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Delito de Opinião

Com Açúcar, Com Afecto

jpt, 29.01.22

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A minha geração foi abalroada pela heroína, e nem preciso de juntar grandes detalhes memorialistas para o comprovar. Não naquilo da implosão de muitos dos heróis (Coltrane, Hendrix, Joplin, Morrison e tantos outros). Mas no descalabro de amigos e vizinhos, desde os finais dos 1970s, muitos que por então se foram, alguns até de propósito, outros que se rearranjaram, "sabe Deus" com que esforços, e tantos destes para virem morrer no cabo dos seus cinquentas, dos fígados devastados. Para quem não se lembra, ou faz por isso, bastará lembrar a Lisboa dos 1990s, carregada de já velhos junkies penando pelas ruas, arrumando carros, perseguindo as carrinhas da metadona...
 
Entretanto, nós aqueles que havíamos seguido doutro modo, uns mesmo saudáveis, outros nos mares de álcool apropriados à nossa nação de marinheiros, ou nas multiculturais ganzas, quanto muito aqui e ali polvilhadas de uma chinesa "só para experimentar", e mesmo alguns já adult(erad)os como aburguesados encocaínados, fomos crescendo e procriando. Nisso deparando-nos com aquele "saber de experiência feito" do nosso Duarte Pacheco Pereira, e nisso a angústia do que viria a ser com os nossos queridos. A heroína perdera o prestígio social, ainda que resista no mercado, mas haviam surgido várias novidades, sintéticas, até legais.
 
 
(Lou Reed, David Bowie, I'm Waiting for the Man, Live, 1997)
 
Ora nesse longo - e preocupante - entretanto, por mais angústias que houvesse, ninguém se lembrou de exigir a Lou Reed que apagasse esta célebre "I'm Waiting for the [my] Man" (ou aquela "Heroin" ou tantas outras, como as que me são fundamentais "Caroline Says" I e II). Ninguém, com dois dedos de testa, quis que amputasse ele o seu percurso, a sua arte, a sua refracção poética do que vivia, em nome de qualquer "causa", justa ou espúria que fosse. E também por isso, para que não me digam que também então se "cancelavam" textos, aqui deixo uma versão feita em 1997, trinta anos depois dos Velvet Underground terem irrompido e rompido com quase tudo o que vigorava.  Não é uma das melhores, apesar de Bowie, e por isso para uma de píncaros deixo abaixo uma majestosa do John Cale, um pouco mais antiga.
 
Pois mesmo com a maldita heroína a rebentar à nossa volta o que se pedia e pede aos nossos é que a evitem - "por favor, não entres num carro onde haja gente com os copos, não uses químicos, por favor, só isso!". Mas também "ouve Lou Reed [e John Cale], e especialmente aquelas Caroline Says I e II, já agora". E não que se apaguem textos que não a denunciem. Porque os poetas não se amputam. E porque são tão mais importantes quando dizem aquilo que "não fica bem", para não estar eu aqui com prosápias ensaísticas.
 
Lembro-me disto ao ler que o magnífico Chico Buarque anunciou a "reforma" (o cancelamento, para ser explícito) da bela "Com Açúcar, Com Afecto", devido às pressões feministas. Encho-me de compaixão pelo ancião.
 
 

(John Cale, "I'm Waiting for the Man, Live, 1984)

(Postal para o meu Nenhures - e mais ao seu estilo)

Lou Reed

jpt, 27.10.13

 

O meu álbum (palavra que hoje já não tem o sentido sensual, até heróico, que teve no tempo do vinil) é "Berlin". O meu poema é "Caroline Says" e tenho uma filha Carolina e só espero, ateu rezando, que não venha a ter nenhum alaska dela,

 

 

ao meu país e às pessoas que lá vegetam percebi-o, percebi-as, tontas e vagas, como o continuam, foda-se, bêbedo e ganzado (high, na iconologia de então), algures entre os Olivais, o Cais do Sodré e as Escadinhas do Duque, com moles de heterossexuais cantando em coros gritados , guitarra imaginária na mão, o "wild side" que nem

 

 

adivinhavam o que era, o que eram, sempre quase todos na mania de classificar tudo e todos (algo que depois vim a chamar topologia), no caso quem beijava quem, iletrados do que era o verdadeiro lado louco da vida. Cresci com alguns dólares na mão

 

 

sempre a gingar, em busca do "meu homem", consumindo o que chegava mas escapulindo-me aos xutos mas de forma a que ele não o soubesse. Veio, o Vicious, tocar a Cascais nos meus 14 anos, três horas e tal, atrasado por jogar flippers nos bastidores, acabando a épica sessão, Aquiles on the road,  sentado no palco

 

Voltou vezes outras, e já trintão tardio vi-o no Atlântico, eu em versão respeitável, sóbria, mana e sobrinhos a tiracolo. Chegaram os amigos, velhos como eu, e de súbito, ainda que o olhar maternal da mana culpabilizasse, regressei a puto naquilo dos psicotrópicos, talvez, talvez a última vez. Logo dei comigo na primeira fila, em pulos

 

 

ganzado como um puto. Hit me with a flower ... gritei.

 

Tinha 24 anos, homem feito, até doutor, nos tempos da tropa. Entrei no quarto, o ainda da minha adolescência. E retirei o último poster da parede, que ainda lá estava o do "Música e Som" do Lou Reed. Oh, you're right and I'm wrong, não o devia ter feito

 

 

I'm gonna miss you now that you're gone.

 

Foda-se, fiquei hoje, estupidamente, sozinho.