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Delito de Opinião

Nas esquinas do olhar

Sérgio de Almeida Correia, 16.12.24

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(créditos: Macau Daily Times)

"(...) Sobre a matéria de facto, cumpre-me dizer que quando comecei a rabiscar estas linhas dei comigo a pensar que a literatura, como alguém disse, talvez seja a única arte em que se pode transgredir sem culpa. A única em que, recuperando o poliptoto que nos idos de 1968 se diz ter sido escrito nas paredes da Sorbonne, “il est interdit d’interdire”.

E em que quando se transgride, ainda assim, se distingue facilmente a boa da má prosa, a escrita banal da que tem o condão de nos transportar para uma realidade paralela que nos obriga a descolar, como se fôssemos à boleia de uma espécie de drone para uma outra dimensão do pensar, da estética, dos sentidos, da cor, do espaço, por vezes da própria história que nos está a ser contada.

“Nas esquinas do olhar”, mantendo o rumo inicialmente traçado pelo autor, a sua marca de água, a açorianeidade tingida de azul profundo, projecta-nos para um modo de ver distinto daquilo que nos comunicou n’ “A humidade dos dias” e em “Navegações e outras errâncias”.

O livro que o Luís Mesquita de Melo escreveu, secamente, à primeira vista é uma viagem. E que viagem.

Uma viagem que caminha entre a realidade e a ficção, tornando difícil a distinção entre ambas, não obstante o aviso que o autor faz ao leitor.

Uma viagem na qual o escritor, na evocação de seu pai, que nunca o leu, antes, porque hoje onde quer que esteja poderá fazê-lo e ficará agradado com o que seus olhos virem, assume a tripla condição de alquimista, autor modernista e autor de versos em prosa. Não necessariamente a de um poeta, apesar de tal como este, na pele do protagonista, também concorrer na frequência das leitarias e cafés de Lisboa.

Álvaro dos Reis, figura maior desta viagem, é um produto da alquimia do autor. Herança de um rico laboratório vivencial que conseguiu fundir numa única personagem o “dandy, burguês e blasé”, Álvaro de Campos, que escrevia por impulso – considerando não valer a pena ter ido ao Oriente e visto a Índia e a China, porque “[a] terra é semelhante e pequenina/ E há só uma maneira de viver” (Opiário), para no fim acabar refugiado no ópio –, com o viajante equilibrado, pacífico e harmonioso que era Ricardo Reis. Aquele que um dia decidiu, disse-nos nas Odes, seguir o seu destino, regar as suas plantas e amar as suas rosas, porque o resto, o que fica, “é a sombra/ De árvores alheias.”

“Nas esquinas do olhar” é uma história que começa e acaba nas ilhas. Ou, se quiserem, em muitas ilhas, ainda quando estas assumem forma continental, mas de onde, apesar disso, só se pode sair por mar em busca de uma nova vida.

Há nesta obra uma demarcação meticulosa do autor/narrador das suas personagens, enquanto minuciosamente as descreve.

Surge-nos, por um lado, uma mulher atraente, discreta, subtil, “impossívelmente bonita”. E do outro lado do mundo chega um Álvaro dos Reis com rugas que “lhe despontam nas esquinas do olhar”. Entre os dois interpõe-se um tipo horroroso, vindo de Fujian, que chega com uma pochete Luís Vuitton e comichões nas virilhas.

Álvaro, que fisicamente é “magricela e esbranquiçado, quase transparente a uma certa luz” (p. 21), causando até alguma repulsa a quem lê, contrapõe-se à jovem Thu. Esta, nem alta nem baixa, possuindo um “corpo perfeito e inquieto”, uma espécie de extraterrestre com uma pele que era “coral recém-nascido no mais puro dos oceanos”. Mulher de “curvas e contracurvas”, é marcada por um olhar “terno com traços de tinta-da-china alongados num sorriso sem trincheiras” (pp.23, 24), cujo áo dài (p. 25) encobria um “corpo esculpido por um cinzel divino” (p. 33).

É o autor quem o diz. Eu limito-me a apreciar a beleza das descrições.

E, pensando na sorte do magricela do Álvaro dos Reis, aqui, junto às águas barrentas e descoloridas que nos rodeiam, soterrado na insalubridade do ar, nos perigos do dengue e da escarlatina, nas salmonelas e gastroenterites colectivas, na confrontação com a realidade, quase sonhando, imagino o que será uma mulher com a beleza de Thu, com pele de coral recém-nascido, e tento adivinhar, sem sucesso, já que Álvaro dos Reis não quis partilhar esse segredo com os leitores, fugindo dessa confissão ao narrador, se na noite do Maxim’s o seu colo cheiraria ao azul atlântico do mar ou a Chanel número 5.

No caso de Thu, o leitor não se deixará iludir por tamanha beleza. Era mulher para pendurar o coração dos homens nos seus piercings quando a música parava, coisa que para os eleitos será bastante dolorosa àquela hora avançada no ambiente pesado de um cabaré como aquele que nos é desvendado pelo autor, de onde exalava, seja lá o que isso for, o “cheiro a donaire parisiense misturado com o cheiro de suor doce embebido em pau-de-sabão caseiro e flores nocturnas”. (pp. 26-29)

Psicologicamente, as personagens desvendam-se nos ambientes que quotidianamente frequentam, nas suas rotinas e nos seus sonhos.

Mais, diria, no confronto entre o dia e a noite. Entre a claridade matinal de Lisboa e a decrepitude do escritório do “Cavalo Branco” onde Álvaro dos Reis “aprendeu a escrever a incerteza da justiça com as palavras certas” (p. 41). Entre a alvura de Thu, que desaparece sob o peso dos néones coloridos, e a fealdade da clientela na noite do Maxim’s.

Mas é ali naquele lugar que se desinfectam as saudades e as tristezas (p. 26) e se vêem aportar homens como o chinês, com “os olhos rasgados de fúria” (p. 41) e tatuagens domesticadas (p. 75), a quem escorre a baba por uma boca de incisivos amarelecidos pelo tabaco e a abundância de chá oolong, ladeados, num quadro cru e quase roçando o asco, por uns caninos dourados (p. 42) que sobressaíam a cada palitar dos dentes, por vezes, recorrendo à “unha multifuncional do dedo mindinho” (pp. 50, 51).

Não vou aqui desvendar a trama. Não é isso o que se pretende. Tampouco irei retirar-vos o prazer da leitura.

O leitor é revisitado pel’ “A humidade dos dias”, que se lhe cola à pele por onde quer que se desloque, instalando-se logo com “a luz húmida da manhã” (p. 14) num carrossel que percorre todas as estações e está sempre presente ao longo do livro: “da confiança do final do Verão” (...) “à baixa pressão do Outono”, na sua “luz oblíqua”(p. 31); manifestando-se tanto nas “cores da Primavera na Avenida da Liberdade” (p. 28), como “na luz outonal de um farol que se perdeu no mar” ou nos “olhos legendados de Verões sem fim”(p. 15), cujos restos são sobrevoados por pássaros num voo sem destino (p. 157).

Ou, ainda, “nos dias frios e cristalinos do Inverno onde as noites são mais azuis” (p. 19), num suceder de imagens, estados, emoções e sensações pontuados pelas diferentes tonalidades da luz e de cores que só se conseguem ver na Europa ou na Ásia, como diz o narrador e acontece com Álvaro dos Reis, quando se vive para além do mar, “deixando atrás os olhos de quem quer viver”, e ver, “para além do mar” (p. 17).

Atrever-me-ia a dizer que os marcos que situam a história, tal como a viagem pelas estações do ano e pelos lugares de memória de Álvaro dos Reis, são os mesmos que atravessam toda a vida do narrador, igualmente protagonista e relator de uma história que se confunde com a personagem por si criada, e que numa imagem plena de simbolismo se desembaraça fisicamente da ilha, “sem data de regresso”, para depois ser temporariamente aprisionado pelos estudos antes de voltar a partir.

Reparar-se-á que a libertação é apenas física, o que torna irrelevante saber quando ocorrerá a viagem de volta. O autor será sempre, é, na sua psicologia um irremediável prisioneiro das ilhas e da estética que delas brota nas suas sete partidas do mundo.

Os lugares de memória, que passarão a ser os nossos, estão incrustados na história da viagem que encetou, qualquer que seja o espaço para onde o autor se movimente, fazendo como que haja uma espécie de transplantação do universo das ilhas para o continente, tão presente nas “fumarolas vulcânicas das castanhas assadas à beira da estrada” (p. 19) e nas, para si, ilhéu desterrado, longínquas “conversas continentais”. E esse movimento de vaivém da memória adquirirá sentido inverso no regresso de Álvaro dos Reis, no encontro do Peter, depois do amor ser enterrado vivo.

O percurso do estudante apartado de casa encerra um sentimento de orfandade, quase de perpétua solidão, representado na figura do “desalojado do Atlântico”, no “sem-abrigo do anticiclone” que se refugiava na escuridão das “sessões tardias do Quarteto”. Sessões que, recorde-se, fizeram as delícias de tantos graças à generosidade e à visão, fica a lembrança, do saudoso Pedro Bandeira Freire.

O narrador veste então a pele do protagonista que logo se confunde com este nas descrições taurinas da Boa-Hora, talvez em homenagem a Laborinho Lúcio e aos exemplos que dava aos seus alunos, ali bem perto, no Limoeiro, nas sessões do Centro de Estudos Judiciários.

Enfim, deixando para trás as “festas de Verão dos santos padroeiros” (p. 21), marcadas pela “roupa a cheirar a América” (idem), em espaços e detalhes a que, compreensivelmente, por eu não ser um Açoriano extraviado da minha geografia, sou estranho, tudo o que Luís Mesquita de Melo escreve vem com uma bússola pessoal que o situa, rodeia e acompanha qualquer que seja a geografia por onde navegue. E que acaba por se revelar nos cheiros e nas estações do ano, assim fazendo com que o leitor viaje entre as suas constelações, os seus espaços de memória, quase que diria, atrevo-me a dizê-lo, autobiográficos, como se quem lê acabasse por ser parte da própria trama.

Mas “Nas esquinas do olhar”, mais do que uma viagem ou um livro em forma de viagem, que isso já era “A humidade dos dias”, talvez involuntariamente, e aqui entramos na ausência de consenso, na provocação, encerra um verdadeiro livro de viagens, de um amante destas e dos grandes espaços.

À semelhança de Bernardo Soares, o autor apresenta-se com o seu Álvaro dos Reis como pertencendo, no que confesso também me revejo, “àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem” e que “não vêem só a multidão” (Livro do Desassossego, Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido...).

Essa é uma virtude atlântica irrepreensível que o autor cultiva e lhe dá horizonte, permitindo-lhe viajar, permanecer e mergulhar, com Álvaro dos Reis ou no lugar do narrador, mais do que nas esquinas do olhar, no interior do mundo que o rodeia.

E depois segue na peugada de Mark Twain (Innocent Abroads, 1869), por exemplo, aqui citado a partir de Theroux, quando este nos recorda que “a viagem é fatal para o preconceito, a intolerância, a estreiteza de espírito, e muitos dos nossos precisam urgentemente dela por causa dessas coisas. Visões largas, sadias e benevolentes de homens e coisas não se podem adquirir vegetando toda a vida num cantinho da Terra”. O autor e Álvaro dos Reis sabem isso.

Em certa medida é o que o Luís Mesquita de Melo escritor faz com este livro, fazendo finalmente viajar muitos leitores, não apenas os que nunca saíram do Faial, que não tendo nascido numa ilha, e ficado prisioneiros de uma qualquer açorianeidade mais ou menos longínqua, viveram na Ásia, fosse em Macau, em Hong Kong, no Vietname, sem nunca a terem conhecido. O autor retira-os do preconceito e oferece-lhes com este seu livro um bilhete que lhes dá acesso a um mundo, riquíssimo nas suas especificidades, que tendo estado ao seu lado nunca foi deles conhecido ou desvendado.

E quando nisto penso legitimamente me perguntarão o que se vê. E quem vejo?

Releia-se então “Le Voyage”, nas Flores do Mal, e aqui encontraremos a criança que amava mapas e selos, desejosa de conhecer um universo igual ao seu apetite.

Também Álvaro dos Reis se apresenta como os verdadeiros viajantes. É esse espírito que surge quando admite partir, ir à procura da sua América para o lado contrário, para oriente, indo para a grande China como um livro em branco (p. 55), na busca de Macau, ante o “assombro da lonjura” (p. 49), “da quinta dimensão da lonjura” (p. 57), “a razão para dizer adeus”.

E é ele quem nos diz, ao contrário do vulgar turista, que “a viagem nunca acaba, só os viajantes se perdem, atirados para fora da estrada, quando morrem ou quando desistem” (p. 49). E não há que temer a partida, pois que quem fica é que se lembra, toda a vida/ Das saudades de quem parte/ E dos olhos de quem morre.

Ele, autor, ou o seu Álvaro dos Reis, poderia ser um deles, um dos que, como R. L. Stevenson, não viajava para ir a parte nenhuma, mas para ir, viajando pela viagem.

Ou, ainda como escreveu Baudelaire, aquele viajante que parte para partir, com o coração leve como se fosse um balão, que nunca se afasta do seu destino, e que sem saber porquê diz sempre “Vamos!”

Mais les vrais voyageurs sont ceux-là seuls qui partent

Pour partir; cœurs légers, semblables aux ballons,

De leur fatalité jamais ils ne s'écartent,

Et, sans savoir pourquoi, disent toujours: Allons!

E à semelhança do que nos deixou Rimbaud, em “Bateau Ivre”, depois cantado e por tantos amado na voz única de Leo Ferré, também o Álvaro dos Reis protagonista, ou o Luís Mesquita de Melo autor, viajante, velejador, mergulhou nas águas do Poema do Mar, conheceu “os céus crivados de clarões, as trombas,/ Ressacas e marés”, viu o entardecer, viu “[a] Aurora em explosão como um bando de pombas”, e algumas vezes viu “o que o homem quis ver”.  

Sem remorso digo que quase todos os espaços que o autor descreve, em Lisboa, em Macau, quando se refere ao jetfoil Horta, que a tantos de nós transportou, ou quando evoca a velha e terna Saigão, recuperada no Continental, na Ópera, no Rex, no Majestic, coloca-nos em mundos que são, nos foram ou se tornam, para quem não os conheceu, infinitamente familiares.

Alguns tê-los-ão percorrido antes, outros irão percorrê-los na leitura. E sem o sabermos estaremos juntos caminhando, porventura em noites iguais, numa solidão acompanhada na exacta medida da proporção dos nossos dramas e dos nossos sonhos.

E hoje, graças às esquinas do seu olhar, estamos a revivê-los. Tanto nessas imagens como na evocação de Duras, na lindíssima imagem dos amantes percorrendo as ruas sinuosas, connosco leitores, passageiros da Vespa que nos leva por uma imaginária Salerno oriental e ao longo da esmagadora costa amalfitana.

As descrições de uma Macau e de espaços e figuras que desapareceram, caso do polícia sinaleiro no cruzamento da Praia Grande com a Almeida Ribeiro, ao lado de outros que teimosamente sobrevivem, como o Hotel Metrópole, com a chinesa que “cantava afinada dentro de um cheongsam com cores a mais e sílabas a menos” (p. 77), não podia faltar.

Enfim, o leitor é colocado perante lugares, na maioria perdidos no tempo, perenes na lembrança, que terão sido em algum dia familiares a muitos dos que nas décadas de oitenta e de noventa do século XX aqui desembarcaram.

Na memória permanecerão como metas de encontro, boémia, encantamento, paixão, partilha e saudável perdição. Numa noite que era, di-lo o narrador com a autoridade de quem por ela deambulou à boleia de Álvaro dos Reis, não do autor, uma “espécie de caleidoscópio, a cheirar a jogo, sexo e improviso” (p. 76). Ao que me limitaria a acrescentar, por experiência própria, o cheiro a mofo e a tabaco ordinário que se desprendia das alcatifas húmidas, dos veludos coçados e queimados por pontas de cigarro, por vezes pegajosos, tudo agora recuperado e para sempre gravado na escrita apurada e actual do Luís Mesquita de Melo.

Memória que, como a vaga que entra por terra, percorre uma Hong Kong já afundada ao largo do porto de Vitória, e que nesse tempo era “uma janela para o azul” (p. 81), entretanto levada nas asas dos aviões que sobreviveram ao rendilhado que precedia as aterragens de Kai Tak, na solitária herança deixada pelas longas noites de Suzy Wong ou de um qualquer Joe Bananas.

É essa memória que, não obstante a distância, logo faz o autor regressar à imagem de sua casa, único refúgio de onde brota essa belíssima “claridade líquida que encharca os olhos de insularidade viciante”. E prazer.

Tudo por oposição à falta de dimensão atlântica e de cor desta espécie de mar pastoso e cada vez mais fechado que nos rodeia e que propiciou, de tão lamacento, o aparecimento dessa fauna, espelhada na genuína figura do chinês com sangue incolor que geria o apartamento da Areia Preta, numa feliz súmula de agiota, cabeça-de-cobra, bate-fichas e proxeneta, com os “dedos amarelados do tabaco e as unhas esverdeadas dos feltros das mesas de jogo” (p. 136).

Retrato que é também a recuperação de algumas figuras características que por aqui ganharam importância, enriquecendo na exploração de lupanares e cantinas oleosas e malcheirosas, e que por aí, em menor número, é certo, ainda pululam, à civil, quais anões, participando mascarados em regulares desfiles patrióticos, dando cabo de todo o coral, incluindo do mais vetusto, traficando as Thu desta vida e corrompendo sempre que possível quem se atravesse no seu caminho.

De uma forma ou de outra, o autor desdobra-se em vários eus. No ilhéu que parte e no que fica, no contador de histórias, no fadista, no viajante, no músico com quem partilha gins tónicos, atingindo o seu epicentro nas descrições do velejador experiente que na profusão de termos e imagens náuticas sofre com o “gemer constante das escotas nos molinetes de bronze”, assistindo ao “lamuriar do casco que vai estalando os ossos a cada solavanco” (p. 148), num léxico diarístico muito especial e já presente em escritos anteriores, verdadeira expressão do poeta discreto e tímido, refugiado no seu caderno, vagueando por uma prosa rica na sua simplicidade e roupagem – “prosa transatlântica”, chamaram-lhe – , e que a espaços se acomoda nos trechos de poemas que intercalam a narrativa e que o autor vai buscar a Álvaro de Campos, a Pessoa, a Pedro Támen, a O’Neil. Mas também a outros menos convencionais como Ary dos Santos, acima citado, Homem de Mello e Jorge Palma, porventura em resultado dos seus próprios estados de alma.

Indispensável é uma nota ao excelente diário de bordo, espécie de filme autónomo enxertado na narrativa. 

*

E lavrado que está este sumário dos factos e dos argumentos, gostaria de aqui deixar algumas notas finais, isto é, as conclusões, ónus que me foi imposto quando aceitei o convite. Até porque sem conclusões uma peça fica sempre amputada.

Espero, todavia, que a sua brevidade não as torne deficientes ou obscuras, o que seria sempre penoso para quem me trouxe e, em especial, para vós que tendes a bondade de estoicamente me escutar até aqui.

Faço-o, todavia, com a advertência de que não irei completá-las em momento posterior. Nessa altura, o Luís Mesquita de Melo prosador, contista, poeta, viajante,  que sabe que os aguaceiros têm horas, era capaz de atirar borda fora este seu leitor sem esperar por o ver encharcado.

Escrever, como o autor bem sabe, não é fácil e exige o domínio da arte.

O Luís Mesquita de Melo sabe que isso é fundamental. E assume-o, qual Álvaro de Campos, quando nos diz que “escrever é uma espécie de cavalgada a galope procurando palavras escondidas ao acaso pelo deserto” (p.30). Escrever é “a procura incessante da escrita” (pp.55, 56).

Mostrou, antes e de novo neste livro, qual Ricardo Reis, que sabe manejar essa arte com a destreza e a elegância com que o bom esgrimista usa o sabre, o florete ou a espada.

Isso dá-lhe uma responsabilidade acrescida em tudo aquilo que escreve.

Um escritor, ao construir a obra, molda o seu estilo; este passará a ser a sua marca distintiva, uma espécie de tatuagem eterna. Irá transportá-la consigo ao longo da vida.

O leitor, e aqui não fala o amigo nem o advogado que patrocina o prosador, é o primeiro a identificar o estilo do escritor. Dos que têm estilo, evidentemente. E o que aqui está connosco tem estilo próprio, já evidenciado nos livros anteriores.

“Nas esquinas do olhar” é uma extensão do que vem de trás. Lê-se com curiosidade e gosto porque o autor sabe que é a escrita, e neste caso a boa escrita, que procura o escritor (p. 56), e que de qualquer lado se pode ver o Universo, desde que para tal se tenha engenho e nos saibamos colocar na pele do outro. E isso é algo que não depende da altura de cada um.

O Luís Mesquita de Melo é na sua escrita um pouco como aquele a quem Baudelaire perguntava no poema:

"‘Eh! qu'aimes-tu donc, extraordinaire étranger?

- J'aime les nuages... les nuages qui passent... là-bas... là-bas... les merveilleux nuages!"  (L’étranger, Petits poèmes en prose, 1869)

Com este pequeno romance, o Luís Mesquita de Melo entra por direito próprio, ao invés de outros que para aí publicam sem que percebamos por que raio escrevem, ou versejam com erros, na galeria dos escritores que sabem escrever, dos escritores que sabem português. E esta é uma bênção para nós, portugueses, que o lemos.

Como amigo desejo ao Luís escritor que tenha sucesso. Que venda muitos livros.

Como leitor sou bem mais exigente. Quero que o Luís continue a escrever, sem alinhar em modas, por natureza efémeras, nem enfileirar na escrita por atrevimentos woke ou neo-realistas que só banalizam, quando não raro descontextualizam a beleza da escrita, danificando a língua e a fragilidade do coral recém-nascido.

Que o Luís faça como na canção de outro Açoriano, como o Tiago Bettencourt: se o vento empurrar suas velas de algodão, ele que se deixe levar acertando a direcção. E se o vento o impelir para bem longe da razão, que aprenda a seguir acertando a direcção, acertando a direcção.

Escrever, creio, é uma acção que deve ser empreendida, inclusive no sonho, com olhos de ver. Para que a escrita seja o reflexo do que os outros não vêem, e do que o escritor vê e quer que os outros consigam vislumbrar. E compreender. Aí se revela o seu verdadeiro desafio, a beleza e a perenidade da boa escrita. E a boa escrita, a boa literatura, como ele bem sabe, para onde quer que o vento nos leve, é intemporal.

E para isso basta que o Luís Mesquita de Melo mantenha presente o que de mais importante nos ensinou esse outro eu que de nós se emancipou e por aí andou, e ainda anda, guardando sonhos e alimentando rebanhos de tresmalhados sob o nome de Alberto Caeiro, bastando-lhe jogar na estrofe com que termino com o ver e o escrever:

O essencial é saber ver,

Saber ver sem estar a pensar,

Saber ver quando se vê,

E nem pensar quando se vê,

Nem ver quando se pensa

Vai por aí, Luís. Há sempre um livro em branco à espera do futuro."

Macau, 14 de Dezembro de 2024

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