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Delito de Opinião

Gozo, o prazer de ter vagar

Ana CB, 30.08.24

São quase sete da tarde quando o autocarro me deixa em Sannat, num pequeno largo marcado ao centro por uma escultura em metal oxidado que representa três lavradores – uma das muitas esculturas que estão espalhadas pela ilha de Gozo, fruto de um concurso de arte pública lançado há uns anos pelo Ministério que governa a ilha. Mas não foi isto que me trouxe aqui. Meto pés a caminho do meu objectivo por uma estrada de terra batida. Do lado esquerdo, o vale de Hanżira e a vizinha vila de ix-Xewkija, a sua magnífica Basílica de São João Baptista bem destacada no meio do casario branco e ocre. Sannat fica num planalto 120 metros acima do mar, com vistas soberbas sobre grande parte da ilha, a norte, e sobre o Mediterrâneo a sul. É por este ponto cardeal que me oriento pelo trilho aberto no garrigue, que me leva ao meu destino final: a falésia de Ta’ Ċenċ.

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Cheguei mesmo na hora certa. O sol já desce rapidamente no horizonte, exactamente sobre o extremo da linha irregular que separa a água dos rochedos. Os raios de luz atravessam as nuvens trazidas pela brisa marinha do final de tarde, e o céu divide-se entre o azul brilhante e o dourado suave, que se se transforma aos poucos em laranja, rosa e púrpura. A sombra dos rochedos escurece o mar, que reflecte mais ao longe as cores mornas do pôr-do-sol. Foi este o lugar que escolhi para terminar o meu primeiro dia em Gozo, apreciando a tranquilidade do momento – e foi este o espírito dominante nos dias que passei na ilha.

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Entre as três ilhas habitadas do arquipélago de Malta, Gozo (ou Għawdex, em maltês) é a irmã do meio em tamanho, mas não em status. A ilha de Malta é aquela a que os visitantes por norma dedicam mais tempo: é a maior e mais famosa, rica em história, cultura e atracções, com uma capital vibrante e apelativa para o turismo. Comino é a estrela brilhante do arquipélago, o bilhete-postal que serve de chamariz para quem gosta de águas mornas e transparentes. Já Gozo acaba por ser sempre relegada para segundo plano e geralmente é apenas merecedora de um magro dia de visita, quando não totalmente ignorada. O que é – desculpem-me a franqueza – um erro tremendo, porque merece muito mais do que uma visita feita a correr.

 

Sucede com os lugares tal como sucede com as pessoas: mesmo que mais tarde venhamos a corrigir a nossa avaliação, as primeiras impressões têm muita importância. E a primeira impressão que tive de Gozo, quando o ferry se aproximava do porto de Mġarr, foi positiva. É certo que a encosta escarpada que rodeia o porto está cravejada de edifícios, alguns com nítido ar de hotel, e que a profusão de guindastes augura mais uns quantos a nascerem. Mas pelo menos não há arranha-céus, e as cores das casas mantêm-se entre o branco e os tons neutros ou terrosos, nada que ofenda particularmente a visão. O que salta mesmo à vista são as igrejas, várias, bem em evidência pelo contraste das suas formas caprichosas com a sobriedade poliédrica do casario. Na altura não fazia ideia, mas uma delas – a mais majestosa – iria ser o meu cenário de várias refeições nos dias seguintes.

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Nada tenho contra os hotéis, mas sempre que posso escolho alojamentos locais, e a minha estadia em Gozo não foi uma excepção. Em vez de optar por Victoria ou por uma zona de praia, decidi ficar perto de Mġarr, na pequena localidade de Għajnsielem (pronuncia-se mais ou menos como iain-siê-lem), que se traduz por “nascente tranquila”. E tranquilidade não faltou, nem no alojamento, nem nas redondezas. Apesar da proximidade do porto e de ter um amplo miradouro sobre Mġarr e as ilhas de Comino, Cominotto e Malta, o local está fora das rotas turísticas habituais da ilha. Sorte minha, tem tudo aquilo de que eu mais precisava: autocarros, para me deslocar por Gozo, e um sítio bom para tomar o pequeno-almoço ou petiscar.

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As associações musicais têm um papel único na cultura social maltesa. As bandas participam activamente na preparação e gestão das festas locais, e são um dos motivos de orgulho de cada vila ou aldeia. As suas instalações funcionam também como ponto de encontro para os habitantes e assumem um papel fulcral na comunicação e socialização a nível local. Għajnsielem não é excepção. A Għaqda Mużikali San Ġużepp (Associação Musical de São José) foi fundada em 1928 sob a égide do Instituto de São José, um orfanato, e continua em actividade até hoje. Além de ter um belíssimo salão de snooker profissional, o bar funciona como bistro e serve refeições ligeiras. Bem localizado, ao lado de uma simpática praceta ajardinada, foi na sua enorme esplanada que fiz boa parte das refeições durante a minha estadia, em modo de relaxamento total, por vezes com vista para uma nesga de mar no horizonte, outras com os olhos na grandiosa igreja-santuário de Għajnsielem, do lado oposto da estrada.

 

As evidências da fé

Għajnsielem é mais conhecida pelo evento que ali se realiza anualmente em Dezembro no campo de Ta’ Passi: a recriação ao vivo de um presépio e a sua aldeia, a que dão o nome de “Bethlehem f'Għajnsielem”. Numa área de 20.000 m2, cerca de 150 actores e alguns animais levam os visitantes a recuar no tempo até à Judeia de há 2.000 anos. Há moinhos e grutas, pastores e artesãos, e actividades condizentes com a época para miúdos e graúdos. Mas fora da quadra natalícia é apenas uma terrinha sossegada que vive à sombra da bela e imponente igreja-santuário neogótica. Dedicada a Nossa Senhora do Loreto, demorou mais de 50 anos a ser edificada, entre 1922 e finais da década de 70, e é um excelente exemplo de quão magnífica é a arquitectura religiosa mais recente das ilhas maltesas.

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Apenas a uma ruela de distância, na Pjazza Indipendenza, ainda se encontra orgulhosamente de pé a antiga igreja paroquial, também dedicada à mesma santa mas muito mais sóbria em aparência. Esta igreja mais antiga, construída no século XIX, sucedeu a uma capela erguida para celebrar uma aparição mariana ocorrida em data desconhecida a um pastor, de seu nome Anglu Grech, que levava regularmente as suas cabras e ovelhas a beberem água da fonte de Għajnsielem. A visão do pastor deu origem a uma estátua, depois colocada num nicho, à volta do qual os habitantes da localidade se reuniam diariamente para rezar o terço. Existem ainda outras duas igrejas e oito nichos com uma variedade de estátuas de santos (a título de curiosidade, dois deles são dedicados a Santo António, tal como uma das igrejas). Esta profusão de símbolos religiosos numa área tão reduzida não é exclusiva de Għajnsielem. Em toda a ilha de Gozo (tal como em Malta, na generalidade), há uma vertente que permanece dominante e tão destacada que é impossível de ignorar: o catolicismo.

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As ilhas maltesas têm uma longa história de fé cristã. Segundo a tradição, o apóstolo S. Paulo naufragou em Malta no ano 60 d.C., e este acontecimento é considerado um momento fundamental para a difusão do cristianismo na região. Outro momento fulcral ocorreu no século XVI, quando os Cavaleiros de S. João, também conhecidos como Cavaleiros Hospitalários, se estabeleceram nas ilhas. Deixaram um legado duradouro de magníficas igrejas, catedrais e fortificações, muitas das quais ainda hoje se mantêm de pé. A fé católica não tem sido apenas uma força religiosa, mas também cultural e social, marcando indelevelmente a identidade destas ilhas e do seu povo. Os festivais religiosos, as procissões e os rituais fazem parte integrante do modo de vida maltês.

 

A Basílica do Santuário da Virgem de Ta’ Pinu é outro exemplo sonante desta ligação religiosa. Isolado numa zona árida onde não se passa nada (a aldeia mais próxima fica a meio quilómetro de distância), a magnificência deste santuário destoa e ao mesmo tempo surpreende como uma gema brilhante engastada em metal pobre. É um edifício colossal, que me impressionou tanto pela imponência como pela beleza. Foi construído em inícios do século XX no estilo neo-românico, em pedra rosada e ocre, com um recorte complexo em vários volumes e níveis, e é encimado por uma cúpula. O campanário está separado, ao estilo italiano, destacando-se com os seus 60 metros de altura. O interior é uma mistura bem conseguida de elementos arquitectónicos clássicos com arabescos e pormenores bizantinos – espelho das várias influências que a cultura maltesa agrega. A penumbra e a serenidade da atmosfera convidam à reflexão. Ainda assim, há pouca gente a visitar a basílica, e todos são turistas como eu. Um painel à entrada pede decoro, respeito e silêncio. E silenciosa é a devoção dos fiéis, materializada nos inúmeros ex-votos que enchem as paredes da sacristia, agradecimentos mudos mas eloquentes pela concretização dos desejos de quem deposita grande fé na padroeira do local.

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Criado no lugar onde já existia uma capela de origens imprecisas (anterior ao século XVI), o santuário deve a sua popularidade a uma lenda local. Em 1883, uma camponesa da vizinha aldeia de Għarb disse ter ouvido, ao passar pela capela, uma voz que lhe pediu para entrar e recitar três ave-marias. À ocorrência de vários supostos milagres em anos seguintes atribuiu-se a graça de Nossa Senhora da Assunção, a quem a capela estava dedicada. Foi o bastante para começar a atrair peregrinos e ser oficializada como santuário mariano, com a consequente construção da basílica. A capela antiga foi incorporada no novo edifício, por trás do altar. Lá dentro mantém-se o quadro da Assunção de Nossa Senhora ao Céu, pintado em 1619 por Amadeo Perugino, de onde se diz que a voz falou a Karmni Grima – a aldeã que deu origem à lenda, e que se encontra ali sepultada. A fé da mais simples das pessoas pode não mover montanhas, mas não há dúvida de que tem criado muitos santuários.

 

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Desaparecida, mas não esquecida

Até 2017, a razão principal pela qual a maioria dos visitantes ia a Gozo era uma formação rochosa a que deram o nome de Janela Azul: um arco de calcário perto da baía de Dwejra, com 28 metros de altura, desenhado pela erosão do vento e do mar ao longo de 500 anos. Estrela de filmes, anúncios e do turismo, incluída numa área de conservação especial, sucumbiu à violência do mar e desabou completamente na manhã de 8 de Março daquele ano fatídico, após vários dias de tempestades. Dela ficaram a memória, muitas fotos, e o nome num restaurante. Perdida a atracção maior, o local passou a capitalizar outras actividades: os mergulhos no Blue Hole, uma espécie de piscina de águas azuis límpidas, entre rochas, com um arco natural submerso a fazer de “porta de entrada” para o mar aberto; e os passeios de barco a partir do Mar Interior, uma lagoa semicircular de águas pouco profundas rodeada de falésias rochosas.

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A antiga vocação piscatória do lugar é bem visível. No lado que não está ocupado pela escarpa, o Mar Interior é limitado por uma espécie de praia, uma faixa estreita de pedrinha arenosa, à volta da qual se acotovelam construções cúbicas exíguas de pedra maciça, sem janelas e com portas coloridas. Algumas têm toldos que avançam sobre plataformas cimentadas, e painéis solares nas açoteias. Rampas de betão entram pela água parada, onde flutuam várias pequenas embarcações simples, umas mais modernas, outras mais coloridas. Há pessoas a nadar, outras a apanhar sol, outras ainda apenas sentadas em cadeiras plásticas instaladas à porta dos casinhotos, observando o movimento na lagoa.

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Os pescadores converteram-se em guias turísticos e há um corrupio de barquitos que entram e saem da lagoa. A comunicação com o Mediterrâneo é feita através de um longo túnel, que fura o penhasco ao longo de mais de 80 metros. É um passeio cénico e tranquilo, agradável mesmo com o céu meio encoberto. A água desdobra-se em cores que vão do verde-esmeralda ao azul mais profundo. As escarpas abruptas, de rocha porosa manchada pelo tempo e pelos sedimentos, escondem enseadas e grutas por onde o barco ziguezagueia. Passamos da claridade à penumbra, depois saímos novamente para a luz, num vaivém que dura uns escassos 15 minutos mas parece ainda mais curto – e que, como não podia deixar de ser, passa pelo local onde em tempos esteve a Janela Azul, em homenagem devidamente assinalada pelo guia-condutor. A excêntrica formação natural pode ter sucumbido ao abraço do mar, mas a sua memória está bem viva, um testemunho de como a natureza é ao mesmo tempo grandiosa e frágil.

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O domínio da pedra

A agitação de Victoria é o contraponto à atmosfera serena do resto da ilha. A capital, a que os locais continuam a chamar Ir-Rabat, é o centro nevrálgico de Gozo. Tudo parece passar por ali. Eu própria, nas minhas deambulações de autocarro entre os vários sítios que fui visitar, acabei por ter de lá ir todos os dias, à falta de transporte directo de Għajnsielem para alguns desses lugares. Victoria divide-se em dois planos, separados pela avenida principal. A Triq ir-Repubblika é o coração comercial da cidade, onde as casas com as tradicionais varandas maltesas coabitam com lojas, bancos e teatros, e os carros se misturam com motas, carrinhas e mini comboios turísticos, numa cacofonia pouco habitual na ilha.

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Para norte cresce a colina onde foi erguida a Cidadela, o bastião fortificado que há 3500 anos protege Ir-Rabat, o seu subúrbio. Para sul da avenida, a Praça da Independência alberga a Banca Giuratale, sede do município, e é a porta de entrada para o dédalo de ruas pedonais sinuosas que formam a parte antiga da cidade. Nestas ruelas estreitas, as varandas quase se tocam, e por vezes nem o sol do meio-dia consegue iluminá-las. As casas são de pedra e têm portas em arco, varandas em ferro forjado ou de madeira, pintadas com cores alegres, e emblemas religiosos cravados nas paredes, feitos em cerâmica. Há becos com vasos de flores e trepadeiras, esquinas com estatuetas religiosas colocadas sobre pedestais altos, gatos que aproveitam uma sombra para dormir ou apenas estarem ali, naquela sua pose descontraída de quem está de bem com a vida.

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No centro da cidade velha fica a basílica dedicada a São Jorge, numa praça rodeada de esplanadas e lojas para turistas. Construída no último quarto do século XVII e totalmente revestida de mármore, é a igreja barroca mais exuberante da ilha, no que toca à decoração interior. A cúpula e as abóbadas estão pintadas com cenas religiosas e decoradas com frisos dourados, e o dossel com quatro colunas sobre o altar-mor é uma peça colossal em bronze e ouro. O contraste com outras igrejas que visitei é flagrante.

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Sugestivamente apelidada de “Coroa de Gozo”, há indícios de que a Cidadela de Victoria já fosse habitada há 7000 anos. Mas as robustas muralhas defensivas que hoje a definem foram construídas pelos Cavaleiros Hospitalários em finais do século XVI. A cota a que se encontra faz dela um miradouro fabuloso sobre praticamente toda a ilha. Passei várias horas a percorrer o interior das muralhas, onde está bem visível um extenso trabalho de restauração ainda em curso. A pedra é omnipresente, às vezes mais rugosa ou manchada, marcada pelo tempo, outras mais clara e suave, prova de uma renovação mais recente. É na Cidadela que estão a Catedral de Gozo e o Tribunal – os templos máximos da fé e da lei partilham o mesmo adro. Nesta espécie de caverna de Ali Babá a céu aberto há de tudo um pouco: museus vários, a rua de um bairro judeu medieval, um palácio seiscentista com a sua capela, a antiga prisão, o paiol da pólvora, canhões da bateria e um abrigo anti-bomba, silos e cisternas, as obrigatórias lojas para turistas, e pelo menos um restaurante: o Ta’ Rikardu, onde nem o dia quente me dissuadiu de provar a sopa de peixe preparada à maneira local.

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Tradição centenária

A maior parte das praias de Gozo ficam na costa norte, mas não são de todo o melhor que a ilha tem. A excepção é Ir-Ramla, onde a maravilhosa tepidez das águas mediterrânicas se une a um areal generoso, numa combinação ideal para umas horas em modo de lagarto ao sol. Curiosamente, não há quaisquer infra-estruturas hoteleiras nas imediações desta praia, o que provavelmente explica o fenómeno de ainda ser possível encontrar um lugar para estender a toalha com vários metros de areia desimpedida à volta.

Também no norte da ilha, e pese embora a sua praia esteja muitos furos abaixo de Ir-Ramla, a localidade de Marsalforn já adquiriu o estatuto de estância balnear. No entanto, não é essa a razão da minha visita. Umas centenas de metros mais à frente, junto à costa, espalhando-se ao longo de mais de um quilómetro num padrão de xadrez irregular e orgânico, as salinas artesanais de Xwejni são um testemunho admirável da longa tradição da ilha de colher sal do mar.

 

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A história destas salinas remonta possivelmente ao tempo dos fenícios, que se sabe terem-se estabelecido na região por volta de 700 a.C. Estes primeiros colonos reconheceram a abundância de água salgada na zona e o clima favorável à evaporação do sal – Gozo tem uma média de mais de 300 dias de sol por ano. Com o passar do tempo, a habilidade na produção de sal foi transmitida de geração em geração e as salinas tornaram-se uma indústria vital para a economia da ilha. Maravilha da engenharia antiga, consistem numa série de tanques rasos, rectangulares, definidos por muretes feitos de pedra local e aproveitando as irregularidades do solo rochoso onde foram criadas. Estão ligadas por um sistema de canais por onde é encaminhada a água do mar, e à medida que esta água se evapora sob o sol mediterrânico, vai deixando para trás uma camada cristalina de sal. Este sal é cuidadosamente recolhido utilizando ferramentas tradicionais, como ancinhos e cestos de madeira, e é depois deixado a secar antes de ser preparado para venda ou consumo local.

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Por tradição, estas salinas foram exploradas ao longo dos tempos como labor familiar, com o conhecimento técnico a passar de geração em geração. No entanto, como em tantas outras actividades quase artesanais, o número de pessoas que a ela se dedicam tem vindo a diminuir nas últimas décadas. A produção de sal ocorre habitualmente de Maio a Setembro, mas no meu passeio de uma hora pelas imediações não vejo ninguém a trabalhar. A prova de que as salinas continuam em funcionamento resume-se aos painéis que proíbem o acesso a pessoas estranhas, em particular mergulhadores e banhistas, e às portas coloridas que marcam, na falésia do lado oposto da estrada, as entradas dos armazéns (escavados na rocha) de apoio às salinas.

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Com a última tarde da minha estadia em Gozo a chegar ao fim e a hora do autocarro para Għajnsielem ainda longe, sentei-me numa esplanada meio escondida de Marsalforn e aproveitei para jantar. Tal como tantas outras facetas da cultura maltesa, a gastronomia destas ilhas é uma mistura muito bem conseguida entre a Itália e o norte de África, com pitadas de Inglaterra, Grécia, e até mesmo Turquia. E é deliciosa, mais ainda quando apreciada ao crepúsculo, com um suave marulhar de água como som de fundo, numa atmosfera tépida e sem vento. Em Gozo, há uma sensação quase constante de serenidade que impregna o ar e nos puxa a saborear cada momento, cada local, com o vagar merecido – é a facilidade dos dias tranquilos que escorrem sem pressas.

 

(Post já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Um banco com vista: Marsaxlokk

Ana CB, 26.04.24

Está um belo dia de sol e o ambiente é modorrento. O Mediterrâneo exibe os seus matizes mais leves, quase leitosos, tão tranquilo que nem incomoda os inúmeros barcos ancorados no porto. As cores garridas que pintam a madeira das embarcações contrastam com a paisagem semidesértica que assoma do outro lado da baía, e com os edifícios em tons desmaiados que rodeiam a marginal. É hora de almoço. São poucos os turistas que vagueiam entre as bancas de artesanato e souvenirs, e ainda menos os habitantes locais, certamente recolhidos no fresco das suas habitações. Fosse domingo e a animação seria outra; mas é apenas mais um vulgar dia de semana, e Marsaxlokk está posta em sossego.

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A tradição da pesca

Marsaxlokk está situada numa grande baía, irregular e abrigada, no extremo sudeste da ilha de Malta, a cerca de 10 km de Valletta. O nome deriva da sua localização: “marsa” é uma palavra árabe para ancoradouro, e “xlokk” significa sudeste em maltês. Como porto natural, faz parte da cultura marítima mediterrânica desde a Antiguidade: foi usado por fenícios, romanos, árabes e até mesmo otomanos, quando cercaram Malta em 1565.

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Actualmente é o maior porto de pesca das ilhas maltesas, e uma das poucas aldeias piscatórias que sobrevivem no arquipélago. Grande parte do peixe vendido em Malta é capturado por pescadores que aqui ancoram os seus barcos. Durante a semana, o peixe capturado destina-se ao mercado de Marsa, mais perto da capital, onde os retalhistas e proprietários de restaurantes se abastecem. Só ao domingo é que os pescadores locais vendem o seu peixe fresco directamente aos consumidores, no mercado ao ar livre, razão pela qual este é o dia mais movimentado na localidade – sobretudo porque muitos malteses (e turistas) aproveitam a oportunidade para almoçar num dos variados restaurantes que há à volta do porto.

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Um festival de cor

Em Marsaxlokk reinam as cores primárias, e sinto-me como que imersa num espectáculo de videomapping. Desde as riscas do banco onde estou sentada às faixas multicoloridas dos barcos, o mundo à minha volta veste-se de amarelo-canário, azulão, vermelho Ferrari e verde-esmeralda.

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Na amálgama de embarcações paradas na água há de tudo um pouco. Há barcos a remos, alguns ainda de madeira pintada, com os bordos exteriores protegidos por grossos cabos entrançados. Há semi-rígidos e pequenos barcos de pesca desportiva, insípidos nas suas cores neutras. Há traineiras apetrechadas com uma parafernália de fatos cor de laranja, guinchos, projectores e radares. Mais ao longe, impõe-se a massa tricolor do Armada LNG Mediterrana, um navio-tanque de produção e armazenamento de gás natural liquefeito que está desde há alguns anos atracado junto à central eléctrica de Delimara.

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E há os luzzijiet (plural de luzzu; pronúncia maltesa: [lutt͡su]), que são também um dos motivos pelos quais Marsaxlokk é tão colorida e apelativa para os visitantes turistas. Descendentes dos ferilli, os barcos de pesca típicos de Malta entre o século XVII e o final do século XIX, os luzzijiet são feitos de madeira e têm um casco duplo, pontiagudo e arqueado para cima em ambas as extremidades. Estão pintados com riscas de cores garridas e ostentam, em ambos os lados da proa, o amuleto egípcio de protecção mais difundido em todo o mundo: o olho de Hórus. As velas tradicionais foram substituídas por motores, alguns já estão dotados de uma cabina, outros têm apenas uma lona, em jeito de tenda, para abrigar os utensílios usados na faina, e outros ainda estão cobertos com um toldo rectangular. Tal como é habitual em tantas comunidades pesqueiras, as cores de cada luzzu não são escolhidas aleatoriamente; obedecem a um código que indica o local de onde a embarcação provém, o núcleo familiar a que pertence (os luzzijiet são passados de pai para filho), e até mesmo se houve alguma morte recente nessa família.

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Do mar até à mesa

Sobre as lajes aquecidas pelo sol espraiam-se as redes que os pescadores estenderam para secar. Mais à frente, afundado no chão, um tanque pelo qual parecem já ter passado muitos anos foi convertido em base de obra artística: um memorial aos homens do mar. Imobilizados em bronze, duas crianças e um gato assistem à chegada de um pescador carregado com cestas cheias de peixe.

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O acolhimento depois da faina será certamente diferente hoje em dia. Ainda assim, a vida em Marsaxlokk continua a apoiar-se no mar e na pesca. Aproxima-se das duas dezenas o número de restaurantes que se perfilam à volta do porto, e todos eles oferecem pratos de peixe. Claro que também há concessões ao gosto (e à bolsa) de quem não aprecia aquilo que o mar nos dá e se inclina mais para os omnipresentes hambúrgueres e as suas obrigatórias acompanhantes. Mas a oferta de peixe e frutos do mar domina as ementas: cozinhados das mais diversas maneiras ou crus (fatiados em carpaccio e divinamente temperados), envolvidos em massa ou arroz, ou na aljotta, a sopa de peixe maltesa tradicional, em saladas ou como petisco de entrada. Só as sobremesas se mantêm alheias ao alimento que vem do mar – pelo menos até que algum chef mais atrevido se lembre de inventar um doce à base de peixe.

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Depois do almoço – num pontão sobre a água, as mesas resguardadas do sol por enormes sombrinhas verde-mar – impõe-se uma volta pelas ruas interiores, onde as casas antigas de pedra ocre convivem com prédios baixos de linhas mais modernaças, em que o mármore, ferro forjado ou madeira das varandas foi substituído por cimento pintado. A aridez cromática é cortada aqui e ali por um mural, uma porta multicolorida, uma floreira ornamentada, uma varanda de madeira azul-pavão.

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Uma história de fé

Acima do casario pairam as torres da igreja dedicada a Nossa Senhora do Rosário de Pompeia, construída em finais do século XIX. Estranha-se a padroeira, mas tem uma justificação, e uma história. Em 1885, a Marquesa Rosalia Apap Viani Testaferrata viajava por mar ao longo da costa ocidental de Itália quando se levantou uma tempestade. Devota da Nossa Senhora de quem tinha o nome, a Marquesa invocou-a em oração, suplicando a sua ajuda. Coincidência ou não, a tempestade amainou durante algum tempo, suficiente para que o navio conseguisse chegar ao porto de Bastia, na Córsega, e os seus ocupantes desembarcassem sãos e salvos, antes de a tempestade desabar de novo. Como agradecimento pela sua salvação milagrosa, a Marquesa propôs custear metade do valor da construção da igreja de Marsaxlokk, desde que a dedicassem a Nossa Senhora do Rosário de Pompeia. Desde 1963, esta igreja é o destino de uma peregrinação nacional que se realiza anualmente a 8 de Maio, liderada pelo Arcebispo de Malta. Em 2017 foi elevada de igreja paroquial a Santuário Mariano. É um dos testemunhos da fé dos malteses, que se replica nos inúmeros e grandiosos templos religiosos que encontramos por todo o lado nas ilhas de Malta e Gozo.

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Deixo Marsaxlokk como a encontrei: soalheira, plácida e colorida, guardiã tranquila de histórias e hábitos antigos que convivem sem sobressaltos com as exigências dos tempos modernos. Na esperança de que assim se consigam manter.