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Delito de Opinião

Ceci n'est pas un post (28)

Ana Vidal, 07.04.11

 

Lugar

 

Há uma rosa no solitário da janela, champagne nos copos, Verdi no ar. O relógio parou. Eu leio-te o desejo nos olhos, tu lês-me Borges depois do amor. O lugar, que importa? Pode ser uma mansarda em Montmartre, uma villa em Scirmione, uma caverna em Matmata, uma cabine no Expresso do Oriente, uma cubata no Quénia ou um mosteiro suspenso nos Himalaias. Ou pode ser simplesmente o nosso quarto, com o mundo  inteiro aos pés. O lugar somos nós, onde quer que estejamos.

 

(Imagem: René Magritte)

Ceci n'est pas un post (23)

Ana Vidal, 17.02.11

 

Um beijo


É só um beijo, dizes. Não, não é. Um beijo, consentido e com sentido, nunca é só um beijo. É um vocábulo explícito de uma linguagem ancestral, planetária e inequívoca. Encerra sempre, num molde indestrutível, o desejo que o forjou. Traz em si a memória de beijos passados,  a expectativa de beijos sonhados e o embrião de beijos futuros. E mesmo que não tenha passado nem futuro, cada beijo é, por si só, um universo.

 

(Imagem: René Magritte)

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Ana Vidal, 10.02.11

 

Razões


Meu caro, deixe-se disso! O amor é mesmo o que parece: hoje assim, amanhã assado. O de ontem, quase sempre cru. Mas com o sabor intacto do que poderia ter sido, se fosse de hoje. Ou, melhor ainda, de amanhã. Olhe, não se atormente a procurar razões para o que a razão nunca conheceu. O amor não é razão, mas cada amor tem sempre razão, a razão toda de uma vez. Nem menos. E se é paixão, o amor não se pode analisar se não depois de morto. Só em autópsia. Porque enquanto ele está vivo, meu pobre amigo, você nem pode respirar, quanto mais raciocinar! Por isso, não se canse. Por mais que pense, por mais que se concentre, nunca lhe encontrará lógica ou rumo definido. É lógica o que quer? Pois bem: curse engenharia, e depois construa uma fábrica de parafusos. Mas não se afaste nunca muito da linha de montagem. Se quer um rumo certo faça um cruzeiro, desses turísticos. E mesmo assim não olhe muito à sua volta, não vá o azul do mar arrastá-lo, sedutor, para alguma ignota espiral que o sorva sem remédio. Como hei-de dizer-lhe, de outra melhor maneira, que não confunda as coisas? Veja, o seu a seu dono. A César o que é de César. E do amor é o imponderável, o desgoverno, o desmembrar de tudo o que era conhecido. Uma nova ordem desordenada do espaço e do tempo. É o que chega e se impõe sem pré-aviso e parte, quase sempre, deixando para trás um campo de destroços. É o que não se sabe porque faltava antes, nem porque falta, ainda mais, depois. Mas o durante... ah, meu caro, o durante vale impérios! Entende? Não? Que pena. É que lhe falta amar.

 

(Imagem: René Magritte)

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Ana Vidal, 03.02.11

 

Há dias assim

 

Há dias assim. Inteiros, redondos, assustadoramente completos. Como uma síntese da vida, toda ela, para que não nos esqueçamos de nenhuma das suas etapas. Que começam com uma aurora magnífica, uma verdadeira explosão de vida, e acabam num suicídio colectivo de estrelas desesperadas, como anjos caídos em desgraça. Pelo meio, uma tarde em que a morte nos reclama, lembrando-nos de que até os nossos sonhos lhe pertencem. Que só os temos de empréstimo. A prazo. Há dias assim. Em que a terra treme e se revolta sob os nossos pés. Em que nada, nem ninguém, pode preencher os interstícios da nossa solidão. Em que um allegro matinal sucumbe sem remédio a um adagio vespertino que antecipa já, por sua vez, um inevitável requiem nocturno. Há dias assim. Feitos de espanto e de torpor. De glória e de derrota. De risos e de lágrimas. Da luz mais alta e das mais fundas sombras. De caminhos inesperados, improváveis. Impossíveis de percorrer. De um céu aberto por um sol resplandecente e fechado por uma lua nova, embuçada em brumas. Há dias assim. Inteiros, redondos, assustadoramente completos. Como uma síntese da vida.

 

(Imagem: René Magritte - Les Mémoires d’un saint)

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Ana Vidal, 27.01.11

 

Mais alto

 

Construímos o nosso castelo sobre a mais alta escarpa do sonho, no cume da utopia. Pedra a pedra o moldámos, exigentes. Era a perfeição que nos guiava os gestos, escancarando aos nossos olhos incrédulos a sua eterna insatisfação.  Era a perfeição ou nada. Quisemos que a nossa morada fosse única, inimitável, irrepetível. Ninguém teria um castelo igual ao nosso, mágico baluarte de um segredo que só nós conhecíamos. Nenhum mortal tocaria as estrelas como nós, nenhum ser vivo saberia jamais como deixá-las escorregar por entre os dedos dos deuses que éramos. Inebriava-nos o ar puro que só nós respirávamos, a voz do vento que cantava só para nós. Gravámos uma divisa sobre a porta: Mais Alto. E subimos sempre mais alto, mais alto, mais alto. Tão alto, que a queda nos foi fatal.

 

(Imagem: René Magritte - O Castelo nos Pirinéus)

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Ana Vidal, 20.01.11

 

Cinzas

 

Foram-se os dias mais iluminados

as breves bebedeiras, os rastilhos

os projectos de livros e de filhos

ou dos altos pinheiros nunca plantados

 

Esgotou-se o tempo no olhar mortiço

antes bravio, livre, amotinado

E do frémito ardente do passado

ficaram só as cinzas. Foi-se o viço

 

do antigo sorriso. E a palavra

solta e rebelde, hoje é tão comum

como o suspiro que entre rugas lavra

 

E por fim, cruel como nenhum

o último vigor que a alentava:

Foram-se os ódios todos, um a um.

 

(Imagem: René Magritte)

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Ana Vidal, 13.01.11

 

Fugas

 

Lembras-te? Nesse dia, tudo nos fugia. Fugiam-nos as palavras, as belas, doces e sensuais palavras guardadas durante tanto tempo, cuidadosamente, amorosamente, em papel de seda como jóias raras. Fugiam-nos as palavras e deixavam-nos ali, frente a frente, estranhamente nus e vazios sem elas. Fugiam-nos os olhos para o horizonte, porque, se os cruzássemos, seriam dardos, seriam labaredas, seriam punhais tão poderosos que nos matariam ali mesmo, sem remédio, num hara kiri conjunto. Fugiam-nos as mãos para objectos e bolsos, com medo de encontrar-se por um segundo que fosse, por um segundo que fosse, por um segundo que fosse. As mãos sabiam que era imperioso manterem-se distantes e ocupadas, e por isso desenhavam curvas no ar, enrolavam cabelos, comprimiam diligentemente o miolo do pão em gestos inocentes e nervosos, numa tentativa desesperada de contrariar a eterna lei da atracção das coisas, dos corpos, das vontades. Fugiam-nos as lembranças para um tempo perdido no tempo, para um lugar que já não existia, que talvez nunca tivesse mesmo existido a não ser na nossa prodigiosa imaginação. Fugia-nos a voz para cavernas de medo e de silêncio, sabendo que o mais ínfimo som se transformaria de imediato numa sinfonia imparável, magnética, gloriosa, capaz de arrasar montanhas e esvaziar oceanos. Fugia-nos o chão debaixo dos passos hesitantes, teimosamente paralelos, cuidando de que não houvesse o menor perigo de convergência. Fugia-nos o passado, o presente e o futuro, deixando-nos suspensos num limbo impossível. Fugíamos nós, enfim, mestres de todas as fugas. Fugíamos um do outro, dos outros e de nós próprios. Fugíamos, convictos. E nunca mais nos encontrámos. E nunca mais nos perdemos.

 

(Imagem: René Magritte)

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Ana Vidal, 06.01.11

 

A duas mãos

 

Vou dizer-te uma coisa, e tu vais prometer-me que não a dizes a ninguém, a ninguém. Vou dizer-te uma coisa, e tu juras que não acreditas nela. Vou dizer-te uma coisa, porque tenho uma indomável vontade de te dizer coisas, muitas coisas, de dia, de noite e entre os dois. Todos os dias.


Vou contar-te um segredo, e tu vais prometer-me que o guardas para ti, só para ti. Vou contar-te um segredo, e tu juras que fazes dele um rio, um mar, um mundo. Vou contar-te um segredo, porque tenho uma indomável vontade de transformar palavras em flores, para que as uses ao peito num bouquet colorido, de dia, de noite e entre os dois. Todos os dias. E quero que só tu saibas que essas flores são palavras, e que essas palavras são o meu segredo.


(Imagem: René Magritte - Le bouquet tout fait)

 

(Nota: O primeiro parágrafo não é da minha autoria. O segundo é a resposta ao desafio que me foi posto por essas palavras.)

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Ana Vidal, 30.12.10

 

Civilização

 

Hoje acordámos algures entre o Tigre e o Eufrates, e do mais alto zigurate contemplámos o mundo. Deixámo-nos cobrir de ouro e pedrarias e, com as asas de Enlil, voámos sobre Ur como pássaros deslumbrados. Eu dei-te o sagrado nome de Dumuzi e tu chamaste-me Inanna, tua rainha. E descobrimos em nós o mar primordial, os ancestrais tesouros que tínhamos guardados, sem o sabermos, na montanha cósmica da nossa memória. Hoje fomos inspirados Hammurabis bordando palavras novas em pedra, para que nunca mais as esqueçamos e os vindouros saibam, um dia, que as proferimos. Hoje selámos promessas com licores e tâmaras, tão doces como as nossas bocas recém-despertas. E depois esculpimo-nos em pedra negra com mãos aventureiras e livres, nessa pedra tão misteriosa como a origem do Tempo, sombreando a nácar e lápiz-lazuli o brilho fascinado dos nossos olhos. E por fim coroámo-nos imperadores do Sonho, porque os astros nos disseram que só ele persiste e permanece, mesmo quando tudo o mais se desfaz em ruínas.

 

 Hoje inventámos uma civilização. A nossa.

 

(Imagem: René Magritte)

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Ana Vidal, 23.12.10

 

Matriz

 

Nascem predestinadas, portadoras de um gene que as domina toda a vida: o do embalo. Por isso têm macia e lisa a pele dos braços e do colo, quente aconchego que cedo aprendem a oferecer. Embalam bonecas e bichos, mães extremosas de palmo e meio que afinam gestos futuros e marcam territórios de conforto e protecção. Embalam irmãos, primos e companheiros de brincadeiras quando lhes secam, com beijos e sorrisos, as lágrimas de uma injustiça ou de um desaire. Embalam sonhos românticos, adolescendo na certeza de que haverá um mundo perfeito à sua espera, feito de perfeitas metades que se unirão por artes de magia. E quando o mundo se lhes revela sem máscaras, embalam a desilusão e seguem em frente. Embalam os seus homens - frágeis botes enfrentando intempéries - uma vida inteira. Fazem-se portos seguros, acolhendo exauridos náufragos ou heróis vitoriosos, esquecidas das suas próprias viagens. Embalam os filhos, ai, como embalam os filhos para sempre. Embalam amigas, patrões, colegas e vizinhos, a menina da caixa do supermercado, a manicura ou o merceeiro viúvo que mal conhecem, só porque eles estão com ar de quem precisa de desabafar. Embalam netos e, neles, de novo os filhos, retomando um ciclo nunca quebrado, nunca traído. Embalam, finalmente, todos os amores vividos, as promessas antigas, os planos adiados, juntam-lhes memórias de tempos felizes e de tudo fazem uma manta quente com que agasalham os dias de solidão. Embalam saudades. Embalam a vida. Embalam o mundo.

 

Todas as mulheres são mães. Mesmo as que nunca o foram. Mesmo as que nunca o serão.

Quem as embala?

 

(Imagem: René Magritte)

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Ana Vidal, 16.12.10

 

Imolação

 

Primeiro calámos a orquestra, que insistia em envolver-nos de notas quentes, lânguidas, festivas. Incendiava-nos sempre sem pedir licença, lavrava por dentro de nós uma melodia hipnótica que nos privava de toda a vontade. Por isso lhe pegámos fogo, lentamente, meticulosamente, deixando que as lágrimas nos dançassem nos olhos ao som da música que se esvaía como sangue de um pulso dilacerado. Do allegro ao requiem.

 

Mas ficaram as palavras. Mesmo sem os sons que as vestiam de encantamento, ficaram as palavras. Havia que queimá-las também na mesma pira ardente, como as viúvas do Ganges no seu sati. E assim lançámos às chamas as palavras, nuas, indefesas, tremeluzindo numa despedida muda.

 

Mas ficou o silêncio. Um silêncio ensurdecedor, feito de cinzas, povoado pelos fantasmas de todas as notas e de todas as palavras que tínhamos morto inutilmente. Um silêncio que alastrou como um rastilho e se riu de nós, descarado, terrível, satânico. Era imperioso emudecê-lo depressa e por isso queimámos o silêncio, já sem forças para tanto sacrifício.

 

Mas ficámos nós.

 

(Imagem: René Magritte - A descoberta do fogo)

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Ana Vidal, 09.12.10

Imaginação

 

Invento-te, sim. Quero-te ainda interrogação, ainda mistério, ainda e sempre desafio. Dispo-te as peles que usas, uma a uma, para vestir-te aquela que teci para ti. O meu olhar atravessa os muros que ergueste à tua volta, inúteis esconderijos a espicaçar-me a aventura da descoberta. Vejo-te à luminosa transparência da imaginação. Dou-te asas leves: voa! Dou-te olhos atentos: vê! Dou-te uma rota segura: a que te trará de volta um dia, ágil condor que atravessou montanhas e desertos para se encontrar e me encontrou, afinal.

 

(Imagem: René Magritte)

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Ana Vidal, 02.12.10

 

Palavras

 

às vezes há uma palavra que leva a outra palavra e esta a uma terceira e por aí fora até que a primeira já não faça nenhum sentido e não tenha qualquer relação com todas as outras que gerou.  as palavras levam ideias e vontades e desejos de um lado para o outro ao sabor de ventos e marés porque as palavras são como o mar que não tem princípio nem fim apenas um vaivem cadenciado que nos embala nas suas sete ondas peregrinas em romaria até todas as praias.  as palavras nascem como os cogumelos uns inofensivos e outros letais mas todos com o mesmo aspecto apetitoso que apetece trincar.  as palavras têm vida própria e juntam-se e separam-se e reproduzem-se como e quando lhes apetece sem autorização de quem lhes abriu a porta sem saber que nunca mais teria uma palavra a dizer sobre o assunto.  as palavras são caprichosas sim leves e divertidas umas vezes outras tristes e melancólicas outras graves e solenes outras de um peso tão grande que faz dobrar a espinha.  as palavras são responsáveis por muitos equívocos e por muitos dramas mas também por muitos sorrisos e boas surpresas casaram e foram felizes para sempre e tiveram muitos meninos com os olhos da mãe e o sorriso do pai the end.

 

(Imagem: René Magritte - L'usage de la parole)

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Ana Vidal, 25.11.10

 

Toco, teço e entrelaço

com dedos de descobrir

Lanço redes num abraço

à flor da pele me desfaço

na vertigem de sentir

 

Tudo é matéria, se é tempo

de epidérmicas razões

Danço num sopro de vento

rasga-me cada tormento

gelam, queimam, as pulsões

 

E todavia, invisível

eterno e primordial

corre o rio do intangível

imperioso, indefinível

matriz de tudo, afinal.

  

(Imagem: René Magritte)

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Ana Vidal, 18.11.10

 

Liquefeito

 

Dir-te-ia que as águas subiram hoje de novo numa maré tão festiva como inútil porque de novo o navio se fez ao mar sem ti de velas desfraldadas num despudor que ainda te celebra. Dir-te-ia que de tanto fitar o horizonte os meus olhos confundiram já todos os azuis e fundiram todas as formas e refundiram todas as sombras. Dir-te-ia que as fronteiras se diluem sem retorno esbatidas pela maresia e pelo tempo. Dir-te-ia que me adormece o suave balanço das ondas no sussurro manso deste mar eterno que me deixaste de presente talvez para compensar a tua ausência. Dir-te-ia que sou já pedra búzio alga areia estrela-do-mar e que me vou habituando a este corpo mutante e a esta nova pele tão facilmente como me vou desabituando de ti. Dir-te-ia que as brumas já não me assustam e que a ronca do velho farol me canta ao ouvido canções de embalar à noite quando me abraça o nevoeiro imitando os teus braços longos de pirata. Dir-te-ia que a nossa casa me escorre agora da memória desabitada e nua. Dir-te-ia amor que o nosso mundo se liquefez.

 

(Imagem - René Magritte, O Sedutor)

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Ana Vidal, 11.11.10

 

 

L’important

 

L’important c’est la rose, cantava ele naquela voz que nos aveludava os dias, nos deixava as pernas a tremer e os olhos brilhantes. E cantávamos nós com ele, aveludados na premissa sagrada. Era tão fácil. A nossa vida era, toda ela, feita de rosas. Importantes, sim. O que podia haver mais importante do que os nossos magníficos, preciosos, deslumbrantes umbigos? Nesse tempo, o mundo real era a nossa imensa fantasia. Ainda as rosas não tinham espinhos. Ainda os espinhos não se tinham transformado em punhais. Ainda nós não éramos gente de carne e osso, mas apenas bolas de sabão planando no ar leve da manhã. Belas, coloridas, etéreas. E tão inconsistentes. L’important c’est la rose, dizíamos, com a inabalável convicção dos inconscientes. Sabíamos lá nós o que isso queria dizer. Não conhecíamos a rosa porque éramos nós a rosa, inebriada com o seu próprio perfume. Só muito mais tarde o descobrimos, quando já não havia rosa, nem espinhos, nem sequer punhais. Quando o Bécaud se calou em nós e nos emudeceu, entendemos finalmente: l’important c’est la rose. Crois moi.

 

(Imagem: René Magritte)

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Ana Vidal, 04.11.10

 

Nudez

 

Dispa-se primeiro, atentamente, toda a desatenção. Não é indiferente que se dispa a indiferença, logo depois. A seguir, ainda que seja a medo, dispa-se os medos que os anos costuraram até formarem uma capa pesada, sufocante. Defenda-se o espírito de todas as defesas. Desmascare-se cada máscara, cada disfarce. Desproteja-se o corpo da ilusória protecção das cicatrizes. Da guarda armada das cautelas guarde-se distância, cautelosamente. Liberte-se a alma dos desalmados pesos que a vestiam. Lance-se ao vento, desfeitos, velhos preitos e preceitos. Limpe-se os olhos de brumas e de escolhos, os ouvidos de ruídos, a boca de palavras ocas. Dispa-se dos gestos as gestas do passado. Dispa-se da última derme o verme da vaidade. Por fim, dispa-se depressa a pressa, que é preciso saber esperar. E só então, vestindo devagar uma nudez total, se pode receber uma lua inesperada.

 

(Imagem - René Magritte)

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Ana Vidal, 28.10.10

 

Fénix

 

No dia em que tudo ruiu, fez-se à estrada. Não olhou para trás. Não procurou entre as cinzas, soterrados nos escombros de uma vida, sonhos desfeitos que ainda pudessem respirar. Não socorreu memórias sobreviventes, deixou-as asfixiar no fumo que sobrou da grande fogueira que tinha ateado, ainda inconsciente da catástrofe que se avizinhava. Passou por cima de gestos e de palavras, pisou sorrisos agonizantes com os pés nus, já calçados para a viagem. Escorraçou todas as lembranças que teimavam em agarrar-se-lhe à pele e afugentou fantasmas, velhos conhecidos a quererem transpor com ela a porta de entrada. Ou de saída. Só de saída, nesse dia. Lavou das narinas os cheiros familiares, expulsou dos olhos as imagens coloridas de arcos-íris passados, sacudiu das mãos o velho ímpeto de arrumar uma vez mais o caos, de repor a ordem, como sempre fizera. Não aplacou os demónios que bailavam por todo o lado, enfim vitoriosos, seguros do seu poder. Por uma vez, deu-lhes tudo o que exigiam. Fechou a porta atrás de si e atirou a chave para longe. Lá dentro, por detrás da madeira triste, uma vida acorrentada. Não levou nada, não queria nada. De seu, só uma indómita e urgente vontade de partir. Tudo o resto ficou para trás, e nunca mais lhe fez falta.

 

(Imagem: René Magritte)