O beijo que ajudou a limpar a toxicidade
Depois do Mundial de futebol feminino estive perto de escrever um texto. Foi o mundial mais bem sucedido de sempre, com mais espectadores, com mais entusiasmo, foi expandido para 32 equipas e várias das equipas estreantes deram excelente conta de si. A qualidade do futebol foi excelente e deu-me muito mais prazer que a esmagadora maioria das competições futebolísticas que vi nos últimos 10 a 20 anos. Muito sinceramente penso que quaisquer investidores que coloquem o seu dinheiro no futebol feminino terão um retorno enorme dentro de apenas 5 anos.
No entanto tudo isto foi ofuscado pelo caso com Jenni Hermoso e Luis Rubiales. Não descrevo o caso em si além disto: ele deu-lhe um beijo na boca sem ter qualquer razão para isso fora a sua própria vontade. Mas posso adicionar elementos de que a maioria da imprensa portuguesa não parece ter feito caso.
Há cerca de 1 ano, 15 jogadoras da selecção espanhola escreveram uma carta à Federação indicando que não queriam voltar à selecção enquanto certas coisas não mudassem. Acusaram a falta de profissionalismo, respeito, apoio, etc. Houve também uma pouco velada crítica ao seleccionador e a exigência implícita que ele fosse demitido porque elas não tinham confiança nele. Na altura a Federação espanhola fez finca-pé e as 15 jogadoras decidiram não voltar, ao mesmo tempo que a Federação as afastou enquanto não renunciassem às exigências. 3 das jogadoras acabaram por o fazer e jogar nestes campeonatos do mundo.
Na altura, apesar de não terem subscrito a carta, algumas outras jogadoras solidarizaram-se com o conteúdo e as subscritoras. Uma delas foi Alexia Putellas, já 2 vezes considerada a melhor jogadora do mundo, e outra foi Jenni Hermoso, que era na altura também a capitã da selecção espanhola. O resultado para estas foram advertências e, no caso de Hermoso, ver retirada a braçadeira de capitão. Foi então punida por ter tomado uma posição.
Agora avancemos para este cenário. Uma empresa acaba de ter os melhores resultados da sua história e festejam esse feito. No processo, um dos empregados mais séniores, que no passado tinha sido líder de equipa mas depois despromovido após apoiar alguns dos seus colegas mais juniores numa reclamação, é beijado na boca pela presidente da empresa, a qual tinha diso responsável pela despromoção. O empregado decide ignorar, contente que está pelo que foi alcançado, mas depois queixa-se do ocorrido, afinal de contas, a presidente não lhe pediu para lhe dar um beijo e, mesmo que o tivesse feito, não era coisa para se fazer em público.
Após a queixa, a presidente inicialmente parece receptiva a pedir desculpas mas depois queixa-se das mentalidades, faz finca-pé, diz que a mentalidade de mariquinhas está a destruir a sociedade e que o beijo não foi mais que "um beijinho".
É óbvio onde quero chegar com isto - e se não for peçam ajuda que eu não estou para explicar. O chefe máximo abusou da sua posição e fez algo que não podia, de maneira nenhuma, fazer. Nem seria necessário falar de toxicidade masculina. Isto é simplesmente despropositado em qualquer situação. Mas o machismo que ainda é reinante na Espanha (e não só, Portugal não se escapa, nem a maioria dos países), apesar de menos proeminente que no passado, não pode ser removido da equação. Rubiales comportou-se assim porque entendeu que podia fazê-lo. Porque é o presidente e porque é um homem.
Jenni Hermoso decidiu de outra forma. As outras jogadoras, várias treinadoras e treinadores e até alguns jogadores, e muito da população também. E é o irónico disto, porque agora já não há outro caminho: ao cometer um acto de abuso, de toxicidade, Rubiales terá ajudado a limpar o ar.