Fugas
Lembras-te? Nesse dia, tudo nos fugia. Fugiam-nos as palavras, as belas, doces e sensuais palavras guardadas durante tanto tempo, cuidadosamente, amorosamente, em papel de seda como jóias raras. Fugiam-nos as palavras e deixavam-nos ali, frente a frente, estranhamente nus e vazios sem elas. Fugiam-nos os olhos para o horizonte, porque, se os cruzássemos, seriam dardos, seriam labaredas, seriam punhais tão poderosos que nos matariam ali mesmo, sem remédio, num hara kiri conjunto. Fugiam-nos as mãos para objectos e bolsos, com medo de encontrar-se por um segundo que fosse, por um segundo que fosse, por um segundo que fosse. As mãos sabiam que era imperioso manterem-se distantes e ocupadas, e por isso desenhavam curvas no ar, enrolavam cabelos, comprimiam diligentemente o miolo do pão em gestos inocentes e nervosos, numa tentativa desesperada de contrariar a eterna lei da atracção das coisas, dos corpos, das vontades. Fugiam-nos as lembranças para um tempo perdido no tempo, para um lugar que já não existia, que talvez nunca tivesse mesmo existido a não ser na nossa prodigiosa imaginação. Fugia-nos a voz para cavernas de medo e de silêncio, sabendo que o mais ínfimo som se transformaria de imediato numa sinfonia imparável, magnética, gloriosa, capaz de arrasar montanhas e esvaziar oceanos. Fugia-nos o chão debaixo dos passos hesitantes, teimosamente paralelos, cuidando de que não houvesse o menor perigo de convergência. Fugia-nos o passado, o presente e o futuro, deixando-nos suspensos num limbo impossível. Fugíamos nós, enfim, mestres de todas as fugas. Fugíamos um do outro, dos outros e de nós próprios. Fugíamos, convictos. E nunca mais nos encontrámos. E nunca mais nos perdemos.
(Imagem: René Magritte)