposto a defender um regime cujo prazo de validade já fora ultrapassado há muito.

A populaça aderiu em massa e, sem anticorpos contra a doença comunista porque esta fora severamente confinada pelo Estado Novo, houve um crescimento exponencial da infecção, que afectou quase 20% da população.

O agente patológico suscitou à época grandes aflições por se alojar no cérebro, causando danos comportamentais que se traduziam numa forte agressividade em relação a indivíduos sãos, particularmente se financeiramente confortáveis, mas em 25 de Novembro alguns facultativos encontraram tratamento para um dos sintomas, a componente agressiva, que foi erradicada.

Como acontece frequentemente, o vírus, a breve trecho descrito pela literatura da especialidade como o communis74, sofreu mutações: a principal, annacletus99, tem uma taxa de infecção que tem oscilado entre R0 e R1, o que ainda significou no ano transacto quase meio milhão de indivíduos de ambos os sexos, com prevalência em citadinos jovens portadores de acne.

O annacletus99 afecta as suas vítimas nas suas capacidades cognitivas, com manifestações reiteradas de delírios lógicos e recurso a efabulações, não é letal, não existe vacina e, podendo evoluir para uma condição crónica, apresenta todavia taxas de remissão consideráveis por razões que a ciência não pôde ainda apurar, que tendem a manifestar-se em pacientes que ultrapassam a fase juvenil. O sintoma da recuperação é, invariavelmente, uma profissão de fé obsessiva em doutrinas social-democratas.

Quer dizer que, não fora a excessiva contemporização com comportamentos disruptivos de uma sã ordem social, que os poderes públicos adoptaram na tentativa de estabelecer pontes com os afectados, conquistando-lhes a simpatia, e poder-se-ia dizer que se pode conviver, sem graves disrupções, com os vírus desta família.

Elementos da comunidade científica, porém, confessam-se apreensivos com uma possível nova mutação, denunciada pela reacção de vários responsáveis políticos à possibilidade de cidadãos seniores desafiarem as leis que esses responsáveis aprovaram, comemorando o golpe militar acima mencionado em plena Assembleia da República, e desfilando numa marcha tradicional do 1º de Maio numa avenida da capital, ao som de musiquetas anacrónicas e palavras de ordem roufenhas.

Com efeito, seria de esperar que semelhantes manifestações de um ostensivo comportamento antissocial fossem objecto da mesma repressão que encontrou a celebração da Páscoa ou as cerimónias de inumação de cadáveres, às quais familiares e amigos chegados dos falecidos são impedidos de comparecer. Mas não: uma jovem ministra fez a propósito declarações que indiciam sérias perturbações, insinuando que nos funerais as pessoas costumam manifestar o seu pesar com abraços e beijos, coisa que é insusceptível de acontecer debaixo do arvoredo da Avenida da Liberdade aquando da passeata; e, mais grave ainda, o próprio Governo abre uma excepção para o Dia do Trabalho, no artigo relativo ao dever geral de recolhimento constante da legislação pertinente.

De modo que se teme que uma parte da classe dirigente política, mormente a maior parte dos deputados, o Governo e até o senhor presidente da República, se encontrem em estado de grande desequilíbrio mental de origem viral.

Ora, semelhante hipótese não se reveste, no caso do senhor presidente, de perigosidade assinalável, visto que é improvável que a sua popularidade se veja afectada por quaisquer comportamentos menos próprios, como ficou demonstrado com a reacção pública ao hábito surpreendente de mudar de calções de banho em público.

Mas no caso do Governo alguns socialistas e social-democratas Riófilos meus amigos (dou-me com toda a espécie de gente) confessam, à boca pequena, a sua aflição.

Tenho procurado, sem grande sucesso, sossegá-los, dizendo-lhes que há males que vêm por bem: com 130 velhotes no palácio de S. Bento a ouvirem inanidades, e um número indeterminado de cidadãos a agitarem bandeiras e gritarem palavras de ordem na via pública, a mensagem é clara – esqueçam lá essa coisa do confinamento.

O novo vírus, como os anteriores, bem não faz. Mas a gente habitua-se.

Um ano quente na Albânia

João Pedro Pimenta, 31.07.19

Ultimamente os Balcãs não têm sido notícia na comunicação social portuguesa, e a Albânia menos ainda. O pequeno país encravado pela Grécia, pelo que restou da ex-Jugoslávia (incluindo um prolongamento étnico chamado Kosovo) e pelo Adriático raramente é referido em Portugal. Era-o quando os partidos maoístas o viam como "farol do socialismo", quando houve a rebelião de 1997, a guerra no Kosovo ou quando a sua selecção de futebol venceu Portugal em Aveiro, em 2014, no arranque da qualificação para o Europeu de França, causando ondas de choque que levaram à demissão de Paulo Bento e à contratação de Fernando Santos (e consequentemente, à vitória no Euro, por isso, um agradecimento especial à equipa albanesa).

Apesar de continuar a ser um pouco obscuro, tem uma localização geográfica de relevo (nos vários sentidos da palavra, já que grande parte do território é montanhoso), nos Balcãs ocidentais, e a uns cem quilómetros, do outro lado do Adriático, fica a Itália. Aquele território, à primeira visto discreto, dividido anteriormente entre o Epiro e as tribos Ilírias, tornou-se uma peça importante do Império Romano, do ocidente como do oriente, antes de se dividir entre vários pequenos potentados, ocasionalmente unidos. Seguiu-se a invasão turca, apesar da furiosa oposição de Skandeberg, rivalizando com Veneza no litoral. Durante séculos, os albaneses ocuparam importantes cargos administrativos no Império Otomano, chegando a vice-reis e depois a reis do Egipto, só sendo destronados por Nasser. Até 1912 foram possessão dos turcos, ano em que alcançaram a independência, na Guerra dos Balcãs, com a hostilidade dos vizinhos sérvios, montenegrinos e gregos, já que eram o único país de maioria muçulmana. Seguiram-se a Primeira e Segunda Guerra Mundiais, muita instabilidade, república seguida de monarquia, a invasão italiana e o auxílio alemão e a expulsão de ambos pelos partisans comunistas, que tomaram o poder. O novo regime, liderado por Enver Hoxha, embora não dependesse da URSS, exaltava Estaline, e aquando da desestalinização de Krushov rompeu com os soviéticos, virando-se para a China, a qual também abandonou depois desta estabelecer ligações com os EUA. Era absolutamente dependente da liderança dogmática de Hoxha e tornou-se um estado isolado e empobrecido, quase sem relacções diplomáticas, repressivo e nacionalista ao máximo, mantido pela paranóia da hipotética invasão jugoslava ou grega, o que levou à construção de milhares de mini-bunkers por todo o país. Tornou-se também num estado oficialmente ateu, em que qualquer demonstração religiosa era severamente punida.

Hoxha morreu em 1985, e o regime começou a amolecer, mas só depois das grandes manifestações de 1991 é que caiu definitivamente, tornando-se numa democracia parlamentar. Mas sofreu inúmeros sobressaltos, com a complicada passagem de um sistema comunista maoísta rural para uma economia de mercado, o colapso da economia em 1997, que levou a dois meses de guerra civil e ao domínio de vastas partes do território por gangues e milícias várias, e a guerra do Kosovo, com milhares de kosovares albaneses a fugir para lá e o receio de uma invasão sérvia. A partir do ano 2000, a situação política e social melhorou consideravelmente.

Mas as suas particulares circunstâncias têm agitado a política local. Dois partidos dividem a chefia de governo: o Partido Democrático, de centro-direita, europeísta, que surgiu como alternativa quando o regime comunista ruiu, mais popular no Norte, e o Partido Socialista, de centro-esquerda, herdeiro directo do antigo partido único convertendo-se à pressa á social democracia, com mais apoio no Sul. É este que se encontra actualmente no poder, desde 2013, com Edi Rama como primeiro-ministro. Rama teve um percurso pouco usual para um político de carreira: formou-se em belas-artes, viveu como pintor e escultor em Paris, expondo algumas vezes as suas obras, e jogou basket (mede perto de dois metros). Entrou depois para a política, e como presidente da câmara de Tirana mudou a cidade, com novos planos urbanísticos e ordenando que se pintassem os deprimentes prédios dos tempos comunistas com cores garridas. Acabou por perder a capital para Lulzim Basha, mas, como líder do Partido Socialista, ganhou as legislativas seguintes, tornando-se primeiro-ministro, e voltou a ganhá-las há dois anos. Quanto a Basha, tornou-se por sua vez líder do Partido Democrático e da oposição.

Foram precisamente as eleições de 2017 que ajudaram a despoletar as manifestações que desde o início do ano se organizam contra o governo. Acusam Rama de estar mancomunado com o tráfico de cannabis (cujas plantações abundam no país) e de ter falsificado boa parte dos votos que lhe deram a vitória, em conluio com os grupos de traficantes. Mas acusam-no igualmente de estar a recuar naquilo que fora uma das suas promessas mais veementes: o cumprimento de metas para a adesão futura à União Europeia, por pressões de Vladimir Putin.

Um dos grandes objectivos de Putin é o de impedir novas adesões à UE, se não puder enfraquecê-la e desagregá-la, como com o Brexit. Assim, tem feito pressão ou usado subterfúgios para adiar ou impedir novas entradas. Tendo em conta que os estados que pediram a adesão se encontram nos Balcãs, incluindo a sua tradicional aliada Sérvia (que alguns temem que possa ser um cavalo de Tróia da Rússia), Putin tudo fará para não perder a sua influência naquela zona, sobretudo nos países ortodoxos, com os quais tem uma estreita ligação cultural.

Por isso mesmo, a oposição tem-se manifestado não somente com as bandeiras da Albânia mas também com as da UE, Estados Unidos e Alemanha, para realçar o seu sentimento pró-ocidente. As eleições municipais de fins de Junho foram boicotadas e só o Partido Socialista é que participou. As manifestações na rua, muito concorridas, sobretudo em Tirana, tanto têm sido pacíficas como têm alguns picos de violência, como aconteceu em Maio. Além das bandeiras, exibem-se cartazes apelando à demissão do governo, com imagens comparando Rama a Enver Hoxha ou colocando-o entre os líderes comunistas clássicos. Basha, o líder da oposição, costuma liderar estes movimentos e discursar aos manifestantes. Têm como grito de guerra "Rama Ik (fora, ou sai)", clamado até à exaustão exigindo a demissão do governo, que acusam de ser ilegítimo, e a convocação de novas eleições. Mas Rama não cede, acusa a oposição de conspirar e de produzir calúnias contra ele, e usa as suas armas, como a de que em alguns relatórios da UE consideraram o sistema judicial albanês, com inúmeros juízes colocados pelo Partido Democrático, altamente corrupto e viciado.

Se é certo que a prática da corrupção e do banditismo são correntes no país, já é mais difícil saber se o actual governo tem sabotado os seus próprios esforços para a aproximação à UE. Rama viveu em França e um dos objectivos que tomou a cargo é o de uma futura adesão, apoiando também a entrada na NATO, entretanto já concretizada (quem diria há uns anos, a Albânia na NATO...). À partida, todos deveriam querer esse rumo. Mas as jogadas e chantagens dos russos são infindas, como já se viu, e embora a Albânia não seja o parceiro privilegiado nos Balcãs (até porque há o Kosovo, na prática uma criação americana), não é de excluir que tenham sido utilizados métodos menos claros. Pelo menos são essas as acusações da oposição, que disso se aproveita para vincar os seus galões pró-ocidentais. Em todo o caso, o clima político no país está bastante tenso, quase de insurreição. Os próximos meses poderão revelar se as coisas acalmam ou se se complicam ainda mais, mas até ver, só prejudicam o cumprimentos dos critérios de adesão à UE.

 

(Em cima, uma amostra das manifestações correntes em Tirana, onde são visíveis bandeiras da UE, dos EUA e da Alemanha, além das da própria Albânia e do Partido Democrático, cujo líder discursa num palanque).

Joshua Wong

Sérgio de Almeida Correia, 21.06.19

20190617_joshua_wong_afp_000_1hk8ds.jpg

(Isaac Lawrence, AFP)

Carrie Lam pediu desculpa duas vezes mas, aparentemente, a genuinidade desses gestos perdeu-se há muito na altivez arrogante com que a Chefe do Executivo foi gerindo a crise desencadeada pelas alterações às leis de extradição.

De nada serviu a decisão de adiar e depois suspender a discussão do diploma ou a manifestação de amor a Hong Kong e ao seu povo. Há muito que a confiança desmoronara, há muito que falava sozinha e que as suas palavras tinham perdido sentido para os seus concidadãos.

Não tendo sido anunciado o cesto dos papéis como destino final da proposta do Governo de HK sobre as alterações às leis de extradição, nem retirada a classificação de "motim" (riot) aos acontecimentos da semana passada, não é de admirar que esta manhã a população da ilha tenha voltado a sair à rua e tomado posições nas imediações de Central e de Admiralty. Gloucester Road está encerrada, bem como os serviços públicos, e a situação de semi-caos e confronto permanece.

O director do Macau Daily Times, em mais um dos seus notáveis editoriais, chamava a atenção para a segunda oportunidade pedida por Carrie Lam. Ciente dos erros cometidos por aquela e do teatro que entretanto aconteceu, o editorialista lucidamente antevê que a sua demissão poderá estar para breve.

Esse será apenas mais um episódio, a ocorrer, na triste saga dos falhanços que desde 1997 têm acontecido com a governação de HK. O que a actual situação comprova é que os dirigentes do PCC nunca chegaram a compreender a dimensão, alcance e consequências da tese de Deng Xiao Ping e do princípio "um país, dois sistemas". O preço da incompreensão das teses do arquitecto da reforma vai continuar a ser pago. Nas ruas. E em dólares. Todos os dias na Bolsa de Hong Kong.

No meio deste turbilhão que volta a envolver Hong Kong há um nome que sobressai, o do activista Joshua Wong. Libertado da prisão no passado dia 17, imediatamente prestou declarações à imprensa e se juntou aos manifestantes.

Nascido em 1996, menos de um ano antes da transferência de soberania da ex-colónia britânica, e educado na tradição luterana, frequentou uma escola católica de Kowloon. De caminho trabalhou na correcção da dislexia que lhe fora diagnosticada. Destacou-se na contestação de 2014, conhecida como o Movimento dos Guarda-Chuvas, altura em que foi preso pela primeira vez. Intrépido defensor do sufrágio universal, da democracia e do rule of law, em 2016 fundaria, juntamente com Agnes Chow e Nathan Law, figuras de proa do chamado Scholarism, o partido Demosisto. Apesar de ter conquistado, por via eleitoral directa, o direito a estarem representados no Legislative Council, o parlamento local, o partido nunca chegou a assumir funções na câmara em virtude do seu afastamento por via burocrática e judicial.

Desconheço até que ponto a influência de Joshua Wong se fará sentir nos protestos que hoje (re)começaram, embora esteja convencido de que o processo de aprendizagem dos últimos anos, por vezes feito à custa de muitos erros, com detenções, julgamento e prisão pelo caminho, será decisivo para o rumo que os acontecimentos vierem a tomar a partir daqui.

Uma coisa é certa: apesar da sua idade, Joshua Wong é uma referência e uma garantia de solidez do movimento pró-democracia e dos oposicionistas a Carrie Lam. A capacidade de mobilização da Frente Cívica tem sido imensa. Aliada à liderança de uma personalidade com o carisma, a maturidade, a convicção, a coragem, a clareza discursiva e a visão estratégica e politica de um Joshua Wong é de temer um endurecimento do movimento, o que quer dizer trabalhos dobrados para Pequim. Joshua Wong não é um miúdo qualquer. Como alguém escreveu, Joshua é um super-homem.

A aceleração do processo histórico promovida por Pequim começa a ter um preço demasiado elevado para as forças tradicionalistas. Não se prevêem tempos fáceis para o governo de HK, nem para Xi Jinping e o Partido Comunista Chinês.

E o que aí vem não se resolverá com a demissão de Carrie Lam, cujos contornos de inevitabilidade se tornam cada vez mais evidentes.

Um desporto francês

João Pedro Pimenta, 30.11.18

 

Muita gente fica admirada com a violência das manifestações dos "Coletes Amarelos" em França, como se fosse um fenómeno raro por aqueles lados. O caso é sério, mas não é exactamente o Maio de 68 e menos ainda a Revolução Francesa. Manifestar-se com certa agressividade é uma velha tradição no hexágono: desde a Jacquerie da Idade Média, continuando com a Fronda, a Comuna, e claro, as referidas Revolução Francesa, que realmente mudou o país, e o Maio de 68, e muitíssimas outras pelo meio, é quase um desporto nacional, ao lado do ciclismo e do futebol.


Aí em meados da década passada assisti a uma manifestação bem no centro de Paris., perto da Ópera Garnier Eram bombeiros, com umas exigências quaisquer. Vinham de uniforme, capacete, e em alguns casos de machado em punho. A impedir a sua marcha, barreiras policiais e camiões de água. Quando se lançaram os jactos de água actuaram e conseguiram travá-los por uns momentos. Mas logo os bombeiros voltaram à carga e aí a polícia não esteve com meias medidas e usou o gás lacrimogêneo. Eu andava a fotografar os acontecimentos e apanhei em pleno com aquilo. Garanto-lhes que a experiência não é nada aconselhável. Refugiado no átrio de um edifício vizinho, a lavar a cara num bebedouro que julguei na altura oportuno (pior a emenda que o soneto), junto a uns japoneses atemorizados, ouvia ao lado um veterano com ligeiro ar tardo-anarquista, desdenhoso: "isto não é nada, jeunne homme. Eu estive no Maio de 68, e aí é que era".

Os jornais do dia seguinte deram umas breves notícias ao acontecimento. Era mais um entre tantos outros semelhantes.

PS: deculpem-me a qualidade das fotografias, mas o scanner não conseguiu melhor.

Scanner_20181129 (3).png

Scanner_20181129.png

Um país de opereta.

Luís Menezes Leitão, 19.09.18

1-4-1060x600_c.jpg

Eu julgava que neste país existiam leis que puniam os bloqueios de estrada e a ocupação da via pública, impedindo a normal circulação do trânsito. Afinal parece que em Portugal é possível fazer uma manifestação a utilizar carros indevidamente estacionados para cortar a via pública nas principais cidades do país, causando o caos no seu funcionamento e prejudicando centenas de milhares de pessoas. E as autoridades, em lugar de cumprirem a lei, até se dispõem a colaborar nesse objectivo, cortando elas mesmas o trânsito e reservando as vias para o estacionamento dos manifestantes. Digam lá se isto não é um país de opereta.

O ridículo mata

Sérgio de Almeida Correia, 30.05.16

20160524_141311.jpg

Não tenho nada contra manifestações, desde que sejam pacíficas e tudo se processe dentro da legalidade. Com mais ou menos exaltação, mais ou menos indignação, todos têm o direito de se manifestar e agitar as suas bandeiras, tendo o Estado de direito o dever de proteger essa conquista da democracia. Se existe ou não razão para a manifestação, isso é outra história. Por isso mesmo, seria curioso se amanhã os defensores da escola pública se lembrassem de promover manifestações por todo o país em defesa da sua dama. Para exigirem, por exemplo, o fim dos contratos de associação e mais dinheiro para a escola pública. Quem sabe se então o título da notícia não seria qualquer coisa como "Milhares em defesa da escola pública e contra os contratos de associação"?  Não é que eu esteja a sugerir alguma coisa que não devesse já ter sido feita, mas seria o bom e o bonito.

De qualquer modo, tenha uma manifestação o peso que tiver, convenhamos que a defesa dos contratos de associação não é propriamente a mesma coisa que defender a Rádio Renascença do perigo comunista. Para ser coerente e manter a razão, a Igreja portuguesa devia agir com inteligência. E arranjar uma causa, como hei-de dizer, menos fracturante. 

Aonde é que pára a polícia?

Luís Menezes Leitão, 23.11.13

Nenhum regime consegue subsistir se não assegurar que tem o monopólio da violência. Precisamente por isso é que é suicida provocar sentimentos de revolta em forças armadas ou policiais, mesmo que se trate de questões mais prosaicas como o seu estatuto e remuneração. A revolta militar que conduziu ao 25 de Abril foi desencadeada precisamente em virtude da insatisfação causada pelo Decreto-Lei 353/73, de 13 de Julho, que colocou militares do quadro permanente em risco de ser ultrapassados por oficiais mais novos. Quando o governo de Marcello Caetano recuou já era tarde, pois a revolução estava em marcha. O ataque ao estatuto profissional dos militares foi assim o rastilho que desencadeou a revolução.

 

 

Em 1989 tivemos uma contestação policial, com a célebre história dos secos e molhados. Nessa altura o Governo de Cavaco Silva, pela mão de um Ministro da Administração Interna até então completamente desconhecido do público, Silveira Godinho, resolveu atirar a polícia de choque contra os polícias que se manifestaram em defesa do direito a constituir associações sindicais. Apesar da repercussão internacional das imagens de polícias a controlar polícias, a verdade é que a autoridade do Governo saiu reforçada do episódio, demonstrando que continuava a ter o controlo das forças policiais, que não hesitavam em actuar sobre os seus colegas recalcitrantes. Mais tarde, no entanto, viria a ser dada razão aos manifestantes, uma vez que a polícia já dispõe de associações sindicais.

 

 

É por isso que não tem comparação o que se passou na quinta-feira passada. A imagem que passou para a opinião pública foi a de que a polícia que guardava o parlamento não estava disposta a reprimir o protesto de colegas seus, tanto assim que os deixou sem qualquer problema levantar a barreira e chegar às portas do edifício.

 

 

A partir daí os manifestantes só não entraram no parlamento porque não quiseram. Ao mesmo tempo, e de forma quase profética, Mário Soares na Aula Magna avisava para os riscos de a violência chegar ao país. Efectivamente, e por muito bem comportados que os portugueses sejam, se o Governo deixar de ter autoridade sobre a polícia, não consegue impedir uma escalada de violência. Nesta altura, já se fala em a polícia fazer uma greve às multas, completamente ilegal, e que abre um perigoso precedente. É que a seguir à greve às multas, pode seguir-se uma greve à perseguição dos criminosos.

 

O Governo sentiu-se por isso posto em xeque e percebeu que tinha de mostrar a sua autoridade. Segundo se refere aqui, Miguel Macedo exigiu ao Director da PSP, Paulo Valente Gomes, que fizesse rolar cabeças dentro da polícia e, como ele se recusou a fazê-lo, tal determinou a sua demissão. Com esta atitude, o Director demitido vai ser considerado um herói pelos polícias, sendo o seu substituto visto apenas como um homem de mão do Ministro. Trata-se de uma estratégia absolutamente suicida, a fazer lembrar Marcello Caetano, quando demitiu Spínola e Costa Gomes por não irem à cerimónia da brigada do reumático. A haver demissão, parece-me que a mesma deveria ser do próprio Miguel Macedo, que deveria ter assumido perante o país a responsabilidade pelo que se passou no parlamento.

 

Muita gente tem desvalorizado os avisos de Mário Soares. Mas a verdade é que, apesar dos seus quase 90 anos, o homem continua perfeitamente lúcido e já viu muita coisa. Esta revolta policial é um sinal claro de que as coisas se estão a tornar muito complicadas para o Governo. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

Notícias de uma manifestação verdadeira ou deve ser o que chamam de jornalismo interpretativo

José António Abreu, 02.03.13

Funcionária – «jornalista» parece-me exagero – da SIC Notícias entrevista criança de 5 ou 6 anos no Terreiro do Paço.

«Porque estás aqui?»

«Porque… não sei.»

«Não sabes? Mas percebes que é importante cá estar?»

«Uhhh…»

«Um dia perceberás.»

A manif.

Luís M. Jorge, 17.10.11

AltermundialismoNovos modelos de desenvolvimento? Um protesto contra as medidas de austeridade? Deixem-se de merdas: preocupei-me com a austeridade na altura própria, quando metade dos nossos pategos punha bandeirinhas à janela pela selecção nacional. O motivo que me levou ao Marquês de Pombal no dia 15 foi este.

 

Um Governo que recebe a família Espírito Santo enquanto discute o Orçamento de Estado é um governo que reconhece, tão bem como o anterior, a voz do dono. E se eu puder chatear, chateio.

Há por aí alguém que não esteja indignado?

Rui Rocha, 15.10.11

A avaliação das marchas dos indignados em Portugal fica condicionada pela comparação com os protestos de 12 de Março. Menos manifestantes num contexto social e economicamente mais degradado do que o de então permitem a conclusão de que se tratou de um relativo fracasso. Por outro lado, não faltarão as críticas relativas à falta de consistência da manifestação. Que objectivos, alternativas e caminhos têm os manifestantes para propor? Para além disso, confundir-se-á ainda a mensagem com o mensageiro: o Zé que nunca fez nada, o Alfredo que acredita que a violência é solução, os entusiasmadinhos da democracia directa  (a deles) e tantos outros cromos e pintas também por lá andaram. Criticar-se-ão, ainda, todos os actos violentos e as faltas de respeito, o lixo e o despeito. Mas, para lá de tudo isso, das comparações, dos mensageiros, dos propósitos e do contexto, sobra uma mensagem que é impossível ignorar. A de que paira sobre nós um nevoeiro de injustiça, de desequilíbrio, de distribuição enviesada que não pode deixar-nos indiferentes. E, se os motivos, os percursos e as soluções não são consensuais ou mesmo aceitáveis, fica, apesar de tudo, um sentimento de indignação que merece ser partilhado e que tem muito mais adesão do que aquela que hoje foi visível nas nossas ruas.