O regulador da democracia
O que irreversivelmente se perde com a idade é a fé nas pessoas. O peso das decepções rasga-nos as asas e torce-nos a perspectiva. Passada a fase da inocência bruta em que dividimos o mundo em bons e maus, entramos numa zona de nevoeiro. Habituamo-nos depressa a ela porque, bem vistas as coisas, é confortável: a mistura entre o bem e o mal pode ser amarga e complicada, mas poupa-nos a má-consciência e o remorso. Sem darmos por isso, tornamo-nos desconfiados, pensando que deste modo nos defenderemos melhor das armadilhas da vida. Essa defesa é a verdadeira armadilha; tira-nos o gozo de viver, que é o da partilha, impossível sem confiança.
Conheci demasiadas pessoas que morreram sozinhas – sobretudo mulheres – porque não aceitavam ninguém perto delas: começaram por desconfiar dos amigos, depois da família, depois de qualquer mortal. Tenho um amigo que costuma dizer: «cada vez gosto mais de menos gente». O António Alçada Baptista, que teria feito 85 anos no passado dia 29, dizia que há uma tribo que se reconhece pelo gesto e pelo olhar. E dizia outra coisa muito importante: que as pessoas se dividem entre as que preferem, em qualquer circunstância, a liberdade – e as outras, maioritárias, que escolhem a segurança. Dizia-me que a razão da sua amizade profunda e indefectível por Mário Soares era essa: Soares sempre escolhera a liberdade – e escolhera-a quando essa escolha, mais do que difícil (como sempre é) era perigosa e implicava uma coragem invulgar.
A democracia portuguesa deve muito a Mário Soares; independentemente de aproximações partidárias, penso que só os que ainda acreditam na bondade das ditaduras do proletariado não serão capazes de o reconhecer. Podemos discordar dos seus pontos de vista sobre este ou aquele tema, mas é impossível não lhe reconhecer uma sabedoria política e uma argúcia inultrapassáveis.
Há sete anos discordei da sua terceira candidatura à Presidência da República pensando que a democracia exigia mudança nos cargos de poder, renovação. Mas o panorama das figuras políticas é hoje tão desolador que já não consigo pensar assim. Não é uma questão de idade: aos 50 anos Soares conseguiu impedir a guerra civil em Portugal, estabelecer no país uma democracia ocidental e integrar Portugal na Comunidade Europeia. O ensaio «autobiográfico, político e ideológico» que publicou recentemente (Mário Soares – um político assume-se – edição Temas e Debates/ Círculo de Leitores) reclama o primado da política e a sua dignificação, lembrando essa coisa básica e esquecida: a economia é uma ciência ao serviço das pessoas, não um Deus ao qual as populações devam ser imoladas.
Numa entrevista concedida a Paula Moura Pinheiro, na RTP-2, Soares explicou como aproveitou o tempo de prisão para ler, ler muito, ler continuamente – e não apenas ensaios políticos, mas romances, através dos quais ampliou o seu conhecimento da existência humana. E disse que não se pode ser um bom político sem se ler muito. A leitura afinou-lhe a inteligência e aguçou-lhe a inocência, sem a qual ninguém pode ser livre nem coisa nenhuma que valha: assim, diz tranquilamente que o problema da direita americana é que «está cheia de gente de má qualidade». É importante manter o fio dos ideais e saber distinguir a qualidade das pessoas.
Há tanta entidade reguladora de coisa nenhuma. No estado actual do país, devíamos criar para Mário Soares o lugar de regulador da democracia. Ele saberia negociar com Angela Merkel e com as troikas. Talvez até conseguisse injectar um litro de bom senso neste governo que dispensa o Carnaval.
( crónica publicada a 10.2.2012 no semanário Sol)