Eles ainda andam aí
Hoje, no Coliseu de Lisboa
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Hoje, no Coliseu de Lisboa
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Nos Restauradores entro no Metro, desço ao cais e fico estuporado pois - ainda que soando algo baixo - reconheço acordes dos Doors, a L.A. Women logo julgo. Sai-me palavrão, peludo - e ainda pior, logo de seguida, ao ouvir a canção interrompida com anúncio a um qualquer cartão ("Viajante"?). São-me palavrões mudos, para mim mesmo, isto de ver os velhos Doors resumidos a "música de metropolitano", que nem de hotel.... E lembro-me, eu puto, do programa musical de António Victorino de Almeida, dizendo que a população de Viena (Viena!!!!, sim, Viena...) votara contra a música ambiente no metro...
Fogo!, que menosprezo, os velhos Doors metidos a música ambiente do Metro lisboeta... Que desplante, o da empresa... Não os ouço há quanto tempo?!, nem nas minhas fileiras do spotify, dizendo-os desengraçados, ao Morrison um histriónico até piroso e - até mais do que tudo - nestes meus já 59 anos não tocando naqueles seus produtos há para aí 40 anos, vade retro, satanás, disse mesmo que ateu, avesso àqueles químicos, depois descrente do vegetal psicotrópico.
Agora, é já noite, e deparo-me comigo, nas mãos tenho este "Uma Oração Americana e Outros Escritos", editado pela Assírio e Alvim (ainda assim escrita), que comprei em Dezembro de 1981... Já tocou, bem alto, e eu cantei, o "Everybody loves my baby, everybody loves my baby, she get high, she get high, she get high, she get high, yeah"!
Agora toca, e eu leio, "As pessoas são estranhas quando nós o somos, / feias são as caras quando nos vemos só. / Toda a mulher que nos rejeita nos parece perversa, / as ruas são tortuosas quando estamos em baixo. / Quando nos sentimos estranhos, surgem-nos caras através da chuva, / quando nos sentimos estranhos, ninguém se lembra do nosso nome, / quando nos sentimos estranhos, quando nos sentimos estranhos, / quando nos sentimos estranhos." (Tradução de Manuel João Gomes). Pois é assim mesmo...
Enfim, afinal... obrigado Metropolitano de Lisboa. E, já agora, alguém por aqui tem aí alguma coisa...?
Tive a imensa alegria de ver ao vivo várias estrelas do cinema, hoje quase lendárias, como Sophia Loren, Jerry Lewis e Peter Ustinov. Ontem à noite senti o mesmo, como espectador no Campo Pequeno, ao observar no palco um dos meus heróis do cinema: o pequeno-grande Woody Allen, na sua versão de músico. Com quase 88 anos, mostrou-se em excelente forma no seu clarinete e em óptima companhia: a New Orleans Jazz Band. Há cerca de 40 anos que tocam juntos. É evidente a atmosfera de cumplicidade e camaradagem entre eles. Contagiando a plateia, que não lhe regateou aplausos vibrantes ao longo de todo o concerto.
Decorrida quase hora e meia, Woody anunciou que iriam retirar-se por se sentirem «cansados». Era uma piada. Tocaram para nós mais meia hora, fazendo-nos recuar um século, à era das jazz band com fusão de estilos e ritmos: jazz, soul, blues, ragtime, fox, quickstep... Sempre em crescendo, em atmosfera festiva. Verdadeiro património musical norte-americano, património musical da humanidade. Um hino à vida.
Enquanto os escutava, ia pensando no primeiro filme que vi de (e com) Woody Allen. Foi em 1975: O Inimigo Público, comédia já com os traços gerais a que nos foi habituando na parte inicial da sua extensa obra cinematográfica. Pensei também numa viagem que fiz a Nova Iorque, em 1996: fui de propósito ao Michael's Pub, onde ele costumava actuar com o seu clarinete uma vez por semana. Mas daquela vez não estava lá.
Valeu a pena esperar. Tal como vale a pena esperar pelo novo filme dele, que já teve antestreia no Festival de Veneza e será exibido em Portugal a partir do próximo mês: Golpe de Sorte. O 50.º filme do mestre Woody - e o primeiro falado em francês. Por ele estar impedido de trabalhar no seu país natal, na sua cidade natal que exibiu com tanto orgulho e tanto carinho ao mundo. O último que lá rodou, em 2017, foi Um Dia de Chuva em Nova Iorque, que esteve cerca de dois anos sem exibidor norte-americano, acabando por estrear-se na Europa.
Porquê? Porque o autor de Annie Hall continua perseguido por "crimes" supostamente cometidos há 30 anos e desenterrados pelo fanatismo mais rasteiro do movimento #MeToo - nova caça às bruxas, autêntico maccartismo sexual que arruína vidas e carreiras (aconteceu o mesmo com Kevin Spacey). "Crimes" que Allen sempre negou categoricamente.
Foi tudo investigado com minúcia por peritos policiais, procuradores, psicólogos e jornalistas: o cineasta nem chegou a ser incriminado - muito menos acusado, muito menos condenado.
«Todas as provas me apoiam, todas as investigações me ilibaram», declarou. É uma evidência.
Mesmo assim nunca faltam enxames de gente histérica a recebê-lo com urros desvairados, vá ele para onde for, condenando-o à morte civil. Aconteceu no início do mês, em Veneza. Voltou a acontecer ontem, no exterior do Campo Pequeno: alguns imbecis - certamente com alma imaculada mas nula razão jurídica e factual - exibiram uma tarja a chamar-lhe «pedófilo». A presunção de inocência, para esta escumalha, não existe. E o Estado de Direito também não.
Felizmente quase ninguém lhes ligou. Lá dentro, onde ele actuava, escutou o que merece: ovações vibrantes, calorosas, agradecidas.
Trocou-me as voltas em 1996, mas não agora. Tive o privilégio e a honra de também lhe prestar tributo.
[The Shadows - Theme from The Deer Hunter 1979]
Amigos dados ao cinema, oficiais do ofício, talvez (e muito provavelmente) contestem Cimino, uma espécie de narrador oitocentista. Passantes ex-esquerdistas, agora identitaristas - ainda que, por isso mesmo, sempre pouco ou mal lidos -, talvez ainda critiquem o "reaccionário" Cimino. Mesmo assim partilho o que o zapping me trouxe, que talvez a alguém interesse. No canal Fox Movies está disponível desde hoje "O Caçador". Um filme inesquecível..., que acabo de rever passados tantos anos. Com gáudio.
(E com o tal final imperdoado pelos comunistas de várias extrações, e seus "amigos". Esse mesmo que a história veio confirmar, já agora... E aqui o deixo, para que tantos "intelectuais" de pacotilha possam compreender o que se vem passando (também) desde há décadas. À revelia das suas, tão erradas, perspectivas sobre o real, presente, passado... e futuro. Cimino, o tal "conservador", "reaccionário", entendeu - no tempo próprio - o que se passava. Os outros, ufanos de si, nada perceberam, perorando).
[The Deer Hunter ending]
[Michael Cimino on the final scene in The Deer Hunter]
Tina Turner - What's Love Got To Do With It (Live)
Vi a Tina Turner em 1991, talvez, depois dos Stones e do Bowie, antes do Santana, lá no José de Alvalade, então sede lisboeta do rock... - aquilo dava-nos cabo do relvado mas valia bem a pena, pelas receitas para dissipar pelo clube e pelos grandes espectáculos. Lá cheguei um bom bocado antes do concerto, como sempre dirigi-me ao nosso "ponto de encontro" - "onde nos encontramos?", perguntavam os neófitos mais ansiosos. "No sítio onde o Oceano joga", respondia, veterano, para desnorte alheio, logo acabrunhados num "isso é onde?" para acolherem um ríspido e rústico "em qualquer lugar do lugar do relvado!!", tão omnipresente era o nosso grande Oceano, que eles decerto desconheciam. Ou seja, ia lá para o rock e não para o convívio.
Enfim, lá aportei, aproximei-me da velha Bancada Central. Estava apinhada. A Tina original, a Turner, havia ressurgido há anos, estava no topo dos topos, o grande Mad Max também ajudara. Lembro bem que ao lusco-fusco do crepúsculo, ainda ao som de música gravada, o público já dançava exultante. Mas mais do que isso, estava pejado de Tinas - negras, mulatas, até brancas. E de Tinos também, que não Ikes. Tudo dançando. Depois encheu o relvado. Sim, ela reaparecera anos antes neste pop-rock até manso, mais do que tudo sexy, um embrulho abrangente que a tantos agradava - será que os miúdos de hoje poderão perceber o impacto daquilo? E nisso a quantidade de noites bamboleando nestas cançãozinhas que ela tornava um "must"? Um caldo comum?
Não tenho qualquer vinil ou cd dela. Mas ficou a memória dessas imensas danças. E de um grande concerto, esfuziante. E de como - perceba quem quiser - este embrulho amalgamado, produtor de amálgamas, era virtuoso. Por isso aqui deixo esta versão ao vivo. Com ela cantando e dançando de calças - porque era muito mais do que umas "hot legs".
"On the road", esta assim encrespada, enquanto na rádio o velho Slowhand entoa a lendária "Wonderful Tonight", aquela do fantástico meneio "and the wonder of it all / Is that you just don't realize how much I love you". Depois, meter a primeira e avante...!, sacudindo o vislumbre do passado.
Eric Clapton - Wonderful Tonight [Official Live In San Diego]
Pink Floyd - Is There Anybody Out There?
Leio que uma tal de "comunidade judaica" em Portugal veio protestar devido ao concerto de Roger Waters em Lisboa, gente que o quereria "cancelado"... No fundo querem destratá-lo como outros o fazem, alhures, ao Morrissey. A gente veio-se habituando a este culto do "cancelamento" dos artistas (e não só) promovido por uma certa "esquerda" - identitarista, dita falaciosamente "pós-"marxista -, essa que vegeta num pensamento "lite" importado dos "campi" norte-americanos. Ou seja, e se à primeira vista até pode surpreender isto dos judeus locais virem replicar a esquerdalhada festiva, sabendo da genealogia desta "censura activa" reinante até se poderá perceber alguma homologia "étnica" no atrevimento censório...
Enfim, eu não gosto do Roger Waters. Não por causa de quaisquer causas políticas que venha tendo. Mas porque se tornou um abrasivo oponente dos outros Floyd. Desconhecedor disso que os grandes grupos rock são algo alquímico - o que aprendemos com os Beatles, o que os Zeppelin souberam comprovar. Ou seja, pode até haver alguma mudança ocasional ou obrigatória (a morte de Moon, por exemplo), há lideranças, uninominais ou em duo (os Glimmer Twins, para exemplo maior). Mas isto de um dos membros aparecer aos gritos a dizer que é o "dono da bola" é o avesso do rock. E é o que o Waters anda a fazer há 35 anos...
O primeiro single que comprei foi o "Money" e o primeiro LP foi o "Animals" (cuja capa está pendurada na sala da minha casa...). Comprei vários discos dos Floyd, até o sempre inaudível "Ummagumma". Mas nunca este "The Wall", coisa dos meus 15/16 anos, que já me pareceu demasiado "operático" (termo pejorativo que na altura desconhecia) - nas festinhas dançava e entoava aquela do "teachers leave the kids...", porque todos o faziam, vi o filme. Mas então já muito mais "The Clash", a caminho do "Babylon by Bus" e "Kaya" do Marley, envergonhadamente seduzido pelos "Chic" e a estrear-me no Dexter, Coltrane e Miles, todo aquele aparato floydiano 80s era-me desnecessário, soava pomposo. Por tudo isto mais depressa iria agora ver o já impossível trio Guilmour, Mason & Wright do que o Waters a "solo", nesta velha birra do tal "dono da bola".
E também não irei porque ninguém me convida, que fará um quase sexagenário solitário, completamente alheado dos psicotrópicos, diante de todo aquele aparato, decerto que excessivamente sonoro e em potlatch de luminotecnia? Não há nostalgia de adolescência suficiente, nem mesmo qualquer luxúria senil, que me transporte até lá... Ainda assim trago esta breve "Is there anybody out there?", uma das músicas da minha vida (sim, é do tal "The Wall"), durante tanto tempo, tantas vezes, verdadeira banda sonora do meu prosseguir. Acompanhando este meu corolário, o do resmungo: os compatriotas judeus que tenham juízo e se deixem de coisas...
Peter Gabriel - Shaking The Tree (Secret World Live HD) - uma versão magnífica desta canção
O velho hippie morreu agora. E nunca cortou o cabelo, justiça lhe seja feita... Aqui o(s) deixo, em especial para os que julgam que o rock de estádio começou no Live Aid... (A minha irmã e o meu cunhado tinham o LP Crosby, Stills & Nash e também o Déjà Vu, daqueles Crosby, Stills, Nash & Young - este último bem antes do Rust Never Sleeps e de ser avoengo do agora também já velho grunge. E assim cresci com eles).
CROSBY & STILLS & NASH & YOUNG - Almost Cut My Hair ( Live In Wembley Stadium , London, 1974)
E qui uma das minhas muito preferidas do trio "original" (o célebre CS&N), em excelente versão... septuagenária: vale a pena ouvir, qual posfácio da selecção de 20 canções de David Crosby feita pela Rolling Stone...
Crosby Stills and Nash - Suite: Judy Blue Eyes - Live 2012
STEVIE WONDER "Don't Drive Drunk"
Aconteceu-me que em pleno dia de Natal, indo a caminho da casa da minha irmã para as tradicionais celebrações, estreei-me em acidentes rodoviários após 39 anos de condução. Estraguei o meu dia, incomodei a minha filha, que lá me esperava, a qual padece deste pai. E sofri uma fractura exposta no osso orgulho. Para além um derrame na conta bancária, que seria letal não fora o caso desta estar já ligada à máquina, em condição dita irreversível.
Atendendo à data festiva, e concomitantes folgas, tive de esperar umas horas pelo reboque. Era já início de noite quando chegou, levando-me da via rápida verdadeiramente fronteira ao Trancão até à planície nas cercanias do Sado. Simpaticíssimo o motorista, e basto falador - tentando (e conseguindo, justiça lhe seja feita) animar-me, macambúzio que me encontrou, culminando ambos (e logo na Vasco da Gama) num quase nada estóico "foi só (pouca) chapa e plástico" "que se lixe!", isto que sobre angústias monetárias não me deixei espraiar...
E nisso o homem foi-se alongando, confirmando-me que são estes dias, os das Festas, de muita azáfama. Pois poucos colegas de serviço e muita gente a ter problemas, "no Natal saem da casa das famílias com um copito a mais...", no "Ano Novo vêm das festas...". Às vezes cenas dramáticas - e algumas contou mas tenho pejo de as convocar - mas a maioria das vezes pequenas coisas, toques, choquezitos, a perturbarem ou mesmo a magoarem mesmo que felizmente não irremediáveis. Aquele copito de vinho a mais no Natal, só mais, só mais um brinde de Ano Novo - "Feliz" terá ele de ser -, até com o raisparta do espumante, ou mesmo a saideira seguida da abaladiça, e nisso já se está num registo mais desengonçável...
Enfim, lá me largou ele diante da oficina onde parqueei o carro (emprestado, ainda por cima). E agora, antes do reveillon de tantos, ou da "passagem" de outros, nem sequer tenho de me lembrar daqueles inícios dos 80s, antes da instauração do "balão" e das campanhas - nem o cinto de segurança era prescritivo -, das loucuras acontecidas, dos amigos perdidos... Lembro-me só da conversa desta semana com o loquaz motorista de reboque, a desmontar-me a ideia de que após tantas décadas passadas, tantas campanhas feitas, as coisas ao volante tinham mesmo mudado.
Eu sei que a esta canção é foleira, e o vídeo também. Mas muito mais foleiro é guiar acima dos limites da segurança. Portanto, hoje em especial, "não guies com os copos". Mesmo que seja só aquele "bocadinho" de nada... Esse que se calhar até é o pior, dá aquela sensação de "falsa segurança" que a dra. Graça Freitas e a ministra Temido tanto combatiam - quando nos queriam convencer a não usar máscaras e a não nos testarmos.
Escondida no meio dos dramas da bola, das tragédias da chuva e das farsas da política, passou-me despercebida a notícia da morte de Angelo Badalamenti, um compositor com visibilidade algo discreta mas que será recordado como um dos grandes.
Faz hoje 40 anos, era posto à venda um dos melhores álbuns de sempre da música portuguesa: Por Este Rio Acima, de Fausto Bordalo Dias.
Banda sonora das vidas de tanta gente.
Da minha também.
A efeméride aqui fica assinalada. Com saudável e vibrante nostalgia, que nada tem de passadista. Embalada pela música e pelos versos deste belo disco que cedo se tornou património nacional.
Modinha Para Gabriela - Gal Costa (Gabriela) 1975
Houve uma época - um pouco cândida - em que o "Brasil" era importante. A omnipresente "Livros do Brasil", as prateleiras de todas as casas pejadas nem tanto de Machado de Assis mas obrigando-se a Lins do Rego, Veríssimo, o pai Erico, Jorge Amado - ao qual alguns, e nem tão poucos assim, não perdoavam ter-se tornado quase Lampedusa, no "tudo mude para que tudo se mantenha", naquilo de ter inflectido na presciência de ser Mundinho Falcão afinal igual a Ramiro Bastos ,- o poeta de Andrade, mais o "Chico" de "Tanto Mar", o enorme Milton, o Caetano - do qual ainda nem sabíamos a demagogia nativista -, enfim a MPB exultante e ainda chegariam o excêntrico Hermeto, o gigante Gismonti, a Cor do Som e etc, para além do sempre rei Roberto Carlos (e o meu "Portão", ao qual apenas ascendi nos anos 90s, já com idade para me comover nas alvoradas), esse que os "bem-pensantes" já então "cancelavam" devido à pirosice que lhes é natureza. E o tão esquecido Josué de Castro, presente nas prateleiras daqueles que olhavam o mundo - tão diferentes esses dos pacóvios d'agora, liberais "chic" ou "pós"-marxistas ..., avessos a prescrutar o mundo que se escapa às certezas de manual que apregoam.
E foi essa também a era desta "modinha", que nos encantou, arrebatou para um outro mundo tão mais rico e saboroso. Gal Costa morreu agora, e a nós faz-nos imensa falta outro choque, sem manifesto nem panfleto, como "Gabriela" o foi. Quanto àquele Brasil não sei o que lhe aconteceu, há muito que dele não ouço falar. Nem quero. Morreu Gal Costa, vou ouvir a minha juventude:
Já por aqui escrevi algumas linhas sobre duas felizes viagens à Ucrânia. Na primeira das visitas, juntamente com os meus companheiros de aventuras, tivemos a sorte da nossa chegada ter motivado um jantar com a família alargada dos nossos anfitriões.
À fartura dos pratos que nos foram servidos, concorreram o calor humano e os sorrisos. As continuas traduções do nosso vizinho, que ali nos recebia, ajudou à afinação da sintonia de todos os comensais. É certo que somos os quatros, ali representantes deste rectângulo, pessoas razoavelmente dadas e por isso incapazes de recusar mais um brinde proposto pelo mais velho da casa, o sogro dele. A bebida acastanhada, destilada em casa, e baptizada por nós como “bom material”, afinou a goelas e os espíritos e foram eles os primeiros a avançar com uma demonstração de cânticos populares. Pouco seguros do nosso repertório acabamos mais tarde também por alinhar na cantoria e chegamos mesmo a conseguir fazer um cânone da “Menina que estás à janela”. Uma coisa memorável.
Consciente da irrepetibilidade daqueles momentos, registei em áudio diversas passagens daquelas três ou quatro horas, quase até esgotar a memória do telefone.
Um dos cânticos ucranianos ficou-me na memória. Não reconheci uma única palavra, mas lembro-me com clareza da limpidez da voz do cantor, do sentimento transmitido e do silêncio quase total enquanto o mesmo foi entoado. Só o voltei a ouvir umas semanas mais tarde num almoço em jeito de ressaca da viagem.
Ontem, nas notícias, ouvi-o de novo e reconheci-o imediatamente. Centenas de habitantes de Kyiv cantavam-no no metro, enquanto se abrigavam dos mísseis russos.
A canção é a mesma, o povo também e não consigo ficar indiferente à serenidade que transmite, nem à impotência que sinto face ao curso da guerra.
Entretanto soube que se chamava No Cerejal (ou No Pomar das Cerejeiras segundo tradução directa do Google) e, a partir dos inúmeros registos que se encontram na internet, pertence sem dúvida ao cancioneiro popular ucraniano.
Não me atrevo a elaborar sobre a exegese da letra que o Google traduziu e por isso deixo aqui apenas o seu texto.
Oh, no pomar de cerejeiras
Um rouxinol cantou lá
Eu pedi para ir para casa
E você não me deixou ir.
"Você é minha querida, e eu sou sua.
Deixe-me ir, o amanhecer chegou.
Minha mãe vai acordar,
Eles vão perguntar onde eu estava."
E você dá a ela esta resposta:
"Que linda noite de maio.
A primavera está chegando, traz beleza,
E tudo se alegra com essa beleza."
"Minha senhora, esse não é o ponto.
Onde você vagou a noite toda?
Por trança desamarrada,
Há uma lágrima em seu olho?"
"Minha trança está desamarrada -
Suas amigas desamarradas.
Uma lágrima brilha nos olhos,
Porque eu estava me despedindo da minha amada.
Minha mãe, você já está velha
E estou feliz, jovem.
Eu quero viver, eu amo.
Mãe, não repreenda sua filha.
VITORINO e TONY DE MATOS Cantam "Vendaval" (Coliseu/Lisboa) 1985
Começa hoje a Festa do "Avante", a dos defensores da "manobra militar especial" russa na Ucrânia, a dos que ainda hoje, na hora da sua morte, invectivam Gorbatchev por não ter sustido Honecker, Jaruzelski, Kadar, Ceausescu e quejandos... A festa dessa escumalha moral e intelectual. Gente imperdoável e seus colaboracionistas.
Um dos músicos que lá vai actuar é este sempre tão arrogante, de hiper-valorizado, Vitorino Salomé. O qual sempre fez actuar uma folclórica "identidade alentejana" de contornos políticos, de "liberdade" sedimentada. E lembro-me de que há 37 anos este Vitorino fez um espectáculo no Coliseu dos Recreios, então casa central, apogeu, na cena musical portuguesa. Um amigo organizava aquilo e arranjou-me um trabalho, por isso assisti. O cantor, cheio de si próprio, pois catapultado pela pobre cena musical daquela era, convidara o então algo marginalizado Tony de Matos para participar no espectáculo. E justificou isso, julgo que no jornal "Sete", por Tony de Matos ser o "cantor das sopeiras".
Ao ler tal aleivosia, desvalorizadora do grande cantor romântico que o período revolucionário atirara para difíceis condições laborais, resmunguei alguns impropérios sobre o pitoresco rancho Salomé. Mas fui trabalhar, claro.
37 anos depois ainda me lembro, da penosa actuação (adorada pelos lisboetas de então) do tal Vitorino - da má produção musical e da fraca intervenção vocal deixo aqui memória que é prova. E de que quando o velho e grande Tony de Matos entrou em palco para a sua breve actuação, o Coliseu se levantou em apoteótica aclamação, confrontando-se com a gigantesca diferença de capacidade interpretativa. Grande Tony..., pobretanas Salomé.
37 anos depois? Ide lá bater palmas ao pobre, putinesco brejnevista, Vitorino. E continuem a dizer a esse Salomé, honeckeriano, kadarista, jaruzelskiano, que simboliza a "liberdade". E, para pior sarcasmo, que canta bem. Ide, sede hipócritas. Mas há uma coisa, contrariamente ao que diz a canção, a gente rir-se-á de vós...
Eu era miúdo, mal saído da infância, ela já adulta. Foi um dos meus primeiros amores de adolescência. Linda: parecia uma princesa. Invejei o imbecil do Travolta: queria estar no lugar dele na película que ambos fizeram lá para finais dos anos 70. Filme foleiro, disseram alguns, sem perceberem que aquilo era uma festiva celebração da vida. Fugaz instante que tão cedo se esvai.
Demasiado cedo, no caso da minha sempre amada Sandy, também chamada Olivia Newton-John.