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Delito de Opinião

Livros que deixei a meio (17)

Pedro Correia, 15.02.14

 

 

HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL

de J. K. Rowling

 

Os primeiros artigos que li na imprensa britânica, vai fazer 17 anos, deixaram-me de sobreaviso: estávamos perante um verdadeiro fenómeno literário. Nada a ver com a subliteratura de um Dan Brown, que estaria em foco vários anos depois, mas com a recuperação de um certo imaginário infanto-juvenil que durante demasiado tempo andou arredado dos escaparates. Tomei nota do sucinto nome da autora, que não tardaria a revelar-se uma celebridade à escala mundial: J. K. Rowling. E senti a curiosidade aguçar-se a cada nova crítica em inglês que ia descobrindo: Harry Potter relançava, actualizando-as, velhas tradições literárias entretanto caídas em desuso -- a feitiçaria, o exotérico, o extra-racional -- cruzando-as habilmente com o encantatório mundo das crianças.

Assim nos garantiam sisudos críticos rendidos ao fenómeno.

Ainda antes de a conhecer, já eu equiparava Rowling a Steven Spielberg. O que este conseguira na Sétima Arte, voltando a dar glamour ao antigo cinema de aventuras, povoado de heróis e vilões em estado puro, concretizava-o ela na literatura, abraçando sem complexos convenções de género num mundo romanesco que novamente se dividia entre bons e maus, para além dos dogmas contemporâneos impostos pela correcção política e por uma leitura estritamente racional da existência humana, descrente de bruxas, duendes e fadas.

 

Harry Potter and the Philosopher's Stone, lançado no Reino Unido em 1997, tornou-se um estrondoso sucesso à escala planetária a partir do final do ano seguinte, quando surgiu a edição norte-americana, forçando o New York Times a introduzir um quadro dedicado a livros infantis nas suas listas das obras mais procuradas pelos leitores.

A versão portuguesa também não demorou muito: surgiu em Outubro de 1999, com a chancela da Editorial Presença, que aqui encontrou um filão de ouro.

Apressei-me a comprar um exemplar -- dizendo a mim próprio que o fazia não para mim mas para a minha filha Joana, então com seis anos. Dentro de algum tempo, não muito, ela gostaria certamente de ler a obra. Faz parte dos deveres da paternidade: nada como encaminhar as crianças, na idade certa, para livros de que gostem -- com o nobre intuito de estimular nelas a apetência pela leitura.

Atingiria o meu objectivo?

 

Enquanto a dúvida subsistia -- algo compreensível, pois a minha irrequieta herdeira mal começara a juntar as primeiras letras -- abri o volume de 255 páginas, dispondo-me a regressar às minhas tardes infantis de leitor de Enid Blyton (Nódi, Os Sete e Os Cinco), da Colecção Manecas, da Colecção Histórias, das aventuras da Dona Redonda, de Emílio e os Detectives, Blake & Mortimer, Tintim, Batman e Texas Jack.

Mergulhei no universo literário de Rowling -- tão britânico e burguês na aparência, mas afinal tão abrangente e apelativo ao poder mágico dos sonhos -- com um entusiasmo semelhante ao que me levou a vibrar na infância com o Mogli d'O Livro da Selva e a Mary Poppins. O meu Peter Pan de mesa de cabeceira chamava-se agora Harry e a Bruxa Má da Branca de Neve dava pelo nome de Voldemort.

Dei três vivas aos poderes mágicos: a literatura deixara de ser o mero reflexo da baça, chã e descolorida realidade. E Harry Potter e a Pedra Filosofal trazia ainda, como brinde, a caução de respeitáveis críticos que se apressaram a incluir este título num lugar de honra da história da ficção literária.

 

Li as primeiras 150 páginas de uma assentada, confirmando a cada trecho as minhas melhores expectativas. Mas parei subitamente no capítulo XI, quando a fantasia começa a sobrepor-se sem reservas ao real. Algo estranho, pois essa era para mim precisamente a maior virtude de Harry Potter.

Iniciei outras leituras e o romance foi passando para uma camada inferior da pilha de livros acumulada na mesa de cabeceira. Passaram-se meses, decorreu talvez um ano, e já tinha esquecido o fio do enredo quando me dispus a retomar a leitura.

Aconteceu-me o que tantas vezes me tem sucedido com as mais diversas obras: recomecei do parágrafo inicial. E também neste caso aconteceu o que já relatei em números anteriores desta série: voltei a suspender a leitura precisamente no ponto em que a interrompera da primeira vez.

É possível que coisas destas aconteçam recorrentemente com outras pessoas, mas creio que a mais ninguém ocorrerá com tanta insistência.

 

Desinteressei-me de Harry Potter?

A resposta só pode ser afirmativa, pois nem sequer comecei a ler nenhum dos restantes títulos da saga, confirmada como a mais comercial de sempre: em Dezembro de 2009 já tinham sido vendidos 400 milhões de exemplares no mundo inteiro. Comprei alguns, mas logo os ofereci à Joana, que entretanto se tornou uma consumidora compulsiva destes livros -- primeiro em português, depois já em inglês.

Pelo menos neste aspecto fui bem sucedido.

Aqui entre nós: está nos meus planos chegar ao fim do primeiro volume, há tantos anos interrompido. Mas desta vez já sem qualquer vestígio da expectativa inicial: tal como a mesma água nunca passa duas vezes debaixo de uma ponte, certa magia nunca se retoma quando ultrapassamos aquela idade em que estamos sempre disponíveis para mergulhar num mundo de ilusões.

Livros Que Deixei a Meio

Francisca Prieto, 29.01.14

 

 

Pelo-me por uma história em que não sei quem resolveu abrir uma livraria numa pequena aldeia de não sei onde.

Ora, tendo lido que esta "é uma obra-prima acerca do mundo dos livros, dos sonhos e das vicissitudes da vida, sob a forma de uma história envolvente e original", me atirei ao touro com toda a confiança. Aguentei-me à bronca até meio, mas quando a história, para além de mortalmente enfadonha, foi ensombrada por um fantasma, achei que era demais.

Dizem que autora ganhou o Booker. Deve ter sido no ano em que disputou a shortlist com a Danielle Steel.

Livros que deixei a meio (16)

Pedro Correia, 09.11.13

 

 

ATÉ AMANHÃ, CAMARADAS

de Álvaro Cunhal

 

Nada há tão volúvel como as modas literárias. Reparem no neo-realismo: já esteve completamente na moda, erigido em cânone; já esteve totalmente fora de moda, alvo de dichotes que o punham a ridículo. Basta uma geração suceder a outra para tudo parecer mudar.

Um dos ingredientes fundamentais do neo-realismo era a luta de classes, quase sempre ambientada em meio rural para suavizar os focos da censura salazarista, menos rigorosa em relação aos trabalhadores de arado e enxada do que ao cenário fabril, propício como nenhum outro à difusão da mensagem comunista.

 

Comecei cedo, até por imposição do programa dos estabelecimentos de ensino oficial que sempre frequentei, a conhecer algumas das obras mais emblemáticas do neo-realismo, variante portuguesa do realismo socialista -- baptizado daquela forma, segundo a lenda da época, para driblar os censores tanto na expressão escrita como na expressão pictórica (de que constitui notável exemplo o quadro O Almoço do Trolha, do grande Júlio Pomar).

Ao contrário de muita gente da minha geração, nunca tive nenhum preconceito contra o neo-realismo nem levantei a bandeira dos Pessoas e das Agustinas para argumentar contra a sua suposta menos-valia literária. Cada caso é um caso -- e há bons e maus autores em todos os géneros.

Esteiros foi talvez o primeiro romance neo-realista que li. Havia ali influências nítidas dos Capitães da Areia, de Jorge Amado, como mais tarde me apercebi, mas um certo lirismo de fundo e a manifesta qualidade da escrita diluíam neste livro o mais óbvio defeito imputado aos expoentes desta escola: colocarem a arte ao serviço da política.

Nunca mais li Esteiros -- que no início dos anos 70 inaugurou a célebre colecção de livros de bolso da Europa-América -- mas julgo tratar-se de uma obra que sobreviveu ao seu tempo e ao contexto em que foi escrita. Como várias outras de autores neo-realistas ou aparentados -- os contos de Jogos de Azar, de José Cardoso Pires, ou O Dia Cinzento, de Mário Dionísio, e romances como A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro, Casa na Duna, de Carlos de Oliveira -- um nome que não deve ser esquecido -- ou Vagão J, de Vergílio Ferreira, que foi neo-realista antes de renegar a tribo e se tornar odiado por ela.

Em sentido inverso está uma obra como Engrenagem, também de Soeiro Pereira Gomes, no seu esquematismo rudimentar do capitalista mau que explora os operários bons -- obra que aliás o autor não pôde rever por se encontrar já muito afectado pela doença que viria a matá-lo prematuramente nos anos de chumbo da ditadura em que se destacou como dirigente da estrutura do PCP na clandestinidade.

 

A relação dos comunistas com a literatura teve com frequência um carácter instrumental em casos muito conhecidos -- de Roger Vailland a Pablo Neruda. Lenine e Estaline eram leitores compulsivos de romances e nunca perderam de vista as imensas possibilidades de divulgarem a mensagem revolucionária do "socialismo científico" por este meio.

Álvaro Cunhal, figura histórica do PCP e do movimento comunista internacional, foi ainda mais longe: escreveu ele próprio contos e romances, nomeadamente quando se encontrava encarcerado, como preso político, no forte de Peniche. Uma dessas obras foi transposta para o cinema por José Fonseca e Costa, em 1996, com certo êxito: Cinco Dias, Cinco Noites.

 

Mas nas duas décadas anteriores ao filme o Cunhal escritor não se chamava assim: chamava-se Manuel Tiago. E o Partido Comunista Português alimentou um mito em torno da sua obra mais emblemática, o romance Até Amanhã, Camaradas (1974), assegurando desconhecer quem fosse o autor. "Só, numa pequena folha apensa e agrafada, podia ler-se, em rabisco apressado, o nome Manuel Tiago, pseudónimo de certeza", esclareciam as edições Avante em introdução à obra, acentuando o mistério.

Este secretismo, que em parte pode ser explicado pelas características da personalidade do próprio Cunhal, entroncava com outro mito muito caro aos comunistas: o do herói anónimo, imerso no meio do povo, do qual emana e à vontade do qual obedece. No fundo, um mito que percorre Até Amanhã, Camaradas -- pelo menos até à página 100, onde parei.

Anos antes de morrer, Cunhal assumiu publicamente ser Manuel Tiago, o que conferiu autenticidade à sua obra literária mas anulou a aura de mistério que a envolvia e era de algum modo justificada por esses tempos de duro combate político. A realidade chã destes dias democráticos é muito mais banal do que o mundo cifrado, fruto de pequenos gestos de heroicidade quotidiana, em que os comunistas se moviam no covil de sombras da ditadura.

 

Ignoro se Cunhal obteve ajuda de algum confrade das letras na revisão deste romance. Mas estamos certamente perante uma escrita desenvolta, sem gorduras nem artifícios, como era bom timbre da escola neo-realista, influenciada em Portugal também por uma plêiade de bons narradores norte-americanos do século XX, incluindo o Hemingway de Por Quem os Sinos Dobram (livro que, no entanto, esteve proibido na União Soviética), o Steinbeck d' As Vinhas da Ira ou o Caldwell d' A Estrada do Tabaco.

A certa altura do romance, no entanto, percebi que Cunhal escreveu este romance sobretudo para falar de si próprio. O homem da bicicleta, que pedalava sem cessar com a mirada no futuro, não era mais ninguém senão ele. Em torno do ex-secretário-geral do PCP gerou-se uma forma enviezada de culto da personalidade: o do Álvaro, filho da burguesia, que atraiçoa os interesses egoístas da sua classe para abraçar a causa proletária e se tornar um devotado servidor do povo.

Comecei a perceber igualmente quanto de convencional havia ali -- não apenas na prosa escorreita mas meramente descritiva mas também ao nível de alguns conceitos. As mulheres, por exemplo, limitavam-se a assegurar a retaguarda logística dos camaradas envolvidos na luta, não se esperando delas tarefas de maior responsabilidade. E foi-me desagradando a componente de propaganda partidária. "Rita e Isabel não poderiam existir se não existisse o Partido" -- sempre escrito assim, em letra maiúscula.

 

O livro é longo: o meu exemplar tem mais de 400 páginas. E as edições Avante, responsáveis pelo espólio literário de Cunhal, cometeram o erro de imprimi-lo com letra demasiado diminuta. Confesso que não gosto de corpos de letra muito reduzidos, tanto em livros como em jornais.

Isto contribuiu para o meu cansaço: fiquei-me por um quarto do livro. Tenciono ver o filme homónimo, realizado por Joaquim Leitão e estreado anteontem. Mas só quem acredita convictamente na ideologia comunista pode idolatrar Até Amanhã, Camaradas. Não é o meu caso.

E no entanto há trechos que merecem especial atenção. Aqueles em que Cunhal -- enquanto criador literário -- traça o auto-retrato: "Só então a mulher pareceu reparar naquele que tinha na frente. Viu o fato e o boné repassados de chuva, os sapatos e as calças enlameados, a bicicleta inútil naquele caminho. Olhou-lhe o rosto seco, pálido e severo. Reparou-lhe nos olhos fixos e serenos" (p. 18); "Em silêncio, a severa expressão inalterável, o camarada pôs-se a comer a broa com o toucinho" (p. 25).

Cunhal par lui-même: apesar desta minha fracassada experiência como leitor do falso Manuel Tiago, mantenho um fascínio antigo pelo neo-realismo -- um pouco como me acontece com as aventuras marítimas ou de capa e espada que li na infância.

 

 

Redescobri esse fascínio em recente deslocação ao excelente Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira -- visita que recomendo. Por ser também um retrato de uma época em que a escrita era uma forma de resistência cívica, imperativo categórico sob o signo da urgência.

A máquina de escrever era uma espécie de bicicleta, com o escritor a pedalar nas teclas, crente de que nenhum homem é uma ilha mas todos somos parcelas de um vasto continente ao qual jamais se diz até nunca mas até sempre.

 

Imagens: quadro O Almoço do Trolha, de Júlio Pomar (1946-50); capas de romances neo-realistas, pertencentes ao Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira (retiradas do blogue Fazer por Salvaterra, Fazer por Todos Nós)

Livros que deixei a meio (15)

Pedro Correia, 02.11.13

 

BEN-HUR

de Lew Wallace

 

Ainda criança, li A Morgadinha dos Canaviais. E A Selva. E os habituais livros de aventuras muito em voga naquela época, com capas e lombadas que fixei para sempre. Os da Biblioteca dos Rapazes, da Portugália, com capas de Infante do Carmo, Câmara Leme e Júlio Gil: nessa altura, que era o tempo certo, dessa colecção marcharam Os Três Mosqueteiros, de Dumas, A Ilha do Tesouro, de Stevenson, Robinson Crusoe, de Defoe, e O Príncipe e o Pobre, de Twain -- os primeiros romances "juvenis" que me deslumbraram ainda em miúdo (o primeiro romance infantil que li, e que jamais esquecerei, foi Pinóquio, de Carlo Collodi).

 

Mas os meus preferidos, nesses anos das primeiras leituras, eram os da Colecção Histórias, editados conjuntamente pela Bertrand e pela Editorial Íbis. Pelas suas capas multicoloridas, quase sempre representando uma cena de acção, e pelas originais lombadas, onde figuravam os rostos desenhados das quatro principais personagens do livro -- fosse ele o emocionante Miguel Strogoff, de Verne, ou o pungente Oliver Twist, de Dickens. Ou o Robin dos Bosques. Ou o Rob Roy.

O meu interesse por estes romances surgia na proporção inversa ao bocejo que me causavam as obras da chamada "colecção para raparigas", com títulos como Heidi, Fabíola, Mulherzinhas e A Cabana do Pai Tomás. Se fosse hoje, não faltaria quem dissesse que estas colecções dicotómicas se limitavam a reproduzir "estereótipos de género", aprofundando a natural tendência das meninas para brincar com bonecas e dos meninos para brincar com carros.

A verdade é que os meus primeiros heróis literários usavam capa e espada. Resgatavam donzelas em perigo. Viajavam sem temor até às mais remotas paragens. Faziam frente aos corsários. Tiravam aos ricos para dar aos pobres. Passavam mil privações por serem órfãos mas revelavam-se capazes de enfrentar todos os ventos adversos.

 

Alguns desses heróis não tinham o carisma de um David Crockett, a irreverência de um Scaramouche ou a ousadia de um D'Artagnan. Eram figuras quase anónimas, perdidas na imensidão gelada do Alasca, para onde me transportavam as páginas de aventuras de Jack London em obras como A Febre do Ouro, Smoke Bellew e Nas Florestas do Norte. Devo à Livraria Civilização, que as lançou em Portugal, alguns dos momentos mágicos desse tempo em que apenas gatinhava como leitor, muitos anos antes de prolongar essa sensação de encantamento em obras como Moby DickPela Estrada Fora, Babbitt, A Curva do Rio, Memórias de Adriano, O Céu que nos Protege ou O Fim da Aventura.

Mas nem todos os livros têm o condão de nos prender, como não tardei a concluir.

Uma dessas obras da Civilização, livro de bolso em dois volumes, tinha um título insólito: Ben-Hur. Assinava-a um tal Lew Wallace, apresentado como escritor mas também como general do exército dos Estados Unidos, o que não deixou de me causar estranheza.

 

Os meus heróis costumavam ser de épocas antigas. Do século XVII, como Robinson ou D'Artagnan, da Londres vitoriana, como David Copperfield, ou até oriundos dos confins da Idade Média, como Ivanhoe. Mas Ben-Hur era muito mais antigo: do tempo de Jesus Cristo, como o extenso romance do general Wallace se apressava a informar logo nas páginas iniciais.

Várias vezes iniciei a leitura deste livro originalmente editado em 1880 -- muito antes de saber que permaneceu durante mais de meio século no topo das vendas nos EUA, vindo a ser destronado apenas em 1936, com a publicação de E Tudo o Vento Levou. E várias vezes acabei por deixá-lo de parte, sempre com uma vaguíssima sensação de culpa, pois uma voz adulta havia-me em tempos assinalado a importância de tão popular obra.

Todas as tentativas fracassaram: foi talvez o único livro "juvenil" cuja leitura interrompi com carácter irrevogável. Só muito tarde, já bem adulto, veria o filme homónimo inspirado no romance: Ben-Hur, galardoado em 1960 com uma chuva de Óscares em Hollywood, incluindo melhor película, melhor realização e melhor desempenho masculino (Charlton Heston, herói das matinés, como então se dizia).

 

O filme, que é hoje lembrado sobretudo pela antológica cena da corrida de quadrigas, poderia ter-me reencaminhado para o livro. Mas a verdade é que isso não sucedeu. E Ben-Hur lá permaneceu, quase intocável, numa das prateleiras do fundo da minha biblioteca.

Perdi-lhe entretanto o rasto e não faço a menor ideia onde se encontra.

Desculpe qualquer coisinha, respeitável general Wallace. Mas agora, que já vi o filme e conheço a história, dispenso-se ainda mais de ler o que escreveu. Mais facilmente voltaria a embarcar pela enésima vez com Jim Hawkins e Long John Silver rumo à Ilha do Tesouro.

Livros que deixei a meio (14)

Pedro Correia, 26.10.13

 

 

O SOM E A FÚRIA

de William Faulkner

 

Já houve um tempo, vejam lá, em que tive a pretensão de ler obras de todos os galardoados com o Nobel da Literatura. Mesmo os de figuras para mim tão ignotas como Sully Prudhomme (o primeiro contemplado, em 1901), Theodor Mommsen (1902), Bjørnstjerne Bjørnson (1903), Gerhart Hauptmann (1912), Verner von Heidenstam (1916), Karl Adolph Gjellerup (1917), Carl Spitteler (1919), Władysław Reymont (1924), Grazia Deledda (1926), Sigrid Undset (1928), Erik Axel Karlfeldt (1931), Frans Eemil Sillanpää (1939), Johannes Vilhelm Jensen (1944), Shmuel Yosef Agnon (1966), Harry Martinson (1974), Odysséas Elýtis (1979), Jaroslav Seifert (1984), Wisława Szymborska (1996) e Elfriede Jelinek (2004).

Tive de contentar-me com muito menos: li até hoje obras de 28 escritores que receberam o Nobel -- incluindo alguns que nunca se aventuraram pelos rumos da ficção literária, como T. S. Eliot, Bertrand Russell e Octavio Paz, e também Winston Churchill, autor de um só romance, intitulado Sevrola, mas distinguido pelo Comité Nobel devido à sua monumental obra como historiador, designadamente da II Guerra Mundial, de que foi um dos mais notáveis protagonistas.

 

Sempre gostei de estatísticas. Pelas minhas contas terei lido 78 livros destes 28 escritores, mais de metade dos quais saídos da pena de oito magníficos: Ernest Hemingway (Nobel de 1954), Albert Camus (1957), John Steinbeck (1962), Alexandre Soljenitsine (1970), Gabriel García Márquez (1982), José Saramago (1998), J. M. Coetzee (2003) e Mario Vargas Llosa (2010).

Entre os norte-americanos, e além dos já mencionados, li obras de Sinclair Lewis (1930), Pearl Buck (1938), William Faulkner (1949) e Saul Bellow (1976). Autores bem diferentes, cada qual representativo de uma época e do imaginário dominante que se lhe encontra associado -- o proselitismo missionário protestante em regiões remotas, sobretudo na China, no caso de Pearl Buck; a América do sul profundo, com sólidas raízes rurais, no caso de Faulkner; a América da comunidade judaica, urbana e cosmopolita, no caso de Bellow; as mudanças sociais no interior dos EUA, designadamente entre as duas guerras, no caso de Lewis.

 

 

Dos escritores com maior fama, Faulkner foi o último a que cheguei. Talvez por ser aquele de cuja temática me encontrava mais distante. Ao contrário de muitos dos seus confrades das letras, este patriarca do Mississípi foi essencialmente um homem sedentário, fiel na vida e nos livros à região que o viu nascer. Criou até um condado de nome impronunciável -- Yoknapatawpha -- para situar várias das suas histórias de uma América que parecia condenada a ficar à margem da História.

Deste Sul profundo nos chegaram, e não por acaso, alguns dos melhores escritores norte-americanos -- de Mark Twain a Harper Lee, passando por Tennesse Williams, Carson McCullers, Truman Capote e Flannery O'Connor.

O mais complexo, na forma e no tom, é Faulkner -- elogiado com maior fervor pela crítica europeia do que pela norte-americana, por vezes insensível às suas obsessões temáticas, ao seu peculiar regionalismo e sobretudo aos seus exercícios de linguagem, dinamitando convenções literárias.

 

Há escritores para ler no Inverno e há escritores para ler no Verão. Faulkner deve ser lido no Verão, com temperaturas altas e o sol a morder-nos a pele, em sintonia com os extensos cenários rurais dos seus romances, povoados de paisagens por vezes áridas, à semelhança das relações humanas.

Comecei precisamente num Verão a ler aquele que é talvez o mais célebre dos seus romances: O Som e a Fúria, que toma emprestada uma expressão idiomática popularizada por Shakespeare em Macbeth e que o mundo inteiro adoptou. É um romance também para ler no Verão porque exige tempo e disponibilidade física e mental: tem uma estrutura complexa, com a cronologia diluída e as frases das personagens sobrepondo-se como num coro polifónico -- uma técnica que Vargas Llosa utilizaria mais tarde, de forma brilhante, no melhor dos seus romances, Conversa n' A Catedral.

Faulkner exige muito de nós também por isso. Devemos estar atentos à minúcia do idioma -- aos sotaques, às imprecisões do discurso oral transpostas para a escrita. É um esforço que compensa: estamos perante um dos monumentos da literatura do século XX.

 

Fui lendo O Som e a Fúria crescentemente fascinado. Confesso que por vezes parava, voltava atrás, relia algo que me parecia não ter ficado suficientemente descodificado.

Como um puzzle a ser construído, peça a peça, esta escrita labiríntica vai-nos iluminando à medida que a desvendamos.

Li cerca de dois terços do livro, pertencente à excelente colecção Ficção Universal, da editora Dom Quixote.

Mas cometi um erro: interrompi a leitura para dar prioridade já nem sei a quê. O Som e a Fúria exige dedicação exclusiva, não é obra para ser partilhada com outros títulos.

Fui castigado: quando pretendi voltar, semanas mais tarde, havia uma espécie de barreira entre mim e este romance do norte-americano distinguido em 1949 com o mais célebre galardão literário (no mesmo ano em que o português Egas Moniz recebeu o seu controverso Nobel da Medicina).

 

Sou forçado a cumprir a penitência: terei de o ler novamente de início, mas desta vez sem interrupções de qualquer espécie.

Enquanto leitor, julgo que será a penitência que cumprirei com maior gosto em toda a minha vida.

 

Imagem do meio: Faulkner na sua casa em Oxford, Mississípi, fotografado por Henri Cartier-Bresson (1947)

Livros que deixei a meio (13)

Pedro Correia, 19.10.13

 

DUNE

de Frank Herbert

 

Todos temos, suponho eu, um amigo que se destaca dos restantes -- aquele que se torna mais cúmplice, mais confidente, com quem partilhamos mais em detalhe os nossos anseios e aspirações. Acontece muitas vezes, no entanto, que os melhores amigos vão variando, conforme as idades e as circunstâncias.

Nos meus anos de liceu o meu melhor amigo era o único que tinha sido meu colega na instrução primária. Com ele -- e mais uns tantos -- iniciei aos 16 anos um grupo de cinema e um suplemento literário num dos mais conhecidos jornais regionais do País. O grupo de cinema, que se chamava Focus, teve existência efémera: durou um ano exacto e saldou-se por dois filmes -- um documentário enaltecendo os valores ecológicos e uma fita de ficção com um argumento vagamente de espionagem, um tópico da adolescência masculina -- que ficaram incompletos, por falta de verba e de entusiasmo. Mas o suplemento sobreviveu muito mais do que as nossas melhores expectativas iniciais: durou oito anos e acabou por congregar acima de uma centena de colaboradores. 

 

Com esse meu amigo, hoje professor em Setúbal, comecei a partilhar a paixão do cinema com filmes tão diversos como Os Homens do Presidente (Alan J. Pakula), Barry Lyndon (Stanley Kubrick) e Escândalo na TV (Sidney Lumet). Mas em matéria literária os nossos gostam dividiam-se irremediavelmente: o género favorito dele era a ficção científica enquanto o meu era a literatura policial, enquanto consumidor fanático da Colecção Vampiro. Cada um de nós detestava aquilo de que o outro gostava. E garanto-vos que não era por falta de proselitismo de parte a parte.

Sobretudo da parte dele.

Volta e meia lá vinha eu para casa com uma obra de Robert Heinlein, Clifford Simak ou Arthur C. Clarke.

Em vão: não me converti.

Mantive-me igualmente indiferente à saga The Lord of the Rings, de Tolkien, que ele lia no original e de que dava nota no tal suplemento literário que editávamos muito antes de a adaptação cinematográfica ter celebrizado o autor britânico em todo o mundo.

 

Mas um dia os esforços dele tiveram sucesso: emprestou-me um livro da Colecção Argonauta que me deixou fascinado. Nunca esqueci o título nem o autor: Os Amotinados do Polar Lion, de Mordecai Roshwald. A história de um submarino nuclear cuja tripulação proclama a independência, passando a agir por conta própria para terror das grandes potências, impotentes perante este perigoso intruso dos oceanos.

Superado o teste, logo me passou outra obra: "Vais gostar muito."

 

Era Dune, de Frank Herbert. Muito antes da tradução para português.

Lá abri o calhamaço mas não se produziu qualquer magia: aquela história desenrolada num planeta distante deixou-me tão indiferente como a releitura da manchete do jornal de anteontem.

Anos depois, quando David Lynch levou este romance ao cinema, mantive a indiferença -- a tal ponto que abandonei o filme ao intervalo e nunca tentei revê-lo. Ainda sem saber que a crítica cinematográfica internacional o desancaria sem piedade. 

Por esta altura já aquele meu ex-colega deixara de ser o meu melhor amigo. Não porque alguma vez nos tivéssemos zangado: apenas porque cada um seguiu a sua rota profissional e até geográfica. Outros amigos apareceram, muitos outras leituras se sucederam.

Hoje falamos apenas duas ou três vezes por ano.

Suponho que ele continuará tão distante dos policiais como eu me mantenho à margem da ficção científica. Não fui tocado por esse dom, como Mário Soares costuma dizer para justificar a sua falta de fé religiosa.

 

Mas não conto a verdade toda se não vos disser que pelo menos três livros da minha vida podem incluir-se, lato sensu, no género ficção científica: 1984, de George Orwell; Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley; e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. E nunca deixei de me manter receptivo a esporádicas incursões no género, convicto de que poderia repetir-se o clique ocorrido com Os Amotinados do Polar Lion.

E um dia esse clique aconteceu.

Foi no final dos anos 80, quando o meu convívio diário com esse meu amigo terminara há muito, o suplemento literário chegara ao fim e eu trabalhava como jornalista noutro continente. Por mero acaso, comprei um livro intitulado A Barreira (The Saratoga Barrier, no original).

Comecei a ler a história de um homem que durante uma viagem nocturna de automóvel penetra num mundo insólito, ao mesmo tempo tão familiar e tão diferente daquele a que todos estamos habituados.

Não parei enquanto não cheguei ao fim.

 

Fiquei rendido a esta obra, que não parecia mas era de ficção científica, vagamente inspirada em Horizonte Perdido, de James Hilton.

O seu autor? Frank Herbert.

A vida é feita de constantes retornos. Às vezes damos a volta ao mundo para regressarmos ao lugar de partida.

 

Livros que deixei a meio (12)

Pedro Correia, 13.10.13

 

BALADA DA PRAIA DOS CÃES

de José Cardoso Pires

 

Sou um privilegiado enquanto cinéfilo: ainda assisti à estreia de filmes de realizadores hoje quase míticos como Alfred Hitchcock, Billy Wilder e Elia Kazan. Hoje devemos todos considerar-nos igualmente privilegiados: mais tarde poderemos sempre dizer que chegámos a assistir à estreia de filmes de Clint Eastwood, Martin Scorsese e Woody Allen.

 

Passando do cinema para a literatura: eu ainda sou do tempo em que o lançamento de um livro de um grande escritor português tinha chamada de capa obrigatória nos jornais e figurava entre as principais notícias de um telediário. E lembro-me de anos de excelentes colheitas literárias, em que era possível haver vários romances de sucesso, escritos pelos melhores autores nacionais, nos mesmos tops de vendas. E cada um tinha mesmo as suas claques de apoio: havia quem amasse e odiasse um Torga, um Rodrigues Miguéis, um Manuel da Fonseca, um Redol, um Régio, um Abelaira, um Sena, um Tomaz de Figueiredo, um Urbano, um Carlos de Oliveira, um Ruben A.

Lembro-me por exemplo de 1982/83, biénio de excepcional produção literária entre nós. Foi um período em que as tais claques se mobilizaram em defesa e justificação e apologia dos respectivos autores de cabeceira. Um período em que, com poucos meses de intervalo, surgiram nas livrarias o Memorial do Convento, de José Saramago, Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, Os Meninos de Ouro, de Agustina Bessa-Luís, e Para Sempre, de Vergílio Ferreira. Um verdadeiro luxo, já para a época. Algo impensável nos tempos actuais, em que uma certa sacralização dos escritores e da sua obra parece coisa irremediavelmente do passado.

 

Também eu tinha um campo de estimação nestas leituras: Vergílio Ferreira era um dos meus autores preferidos. Gatinhava ainda em termos jornalísticos, com 20 anos mal cumpridos, e já dava nota entusiástica da Conta Corrente, um dos livros que mais polarizaram opiniões no início da década de 80.

Bem amado, mal amado: poucos ficavam indiferentes nas polémicas que estalavam nas redacções de jornais nesse tempo em que ainda era possível reflectir e discutir e em que a obsessão de preencher a todo o instante as exigências da intensa produção on line não tinham transformado os jornalistas em formiguinhas laboriosas e proletárias acarretando sem cessar o grãozinho noticioso para que, serão após serão, às aristocratas cigarras do comentário jamais falte matéria para perorar interminavelmente nas pantalhas.

Havia os fãs de Agustina, os indefectíveis de Cardoso Pires, os primeiros entusiastas de Saramago e aqueles que, como eu, se prendiam sobretudo à obra de Vergílio Ferreira, descobrindo-a com crescente interesse de título para título -- Vagão J, Manhã Submersa, Aparição, Cântico Final, Alegria Breve.

De Cardoso Pires interessavam-me sobretudo os contos, reunidos em Jogos de Azar e O Burro em Pé, embora também tivesse gostado muito d' O Anjo Ancorado, O Hóspede de Job e principalmente O Delfim. Mas a obra dele, na altura, parecia-me algo sobrevalorizada atendendo até ao facto de se tratar de um autor "bissexto" -- publicava num ano e descansava nos três seguintes.

 

A Balada da Praia dos Cães interrompeu um longo silêncio literário de Cardoso Pires, autor também bissexto de crónicas jornalísticas, várias delas excepcionais. Foi, como já salientei, um acontecimento. Rodeado de um sábio marketing da editora o jornal, recém-surgida, com muito boa imprensa.

Eu preferia o Cardoso Pires anterior, editado pela Moraes, com uma feliz foto do autor na contracapa e um desenho gráfico muito avançado para a época -- o Cardoso Pires d' O Delfim e O Render dos Heróis, peça teatral igualmente muito celebrada. Mas também, como tantos outros leitores, adquiri a Balada da Praia dos Cães, que julgo ter sido o campeão de vendas nesse ano em boa parte alicerçado com a conquista do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, na sua edição inaugural.

 

O livro, sendo ficção, baseava-se num episódio verídico dissecado à época por toda a imprensa com o depoimento de vários protagonistas. A história era, portanto, conhecida -- sob vários ângulos. Isto terá diminuído o meu interesse pela obra. E confesso que a escrita demasiado trabalhada -- "castigada", como naquele tempo se dizia -- do Cardoso Pires da década de 80, distante da tensa secura dos seus primeiros títulos, me deixava algo frio enquanto leitor.

Sucedeu-me isso enquanto travava conhecimento com o inspector Elias Santana, autor de relatórios sobre uma investigação em torno da aparição de um cadáver na praia do Guincho com indícios de ter sido parcialmente devorado por cães.

Havia ali matéria com abundância para metáforas políticas e até para a análise crítica de uma certa identidade nacional. Mas o livro continuava a deixar-me frio e nele reconhecia com dificuldade o admirável estilista d' O Anjo Ancorado e O Hóspede de Job, que ajudou a limpar da prosa portuguesa quilos de excrescências e gorduras.

 

 

Pousei o livro marcando novo encontro com ele, em data a definir. Depois surgiu o filme de Fonseca e Costa, com Raul Solnado no papel de Elias Santana -- uma das melhores interpretações de sempre do cinema português. E ao contrário do que tantas vezes me acontece (ainda há pouco sucedeu com Mystic River, de Clint Eastwood, remetendo-me com proveito para o romance de Dennis Lehane), o filme afastou-me do livro em vez de me reeencaminhar para ele.

Não me perguntem porquê: ainda estou para saber. Mas a verdade é que o meu Elias Santana é o do filme, não o do livro onde nasceu.

Livros que deixei a meio (11)

Pedro Correia, 05.10.13

 

 

A CAVERNA

de José Saramago

 

Conheço muita gente que não gosta de José Saramago. Já não gostava dele em vida, continuaram sem gostar dele depois de morto.

Alguma da aversão que o nosso único Nobel da Literatura desperta relaciona-se com aquela animosidade tão portuguesa a tudo quanto tenha êxito. É uma das nossas piores características. Detestamos Saramago, Manoel de Oliveira, Paula Rego, Maria João Pires, José Mourinho, Cristiano Ronaldo e Joana Vasconcelos porque não necessitam da comiseração nacional para colherem aplausos. São apreciados "lá fora", o que potencia novas camadas de detractores. Convivemos mal com o sucesso alheio.

 

Em relação a Saramago confunde-se muito o indivíduo com a obra: muitos recusam ler-lhe os livros porque detestavam o homem enquanto figura pública por lhes parecer profundamente antipático. Conheci-o pessoalmente e sei do que falo: o autor do Memorial do Convento era uma pessoa tímida que procurava disfarçar essa característica com um rosto severo onde raras vezes despontava um sorriso. Questão de feitio.

Muitos confundiam isso com sobranceria ou arrogância. Mas este jornalista que ficou desempregado aos 53 anos e ao qual nem o partido em que militava ajudou nessa difícil fase da sua vida teve de reinventar-se até surgir levantado do chão, certamente sem grandes ilusões sobre a espécie humana e sobre esse terreno armadilhado que é a fama.

Mas mesmo que fosse uma personalidade execrável a sua obra não deveria pagar por isso. Personalidades detestáveis nunca faltaram na história da literatura -- de Céline, com os seus repugnantes panfletos anti-semitas, a Christa Wolf, informadora da infame polícia política da ex-RDA, a lista é imensa.

Há ainda os que condenam as suas ideias políticas, mas também aqui deve ser feita a indispensável separação entre o escritor e o militante. Neruda foi estalinista, Ezra Pound era adepto de Mussolini e Heidegger manteve um prolongado flirt com os nazis sem que isso contaminasse necessariamente a obra de qualquer deles.

 

O teste mais infalível é sempre o da passagem do tempo. Quando eu era miúdo o maior autor de best sellers em Portugal chamava-se Fernando Namora. Cada livro dele alcançava tiragens monstruosas, a Bertrand tinha-o como principal "activo" (como agora se diz) do seu catálogo. Cada livro que publicava era um acontecimento mediático consagrado com múltiplas entrevistas. Dois deles, Resposta a Matilde e O Rio Triste, foram acolhidos quase como acontecimento nacional. Li ambos, com notória dificuldade: nunca consegui perceber a razão de tanto espalhafato.

Hoje Namora é um autor praticamente desconhecido: os seus livros vendem-se a preços de saldo em alfarrabistas. O que tem muito de injustiça póstuma, pois títulos como O Trigo e o Joio e Retalhos da Vida de um Médico merecem releitura atenta.

De Saramago podemos dizer, com relativa segurança, que deixou obras destinadas a não passar de moda. O Memorial, claro. O Ano da Morte de Ricardo Reis, Ensaio sobre a Cegueira, a sua incomparável Viagem a Portugal e essa deliciosa novela quase testamentária que se intitula As Intermitências da Morte.

 

Conheci Saramago no início da minha carreira jornalística, fiz-lhe duas longas entrevistas e nunca deixei de acompanhar o seu percurso. Orgulhei-me como português do Nobel que recebeu em 1998 e achei comovente a mensagem de amor pelos avós analfabetos que deixou à requintada assistência que o escutava em Estocolmo.

Conhecia, claro, a sua outra faceta. A dos editoriais incendiários no Diário de Notícias em 1975. Li-os todos, no arquivo do jornal, com crescente perplexidade. E sempre me questionei até que ponto Saramago ainda se reveria neles tantos anos depois do Thermidor de 25 de Novembro de 1975.

Julgo que jamais terei resposta cabal a esta questão.

Esse Saramago iluminado pelas "vanguardas" revolucionárias parecia ressurgir esporadicamente em certas páginas dos seus Cadernos de Lanzarote, essencialmente um exercício falhado de diarística, e sobretudo num romance obviamente menor intitulado A Caverna. É um romance profundamente ideológico, amargo e ressentido com as sociedades contemporâneas, descrente da economia de mercado e do seu corolário político, a democracia liberal. Vi lampejos do editorialista de 1975 naquele libelo contra a Corporação, representada por um imponente arranha-céus citadino e aquela absurda nostalgia de uma sociedade que andava ao trote de uma carroça, desconfiada da modernidade.

 

Devo ter lido pouco mais de um terço deste livro. Ia virando as páginas com progressiva relutância até não me apetecer mais. Já me encontrava então numa fase em que abandonava um livro a meio sem remorsos de espécie alguma.

Cada escritor tem direito de ter no currículo a sua Resposta a Matilde. É o caso da Caverna de Saramago.

Livros que deixei a meio (10)

Pedro Correia, 28.09.13

 

A MORTE É UM ACTO SOLITÁRIO

de Ray Bradbury

 

Sou um leitor antigo e fervoroso de romances policiais. Tudo começou ao descobrir na biblioteca dos meus pais uns títulos que nada tinham a ver com os restantes: falavam de cadáveres desaparecidos, de vinganças implacáveis, do intolerável prazer de matar. Eram livros da Colecção Vampiro, como cedo vim a saber. Não tardei a frequentá-los com regularidade.

Ainda me lembro do primeiro que li, teria talvez uns dez anos: chamava-se O Detective Imperfeito, de Rex Stout. Não com o célebre Nero Wolfe, o mais sedentário investigador de crimes de que há memória, mas com um tal Tecumseh Fox, que nunca mais voltei a encontrar em nenhuma outra obra mas cujo peculiar nome nunca mais esqueci.

 

Devorei toda a literatura do género que me veio parar às mãos. Começando por Maurice Leblanc e o seu inapagável herói Arsène Lupin, por influência da série francesa então exibida na RTP: cheguei a ter a colecção quase completa destes livros lançados pela Editorial Notícias. Com títulos tão arrepiantes como O Mistério da Agulha Oca, Os Dentes do Tigre e A Ilha dos Trinta Ataúdes. (Onde estará hoje essa colecção? Não faço a menor ideia.)

Seguiram-se muitos outros autores, muitos outros títulos. Desde logo Agatha Christie, a Rainha do Crime. Todo o Conan Doyle, com e sem Sherlock Holmes. Quase todo o Simenon. Muito Erle Stanley Gardner -- com a infalível dupla Perry Mason-Della Street --, incluindo as obras escritas com o seu pseudónimo A. A. Fair.

Depois recuei aos primórdios, a Edgar Allan Poe, considerado o fundador do género. Li outros patriarcas do policial: G. K. Chesterton, Edgar Wallace, E. Phillips Oppenheim, S. S. Van Dine, John Dickson Carr. Actualizei-me com as novelas de Lionel White, Fredric Brown, Mickey Spillane, James Hadley Chase, Elmore Leonard e James Ellroy -- expoentes daquela escola de detectives a que os norte-americanos se habituaram a chamar hard-boiled, usando em regra a primeira pessoa do singular na boca do protagonista-narrador e adoptando uma atitude de generalizado cinismo perante a sociedade e os homens.

 

De vez em quando descobria uma obra-prima do género, como Disparem sobre o Pianista, de David Goodis, que esteve na origem da película homónima de François Truffaut, um excelente film noir que foi a segunda longa-metragem rodada pelo realizador francês, com um surpreendente Charles Aznavour no principal papel.

Li o britânico Nicolas Freeling. E o canadiano Ross Macdonald. E o suíço Friedrich Dürrenmatt. E o catalão Manuel Vásquez Montalbán, genial criador do detective Carvalho. E Ruth Rendell, legítima herdeira de Agatha Christie. Derivei para os romances de espionagem, deslumbrando-me com John Le Carré e decepcionando-me com Ian Fleming. Também fiquei decepcionado com Leslie Charteris, o criador do Santo. Nunca me converti a certos autores. Ellery Queen, por exemplo. Ou Peter Cheyney. E Dashiell Hammett sempre me deixou indiferente.

Li também os portugueses, quase todos com pseudónimo. Dennis McShade (Dinis Machado), Dick Haskins (António de Andrade Albuquerque), Artur Cortez (Modesto Navarro). Mais tarde, Francisco José Viegas -- em nome próprio -- com o seu inspector Jaime Ramos, homónimo do maior caceteiro do PSD Madeira, braço direito de Alberto João Jardim.

Regressei ciclicamente às origens. A Rex Stout, Agatha Christie, Simenon. Apaixonei-me pelas obras de Raymond Chandler -- e só lamentei que não tivesse sido um escritor mais prolífico: Philip Marlowe é uma das maiores criações literárias norte-americanas da primeira metade do século XX. Tendo apenas equivalente em Lew Archer, o detective saído da inspiração de Ross Macdonald (e que viria a ser interpretado no cinema por Paul Newman, réplica dos anos 60 e 70 ao Marlowe interpretado por Humphrey Bogart na década de 40). 

 

Andava eu no auge da minha paixão pelos policiais, em meados dos anos 80, quando se tornou notícia com impacto mundial a conversão ao género de um dos autores mais emblemáticos da ficção científica: Ray Bradbury (1920-2012) A notícia justificava-se por serem dois géneros praticamente estanques, representados durante décadas em Portugal pelas colecções Vampiro e Argonauta, ambas com público muito fiel. Geralmente quem lia uma não lia a outra. Nem vale a pena dizer qual era a minha facção.

Mas eis que Bradbury, autor das Crónicas Marcianas, cometia a heresia de trocar a ficção científica, que lhe dera fama e proveito, pelo policial após vários anos de aparente inactividade. E com um título de estreia que me pareceu excelente: A Morte é um Acto Solitário (Death is a Lonely Business), lançado entre nós em 1987.

Não tardei a comprar o livrinho de capa preta, da Biblioteca de Bolso Dom Quixote. E lancei-me à leitura.

Primeira decepção: um corpo de letra demasiado reduzido. Sempre achei uma falta de consideração pelos leitores editarem-se livros nada recomendáveis a quem possua o mais leve indício de miopia ou tenha já a vista irremediavelmente fatigada.

Mas insisti, ainda embalado pela beleza do título. Recordo-me bem das páginas iniciais, que nos transportavam à praia de Venice, na Califórnia. Numa noite carregada de maus presságios.

Prometia, mas tardou em cumprir. Virava as páginas, o enredo adensava-se de tal forma que se tornava um quebra-cabeças para o leitor. Voltei atrás, recomecei, insisti. Em vão. Para cúmulo, a letra parecia-me cada vez mais pequena -- à dimensão do fio da história.

Parei a meio. Ou antes disso.

Não foi preciso contratar nenhum detective para chegar a esta conclusão: a estreia de Bradbury no policial não passava afinal de um pastiche mal sucedido de Chandler. E eu sempre preferi os originais às cópias, seja em que género for.

 

Hoje, já há muito extintos os ecos entusiásticos da imprensa sobre Death is a Lonely Business, Bradbury é recordado por ter sido um grande autor de ficção científica. Voltou tudo ao seu lugar: uma espécie de tardia vingança da colecção Argonauta contra a Vampiro.

Livros que deixei a meio (9)

Pedro Correia, 21.09.13

 

A NÁUSEA

de Jean-Paul Sartre

 

Certa vez a revista francesa Lire perguntou a António Lobo Antunes por que motivo escrevia. A resposta foi lapidar: "Porque não sei dançar como o Fred Astaire."

Nunca esqueci esta frase -- um modelo de ironia, concisão, argúcia e engenho. Houve uma época em que também eu me questionava por que motivo lia tanto. A resposta que me parecia mais óbvia estava de algum modo relacionada com a frase que citei. Lia para um dia poder responder a um questionário desses com a mesma ironia, a mesma concisão, o mesmo engenho.

 

Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo, na adolescência, em que comecei a ler com regularidade simplesmente por me ter apercebido que essa era a melhor forma de captar a atenção das miúdas mais interessantes da turma. Não eram necessariamente as mais atraentes para outros, mas eram para mim. Eu andava com o Hemingway debaixo do braço, mas esse autor não parecia dizer-lhes nada.

Uma delas era devota de Jean-Paul Sartre. Estes eram os tempos, no Portugal do final da década de 70, em que parecia bem ter um maître a penser. Isto soa hoje tão anacrónico como a própria expressão, num tempo em que a cultura francesa cedeu por completo lugar à outrora tão odiada cultura norte-americana, omnipresente até à náusea.

Pois naquele tempo tão dicotómico não era assim. Havia direita e esquerda, francófilos e anglófilos, burgueses e proletários, classe operária e classe exploradora. Alguns destes termos, cunhados por Marx, eram dominantes no discurso de Jean-Paul Sartre, um dos seus principais divulgadores, sem dúvida o mais mediático à época.

 

Sartre definia as traves mestras da correcção política e fazia suspirar as meninas embaladas nas suas frases tão sonoras: "O inferno são os outros"; "a existência precede a essência"; "o homem está condenado a ser livre".

E eu vi-me condenado a saber alguma coisa a respeito dele para entabular conversa com a mais interessante do grupo. Nada interessado no existencialismo nem na "relação pouco convencional" que o papa da Rive Gauche mantinha com Simone de Beauvoir.

 

 

Comprei A Náusea, da Colecção Livros de Bolso Europa-América. Interrompi a leitura de M. Gallet, Décédé (lia no original Georges Simenon, autor que nunca me desiludiu) para mergulhar no primeiro e mais célebre romance de Sartre, publicado em 1938.

Mas logo nas primeiras páginas deparei com umas reticências que produziram em mim o efeito de um travão.

Sabem com certeza a que me refiro: houve um tempo em que os escritores, para não mencionarem determinada data ou determinado nome ou determinado local, substituíam essas referências por... reticências. Sempre considerei isso uma estupidez e nunca percebi a lógica de escrever assim.

Fui virando as páginas mas logo voltei atrás, às tais reticências. E achei um disparate aquela omissão ao nome ou ao ano (não posso confirmar agora, não tenho nenhum exemplar do livro à mão e faço questão de escrever todos estes apontamentos de memória).

Interrompi A Náusea. Até hoje. Foi, de todos os livros que deixei a meio, aquele que deixei maior porção por ler.

 

Isso também se explica pela circunstância -- vivíamos em 1979 -- de a aura de Sartre estar a extinguir-se com muita rapidez. Pois se ele nos garantira anos antes que a "exploração" do povo vietnamita se devia apenas à intervenção "imperialista" norte-americana, como se explicava o fenómeno dos boat people?

Nesse ano, largos milhares de vietnamitas fugiam em embarcações improvisadas da sociedade "socialista" instaurada pelos "libertadores" de Hanói. Travara-se uma rápida guerra entre o Vietname e o Camboja, também "socialista". E agora era a própria China que invadia o Vietname. Meses depois, a URSS igualmente "socialista" invadia o Afeganistão.

O "socialismo" também podia ser "imperialista"?

O guru não explicou. Começava nesses anos, devido a todos estes factos, o fim da hegemonia cultural da esquerda no Ocidente de que Sartre fora talvez o maior expoente. A sua morte física, no ano seguinte, acentuou o fim do seu prestígio como referência intelectual. Já não seria a minha geração a fazer-lhe vénias.

 

Continuei portanto sem ler A Náusea. Os seus Problemas do Marxismo, também da Europa-América, permaneceram igualmente intocáveis na minha estante. Mas anos depois gostei de conhecer o jovem Sartre que transparece d' As Palavras, uma das melhores obras de cunho autobiográfico que já li (outra foi Confesso que Vivi, de Pablo Neruda).

Bastante mais tarde, leria com muito interesse a polémica epistolar de 1951 entre Sartre e Albert Camus nas páginas da revista Les Temps Modernes que pôs fim à amizade entre ambos. E comovi-me com o fabuloso elogio póstumo no France Observateur do autor d' O Ser e o Nada ao seu antigo amigo, três dias após o trágico desaparecimento de Camus num acidente de viação, em Janeiro de 1960.

 

Concretizei o meu objectivo. Quando o ano lectivo chegou ao fim, tinha conseguido namorar sucessivamente com as duas miúdas mais interessantes da turma. Uma delas, fervorosa sartriana, viria mesmo a ser minha namorada por vários anos.

Um dia apercebi-me de que algo mudara nela: encontrei-a a ler O Velho e o Mar.

Livros que deixei a meio (8)

Pedro Correia, 14.09.13

 

O ESTADO E A REVOLUÇÃO

de Lenine

 

Muitos de vocês não fazem ideia do que isto era, mas acreditem: cresci num tempo em que havia comícios partidários todos os dias e em que se ouvia gritar nesses comícios uma trilogia de nomes que logo se fixaram na memória colectiva: "Marx! Engels! Lenine!" Certos partidos acrescentavam dois outros nomes: Estaline e Mao Tsé-tung (ainda ninguém escrevia Mao Zedong naquele tempo).

Muita gente, na minha geração, formou-se politicamente em reacção instintiva e quase visceral àqueles comícios frenéticos onde vozes desvairadas apelavam à ocupação imediata de terras e fábricas, socorrendo-se dos profetas que menciono acima como supremos argumentos de autoridade. As imagens difundidas até à exaustão nos telediários desse país pós-ditadura e pré-constitucional provocaram um efeito de saturação e acabaram por ser contraproducentes, causando uma espécie de cansaço generalizado por antecipação.

 

Já tinha há muito passado a adolescência quando li pela primeira vez, em versão espanhola, uma obra de Marx: O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Estaline, na minha geração, fora já equiparado a Hitler. E Mao nunca me atraiu, em poesia ou prosa, ainda antes de saber in loco, na década de 80, a marca devastadora que deixou na China.

Com Lenine, confesso, foi diferente. Lenine fundara um estado -- a União Soviética -- e instaurara ali, nesses anos de brasa, o chamado "terror revolucionário". Mas -- ao contrário de Mao, que morrera velho e decrépito -- a sua morte prematura permitia abrir espaço à especulação: o que teria sucedido na Rússia dos sovietes caso Lenine não houvesse sucumbido a uma hemorragia cerebral em Janeiro de 1924, com apenas 53 anos?

Dizia-se até que, já no seu leito de doente, ditara à mulher, Nadia, uma carta dirigida ao Comité Central em que alertava os camaradas contra a personalidade maléfica de Estaline.

O estalinismo seria uma sequência lógica do leninismo ou a sua perversão?

 

Nesses anos abundava em Portugal a chamada "literatura revolucionária". Lenine era um dos autores mais procurados. Uma editora, salvo erro a Estampa, lançou por essa altura O Estado e a Revolução: vi o livrinho em casa de um amigo, numa daquelas tardes intermináveis da adolescência em que falávamos muito de cinema e futebol, e pedi-lho emprestado. Ele disse-me logo que sim: percebi que não o lera nem fazia intenção disso.

Comecei a ler e logo vislumbrei naquelas linhas a capacidade encantatória de Lenine, um homem que transmitia a impressão de nunca padecer de estados d'alma. Era convicto, era categórico, parecia convincente. Na altura eu não sabia, mas tinha nas mãos um verdadeiro manual de conquista do poder. Política pura e muito dura. Sem contemplações face aos adversários ideológicos e dos "inimigos de classe". Lenine não se detinha perante as "ilusões" da chamada Revolução de Fevereiro de 1917, conduzida pela pequena burguesia com o apoio tácito -- mas cheio de reservas mentais -- dos sovietes. Que triunfariam escassos oito meses depois.

Mesmo sendo minoria, alcançaram o poder absoluto. E logo se apressaram a encerrar de vez o parlamento.

 

Lenine não chegou a concluir a obra. E eu não cheguei a terminar a leitura d' O Estado e a Revolução: pus o livro temporariamente de lado, para regressar a ele num futuro incerto, e a verdade é que não voltei a encontrá-lo. Perdi-o sem saber como. E sem o devolver ao seu legítimo proprietário, hoje cirurgião num dos principais hospitais de Lisboa e que (aposto) não terá voltado a pensar nele.

Para usar um termo caro aos leninistas, tratou-se de uma expropriação -- embora involuntária.

 

Acho curioso o paralelismo entre o livro que não acabou de ser escrito e que eu próprio não acabei de ler. Uma espécie de alegoria da revolução traída, que prometia libertar o ser humano para o condenar afinal a uma nova espécie de escravatura destinada a marcar como ferro em brasa todo aquele século contaminado pelo vírus totalitário.

Livros que deixei a meio (7)

Pedro Correia, 07.09.13

 

DIPLOMACIA

de Henry Kissinger

 

O tamanho importa pouco. Quero com isto dizer que nunca me deixei afugentar por um livro gordinho -- digamos, com cerca de mil páginas. Mais coisa menos coisa, é esse o tamanho da opus magnum do doutor Henry Kissinger, catedrático emérito da Universidade de Columbia (Nova Iorque, EUA) e um dos maiores especialistas em política internacional dos escalões dirigentes norte-americanos da última metade do século XX. Kissinger, nascido há 90 anos como judeu alemão e radicado desde 1938 -- tinha apenas 15 anos mas já vira e vivera muito -- nos Estados Unidos, levou uma perspectiva europeia ao Departamento de Estado, antecipando o que mais tarde, na viragem do milénio, sucederia com Madeleine Albright durante a administração Clinton.

Como conselheiro especial do presidente Richard Nixon, de quem seria um poderoso secretário de Estado, com prolongamento para a administração Ford, Kissinger subiu tão alto quanto lhe era possível nas esferas políticas em Washington. Faltou-lhe apenas ter sido candidato à presidência, o que lhe estava constitucionalmente vedado por não ter nascido com a nacionalidade norte-americana.

 

Este europeu transposto para o Novo Mundo é um herdeiro directo dos "realistas" que foram retalhando o mapa mundi ao longo de um século -- da Convenção de Viena, em 1815, à cimeira de Versalhes, em 1919. Convicto de que nenhum país tem aliados permanentes mas apenas interesses permanentes e que não haverá vencedores em guerras desencadeadas na era atómica, Kissinger abriu caminho para o degelo nas relações entre Washington e a China comunista primeiro e com a União Soviética logo a seguir. As duas mais espectaculares acções norte-americanas do último meio século no capítulo da política externa.

São assuntos que me interessam, confesso. Foi portanto com todo o entusiasmo que me atirei a esse calhamaço que é Diplomacia -- um original de 1994, com excelente edição portuguesa da Gradiva publicada quase em simultâneo -- indiferente ao facto de não ser nada fácil de transportar na mochila para a praia.

Julgo que o meu exemplar ainda terá bastantes grãos de areia. E digo julgo porque não se encontra em meu poder há vários anos. Quando era adolescente, tinha por regra nunca emprestar livros -- nas raras vezes em que isso aconteceu, nunca mais os vi. Mas a passagem do tempo vai-nos mudando em muita coisa acessória, à medida que confirmamos que a vida são dois dias. Transgredi, pois, e acabei por emprestar o livro de Kissinger a alguém que mo pediu com insistência (e bons modos, algo que valorizo muito). Tive logo a convicção de que não era emprestado, mas emprestadado. Por vezes vou a casa dessa pessoa, vejo o livro na estante e pergunto-lhe: "Já posso levá-lo?" Resposta invariável: "Não, que ainda não o li."

 

Henry Kissinger -- odiado, invejado e idolatrado, símbolo máximo do cinismo de Washington em matéria de relações externas e estratego consumado, como até os próprios inimigos políticos lhe reconhecem -- é um homem cultíssimo mas, como sucede com tantos académicos brilhantes, não tem o dom da escrita. Diplomacia contém partes interessantíssimas -- nomeadamente os capítulos iniciais, em que o ex-secretário de Estado fala longamente de Metternich, o político austríaco do século XIX que modelou os seus conceitos de realpolitik -- e outros profundamente entediantes, que quase nos levam a supor estarmos perante um relatório & contas.

Li a dobrar a primeira metade desta obra e jamais consegui ler a segunda. Tenho uma boa desculpa: deixei de ter o livro na minha posse.

Mas suspeito que o resultado seria o mesmo se não o tivesse emprestadado. Talvez um dia mude de ideias: pelo menos sei onde está. É só passar por lá e recolhê-lo. Com toda a diplomacia de que sou capaz.

 

Imagem do meio: Kissinger, então estrela em ascensão na administração norte-americana, com honras de capa na revista Time em 14 de Fevereiro de 1969

Livros que deixei a meio (6)

Pedro Correia, 02.09.13

 

NENHUM OLHAR

de José Luís Peixoto

 

No Verão passado houve um grave incêndio nos campos próximos de Galveias. Lembrei-me logo de José Luís Peixoto e da badana de um dos seus livros, que deixei a meio: Nenhum Olhar. A badana mencionava que José Luís Peixoto, um dos mais conceituados jovens escritores portugueses, é natural de Galveias, Ponte de Sor.

Julgo nunca ter ido a Galveias. Mas conheço razoavelmente Ponte de Sor: logo imaginei uma existência árida, um cenário seco e pedregoso, cheio de silêncio e solidão, povoado apenas pelos chamados "elementos naturais". O sol, o canto de um galo, o ladrar de um cão.

Nenhum Olhar chegou-me às mãos cheio de pergaminhos. O jovem romancista ganhara precisamente com esta obra, em 2001, o Prémio José Saramago e era considerado um afilhado literário do Nobel português, que não era pessoa de elogio fácil. Razões de sobra para eu o encarar com expectativa.

 

As primeiras páginas prometiam. Numa espécie de elegia depurada, com um débil fio de narrativa mas uma escrita muito trabalhada, complexa, a meio caminho entre a sinceridade confessional e o artifício retórico.

Há seguramente uma voz original na pena de Peixoto. O problema situa-se a outro nível: este romance é trespassado por uma tristeza tão funda, tão irremediável, tão contagiosa que começamos por ansiar pelo momento em que termine.

E à medida que se progride a voz do autor vai-se embargando, o romance tinge-se ainda mais de escuro, tropeçamos ali num Portugal rural que parece carregar uma dor inominável nascida antes de todos os séculos.

Há livros incompatíveis com certas estações do ano. Nenhum Olhar é rigorosamente interdito ao calor do Verão.

Será talvez livro para ler num Inverno frio e chuvoso?

Não sei, nunca experimentei. O meu problema, enquanto leitor, foi talvez esse: escolhi a estação errada. Não cheguei sequer a meio.

 

Arrasto desde então uma espécie de complexo de culpa. Porque José Luís Peixoto é uma pessoa afável, de uma timidez que não recusa os contactos sociais, sem sombra de tiques de vedeta "literata". Sou testemunha directa desse facto pois cheguei a entrevistá-lo para o Diário de Notícias e fiquei com excelente impressão dele. Os elogios que tem recebido, merecidos ou imerecidos, não o corrompem mentalmente. Proeza assinalável nesta terra tão expedita em fazer e desfazer reputações à velocidade de fabrico dos pudins instantâneos.

 

Esperarei então pelo Inverno. Por uma tarde escura e fria e despojada de afectos para retomar a leitura de Nenhum Olhar.

Detesto deixar livros a meio. E livros de escritores que já entrevistei ainda mais.

 Peixoto com Saramago em 2001

Livros que deixei a meio (5)

Pedro Correia, 26.08.13

 

A MONTANHA MÁGICA

de Thomas Mann

 

Há cerca de cem anos, parecia indestrutível a relação entre a tuberculose e a literatura. Muitos livros eram passados ou inspirados em termas e sanatórios, mas nenhum deles tão célebre como A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Concebido nos tempos imediatamente precedentes da I Guerra Mundial, quando todos os sonhos de progresso e optimismo pareciam condenados ao malogro, este é um dos primeiros romances assumidamente de tese, precursor da receita a que décadas mais tarde Sartre daria corpo em livros que usavam a ficção como pretexto para a especulação filosófica (a propósito, A Náusea passará por cá um destes dias).

Thomas Mann, mais tarde galardoado com o Nobel da Literatura, foi pioneiro na fixação da temática da doença como poderosa metáfora de um mundo em decomposição, o que viria a tornar-se ainda mais patente em 1947, quando surgiu A Peste, de Albert Camus, e em 1995, ano em que José Saramago lançou o seu Ensaio sobre a Cegueira.

Fórmula inovadora e sugestiva posta em prática nesta saga de Hans Castorp, internado em Davos por estar apenas levemente contagiado com o bacilo da tuberculose. Mas o sanatório acaba afinal por ser um símbolo de um universo concentracionário onde toda a esperança se revelava uma miragem destituída de sentido.

 

Li com gosto as primeiras 300 páginas deste extenso romance que sempre me foi apresentado como uma das obras-primas da literatura. Mas há livros assim, que são tremendamente egoístas: exigem dedicação exclusiva, impõem uma relação de tudo-ou-nada.

Falhei. Interpuseram-se outros afazeres, intervalaram-se outras leituras, a minha relação com esta obra tão exigente quebrou-se. Mandei-a repousar na estante.

Era um fim de Verão, só voltámos a ter contacto no Verão seguinte. Para tudo recomeçar da página um e tudo terminar mais ou menos no mesmo ponto da obra, com Hans Castorp já confinado às paredes do sanatório.

 

 

Não me conformei. E no Verão seguinte lá retornei à Montanha Mágica, relendo as páginas iniciais passadas na buliçosa cidade de Hamburgo naqueles anos em que nenhuma guerra mundial havia ainda manchado a face da terra.

A vontade de chegar ao fim era tanta que nessas férias, ao contrário do que é meu hábito, não incluí mais nenhum livro na bagagem.

Deu resultado: foram dias a fio ao sol de Tavira em convívio íntimo com as neves perpétuas dos Alpes suíços. Muitas páginas, muitos parágrafos, muitas palavras. Isso mesmo: muitas palavras. Mann não poupou palavras neste ensaio travestido de romance. Desconhecia por completo a técnica de Hemingway: um texto de ficção, para ser eficaz, deve sugerir muito mais do que relata. Aqui é ao contrário: relata-se tudo, sugere-se pouco.

 

Seiscentas e tal páginas. E, de súbito, fartei-me. Fechei o livro e parei de vez.

Estava há mais de cem páginas no mesmo capítulo, estava há mais de 30 páginas a seguir o mesmo diálogo entre Hans Castorp (sempre mencionado desta forma, com nome e apelido) e o sr. Settembrini, sempre a mesma dialéctica entre o agir e o não-agir, sempre a mesma torrente de palavras.

Cansei-me irremediavelmente, quando faltavam cerca de cem páginas para chegar ao fim, nesta minha terceira tentativa falhada de ler A Montanha Mágica (numa tradução nada brilhante encomendada pela editora Livros do Brasil).

Costumo dizer para mim próprio - e garanto-vos que é verdade - que não deixo livro por ler quando me faltam apenas cem páginas. Mas toda a regra tem excepção. E a excepção, até hoje, chamou-se Montanha Mágica.

 

Isto sucedeu há cinco anos. Desde então, tenho feito progressos: li mais 40 páginas. Sempre com a sensação de nunca passar do mesmo sítio.

Falta tão pouco que é seguro dizer que um dia acabarei por chegar ao fim do romance de Mann. Mas isso jamais poderia suceder antes de figurar nesta série. Por demérito próprio. Não me lembro de nenhum outro livro que me tenha dado tanta luta e provocado tanto tédio.

Livros que deixei a meio (4)

Pedro Correia, 18.08.13

 

AUTOBIOGRAFIA

de Agatha Christie

 

Gostem ou não dela, certamente já leram algum livro de Agatha Christie. Dizem as estatísticas que praticamente só Lenine rivaliza com ela em vendas, mas tenho as maiores reservas em relação a estas estatísticas. Desde logo porque acho os livros de Christie muito mais fascinantes do que os de Lenine (já lá iremos um dia destes, camarada Vladimir), embora realmente demonstrativos da existência de uma estrutura granítica de classes sociais na velha Inglaterra, para recorrer ao jargão marxista-leninista.

Leio Agatha Christie desde sempre. Será talvez o nome das letras que leio com maior regularidade, quase sem interrupções (quase, neste caso, deve-se à década em que, quanto a policiais, apenas li os clássicos da literatura negra norte-americana, de James M. Cain a James Ellroy, passando por Ross Macdonald, que certo dia de 1981 me foi sugerido por Dinis Machado, e pelo melhor de todos eles, Raymond Chandler).

Agatha Christie é autora de dois dos melhores "policiais" de todos os tempos: O Assassinato de Roger Ackroyd e Um Crime no Expresso do Oriente. Livros originalíssimos e, decorrentemente, muito imitados. No primeiro caso, o criminoso era o narrador; no segundo, quase todas as personagens estavam envolvidas no assassínio, que terminava impune.

 

Como geralmente acontece a leitores compulsivos, iniciei-me em Agatha Christie com dois dos seus romances considerados "menores": Tragédia em Três Actos e Mistério nas Caraíbas. Apenas por se dar a circunstância de estes serem então os mais recentes títulos da autora (à época ainda viva) na quase lendária Colecção Vampiro e não haver escolhas alternativas: na cidade dos trópicos onde eu morava só havia uma livraria - que aliás nem era livraria mas um grande armazém onde se vendiam produtos portugueses como latas de azeite, chouriço enlatado, barras de sabão e... livros.

Lá e em muitos outros locais, Agatha Christie foi-me acompanhando com o discreto toque de sedução que sabia pôr na sua escrita. Tenho alguma dificuldade em explicar este persistente fascínio, pois sempre considerei Hercule Poirot uma das personagens mais irritantes da história da literatura e quanto a mim os dotes divinatórios da astuta Miss Marple só conseguem convencer os mais incautos.

 

Este estranho fascínio por autores capazes de nos irritar e seduzir ao mesmo tempo é tema que dá pano para mangas. Mas por agora, e sem mais suspense, interessa-me falar do único livro da 'Dama do Crime' que abandonei antes do fim, um livro que achei interminavelmente maçador. Refiro-me à sua Autobiografia, lançado entre nós pela sua editora portuguesa de sempre - Livros do Brasil. Nada a ver, por exemplo, com o pujante testemunho humano das Memórias Íntimas de Georges Simenon, divulgado em Portugal pela mesma editora.

Christie parece ter sempre pouco para contar a seu respeito - e o pouco que conta é irrelevante e excessivo nessa irrelevância. Ficamos a saber tudo quanto não queríamos sobre a sua infância hiperprotegida numa mansão rural inglesa onde nunca faltou o chá das cinco, e depois, já ela era casada, não somos poupados às minudências da actividade do marido, arqueólogo de profissão. Esta vida sensaborona, desprovida de emoção, era compensada pelos contínuos cenários de crime concebidos pela virtuosa senhora, autora de mil vidas imaginadas para compensar uma existência banalmente insípida.

 

Abandonei a Autobiografia antes de chegar a meio, algures durante umas chatíssimas escavações na Mesopotâmia. Confesso: a arqueologia nunca me interessou. A arqueologia real, não a dos seus múltiplos sentidos figurados sem a qual não existia a literatura.

Livros que deixei a meio (3)

Pedro Correia, 10.08.13

 

RUMOR BRANCO

de Almeida Faria

 

Alguém ainda se lembra do nouveau roman? Certas correntes estéticas surgem no mercado ao som de torrentes de propaganda proclamando-se sempre novas embora já tresandem a velhas. É minha convicção firme que foi isso mesmo que sucedeu com o nouveau roman: novo apenas no rótulo e nas estratégias de marketing literário de que se rodeou, no final dos anos 50, quando a França dava - ainda sem saber - aqueles que seriam os seus últimos passos como potência quase hegemónica no plano cultural.

Eram pouco legíveis, essas obras que se propunham "revolucionar" a literatura. Na estética, tal como na política, ponho as maiores reservas às teses revolucionárias: é sempre preferível a evolução à revolução. Basta ver o que sucedeu na China de Mao durante a Revolução Cultural, que fez tábua rasa de tudo quanto cheirasse a "antigo": foram destruídos templos, palácios, monumentos de todo o género, para restaurar uma pretensa "cultura popular" expurgada de todo o vínculo ao passado. Este pesadelo durou apenas uma década, mas deixou estragos ainda visíveis na milenar cultura chinesa.

Também o nouveau roman prometia revolucionar - neste caso, a literatura. Abolia as estruturas narrativas tradicionais, a sequência cronológica em capítulos, a pontuação convencional, o clássico desfile de personagens, a presença de um narrador omnisciente. Abolia a trama, o enredo, o suspense - considerados artifícios destinados a distrair o leitor do que realmente interessava: a linguagem, considerada um fim em si próprio. O equivalente em cinema a um filme tão "seminal" (linguagem de certa crítica daquela época) como O Ano Passado em Marienbad (1961), de Alain Robbe-Grillet. Não por acaso, também o principal mentor do nouveau roman. À luz desta corrente estética, todas as artes se equivaliam, todas eram intermutáveis.

 

Em Portugal, as novidades chegam sempre com bastante atraso. Mas neste caso nem aconteceu assim: em 1962 já havia o Robbe-Grillet português. Chamava-se Almeida Faria, um jovem prontamente celebrado como um dos maiores expoentes de sempre da literatura portuguesa. Tinha um livro, intitulado Rumor Branco, que foi recebido com fumos de genialidade. Novo Romance. Assim mesmo, em maiúsculas.

Eu não sou desse época, mas quase 20 anos depois, já o nouveau roman estava "gloriosamente empalhado" (tomo de empréstimo a justa farpa que Alexandre O'Neill dirigiu ao surrealismo), interessei-me por esse autor que parecia ter emigrado para uma ilha deserta: cedo celebrado, cedo lançado ao ostracismo.

Um dos meus escritores favoritos, Vergílio Ferreira, referia-se sempre a ele com indisfarçada admiração, prova de que era um intelectual generoso (fez o mesmo, por exemplo, com Lídia Jorge em 1980 no lançamento do primeiro livro desta romancista, O Dia dos Prodígios).

 

Descobri Rumor Branco numa Feira do Livro e trouxe-o de lá. Livro fininho, de escrita esparsa - até nisso a romper com o cânone do romance instituído no século XIX. Estava a preço de saldo, o que demonstra bem como são falíveis os ventos da moda. Já ninguém falava em nouveau roman nessa altura.

Chegado a casa, abri-o com interesse antes de qualquer outro. Não sei bem do que estava à espera, mas não era daquilo: uma escrita fragmentada, aforística, que parecia nadar em seco e contemplar-se no seu próprio vazio.

 

 

Li sem prazer duas dúzias de páginas e fiquei-me por aí. Há livros que se amam, outros que se admiram, uns poucos que se amam e se admiram em simultâneo. E há outros que nos deixam indiferentes: aconteceu-me com Rumor Branco. Creio aliás que Almeida Faria, apesar da polémica que desencadeou com este seu título de estreia, não ultrapassou o patamar de eterna promessa da literatura portuguesa. Um pouco mais de sol - e seria brasa. Não tem mal: aconteceu com muito boa gente.

 

Ignoro o que é feito do livro. Talvez um dia o retome, talvez não. O Novo Romance sempre me pareceu velho.

 

Imagem de baixo: fotograma do filme O Ano Passado em Marienbad (1961)

Livros que deixei a meio (2)

Pedro Correia, 04.08.13

 

 

D. JOÃO VI - O HOMEM E O MONARCA

de Mário Domingues

 

Não sei se convosco sucede o mesmo: eu sempre gostei muito de histórias. E de histórias da História em particular. Já adulto, detestei aqueles volumes de História muito moderna, cheios de gráficos, de estatísticas, de "estruturas" longas e curtas - sem reis, sem personagens heróicas, quase sem cronologia, sem datas a assinalar o início e o fim de eras inconfundíveis, com toda a individualidade diluída em conceitos de pretenso rigor científico, como o de "luta de classes".

Eu gostava era da História à moda antiga. Das biografias, sobretudo.

Comecei ainda miúdo devorando as biografias escritas por Adolfo Simões Müller que encontrava na biblioteca escolar. Tendo feito todo o ensino obrigatório em escolas públicas (nove, por força de circunstâncias familiares), ainda hoje me espanto com a qualidade das bibliotecas existentes nesse tempo de notórias dificuldades materiais que ajudavam a suprir parte das deficiências do chamado "ensino formal" (que sempre me soube a pouco). E gostaria de saber se essa saudável tradição se mantém, tantos anos depois.

 

Lido Simões Müller (Infante D. Henrique, Camões, Serpa Pinto, Gago Coutinho...), passei para as biografias feitas pelo professor Agostinho da Silva, muito antes de voltar a ser famoso após décadas de exílio ao ser descoberto pela televisão. Eram livros de "divulgação", como então se dizia, de uma editora (Sá da Costa?) que fazia questão que parecessem ainda mais antigos do que eram. Li as biografias de gente tão diversa como Lincoln, Zola, Leopardi, Pestalozzi: lembro-me, ainda hoje, da impressão que me fez a morte acidental de Zola, em 1902, intoxicado pelo fumo de uma lareira...

Depois, claro, foi o tempo de Oliveira Martins - talvez o maior historiador português de todos os tempos. Nun' Álvares, Os Filhos de D. João I, Portugal Contemporâneo... Foram livros que me fascinaram, numa fase posterior. Um deles - creio que a biografia de D. João II - foi deixado muito incompleto devido à morte prematura do autor, o que sempre lamentei.

 

E havia Mário Domingues. Pouca gente saberá hoje quem era, mas nas décadas de 40 a 60 foi um autor muito popular, grande produtor de biografias que antecedeu (sem ecrãs de televisão nem a eloquência discursiva que lhe esteve associada) a fama de José Hermano Saraiva.

Mário Domingues era de uma escola histórica muito anterior à dos Annales, cheia de estruturas e dados demográficos e estatísticas sobre as variações das colheitas agrícolas. Via a História em termos técnicos como uma disciplina da literatura e em termos conceptuais como o fruto da acção de uns quantos indivíduos considerados excepcionais.

Não devemos analisar desta forma os acontecimentos históricos, sabemos hoje bem. Mas nunca perdi a convicção de que é fundamental recuperar as virtudes da narrativa no ensino da História. É uma convicção que me vem seguramente desses tempos em que creio ter aprendido alguma coisa com autores tão diferentes como Simões Müller, Agostinho da Silva e Oliveira Martins.

 

Mas regressemos a Mário Domingues. Tomei conhecimento com ele também através da biblioteca escolar, em terras longínquas. Ele sabia recriar figuras históricas - D. Afonso Henriques, D. João IV, D. João V, o Marquês de Pombal, D. Maria I - como se fossem personagens de ficção. Não era tanto o rigor histórico que procurávamos nessas obras, mas a capacidade de nelas descobrirmos insuspeitas virtudes romanescas em personalidades essenciais da nossa História.

Anos depois, em Lisboa, reencontrei as obras dele na montra de um alfarrabista nas Escadinhas do Duque. E passei a abastecer-me regularmente desses livros - nada baratos - nessas minhas incursões periódicas a um local que está associado ao início da minha actividade profissional em Lisboa, pois trabalhava lá perto.

Um dia trouxe desse alfarrabista um livro que, ao contrário de todos os outros, só me agarrou até meio. Era a biografia de D. João VI, um dos nossos reis mais controversos. Li-o exactamente até meio: encalhei numa página da qual não consegui passar.

 

O livro permaneceu esquecido no fundo de uma estante. Entretanto fui lendo muita coisa relacionada com essa época, incluindo esse campeão de vendas no Brasil que foi (e é ainda) 1808, de Laurentino Gomes - excepcional narrativa desse primeiro ano da instalação da corte portuguesa no Brasil, embora não disfarce algum preconceito contra a antiga potência colonizadora.

Esse livro fez-me regressar ao velhinho D. João VI - O Homem e o Monarca. Havia pontos de contacto entre ambas as obras, o que me conduziu à releitura. Mas não recomecei onde ficara, cerca de década e meia antes: parti novamente do zero, na esperança de o ler de um fôlego.

Assim parecia ser nos primeiros dias. Até que parei. Exactamente a meio, exactamente no ponto em que havia parado antes.

Julgo que nesta fase Mário Domingues tinha perdido o gosto por escrever biografias: limitava-se a encher páginas. Aqui socorreu-se sobretudo de uma obra que também foi muito útil a Laurentino Gomes: D. João VI no Brasil, de Manuel de Oliveira Lima. Mas Domingues cometeu um pecado mortal enquanto escritor: citando o original, passou a transcrever largos excertos dessa obra, sem os integrar devidamente na sua própria narrativa. Resultado: perdi pela segunda vez a vontade de ler o livro.

Pode ser que um dia o retome. Mas tenho a certeza de que não voltarei ao zero. Para não o deixar a meio outra vez.

 

 

As imagens foram recolhidas, com a devia vénia, dos blogues Torre da História Ibérica, Nesta Hora e Portal da Informação.

 

Livros que deixei a meio (1)

Pedro Correia, 27.07.13

 

20 MIL LÉGUAS SUBMARINAS

de Júlio Verne

 

O primeiro livro que me lembro de ter deixado a meio foi um daqueles de que mais gostei. Custa a crer, bem sei, mas eu já explico.

 

Há livros que devemos ler na idade própria - nem cedo de mais nem tarde de mais. Nunca compreendi aqueles pais que se apressam a proporcionar aos filhos, ainda muito novos, literatura "adulta" para "amadurecerem" com maior rapidez. Também me faz alguma impressão ver adultos mergulhados numa espécie de infância retardada, deliciando-se com a leitura das histórias do Tio Patinhas. Nada melhor do que tudo ocorrer no tempo certo.

Parafraseando o outro, a propósito de algo bem diferente, eu fui um miúdo do meu tempo. Devorei as aventuras dos Cinco e dos Sete, era fanático de banda desenhada, não perdia uma série do bom velho Oeste na televisão (Bonanza, O Maioral, Os Monroe, Shenandoah, High Chaparral). E não perdia também uma só obra de dois autores muito lá de casa: Jack London e Júlio Verne.

 

Associo sempre muitas tardes da minha infância aos livros do aventureiro norte-americano, com as magníficas capas multicoloridas da editora Civilização, e do respeitável burguês de Nantes, que pôs várias gerações de jovens a percorrer o globo sem saírem das quatro paredes do quarto.

Apreciava particularmente o Verne editado pela Bertrand no início dos anos 70, com uma estampa antiga emoldurada por um grafismo moderno. Nunca soube quem era o autor destas capas: julgo que tal referência não constava da ficha técnica. Mas presto-lhe hoje homenagem. Este é um dos segredos editoriais para consolidar uma legião de leitores fiéis.

E, claro, havia a sedução da própria escrita de Verne - didáctica sem nunca ser maçadora, capaz como poucas de nos prender a atenção no fim de cada capítulo, abrindo o apetite para o capítulo seguinte - técnica herdada dos melhores textos folhetinescos, relíquia de um tempo em que o jornalismo era indissociável da literatura.

 

Li vários livros dessa colecção: cada um deles era uma espécie de tesouro íntimo para um garoto como eu, então à descoberta do fascínio da literatura. Tenho ainda muitas dessas obras: A Volta ao Mundo em 80 Dias, O Náufrago do Cynthia, O Bilhete de Lotaria nº 9672, Viagem ao Centro da Terra, A Carteira do Repórter, Os Filhos do Capitão Grant, O Farol do Cabo do Mundo, Matias Sandorf.

Mas a Bertrand editava por vezes algumas destas obras, um pouco mais extensas, em dois volumes. Eu ignorava tal facto até ler, absolutamente empolgado, o primeiro volume d' A Mulher do Capitão Branican: chegando ao fim, deparei com o aviso de que a continuação viria noutro tomo da mesma obra. Corri à procura dela: estava esgotada. Só muitos anos depois, já quase esquecido do empolgamento juvenil, adquiri esse outrora ansiado segundo volume.

Mas - como seria de esperar - o fascínio perdera-se.

Aconteceu-me o mesmo com as 20 Mil Léguas Submarinas. Com a diferença de que este foi um romance que me atraiu ainda mais. Não tenho a menor dúvida em classificar o capitão Nemo entre as grandes figuras de sempre da literatura mundial. Recordo as ementas minuciosas das refeições a bordo do submarino e a atmosfera claustrofóbica daquelas cenas. E não esqueço a aura de mistério que envolvia Nemo.

 

Terminei o primeiro volume: a mesada não chegava para o segundo. Quando chegou, já não havia o livro. Nem no mês seguinte, nem no ano imediato.

Nunca li a segunda parte das 20 Mil Léguas Submarinas. Talvez com receio de que a magia se perdesse para sempre, como sucedeu com A Mulher do Capitão Branican.

Assim permaneceu intacta.

 

Livros que deixei a meio (prólogo)

Pedro Correia, 21.07.13

 

Palavras preliminares: detesto deixar um livro a meio. Quase tanto como detesto começar a ver um filme já depois do seu início.

Lembro-me, ainda hoje, como há quase 30 anos deixei por ver o célebre Andrei Rubliov, de Andrei Tarkovsky, que passava apenas naquela noite em sessão especial numa das salas do saudoso cinema Quarteto, em Lisboa. Estava num grupo de três pessoas em que se integrava alguém com irremediável vocação para o atraso. Por azar, era a mesma pessoa que na véspera se havia encarregado de comprar os bilhetes para a sessão, esgotadíssima no dia da projecção. Quando chegou enfim, já a fita rodava há uns bons dez minutos: na sala escura, o ecrã iluminava-se com imagens a preto e branco para mim incompreensíveis. Confesso que ainda tentei entender o que se passava no ecrã, mas sem sucesso: mal conseguia captar o enredo e cedo me convenci de que - como sucede em tantas obras-primas do cinema - Citizen Kane, de Orson Welles, 2001 - Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, e Psico, de Alfred Hitchcock, por exemplo - aqueles minutos iniciais que tinham sido perdidos prejudicavam a visão integral do filme. Ao intervalo, pretextando já não sei o quê, ausentei-me - e até hoje, por algum motivo, nunca consegui ver Andrei Rubliov.

 

Tem-me sucedido algo semelhante com muitos livros: deixo-os a meio. Havendo uma diferença assinalável: é bastante mais fácil retomar a leitura. Basta pegar neles e abri-los, não é necessário nenhum aparelho para o efeito e muito menos esperar por algum ciclo especial da Cinemateca que se lembre enfim de mostrar aos cinéfilos portugueses como eram os filmes produzidos na defunta União Soviética.

Mas só é fácil em teoria. Não sei se convosco acontece o mesmo: há livros que se fecham para nunca voltarem a ser abertos. Pelos mais diversos motivos. Ou porque nos entediaram fatalmente ou porque prometiam algo que afinal não eram capazes de oferecer ou porque alguém pegou neles e nunca mais os devolveu ou simplesmente porque se intrometeram outras obras literárias, muito mais apelativas, roubando o lugar que à partida pertencia às primeiras.

 

É destes livros que ficaram pelo caminho que me proponho falar aqui, todas as semanas. Cada caso é um caso. Mas é destes pequenos caprichos do destino, destes encontros e desencontros com as obras mais diversas, que se vai fazendo também o nosso percurso enquanto leitores - tantas vezes marcado por felizes ou desditosos acasos.

E - não esqueçamos - há ainda aqueles livros que têm precisamente a vocação de serem lidos vagarosamente, duas páginas hoje, três páginas depois de amanhã. Sem pressas, sem promessas antecipadas de alguma vez chegarmos a conhecê-los por inteiro.

De tudo isto se faz a leitura. E é também por isto que ler é tão bom afinal.