O Muro do Fel e os Cantores Românticos
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[Tony de Matos Sou Romantico]
Deixei ontem uma breve nota sobre a morte de Marco Paulo. Mesmo estando habituado ao fel desabrido de algum do comentariado anónimo no DO - uma espécie de secção "Muro de Fel" do blog - fiquei surpreendido com o azedume resmungão de alguns comentários recebidos. A alguns, que me eram dirigidos, apaguei-os, até por se tratar de um postal "in memoriam".
Tudo se originou por eu ter usado a expressão "cantor romântico", a qual é de uso corrente no âmbito da música "popular" - termo este também de vasta amplitude, que em inglês abrange (pelo menos) o que dizem ser música "pop" e "folk", algo diverso na nossa língua dado que damos um uso diferente a música "folclórica". Logo surgiu um (típico) comentário empertigado, seguido de outros, refutando o uso de "romântico". Não se tratou de uma mera discordância, mas sim de um explícito "vá estudar" (na wikipédia, ainda por cima), logo seguido de invectivas pessoais e de, num registo não menos "doutoral" mas não tão conflitual, considerações de que "o termo 'romântico' deve ser empregado com propriedade".
Julgo ser evidente para todos - excepto aqueles que vêm ao DO apenas para resmungar anonimamente - que a expressão "romântico" se atribui generalizadamente a cantores, canções ou músicas. Surge em várias línguas - deixo ligações ao seu uso em registo anglófono (Most romantic singers), francófono (Les nouveaux romantiques de la chanson française), espanhol (Cantantes de balada romántica de España), italiano (56 canzoni romantiche...), lusófono (As melhores músicas românticas brasileiras, Grandes Vozes, Cantores Românticos). E deixo aqui um filme com uma canção célebre de Tony de Matos, considerado o "cantor romântico" da canção portuguesa.
Um outro anónimo também se empertigou, insurgindo-se contra o breve postal que dediquei ao cantor, clamando "Parece que alguns não sabem que todos os dias morrem pessoas de doença. O importante é escrever sobre algo que possa ser útil e fazer a diferença e fazer algo pelos que estão vivos.". Esta abrasiva invectiva mostra, mais do que tudo, um profundo desnorte, uma desorientação. Ou seja, um desconhecimento da localização própria. Pois é um comentário-exigência colocada num blog, uma plataforma comunicacional gratuita e voluntária, em que nem os escribas ganham nem os leitores pagam. Deste modo não há qualquer "deontologia" subjacente, não existe qualquer obrigatoriedade para se escolherem temas "úteis" ou "diferenciadores". Em suma, quem escreve fá-lo sobre o que lhe apetece. E se os leitores podem reclamar nos órgãos de comunicação social ou noutro tipo de publicação "clássica" remunerável esse "utilitarismo" ou essa "pedagogia", não têm qualquer razão para o fazer em blogs. Ao dizê-lo denotam-se desnorteados. Ou demonstram-se ignorantes.
Ainda assim pego no mote desse comentador pimpão e enveredo aqui pela via "pedagógica", respondendo aos empertigados comentadores contestatários do uso de "romântico", julgando-se sábios por o reclamarem monopólio do "romantismo" oitocentista, esse tão heterogéneo estado de consciência presente em diversas expressões artísticas e intelectuais. De facto, essa ideia não é correcta - e torna risível a mão na anca dos furiosos comentadores. Pois a expressão "romântico" atribuída a alguns tipos de música "popular" não deriva apenas do uso, não é uma extensão vinda de um facilitismo, ou uma metáfora preguiçosa. Mas advém da história do termo. Vou avançar alguma fundamentação sobre isso - nem que seja para tentar que os comentadores que discordam dos conteúdos dos postais os debatam, em vez de os invectivarem e aos seus autores.
Para isso cito Jacques Barzun, de cujo magnífico "From Dawn To Decadence: 1500 to the present, 500 years of western cultural life", fui reler excertos há muito pouco tempo, a propósito de ter ido ouvir Berlioz e falar sobre o "Frankenstein" de Mary Shelley, dois "românticos", desse Romantismo oitocentista. O historial dos diversos rumos semânticos do termo "romântico" é assim resumido pelo grande historiador:
"The use of romantic in English goes back to the 17C when it was used to denote imagination and inventiveness in storytelling and, soon after, to characterize scenery and paintings. (...) At the core of the epithet, obviously, is a proper name: Rome, Roman. From the start, the image is many-sidded. Centuries after the fall of the empire, the vernacular spoken along the Mediterranean was no longer vulgar Latin but a variable dialect called roman. From it came French, Spanish, Italian, and other romance language, still called by that name in academic departments. After a time, roman was applied to tales written in that dialect as spoken in southern France.
These tales were often love and adventure, as contrasted with epic narratives or satires. In French today the word for novel is still roman, while in English a romance is one kind of novel and by further extension one kind of love affair. On this account romantic gets used to denote the blissful state and character of the participants." (...) - (467, e o assunto segue na página seguinte).
Enfim, não é grave que não se tenha um entendimento aperfeiçoado do termo "romântico". E que se debata isso num blog, nos seus postais e nos comentários. Mas para quê surgir altaneiro e abrasivo, invectivador? Quando nem sequer se tem o conhecimento? E mesmo quando se tem?
Dito isto, aqui replico o postal sobre "canções românticas" que coloquei antes no meu Nenhures. Nem que seja para que os resmungões possam resmungar...
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[I Don't Want To Talk About It (from One Night Only! Rod Stewart Live at Royal Albert Hall)]
[People have the power (Patti Smith sings "People Have The Power" with a choir made up of 250 volunteer singers at NYC's Public Theater. This was done in 2019. Daveed Goldman on guitar and Stewart Copeland playing the frying pan.)]
Isto tudo se liga, se articula... e contradiz! No seu mural de Facebook o Henrique Pereira Dos Santos traz esta versão coral da "People Have The Power" da Patti Smith - a qual, vos garanto por empírico conhecimento, cruza gerações. Canção hino que tantas vezes cantámos, nas pistas ou por aí afora, às vezes exultantes como se gente, outras cantarolando em ira amesquinhada.
Tudo se liga, tudo se contradiz!, digo eu. Estou a ler o imprescindível "Tudo é Tabu" do Pedro Correia (Guerra e Paz Editores) , um rol de 100 casos de censura promovida pela vigente e descabelada ideologia "identitarista", e ontem cruzei o 75º caso, exactamente o respeitante à Patti Smith, até ela alvo do cretino modo "cancel"!
Ao mesmo tempo vou, cá de longe, recebendo as novas sobre as eleições em Moçambique - país onde a "People Have The Power" se canta "Povo no Poder" -, mais um episódio da inenarrável e despudorada apropriação do voto popular, do "Power" do "People". Até quando?, a que custos?, como se chegará ali ao "Basta" ("Chega" é uma palavra agora politicamente poluída, entenda-se...)?
Mas tudo se liga, tudo se contradiz! Pois cantarolo a canção sentado no meio deste meu Povo pensionista, decrépito, cujo poder se restringe a votar nesta pobreza mental e moral, como se vê na gritaria socialista e fascista à volta do orçamento, no dia em que juristas forçam a arrastar um homem doentíssimo num tribunal apenas para justificarem o seu lacaio imobilismo, servis a este estado do Estado.
Tem o "people" o "power"? Tem, estive ontem a ver as sondagens americanas, Estado a Estado... É quase certo que Trump ganhará.
"...the people have the power / to redeem the work of fools"?
É mesmo melhor cada um tomar o combustível que lhe apetece (Vodka tónico para mim, sff) e ir para a pista, dançar e cantar. Sem esperança. Mas não desesperado.
Imagem Instagram
As mulheres ainda são a minoria nas orquestras sinfónicas. Graças, porém, às audições às cegas, o seu número tem vindo a aumentar.
No Instagram da Fundação Francisco Manuel dos Santos, encontra-se o link para um artigo de Pedro Boléo, publicado originalmente na Revista XXI nº 8, sob o tema da Igualdade e com o título usado por mim neste postal (por isso, as aspas). Ou seja: ainda hoje, na nossa sociedade ocidental, tolerante e civilizada, só as audições às cegas garantem que o júri não se deixe influenciar, por exemplo, pela cor da pele ou pelo género da pessoa candidata. Pelos vistos, aos homens, adianta serem brancos; às mulheres, nem isso. Mas também não queremos ser privilegiadas pela cor da nossa pele.
As audições às cegas começaram a ser usadas pela primeira vez pela Boston Symphony Orchestra em 1952, mas só a partir dos anos 70 a prática se estendeu a outras orquestras (…) A ideia seria aumentar a justiça das escolhas, garantindo (ou pelo menos favorecendo) condições de igualdade à partida. Mas Pedro Boléo questiona-se (e muito bem): porque não estariam essas condições garantidas à partida?
Nestas palavras, temos discriminação aberta, temos essa frase inominável “elas tornam-se homens” e temos considerar escandaloso o facto de os homens as tratarem como iguais, usando o pormenor da mudança de calças. Trata-se de um método muito usado por machistas, o chamado sexismo subtil. Não sou naturalmente apologista do gesto, como garante de igualdade. Mas aquilo que é entendido como uma maneira de proteger as mulheres, vai muito além do paternalismo. Para o maestro referido, a única solução seria evitar mulheres nas orquestras, quando, na verdade, as orquestras é que devem garantir as condições necessárias para assegurar a sua admissão! E os músicos que mudam as calças à frente delas são igualmente contra a inclusão de mulheres instrumentistas nas suas orquestras, usando uma forma assaz grosseira de protesto: “ai elas também querem pertencer? Então que aguentem!” Machismo puro e duro.
Ainda hoje, mesmo entre os músicos que aceitam mulheres como colegas de orquestra, há certos preconceitos, como considerar haver instrumentos tradicionalmente femininos (a harpa), ou masculinos (a trompa). Malcolm Gladwell, no livro Blink, em que analisa e tenta desconstruir as enganosas «impressões à primeira vista», dá o exemplo de uma instrumentista, mulher e de pequena estatura, que «nunca poderia ser uma grande tocadora de trompa porque não teria força nem capacidade pulmonar”». Ora esta mulher, Julie Landsman, é hoje trompista solista e líder do naipe da Metropolitan Opera de Nova Iorque.
O caso mais chocante, de como os preconceitos estão ainda bem vivos na nossa Europa civilizada, é o da Filarmónica de Viena, apesar dos protestos consecutivos de várias instituições de defesa dos Direitos Humanos e da igualdade de género. A direcção e os membros desta orquestra defendem abertamente posições racistas e sexistas. Uma vez venceu, numa audição às cegas, um candidato japonês, recusado de seguida pelo facto de a sua cara não corresponder, segundo o director da orquestra, ao perfil da Pizzicato-Polka do concerto de Ano Novo.
A Filarmónica de Viena só integrou mulheres pela primeira vez em 1997, e tinha em 2013, apenas seis. A fim de justificar esta disparidade, as declarações dos seus dirigentes incluem ainda argumentos como «a diferença biológica», «dos lábios», «dos pulmões», «a possibilidade de relacionamentos amorosos no seio da orquestra».
Em Portugal, pelos vistos, a prática das audições às cegas ainda não é geral. Pedro Boléo diz-nos existirem orquestras que realizam audições às cegas, dando-nos o exemplo da Orquestra Gulbenkian que aliás pratica estas audições nas duas primeiras fases do concurso (das três que realiza) para integrar um naipe orquestral.
Há quem diga que as feministas já não são necessárias. Parece-me, porém, ser ainda necessário haver quem denuncie estas situações, para que sejam lembradas, discutidas, se mantenham presentes. Pouco importa se essas pessoas sejam, ou não, apelidadas de feministas.
Termino com as igualmente palavras finais de Pedro Boléo:
Lembra-Me Um Sonho Lindo
A morte de Fausto (Fausto Bordalo Dias, como depois veio a ser conhecido) faz-me recuar até aos anos 80 mas também me ancora no presente. Logo me lembro, como a tantos acontecerá, deste "Por Este Rio Acima", um disco magnífico. E uma surpresa na época - pois para além do íntrinseco autoral era muito bem produzido, muitíssimo melhor produto do que era a norma de então, e em especial nos muito básicos oriundos da chamada "canção de intervenção", "cantautores" vieram depois a ser ditos. A indústria musical portuguesa não era tão má, tecnologicamente, como a cinematográfica (esta era verdadeiramente uma desgraça), mas era deficitária. "Por Este Rio Acima" mudou isso. O sucesso, comercial e de reconhecimento, foi enorme. Lembro-me - mas lamentavelmente não encontro via motores de busca - de uma deliciosa primeira página de jornal que dizia "Fausto, o Chalana da Música", noticiando um novo - e bem abonado - contrato com empresa discográfica do músico (que me diziam ser um tipo profissionalmente muito difícil, exigentíssimo, até em demasia), fazendo-o equivaler ao grande ídolo da bola de então...
Mas a memória deste disco também me traz para o presente. Pois em alguma imprensa e na na academia de algumas ciências sociais (nisso também na antropologia) vem vigorando um discurso - dito "pócolonial" ou "decolonial" -, militante de uma simplificação demagógica do passado recente e da actualidade. O seu cerne é a afirmação da inexistência de uma "descolonização" intelectual no país, da total perenidade da mundividência colonial, imperial, saudosista, após-1974. Há até textos (o jargão chama-lhes "papers") publicados nos locais "da especialidade", botados por estrangeiros (brasileiros de preferência) ou lusos empenhados, que consagram essa perenidade. Sobrevoam, apressados, o "campo literário", desatentam a (sofrível, repito-me) cinematografia. E aguçam-se, vampirescos, sobre o mundo da música popular, neste último clamando a representatividade, como se universal, daqueles obscuros festivaleiros Da Vinci. E, mais ainda, reproduzindo uma interpretação abjecta de básica desse fenómeno pop que foram os Heróis do Mar. Esses mariolas, sempre avessos à rugosidade do real, sua complexidade e multiplicidade, a tudo o que não lhes convém às "causas" (e aos subsídios) esquecem, não só a existência como a real influência de objectos que marcaram o país, suas gentes, as mundividências. Lembro a magistral peça "Fernão, Mentes?" da Barraca, logo no início da década de 1980. E nesse já tão recuado 1984 o monumento - tão influente - que foi este "Por Este Rio Acima". Nem tantas outras coisas, as produzidas e as formas da sua recepção pública.
E continuam "por esses rios abaixo" os tais intelectuais. E nós-outros, os avessos à aldrabice "póscolonial", deveras embrenhados no encapelado da realidade, continuaremos a entoar - e mais agora na morte de Fausto -, "Quem conquista sempre rouba / quem cobiça nunca dá / quem oprime tiraniza / naufraga mil vezes ... Já vou de grilhões nos pés / já vou de algemas nas mãos / de colares ao pescoço / perdido e achado / vendido em leilão / eu já fui mercadoria / lá na praia do Mocá...". Tudo isto, complexo, que não lhes cabe na ladainha, com a qual vão ganhando a vidinha, videirinhos que seguem.
Bob Dylan - Simple Twist of Fate (Official Audio)
Robert Plant_Song To The Siren
1º de Agosto - Xutos e Pontapés
Hoje, no Coliseu de Lisboa
( Videos YouTube)
Nos Restauradores entro no Metro, desço ao cais e fico estuporado pois - ainda que soando algo baixo - reconheço acordes dos Doors, a L.A. Women logo julgo. Sai-me palavrão, peludo - e ainda pior, logo de seguida, ao ouvir a canção interrompida com anúncio a um qualquer cartão ("Viajante"?). São-me palavrões mudos, para mim mesmo, isto de ver os velhos Doors resumidos a "música de metropolitano", que nem de hotel.... E lembro-me, eu puto, do programa musical de António Victorino de Almeida, dizendo que a população de Viena (Viena!!!!, sim, Viena...) votara contra a música ambiente no metro...
Fogo!, que menosprezo, os velhos Doors metidos a música ambiente do Metro lisboeta... Que desplante, o da empresa... Não os ouço há quanto tempo?!, nem nas minhas fileiras do spotify, dizendo-os desengraçados, ao Morrison um histriónico até piroso e - até mais do que tudo - nestes meus já 59 anos não tocando naqueles seus produtos há para aí 40 anos, vade retro, satanás, disse mesmo que ateu, avesso àqueles químicos, depois descrente do vegetal psicotrópico.
Agora, é já noite, e deparo-me comigo, nas mãos tenho este "Uma Oração Americana e Outros Escritos", editado pela Assírio e Alvim (ainda assim escrita), que comprei em Dezembro de 1981... Já tocou, bem alto, e eu cantei, o "Everybody loves my baby, everybody loves my baby, she get high, she get high, she get high, she get high, yeah"!
Agora toca, e eu leio, "As pessoas são estranhas quando nós o somos, / feias são as caras quando nos vemos só. / Toda a mulher que nos rejeita nos parece perversa, / as ruas são tortuosas quando estamos em baixo. / Quando nos sentimos estranhos, surgem-nos caras através da chuva, / quando nos sentimos estranhos, ninguém se lembra do nosso nome, / quando nos sentimos estranhos, quando nos sentimos estranhos, / quando nos sentimos estranhos." (Tradução de Manuel João Gomes). Pois é assim mesmo...
Enfim, afinal... obrigado Metropolitano de Lisboa. E, já agora, alguém por aqui tem aí alguma coisa...?
Tive a imensa alegria de ver ao vivo várias estrelas do cinema, hoje quase lendárias, como Sophia Loren, Jerry Lewis e Peter Ustinov. Ontem à noite senti o mesmo, como espectador no Campo Pequeno, ao observar no palco um dos meus heróis do cinema: o pequeno-grande Woody Allen, na sua versão de músico. Com quase 88 anos, mostrou-se em excelente forma no seu clarinete e em óptima companhia: a New Orleans Jazz Band. Há cerca de 40 anos que tocam juntos. É evidente a atmosfera de cumplicidade e camaradagem entre eles. Contagiando a plateia, que não lhe regateou aplausos vibrantes ao longo de todo o concerto.
Decorrida quase hora e meia, Woody anunciou que iriam retirar-se por se sentirem «cansados». Era uma piada. Tocaram para nós mais meia hora, fazendo-nos recuar um século, à era das jazz band com fusão de estilos e ritmos: jazz, soul, blues, ragtime, fox, quickstep... Sempre em crescendo, em atmosfera festiva. Verdadeiro património musical norte-americano, património musical da humanidade. Um hino à vida.
Enquanto os escutava, ia pensando no primeiro filme que vi de (e com) Woody Allen. Foi em 1975: O Inimigo Público, comédia já com os traços gerais a que nos foi habituando na parte inicial da sua extensa obra cinematográfica. Pensei também numa viagem que fiz a Nova Iorque, em 1996: fui de propósito ao Michael's Pub, onde ele costumava actuar com o seu clarinete uma vez por semana. Mas daquela vez não estava lá.
Valeu a pena esperar. Tal como vale a pena esperar pelo novo filme dele, que já teve antestreia no Festival de Veneza e será exibido em Portugal a partir do próximo mês: Golpe de Sorte. O 50.º filme do mestre Woody - e o primeiro falado em francês. Por ele estar impedido de trabalhar no seu país natal, na sua cidade natal que exibiu com tanto orgulho e tanto carinho ao mundo. O último que lá rodou, em 2017, foi Um Dia de Chuva em Nova Iorque, que esteve cerca de dois anos sem exibidor norte-americano, acabando por estrear-se na Europa.
Porquê? Porque o autor de Annie Hall continua perseguido por "crimes" supostamente cometidos há 30 anos e desenterrados pelo fanatismo mais rasteiro do movimento #MeToo - nova caça às bruxas, autêntico maccartismo sexual que arruína vidas e carreiras (aconteceu o mesmo com Kevin Spacey). "Crimes" que Allen sempre negou categoricamente.
Foi tudo investigado com minúcia por peritos policiais, procuradores, psicólogos e jornalistas: o cineasta nem chegou a ser incriminado - muito menos acusado, muito menos condenado.
«Todas as provas me apoiam, todas as investigações me ilibaram», declarou. É uma evidência.
Mesmo assim nunca faltam enxames de gente histérica a recebê-lo com urros desvairados, vá ele para onde for, condenando-o à morte civil. Aconteceu no início do mês, em Veneza. Voltou a acontecer ontem, no exterior do Campo Pequeno: alguns imbecis - certamente com alma imaculada mas nula razão jurídica e factual - exibiram uma tarja a chamar-lhe «pedófilo». A presunção de inocência, para esta escumalha, não existe. E o Estado de Direito também não.
Felizmente quase ninguém lhes ligou. Lá dentro, onde ele actuava, escutou o que merece: ovações vibrantes, calorosas, agradecidas.
Trocou-me as voltas em 1996, mas não agora. Tive o privilégio e a honra de também lhe prestar tributo.
[The Shadows - Theme from The Deer Hunter 1979]
Amigos dados ao cinema, oficiais do ofício, talvez (e muito provavelmente) contestem Cimino, uma espécie de narrador oitocentista. Passantes ex-esquerdistas, agora identitaristas - ainda que, por isso mesmo, sempre pouco ou mal lidos -, talvez ainda critiquem o "reaccionário" Cimino. Mesmo assim partilho o que o zapping me trouxe, que talvez a alguém interesse. No canal Fox Movies está disponível desde hoje "O Caçador". Um filme inesquecível..., que acabo de rever passados tantos anos. Com gáudio.
(E com o tal final imperdoado pelos comunistas de várias extrações, e seus "amigos". Esse mesmo que a história veio confirmar, já agora... E aqui o deixo, para que tantos "intelectuais" de pacotilha possam compreender o que se vem passando (também) desde há décadas. À revelia das suas, tão erradas, perspectivas sobre o real, presente, passado... e futuro. Cimino, o tal "conservador", "reaccionário", entendeu - no tempo próprio - o que se passava. Os outros, ufanos de si, nada perceberam, perorando).
[The Deer Hunter ending]
[Michael Cimino on the final scene in The Deer Hunter]
Tina Turner - What's Love Got To Do With It (Live)
Vi a Tina Turner em 1991, talvez, depois dos Stones e do Bowie, antes do Santana, lá no José de Alvalade, então sede lisboeta do rock... - aquilo dava-nos cabo do relvado mas valia bem a pena, pelas receitas para dissipar pelo clube e pelos grandes espectáculos. Lá cheguei um bom bocado antes do concerto, como sempre dirigi-me ao nosso "ponto de encontro" - "onde nos encontramos?", perguntavam os neófitos mais ansiosos. "No sítio onde o Oceano joga", respondia, veterano, para desnorte alheio, logo acabrunhados num "isso é onde?" para acolherem um ríspido e rústico "em qualquer lugar do lugar do relvado!!", tão omnipresente era o nosso grande Oceano, que eles decerto desconheciam. Ou seja, ia lá para o rock e não para o convívio.
Enfim, lá aportei, aproximei-me da velha Bancada Central. Estava apinhada. A Tina original, a Turner, havia ressurgido há anos, estava no topo dos topos, o grande Mad Max também ajudara. Lembro bem que ao lusco-fusco do crepúsculo, ainda ao som de música gravada, o público já dançava exultante. Mas mais do que isso, estava pejado de Tinas - negras, mulatas, até brancas. E de Tinos também, que não Ikes. Tudo dançando. Depois encheu o relvado. Sim, ela reaparecera anos antes neste pop-rock até manso, mais do que tudo sexy, um embrulho abrangente que a tantos agradava - será que os miúdos de hoje poderão perceber o impacto daquilo? E nisso a quantidade de noites bamboleando nestas cançãozinhas que ela tornava um "must"? Um caldo comum?
Não tenho qualquer vinil ou cd dela. Mas ficou a memória dessas imensas danças. E de um grande concerto, esfuziante. E de como - perceba quem quiser - este embrulho amalgamado, produtor de amálgamas, era virtuoso. Por isso aqui deixo esta versão ao vivo. Com ela cantando e dançando de calças - porque era muito mais do que umas "hot legs".
"On the road", esta assim encrespada, enquanto na rádio o velho Slowhand entoa a lendária "Wonderful Tonight", aquela do fantástico meneio "and the wonder of it all / Is that you just don't realize how much I love you". Depois, meter a primeira e avante...!, sacudindo o vislumbre do passado.
Eric Clapton - Wonderful Tonight [Official Live In San Diego]
Pink Floyd - Is There Anybody Out There?
Leio que uma tal de "comunidade judaica" em Portugal veio protestar devido ao concerto de Roger Waters em Lisboa, gente que o quereria "cancelado"... No fundo querem destratá-lo como outros o fazem, alhures, ao Morrissey. A gente veio-se habituando a este culto do "cancelamento" dos artistas (e não só) promovido por uma certa "esquerda" - identitarista, dita falaciosamente "pós-"marxista -, essa que vegeta num pensamento "lite" importado dos "campi" norte-americanos. Ou seja, e se à primeira vista até pode surpreender isto dos judeus locais virem replicar a esquerdalhada festiva, sabendo da genealogia desta "censura activa" reinante até se poderá perceber alguma homologia "étnica" no atrevimento censório...
Enfim, eu não gosto do Roger Waters. Não por causa de quaisquer causas políticas que venha tendo. Mas porque se tornou um abrasivo oponente dos outros Floyd. Desconhecedor disso que os grandes grupos rock são algo alquímico - o que aprendemos com os Beatles, o que os Zeppelin souberam comprovar. Ou seja, pode até haver alguma mudança ocasional ou obrigatória (a morte de Moon, por exemplo), há lideranças, uninominais ou em duo (os Glimmer Twins, para exemplo maior). Mas isto de um dos membros aparecer aos gritos a dizer que é o "dono da bola" é o avesso do rock. E é o que o Waters anda a fazer há 35 anos...
O primeiro single que comprei foi o "Money" e o primeiro LP foi o "Animals" (cuja capa está pendurada na sala da minha casa...). Comprei vários discos dos Floyd, até o sempre inaudível "Ummagumma". Mas nunca este "The Wall", coisa dos meus 15/16 anos, que já me pareceu demasiado "operático" (termo pejorativo que na altura desconhecia) - nas festinhas dançava e entoava aquela do "teachers leave the kids...", porque todos o faziam, vi o filme. Mas então já muito mais "The Clash", a caminho do "Babylon by Bus" e "Kaya" do Marley, envergonhadamente seduzido pelos "Chic" e a estrear-me no Dexter, Coltrane e Miles, todo aquele aparato floydiano 80s era-me desnecessário, soava pomposo. Por tudo isto mais depressa iria agora ver o já impossível trio Guilmour, Mason & Wright do que o Waters a "solo", nesta velha birra do tal "dono da bola".
E também não irei porque ninguém me convida, que fará um quase sexagenário solitário, completamente alheado dos psicotrópicos, diante de todo aquele aparato, decerto que excessivamente sonoro e em potlatch de luminotecnia? Não há nostalgia de adolescência suficiente, nem mesmo qualquer luxúria senil, que me transporte até lá... Ainda assim trago esta breve "Is there anybody out there?", uma das músicas da minha vida (sim, é do tal "The Wall"), durante tanto tempo, tantas vezes, verdadeira banda sonora do meu prosseguir. Acompanhando este meu corolário, o do resmungo: os compatriotas judeus que tenham juízo e se deixem de coisas...
Peter Gabriel - Shaking The Tree (Secret World Live HD) - uma versão magnífica desta canção
O velho hippie morreu agora. E nunca cortou o cabelo, justiça lhe seja feita... Aqui o(s) deixo, em especial para os que julgam que o rock de estádio começou no Live Aid... (A minha irmã e o meu cunhado tinham o LP Crosby, Stills & Nash e também o Déjà Vu, daqueles Crosby, Stills, Nash & Young - este último bem antes do Rust Never Sleeps e de ser avoengo do agora também já velho grunge. E assim cresci com eles).
CROSBY & STILLS & NASH & YOUNG - Almost Cut My Hair ( Live In Wembley Stadium , London, 1974)
E qui uma das minhas muito preferidas do trio "original" (o célebre CS&N), em excelente versão... septuagenária: vale a pena ouvir, qual posfácio da selecção de 20 canções de David Crosby feita pela Rolling Stone...
Crosby Stills and Nash - Suite: Judy Blue Eyes - Live 2012
STEVIE WONDER "Don't Drive Drunk"
Aconteceu-me que em pleno dia de Natal, indo a caminho da casa da minha irmã para as tradicionais celebrações, estreei-me em acidentes rodoviários após 39 anos de condução. Estraguei o meu dia, incomodei a minha filha, que lá me esperava, a qual padece deste pai. E sofri uma fractura exposta no osso orgulho. Para além um derrame na conta bancária, que seria letal não fora o caso desta estar já ligada à máquina, em condição dita irreversível.
Atendendo à data festiva, e concomitantes folgas, tive de esperar umas horas pelo reboque. Era já início de noite quando chegou, levando-me da via rápida verdadeiramente fronteira ao Trancão até à planície nas cercanias do Sado. Simpaticíssimo o motorista, e basto falador - tentando (e conseguindo, justiça lhe seja feita) animar-me, macambúzio que me encontrou, culminando ambos (e logo na Vasco da Gama) num quase nada estóico "foi só (pouca) chapa e plástico" "que se lixe!", isto que sobre angústias monetárias não me deixei espraiar...
E nisso o homem foi-se alongando, confirmando-me que são estes dias, os das Festas, de muita azáfama. Pois poucos colegas de serviço e muita gente a ter problemas, "no Natal saem da casa das famílias com um copito a mais...", no "Ano Novo vêm das festas...". Às vezes cenas dramáticas - e algumas contou mas tenho pejo de as convocar - mas a maioria das vezes pequenas coisas, toques, choquezitos, a perturbarem ou mesmo a magoarem mesmo que felizmente não irremediáveis. Aquele copito de vinho a mais no Natal, só mais, só mais um brinde de Ano Novo - "Feliz" terá ele de ser -, até com o raisparta do espumante, ou mesmo a saideira seguida da abaladiça, e nisso já se está num registo mais desengonçável...
Enfim, lá me largou ele diante da oficina onde parqueei o carro (emprestado, ainda por cima). E agora, antes do reveillon de tantos, ou da "passagem" de outros, nem sequer tenho de me lembrar daqueles inícios dos 80s, antes da instauração do "balão" e das campanhas - nem o cinto de segurança era prescritivo -, das loucuras acontecidas, dos amigos perdidos... Lembro-me só da conversa desta semana com o loquaz motorista de reboque, a desmontar-me a ideia de que após tantas décadas passadas, tantas campanhas feitas, as coisas ao volante tinham mesmo mudado.
Eu sei que a esta canção é foleira, e o vídeo também. Mas muito mais foleiro é guiar acima dos limites da segurança. Portanto, hoje em especial, "não guies com os copos". Mesmo que seja só aquele "bocadinho" de nada... Esse que se calhar até é o pior, dá aquela sensação de "falsa segurança" que a dra. Graça Freitas e a ministra Temido tanto combatiam - quando nos queriam convencer a não usar máscaras e a não nos testarmos.