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Mudavam-se os canais televisivos e as frases repetiam-se tonitruantes: “As eleições mais importantes da história moderna”; “A decisão que vai moldar o país de forma que pode ser irreversível”; and so on, and so on. E a expressão inglesa (com sotaque do Kansas ou de um bairro negro de Atlanta) uso-a porque as declarações ouvi-as vezes e vezes sem conta durante os 15 dias que passei nos EUA como enviado especial da TVI/CNN Portugal para cobrir – volto ao zapping – “the most important election of our lifetime”.
Regressado dos States com mais perguntas do que respostas rapidamente percebi que necessitava e necessito daquilo que podemos chamar de antídoto para o fim da história repetidamente declarado nos círculos vários de fazedores de opinião e observadores do presente. E a vacina para leituras precipitadas temo-la quase sempre na leitura da História. Razão que me leva a reler “O Futuro da América” de Simon Schama. Historiador britânico e professor na universidade de Columbia, em Nova Iorque, radicado nos Estados Unidos há cerca de 30 anos, Schama é um conhecedor do passado da América e dele admirador, diga-se.
O livro em causa foi publicado em 2010 e daí ter o subtítulo: “A História dos EUA dos Fundadores até Barack Obama”.
Sendo certo que muito se passou nos últimos 14 anos, e que a figura de Donald Trump não surge na obra, menos ainda a sua eleição e reeleição como 45º e 47º presidente dos Estados Unidos da América, Schama dá-nos pistas para melhor avaliarmos o que está em causa e porque é que a maioria dos americanos fez a escolha que fez a 5 de Novembro. As conclusões são desanimadoras.
Schama enaltece o optimismo americano como pilar da construção de uma história com pouco mais do que 250 anos. Um optimismo que contrasta com o reaccionarismo que detectamos em muitos dos votos trumpistas. O “Make America Great Again” não é optimista. É sobretudo reaccionário. Trata-se de um sentimento movido pela crença de que os valores da América estão em risco. São perseguidos. Dentro e fora de portas.
E a mesma sensação de perda temo-la ao apercebermo-nos que a multiplicidade étnica e cultural, que fez e faz a América, é hoje tida como agressora da dita América Grande, essa grande potência que só poderá sê-lo verdadeiramente quando for concretizada a incessantemente prometida “maior deportação da História” que começará, garante Trump, “no primeiro dia em que voltar à Sala Oval”.
O pessimismo reforçamo-lo no ponto da religião. E à semelhança da multiplicidade étcnica e cultural, também representada por Barack Obama. O presidente que chegou à Casa Branca assumindo o seu cristianismo, religião que foi o escudo, o tónus, a força da minoria negra na luta pelos direitos civis, e que hoje está minada por um cristianismo branco conservador ao jeito de cruzada. Uma cruzada por um mundo branco, cristão e patriarcal e cujo um dos seus principais embaixadores dá pelo nome de Peter Hegseth, a escolha de Trump para Secretário da Defesa, ou seja líder da maior máquina de guerra à face da Terra. Um futuro chefe do Pentágono, que num livro publicado em 2020, intitulado American Crusade: Our Fight to Stay Free, afirma que os EUA enfrentam actualmente "diferenças irreconciliáveis entre a Esquerda e a Direita, que estão a direccionar a América para um conflito perpétuo e que não podem ser resolvidas através do processo político." Cito do jornal Público.
A História escreve-se todos os dias e tem capítulos mais marcantes que outros. O próximo, no que à América e, claro, ao Mundo diz respeito está marcado para 20 de Janeiro próximo. Dia da tomada de posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos. A minha esperança primeira é que Simon Schama reflicta sobre isso e nos conte a História.
Dos factos para a ficção é na obra-prima de Jonathan Frazen, Correcções, que mergulho de novo na América. No centro da acção estão os Lambert, família anfitriã de uns Estados Unidos desunidos por conflitos religiosos, geracionais e de costumes. Actores e representantes de uma sociedade atingida pela instabilidade do mercado financeiro, entorpecida pelos anti-depressivos e suas promessas ilimitadas de bem-estar se fim. Tudo num mundo onde a moral religiosa da velha geração se exalta e enfraquece em confronto com a ausência de escrúpulos da juventude americana. Dialéctica que é a força motriz da obra feita de pessoas que buscam corrigir os trajectos de vida que tiveram e os rumos que seguiram. E apesar do aparente peso que aqui ponho nas palavras este é um romance divertido, grande representante do género tragicómico. Dois requisitos que fazem desta uma obra literária inteligente e marcante.
Duas características que me dizem ter a “A Família Netanyahu” de Joshua Cohen. Livro que está já na minha mesa de cabeceira. Trata dos judeus na América. Tendo como mola um episódio real que tem como protagonista o pai do actual primeiro-ministro de Israel. Um professor de História que é (parece) mais que tudo um teólogo. Especialista no judaísmo, com particular “conhecimento” do judaísmo na Península Ibérica, no tempo da Inquisição. Um narrativa interessada em explorar os meandros que ligam e separam Religião e História a partir de uma perspectiva judaica que, ao que me dizem, ajuda-nos também a perceber quem é Bibi, antigo aluno nos Estados Unidos. A América. Sempre a América.
Sou um leitor compulsivo de banda desenhada, especialmente da linha clara franco-belga. Adorei as obras de Hergé, Goscinny, Franquin, Tibet e Peyo, mas sempre preferi as versões originais aos pastiche surgidos posteriormente. Acho que a melhor decisão que Hergé tomou foi a de não ter permitido que Tintin lhe sobrevivesse, o que permite que ainda hoje o olhemos com o fascínio de sempre. Já Astérix perdeu grande parte da sua graça depois da morte de Goscinny e, embora o lançamento de cada livro seja hoje um evento à escala mundial, a única coisa que resta das personagens originais é a perfeição dos desenhos, já que a genialidade dos argumentos desapareceu para sempre.
Na banda desenhada norte-americana, a criatividade original também se perdeu. Hoje a Disney e a Marvel são indústrias de produção em série, que há muito se afastaram dos autores originais, o que leva a que grande parte do seu encanto tenha desaparecido. Cada vez tenho menos interesse nos filmes da Marvel, e ainda menos nas suas bandas desenhadas, que me parecem totalmente distantes das histórias originais que lia durante a minha adolescência.
Sucede, porém, que o Correio da Manhã tomou a iniciativa de distribuir aos sábados uma colecção das histórias originais da Marvel, tal como foram concebidas por Stan Lee e desenhadas por Steve Ditko, e que nos permitem reencontrar o que nunca deveria ter sido modificado ou adaptado. Estes são presentemente os meus livros de cabeceira.
Leio não menos, mas leio menos livros, agora. Talvez volte a ler como há uns anos, veremos. De momento, ler é sobretudo não ignorar artigos conexos com o que faço, estudar o que os alunos escrevem, e acompanhar sempre que possível - ainda em papel - alguma imprensa. Estou menos permeável à ficção, não por saturação, sim por falta de vagar. Um vagar que, no meu caso, exige disponibilidade para mergulhar de cabeça numa história, como deve ser.
Assim, à minha beira tenho uma releitura, três livros de educação histórica, um livro de contos em reedição e um primeiro romance.
A releitura é uma obra de Luís Carmelo, A Expressão na Rede. Regressei a ela porque já há distância. Já é possível tentar perceber se aquilo que há uma década caracterizava "o tom dos blogues", em senso geral, persiste ou mudou. Tendo a achar que mudou.
Russel Tarr, Kate Jones e Chris Runeckles são professores. Têm idades e contextos de trabalho bastante diferentes entre si, mas em comum o facto de serem, há vários anos, generosos no seu contributo para a discussão e implementação de boas práticas educativas bem para lá da sua escola e colegas de departamento. Existe no Reino Unido uma dinâmica de reflexão pública de várias décadas sobre ensino/aprendizagem, e esta ancora-se agora nos novos media, com consequência na edição de livros valiosos para qualquer profissional que queira continuar a melhorar no seu ofício. Continuo a querer.
O primeiro romance de Bruno Vieira Amaral, As Primeiras Coisas, vai já algumas páginas adentro. Comecei há uns anos por Hoje Estarás Comigo no Paraíso, depois segui pela biografia de Cardoso Pires, daí a curiosidade por esta primeira obra. Aprecio bastante o seu modo de contar, desprovido de artimanhas.
O telefone não está ali por acaso: muitas vezes, antes de me deitar, leio em ponto luminoso e pequeno os Red Hand Files, de Nick Cave. Com espanto e proveito, sempre. Como neste último file, escrito há dias numa varanda soalheira em Lisboa.
João Guimarães Rosa, nas suas Primeiras Estórias, está por descobrir. Venha esta próxima leitura.
Ler na cama é um desporto do qual estou reformado: com a velhice, nem o pescoço nem os olhos se prestam já a tais acrobacias. A mesa de cabeceira limita-se agora a ser... mesa de cabeceira, tendo a sua tarefa literária sido herdada por uma (também) velha mesa que reside no meu quarto.
A fotografia supra pode levar algum visitante mais precipitado a deduzir a balbúrdia. Não é verdade: há ali um método e muito fácil de descrever. A pilha da esquerda está reservada a livros e revistas cujo formato facilita o seu transporte na mochila: são estes os que viajarão entre o Seixal e Lisboa. Para o meio, vão as revistas ainda por ler com dimensões que desaconselham o seu consumo fora de casa. Na pilha da direita, enquanto não descobrir forma de as arquivar com dignidade (nesta casa, arrumar as papeladas tornou-se um nível avançado de Tetris), vão-se depositando as revistas lidas.
Não vou ser exaustivo na descrição deste centro-direita. A última revista que li, comprei-a porque, sendo eu um miníaco, padeço também de alfismo. Antes desta, uma velha revista cultural brasileira do início dos anos 80, resgatada ao fundo do inventário de um alfarrabista, que contém uma longa entrevista a Jorge Amado, uma (menos longa) entrevista a Wendy Carlos, um texto de Dick Gregory sobre a sua viagem ao Irão durante a crise dos reféns americanos, duas análises a fenómenos pop brasileiros daquela época, e um par de contos vagamente psicadélicos.
Na coluna dos livros (e revistas alivradas), os primeiros três são releituras planeadas para o Verão - e proteladas para o Outono. Depois, um livro sobre Albufeira publicado pela Arandis, uma editora algarvia. A Máquina Mágica é uma colectânea de textos publicados pelo autor numa coluna de "passatempos computacionais". O livro do Carlos Fiolhais, comprei-o por ser de quem é. Seguir-se-ão um par de edições da Crítica XXI; uma colectânea de entrevistas da Paris Review; e o primeiro número da Granta portuguesa, que comprei há anos em promoção na feira do Livro e nunca cheguei a ler.
Pelo menos, é este o plano. Nada garante que, entretanto, a ordem não seja refeita por um qualquer capricho, ou que um novo livro não tenha entrada directa para o meio da pilha ao invés de ir para o fim.
Nunca tenho só um livro começado. Nunca estou a ler só os da mesa de cabeceira, nunca só os que andam comigo na mochila, carteira ou mesmo no telefone, ebooks e audiobooks - já cá disse que audioleio (e gosto). Às vezes paro um, começo outro, que se junta a outros 3 ou 4, mais tarde volto ao que larguei, e assim vamos andando. Gosto muito de adormecer a ler, repetir a mesma linha, uma e outra vez até reconhecer que hoje já não vou passar dali e recolher.
Estes são os que tenho de momento ao lado da cama:
"A Minha Europa", de Maria Filomena Mónica, ainda nas primeiras páginas, mas já me sinto levada nos seus apontamentos de viagem e infinito conhecimento. É o meu seu primeiro livro.
"Libero di Sognare", a autobiografia de Franco Baresi, porque o futebol italiano dos anos 90 será sempre especial, e Baresi um grande embaixador desse Milan que muito admirei. Gosto muito do trocadilho "libero" - Baresi jogava como líbero, uma posição em desuso, agora revisitada por um ou outro guarda-redes mais subido. Um líbero de sonho, livre de sonhar. Em português não funciona tão bem, enfim. Tento ler em italiano, já com algum sucesso, para praticar a língua escrita. Das origens modestas, no campo, na zona de Brescia aos grandes aeroportos e campos onde se sagrou campeão dos campeões, na primeira pessoa.
Os livros seguintes são de crónicas, textos mais curtos para ler a gosto e rir um pouco ao deitar.
"Côrte & Costura: as maiores fofocas da nossa realeza", de Márcia Pedroso. Teve origem no seu podcast, com o mesmo nome, e diz logo ao que vem: segredos de alcova, boys lixo de coroa, bastardos e rainhas vingativas. É divertido, não pretende ser um documento histórico, cumprindo a quadrilhice a que se propõe.
"Vamos Todos Morrer", de Hugo van der Ding. Mais um livro nascido de um podcast - programa de rádio, no caso - que está entre os meus favoritos, ouço-o diária e militantemente. A cada dia do ano, Hugo van der Ding escolhe um defunto dessa data, de qualquer época e origem, e fala sobre a sua vida e obra, com muito delírios e verdadeiras pepitas de ouro pelo meio. Sempre gostei de História contada de forma divertida, de referências, cultura pop e uns pozinhos de erudição. É capaz de não haver aqui um rigor irrepreensível, mas diverte-me muito, saio daqui talvez com menos factos, mas muitas gargalhadas e mais algum conhecimento sobre as mais variadas figuras deste nosso planeta.
"Elefante na Sala", de Joana Marques. As crónicas de Joana Marques sobre ocorrências irrelevantes, porque afinal alguém tem de escrever sobre elas, e a perspicácia e atenção da Joana ao irrisório são irresistíveis.
Nem sempre dormi ao lado de uma mesinha de cabeceira. Como preciso, em 98% dos casos, de algo para ler antes de dormir, encontrar um sítio para pousar as leituras era sempre complicado, e à falta de melhor acabavam no chão. Por isso, tenho para mim que, além de todas as utilidades domésticas, a mesa de cabeceira serve para acomodar as leituras do dia, da semana ou do mês, além de outros objectos prioritários (a chave de casa, por exemplo, para que não me esqueça dela).
A fotografia supra data já do Verão, do período de férias, mas tirando um caso, ainda são os livros cuja leitura está em curso ou agendada para breve. A disposição não é a melhor, mas serve o propósito da sua identificação.
Ali no canto superior esquerdo lobriga-se a Biografia do Esquecimento, de Diogo Leite Castro - pseudónimo literário de Diogo Leite DE Castro - que, tenho de confessá-lo, é um velho amigo mas já com livros de contos e outro romance publicado. Destes todos é o único que li até ao fim. Sinopse: um homem dos seus setentas, absolutamente banal, pede a um jornalista de obituários que lhe escreva a biografia, mesmo se à primeira vista não tem absolutamente nada de digno de nota nem de registo. A busca de material para a obra leva ao encontro de um crime e a uma torrente de acontecimentos passados, cada um mais intrigante que o outro. E entre paisagens do Porto, Paredes de Coura (com um cameo de Mário Cláudio), Vila do Conde e Coimbra, a biografia impossível desenrola-se até ao fim do novelo.
A meio, Paris após a Libertação, do grande historiador de guerra Anthony Beevor. Este é daqueles livros que tinha há muitos anos na prateleira e que queria muito ler, mas que por razões várias fui adiando. Decidi-me finalmente a pegar nele, e não sendo o melhor livro para praia, também dá para ler entre dois mergulhos. Depois de um breve resumo dos acontecimentos que levaram ao armísticio de 1940 entre a França e a Alemanha, do estranho regime de Vichy e da ocupação alemã, segue-se um relato emocionante da Libertação de Paris propriamente dita (fiquei a saber que os primeiros soldados franceses entraram ainda no dia 24 de Agosto, dia dos meus anos, embora a data oficial da rendição alemã seja 25) e dos quatro anos seguintes, com a febre da liberdade, o desejo de novidades, a carestia de vida e o confronto político, numa cidade que mesmo em austeridade voltou a ser um dos faróis culturais do mundo, como se comprova pelas personalidades que lá viveram ou por lá passaram, com De Gaulle à cabeça, pois claro, mas ainda Churchill, Coco Chanel, Edith Piaf, Sarte, Beauvoir, Camus, Prévert, Picasso, Hemingway, George Orwell, Yves Montand, Marlene Dietrich, Cocteau e tantos outros. Ainda me falta um pouco, porque a enormidade de pormenores e de petite histoire não permite uma leitura acelerada, mas cumpre todas as expectativas que tinha depositadas no livro.
Em cima, à direita, Roteiro Afetivo de Palavras Perdidas, uma das heranças escritas de António Mega Ferreira. Este é daqueles livros para ir lendo interpolado com outros, uma espécie de mini-dicionário de palavras ou expressões quase em desuso que povoaram a infância e juventude de Mega Ferreira. Ficamos a saber o que é a "baquelite" ou uma "gloríola", de onde vêm termos como "bota de elástico" ou "espampanante", recordamos os "espadas" e os "anis", tudo com grande "fineza" mas auxiliado por um "cartapácio" de velhos e bons dicionários.
Ali à esquerda, quase escondido, vê-se o autor, Joseph Roth, mas não totalmente o nome da obra, Hotel Savoy. Está ali para o ler brevemente, como introdução à obra de Roth, que só conheço de recensões. O resumo de contracapa promete: um jovem vienense judeu, que regressa a casa depois de três anos prisioneiro num campo siberiano depois da Grande Guerra, hospeda-se no Hotel Savoy. O resto só a leitura do livro me dirá, mas percebe-se que estão presentes alguns elementos da obra de Roth, ele próprio um judeu vienense que narra as glórias e a nostalgia do Império Austro-Húngaro.
Por fim, cá em baixo, Pequeno Almoço à Beira do Apocalipse, de Wladimir Kaminer, também por ler. Já tinha lido o seu Viagem a Trálálá, da colecção de viagens da Tinta da China, meio autobiográfico, meio picaresco, deste judeu russo naturalizado alemão, que vive em Berlim há mais de trinta anos e que se tornou uma das figuras gradas da cultura pop e boémia da capital alemã. Aqui dá-nos o relato das sensações e receios de um germano-russo muito pouco apreciador de Putin perante a invasão da Ucrânia, falando de assuntos sérios num tom quase espirituoso, impossivelmente optimista e decididamente irónico, que a espaços nos remete para um Kusturica mais contido.
Hesitei noutros para leituras próximas, mas ficarão para depois. Até lá, acho que a minha mesa de cabeceira - que já é outra, por razões sazonais - não está mal servida.
Associo o conceito de “leitura de mesa de cabeceira” àquela que se pode fazer aos bocados, sem impedir a leitura de outros livros pelo meio.
O calhamaço Jerusalém, a biografia de Simon Sebag Montefiore, faz parte dos vários que incluí nessa classificação. Comecei a lê-lo do segundo terço em diante, na parte que respeita ao início do século XX. Só depois de ter chegado ao final é que saltei para a primeira página. Este tipo de manobras é impossível em livros que não possam ser classificados “de mesa de cabeceira”. É uma obra repleta de informação histórica e que permite colorir a imagem mental de uma cidade onde, ainda hoje, e para manter a identidade arquitectónica, todas as novas construções têm de ser forradas a pedra branca. A forma clara e explícita como este autor se exprime permite galgar páginas sem ter de recuar para uma releitura. Assim o leitor pode lidar com muita informação, a um ritmo que seria impossível noutros livros de história.
Como se não chegassem todas as referências históricas, religiosas e culturais que associamos à cidade santa, este livro também poderia ser incluído na categoria dos “livros que inspiram viagens”.
Na minha mesa de cabeceira, a biografia desta cidade única, frequenta, ombro a ombro, ou melhor, lombada a lombada, com outros dois, os clássicos dos clássicos, A Ilíada e a A Odisseia. A releitura destes últimos (que historicamente serão sempre os primeiros) despertou-me a atenção para o género. Depois deles, juntou-se à companhia A grande história dos mitos gregos, de Stephen Fry, e sem perder o embalo seguiu-se Antígona de Sófocles.
Muito mais recente, chegou a esta pilha a Eneida de Vergílio. Não sei porquê, mas neste último dei por mim a regressar aos livros que têm de ser lidos de seguida. A longa viagem de Eneias em busca da nova pátria que, sabemos, será Roma, está por isso ainda a marinar.
Na mesma geografia, e recebido de presente, o Roma, história da cidade eterna, de Ferdinand Addis, já mudou de sítio duas vezes à espera que chegue a sua hora, mas isso também ainda não aconteceu. Pode ser que seja o próximo.
Há três grandes prazeres na vida: ler, comer e esquece-me agora o nome do terceiro.
Pode-se viver apenas com o segundo e o terceiro pode ser intenso mas dura pouco.
A vida sem ler, porém, é só uma; e lendo, muitas. As paisagens, as cidades, os países, as guerras, os costumes e sobretudo as pessoas. As de agora, as de ontem, as de anteontem e até à noite dos tempos quando o primeiro literato se deu ao trabalho de coligir textos, possivelmente acrescentando muito de seu, aí há coisa de 42 séculos.
Nunca mais se parou de escrever, tanto que não é hoje possível haver gente culta no sentido renascentista da palavra, e não só porque o conhecimento científico explodiu, também porque uma vida não chega para percorrer todos os clássicos. Em sentido lato, isto é, os que construíram o edifício da literatura universal até hoje, excluindo os contemporâneos – destes não sabemos quais e quantos são imortais.
Esta grande maçada de a esperança de vida ainda não estar, como devia, aí pelos 160 anos, faz com que cada um seja obrigado a fazer a sua selecção porque simplesmente não há tempo para todos. E há maduros, com a mania que são originais, que de autores clássicos não sabem muito, mas dos contemporâneos ainda menos. Nada que me aflija, se a companhia for de grandes fumos literários refiro de passagem Terêncio, Plauto, Santo Agostinho, Sá de Miranda ou outro monstro sagrado qualquer suficientemente antigo para que a conversa estiole.
Sucede que comecei a substituir a leitura ávida de ficção, ainda que parcialmente, aí há uns 30 anos, por ensaios sobretudo de natureza histórica, de economia, de costumes, de ciência política. Em suma, tudo coisas quase sempre perecíveis – não as matérias, o que sobre elas se escreve.
O livro de cabeceira da fotografia é o dois em um. É do género autobiográfico e talvez não seja uma peça literária, por ser demasiado descritivo e não ter um fio narrativo. Que se dane, lê-se bem. Saiu em 2016 da pena do colega de Trump no ticket de candidatura às eleições e retrata dolorosamente um tempo, uma classe e uma região. Aquela em que vivem o que Hillary Clinton designou como os deploráveis.
Não é um panfleto nem um manifesto e, com base naquele filme vivido, podem-se construir teorias políticas não apenas diferentes mas até opostas.
Bem empregado, e prazeroso, tempo.
Há 11 anos, quando escrevemos a primeira série, apresentei a fotografia do meu monte de leitura (um pouco arrumado para se fazer à foto) ao lado da cama. Não existia cabeceira porque tinha um apartamento onde estava durante a semana perto do trabalho, na Alemanha, sendo a verdadeira casa (a Thuis no neerlandês e zu Hause no alemão, o bom e velho Lar português) nos Países Baixos, onde regressava ao fim de semana, feriados, férias e quando conseguia estender a estadia trabalhando a partir de casa.
Estando agora em minha casa, mesmo minha e verdadeiramente Lar onde está a família toda (se bem que continue a ser nos Países Baixos e o escritório na Alemanha), posso colocar uma fotografia com mesa de cabeceira, se bem que os livros se encontram na prateleira de baixo. Teve que ser reorganizada e tem vários livros não porque eu leia assim tanto - até leio menos que no passado, infelizmente - mas porque é partilhada com mais uma leitora. Por isso temos uma mistura algo eclética e só é estranho que não estejam ali mais línguas representadas.
Comecemos de forma sucinta com os da coocupante da mesa de cabeceira: East of Eden, de John Steinbeck e que não precisa de apresentações. Putt's Law and the Successful Technocrat, escrito por Archibald Putt (pseudónimo) e que retrata de certa forma o inverso mas também um complemento ao Princípio de Peter (que numa organização meritocrática as pessoas são promovidas até atingirem o seu nível de incompetência). A Lei de Putt tem duas bases, 1) a Tecnologia é dominada por dois tipos de pessoas: as que a dominam mas não a gerem, e as que a gerem mas não a dominam; e 2) uma hierarquia em organizações tecnológicas irá com o tempo expulsar para cima os incompetentes, para onde não podem fazer estragos na Tecnologia, e manter os competentes nos níveis inferiores, onde sabem o que estão a fazer. É um livrinho engraçado, curto e que se lê depressa, embora como em quase todos os livros deste género, quem o entenda bem também poderia ler o essencial num post de blog. O terceiro livro que ali cohabita é How Successful Engineers Become Great Business Leaders, livro que ainda não abri e por isso nada posso dizer sobre ele.
Quanto aos meus:
Ainda ali anda A Cidadela Branca, de Orhan Pamuk, que acabei há não muito tempo e ainda não me decidi a arrumar na estante. É livro que ainda vou digerindo e já dei por mim a voltar às últimas 15 páginas para as reler, que é onde Pamuk brinca com o leitor, o leva numa viagem da montanha russa mais estonteante que há e causa questões sobre a nossa sanidade. Neste livro, Pamuk cria todo um cenário e uma história sobre duas personagens, ambas sem nome, dinâmicas entre as duas, adiciona personagens secundárias - todas sem nome, apenas títulos - só para finalmente chegar ao que quer fazer nas últimas páginas. É quase um livro de suspense mas sem suspense, muito bucólico, até às últimas 20 páginas. Aí dá a volta ao leitor. Acabei-o por pura coincidência na Turquia, o que me pareceu muito adequado à situação.
Tenho depois o livro que comecei agora, O Segundo Coração, de Bruno Vieira Amaral. É um livro de pequenos textos - poderiam ser posts - sobre episódios e recordações da sua infância e juventude. Sendo o autor apenas uns 3 anos mais novo que eu - e tendo eu escrito também alguns textos sobre a minha infância e juventude - o tema atraiu-me bastante e os pontos de partida para as suas reflexões são facilmente identificáveis. Só que o livro sai-me agridoce. Como escrevi, reconheço muitas das experiências - as corridas de carrinhos, os jogos com bonecos, o hino nacional no final da transmissão da RTP1 - mas não me identifico de forma nenhuma com as reflexões que as recordações provocam e até as vejo como estranhas, como não compreensíveis - não a sua explicação, que é clara, mas a razão por Vieira Amaral pensar dessa forma. Claro que nada disto estraga o livro, mas reduz-me o prazer de o ler, pelo que vai aos soluços. Aquilo que me vai sempre maravilhando é não só a capacidade de Vieira Amaral de se lembrar de imensos pormenores dos episódios que descreve mas também de ser capaz de invocar tantos episódios. Isso é algo que tem dificultado a minha série e só pela inspiração já vale a pena ler o livro.
Tenho por último um livro que já referi antes, The Making of the Atomic Bomb, de Richard Rhodes. Um livro que recebeu o prémio Pulitzer em 1988. Tenho-o na mesa de cabeceira para ir lendo de vez em quando, porque já o conheço bem. Só que é tão rico em detalhes, tão dedicado às personagens, à Ciência, a todo o cenário da sua época e até ao pensamento e Filosofia de algumas das sua personagens, que é quase impossível ficar cansado dele (também tem cerca de 750 páginas sem referências).
Poderia talvez adicionar os audiolivros que vou ouvindo no telefone, mas não só não os ouço tanto na cama - prefiro o carro, comboio ou avião, quando em viagem - mas também não me apeteceu extrair as imagens para colocar. Deixo assim os títulos que ando a ouvir ou ouvi mais recentemente: The Martian e Project Hail Mary, ambos de Andy Weir; Gulag - a History, de Anne Applebaum; Molly's Game, de Molly Bloom; Look Who's Back, de Timur Vernes (ainda não comecei a ouvir a versão alemã); The Lord of the Rings, de J. R. R. Tolkien.
Em resumo: a minha cabeceira é local onde pairam livros durante semanas e às vezes meses e onde acabam também muitos livros infantis, embora de forma mais temporária. É um sítio onde gosto de ir perder uns minutos, infelizmente poucos porque o sono toma conta dos meus olhos com facilidade. Ainda assim, é uma bela forma de fazer descansar o cérebro e me levar a outros mundos e outros conceitos antes de dormir. E não se pode dizer que seja uma má forma de perder a consciência - e depois adormecer.
No cimo da pilha, por questões foto-estéticas (relacionadas com o tamanho), encontram-se dois volumes que lerei num futuro próximo: as breves biografias de Sá Carneiro e Álvaro Cunhal. Trata-se de uma série lançada pela revista Sábado, por ocasião do seu vigésimo aniversário. Estes foram os volumes que adquiri na minha última estadia em Portugal (Maio/Junho). Tive sorte ao não ter falhado a biografia de Sá Carneiro, de autoria de João Pacheco. Adelino Cunha assina a de Álvaro Cunhal, que lerei igualmente com interesse. Foi indubitavelmente um político marcante da nossa História recente, indissociável da luta contra o Estado Novo.
A Amiga Genial, de Elena Ferrante, foi comprado em promoção numa Feira do Livro do Porto. Por tanto ter ouvido falar, resolvi testar. Adorei. E não descansei, enquanto não li os outros três que completam a famosa saga napolitana. Elena Ferrante põe-nos em contacto com a vida real, numa escrita crua, sem poesia. As suas personagens não se dividem entre boas e más, todas estão marcadas pelas disfuncionalidades de um bairro pobre e caótico, na Nápoles da segunda metade do século XX. A própria amizade, iniciada na infância, entre as duas personagens principais, deixa muitos amargos de boca, por vezes até nos exaspera. A saga, porém, não se resume às suas peripécias. Este é igualmente o retrato do Sul de Itália, onde não faltam a pequena máfia de bairro e as lutas entre fascistas e comunistas, que incendiaram a década de 1970.
Segue-se o intrigante título: Assim se pariu o Brasil. Já tinha lido romances históricos de Pedro Almeida Vieira, com enredos arrastados, convidativos ao sono. Comprei este por não ser ficção, apesar de, na contracapa, se falar “numa prosa culta mas cheia de humor”. Pode-se escrever um livro sobre factos históricos, usando humor? Enfim, não conhecer a História do Brasil colonial ajudou à minha decisão. Demorei, porém, a pegar no livro, adquirido já em 2016. E acabou por me surpreender pela positiva. O ritmo é o de uma narrativa de aventuras e, apesar de realmente se notar um travo humorístico, nunca é manipulador, o que, na minha opinião, revela um equilíbrio difícil de conseguir. Assim aprendemos, por exemplo, como o pequeno Portugal conseguiu ganhar tanto território à potência espanhola; como, neste caso, “o tempo dos Filipes” acabou por beneficiar o nosso país; como os colonos portugueses, auxiliados por indígenas e africanos, lograram expulsar franceses e, principalmente, neerlandeses, que se desunharam para arrebanharem o Norte sertanejo e, enfim, onde se explica como o enorme Brasil conseguiu garantir a sua unidade, enquanto as colónias espanholas se desmembraram em vários países. O livro contém ainda ilustrações de Enio Squeff.
Mulheres da Clandestinidade, de Vanessa de Almeida, põe-nos em contacto com um verdadeiro universo paralelo, durante o Estado Novo, o universo de pessoas que mergulhavam na clandestinidade, mudando de nome e tentando ludibriar a PIDE, todos os dias, a todas as horas. Mesmo não tendo qualquer simpatia pelo Partido Comunista, não se fica indiferente a esta narrativa. Tem ainda a particularidade de se centrar nas mulheres que, “com um imenso sacrifício pessoal, abandonaram as suas terras, as suas casas, a sua família, para mergulhar na clandestinidade” (p. 193). Apesar de o comunismo ter sempre incluído “a emancipação da mulher na sua teoria de transformação social” (p. 193), verifica-se “uma importante contradição entre o que a direcção preconizava e a prática discriminatória quotidiana” (p. 194). Muito há a dizer/ler sobre este assunto. E são elucidativas as palavras de Sisaltina Maria dos Santos, quando ela e o marido, libertados na sequência da revolução, chegaram a Sines: “Levaram o Américo aos ombros para a praça da vila, mas a mim, exceptuando a minha família, ninguém me ligou, porque o Américo é que era o herói” (p. 193).
Palavras de Liberdade, uma colectânea da Academia de Letras de Trás-os-Montes, a propósito dos 50 Anos do 25 de Abril, e na qual participei, é a minha leitura actual. Apesar de conter ficção e poesia, muitas das contribuições centram-se em experiências pessoais. De destacar, até agora, o texto de Jorge Sales Golias, um Capitão de Abril, envolvido na criação do MFA, desde as primeiras reuniões com Otelo Saraiva de Carvalho, na Guiné, e o de Joaquim Ribeiro Aires, um antigo aluno do Padre Max, no Liceu de Vila Real, que evoca essa figura trágica, assassinada em 1976, num crime nunca esclarecido. Gostei muito deste reencontro com o Padre Max. Tinha escrito sobre ele, há três anos, no meu blogue pessoal, depois de ter lido Uma bomba a iluminar a noite do Marão, de Daniela Costa.
Os últimos três livros da pilha serão os próximos a ler: Os Anos, de Annie Ernaux (Prémio Nobel em 2022); A Desobediente, de Patrícia Reis (que já foi autora neste blogue), e Parem Todos os Relógios, de Nuno Amado, finalista do Prémio LeYa, salvo erro, em 2017 (pelo menos, a edição é de Novembro desse ano). Estou especialmente expectante em relação aos dois primeiros.
Os livros são o meu vício. Leio quase sempre de manhã, enquanto tomo o pequeno-almoço, e nunca saio de casa sem um livro, porque há sempre 5 minutos de espera em que posso mergulhar e avançar na história, em vez de navegar nas redes sociais. Ler é um escape para quando quero esquecer um dia menos bom, uma forma de viajar no tempo e no espaço, sem sair da minha zona de conforto. Há livros que me deixam ansiosa, outros que quero ler muito depressa para que deixem de me incomodar. Leio sempre até ao fim, mesmo que não esteja a gostar da história ou que seja demasiado previsível. Intercalo leituras em português e inglês e apesar de gostar de ler em papel, também uso muito o meu kobo. Hoje em dia temos acesso a todo o tipo de livros, o que é fascinante, há livros para todos os gostos e interesses, escrita clássica, moderna e técnica. Sou uma ávida leitora e tento incutir esse exemplo aos que me rodeiam, falando dos livros que leio, partilhando pedaços das histórias que vou conhecendo. Não faço parte de nenhum clube de leitura, mas tenho tendência para me rodear de pessoas que gostem de ler, e partilhamos histórias e livros e é tão bom.
Leiam o que quiserem, mas leiam!
Os títulos do meio, comprei-os na Feira do Livro. Li-os com a pressa e o vagar que dispenso às obras dos meus autores de estimação. Com pressa, porque confiante no prazer da sua leitura fico com vontade de as tragar de uma vez. Com vagar porque ao mesmo tempo antecipo o vazio que se segue quando chego ao fim de um livro que me encanta. E então demoro-me, relendo passagens que me impressionaram pela elegância e inteligência da escrita. Sublinho-as, tento retê-las para mais tarde recordar. De Ian McEwan e Javier Marías, dois dos meus amores literários, não posso dizer que em nada são iguais, pois têm em comum a capacidade de descrever com minúcia a complexidade da natureza humana, através de personagens tão interessantes e bem desenhadas que acabo a meditar nelas como se fossem gente.
Dispus na mesa de cabeceira os livros por ordem de leitura, portanto antes destes dois autores li Svetlana Aleksiévitch. Nunca tinha lido nada dela. Ainda bem que ganhou o prémio Nobel em 2015, porque o mais provável era demorar muito mais tempo a descobri-la. "A Guerra não tem rosto de mulher" é o resultado de um trabalho de pesquisa jornalística extraordinário sobre mulheres que combateram durante a II Guerra Mundial. Através dos depoimentos recolhidos, a escritora bielorrussa mostra bem como é diferente a relação mental das mulheres com a guerra e também como foi ocultado e/ou desvalorizado durante décadas o seu papel na frente. Como se fosse um embaraço.
Agora estou a acabar de ler Olga Tokarczuk. Também é uma estreia para mim. Este "Outrora e outros tempos" foi o seu primeiro grande sucesso. Mal entrei nele, percebi porquê. A escrita dela é poderosa, original. Mergulha o leitor num universo paralelo, onde mistura fantasia com realidade, um ardil para chegar a verdades incómodas e profundas, que aborda numa linguagem muito simples e depurada, quase infantil, sempre com a história recente da Polónia como pano de fundo. Foi Nobel em 2019, com toda a justiça.
Eu tenho uma mesa de cabeceira. Não tenho é livros. Na mesa de cabeceira.
Se os tivesse nunca dormiria. E sem dormir não consigo ler os livros que quero. Porque adormeço.
Não é tão simples quanto vos possa parecer. Conciliar o sono com a leitura é tarefa ingrata. Para mim e para aqueles, que estão permanentemente a querer atropelar-se mutuamente.
Optei então por separá-los. Assim não há conflitos. E quando me deito sei que não posso levar nenhum livro comigo.
Até porque há livros que devido ao seu tamanho seria sempre impossível de acomodar na mesa de cabeceira com o candeeiro, o rádio-despertador, o relógio e o comando do ar condicionado.
O problema passou para outro patamar. O da decisão. E aqui só há uma possível: enquanto as pálpebras não começarem a pesar e a cabeça se mantiver direita estou proibido de me dirigir para a mesa de cabeceira e accionar o alarme para o dia seguinte.
Dia seguinte é uma força de expressão porque acordo sempre no dia em que me deito.
Por culpa dos livros que deviam estar na mesa de cabeceira e afinal estão na secretária, na mesa da sala e no sofá.
A verdade é que quando me vou deitar transporto comigo o que estou a ler. Não fisicamente. Interiormente. O que por vezes me traz insónias. Pelo que aproveito esses momentos para ler o que trago na memória e ficou na divisão do lado.
A fotografia que ilustra este texto reúne os livros que estou a ler e a memória que por estes dias levo comigo para a cama que está ao lado da mesa de cabeceira onde os leitores gostariam de ver os meus livros.
Romances, novelas, normalmente, só leio em férias. Durante o resto do ano leio ensaios, livros de história e de arte e muitos, muitos livros sobre política, relações internacionais, biografias e livros de memórias.
No momento em que vos escrevo estou a braços com A Desoras, último volume publicado dos diários de Marcello Duarte Mathias, referente aos anos de 2017 a 2023. Gosto muito da sua escrita límpida e despretensiosa. "Escrever é ter consciência que cada palavra é única. Porque nenhuma tem sinónimos." E o autor sabe-o bem quando discorre sobre a "prosa à Augusto de Castro – breve, leve, cintilante, mozartiana", com "clareza e claridade". Ou como quando conclui, ao recordar Rubem Fonseca, umas páginas adiante, que a marca de qualquer grande escritor é não deixar ninguém indiferente. É de certo modo sentir "a força intrínseca que irradia de tudo o que escreve". Também no caso dele é assim. Sinto-me reconfortado num país onde o primeiro-ministro diz "será-lhe", onde são cada vez menos os que sabem ler e escrever, ao que eu acrescentaria os que não sabem falar nem comer, ter o privilégio de poder passar uns momentos com as suas reflexões. É viajar por outro mundo. E para outro mundo sem sair do quotidiano, apesar do regresso ser sempre doloroso.
Entretanto, o editor enviou-me e estou entusiasmado com Played – The Games of the 1936 Olympics, em pdf, uma novela de Glenn Allen e Richard Kaufman.
Para além destes, encetados há pouco, tenho lido e consultado três livros em francês de que já aqui vos falei – Les Lieux du Pouvoir, Les Naufrageurs – Comment ils ont tué la politique e Le Chat et le Renard –, mais o pequeno romance O meu irmão Serge, de Yasmina Reza, e And Then What?, de Catherine Ashton.
Nota ainda para alguns outros que ultimamente, a espaços, vou relendo, debruçando-me sobre pequenas passagens. O clássico Sobre a Liberdade, de John Stuart Mill, é um dos contemplados. Nesta galeria ainda repousam, há algum tempo, de Serhii Plokhy, A Guerra Russo-Ucraniana, uma reedição de Strong Democracy – Participatory Politics for a New Age, de Benjamin Barber, e uma obra editada pela Taaschen sobre Ai Weiwei.
Não tarda e estes serão em breve substituídos por outros. É preciso dar a vez a todos.
E é quanto basta, por estes dias, para me manter longe da mesa de cabeceira, refugiado da canícula, e acordado durante o fresco e aconchegante silêncio da noite projectado pela luz do meu candeeiro.
Longe vão os dias em que só lia um livro de cada vez, e de uma ponta à outra. Quando por acaso não tinha leituras novas, relia algum de que já não recordasse bem a história (porque não me agrada ler um livro de que já sei o final, salvo raras e honrosas excepções). Nessa altura tinha menos livros e mais tempo, o inverso do que possuo actualmente: os livros vão aumentando em número, e o tempo parece cada vez mais fugidio.
Para meu grande desgosto, tornei-me uma leitora errática. Tanto sou capaz de ler um livro em dois dias como arrastar uma leitura ao longo de meses, e aos solavancos. Horror dos horrores, há livros que leio até certo ponto e depois simplesmente desisto e abandono-os – alguns na esperança de mais tarde conseguir pegar-lhes, outros já a saber que não vale a pena insistir, não consigo digeri-los com um mínimo de prazer. E leitura que não me dá prazer, não vale a pena (só se for por razões profissionais). Há por aí muitos livros à espera que eu os descubra e goste deles.
Na minha mesa-de-cabeceira os livros demoram-se, e por várias razões. A principal é porque para ler um livro físico à noite preciso de ter a luz acesa, e o gesto de fechar o livro, pousá-lo e depois desligar o candeeiro tira-me daquela agradável sonolência em que as pálpebras pesam e o cérebro já está meio desligado. A outra é porque há livros que não são para ler de uma só vez.
É o caso de “Tal como és”, de Ryōkan, com tradução de Marta Morais a partir do japonês. Haiku é um dos meus géneros preferidos de poesia. Saborear estes pequenos poemas, frequentemente deliciosos, é relaxante e predispõe-me para uma noite tranquila. Veio substituir na minha mesa-de-cabeceira um outro, que muito aprecio, de poesia Tanka dos séculos IX-XI (uma forma de poesia essencialmente feminina, precursora do Haiku).
Um híbrido de poesia e conto é o livro de Aline Bei, “O peso do pássaro morto”. A escrita original desta autora brasileira é maravilhosa e tem a capacidade de evocar, com poucas palavras, imagens em que a dor é protagonista, sempre associada ao amor nas suas várias versões. Com uma sensibilidade tocante.
“Writing down the bones”, de Natalie Goldberg, é uma inspiração para escrever melhor. E também o oposto de um livro chato e absolutista sobre o acto da escrita. Gosto de ler um ou dois dos seus capítulos leves e bem-humorados, sobretudo ao fim-de-semana de manhã, depois de acordar. Fico com vontade de desatar a escrever.
Quanto aos livros de Virginia Woolf e Olga Tokarczuk, o título é o mesmo, “Viagens”, mas o conteúdo muito diferente. Enquanto a escritora inglesa descreve, em cartas e no seu diário, partes do que foi vendo nas suas viagens pela Europa, entrelaçadas com considerações sobre ela própria, os outros e o mundo, Olga Tokarczuk conta pequenas histórias – ficcionadas ou não, frequentemente estranhas, intercaladas com pequenos apontamentos – sobre pessoas em viagem, ou simplesmente a deslocarem-se de um ponto para outro; personagens com motivações várias, em épocas várias, um caldeirão humano onde cabe tudo, e sem ordem aparente. Em comum entre as duas escritoras, o facto de as viagens conduzirem à reflexão.
Invisíveis na fotografia mas presentes no smartphone que a tirou, dois outros livros que leio actualmente em formato de ebook. A obra de grande fôlego de Simon Sebag Montefiore “O mundo - Uma história da humanidade”, que degusto em doses homeopáticas e me tem vindo a mostrar que afinal não sei nada de História. E o recente livro de Carmen Posadas, escrito a meias com o seu irmão Gervasio, cujo título revelador é “Hoje caviar, amanhã sardinhas”. Num tom divertido, os irmãos uruguaios desfiam as memórias da sua vida nos vários locais para onde o pai, um diplomata, ia sendo enviado.
Viagens ao vivo e a cores, viagens através dos livros, viagens interiores. De uma maneira ou outra, mesmo recostada na cama ou no sofá, acabo por estar sempre a viajar.
Tenho comprado poucos livros em papel. Como a maior parte das pessoas amantes de leitura, prefiro os livros com folhas aos livros digitais, mas, por uma questão de logística e facilidade de transporte, quase todas as minhas aquisições têm sido e-books da Wook, da Kobo ou da Biblio.
Apesar de pensar que iria ter todo o tempo do mundo para me dedicar à leitura, às viagens, aos passeios pedonais, à descoberta de pequenos tesouros históricos e paisagísticos no meu país e a novas aprendizagens, acabei por verificar que o tempo disponível não é muito. Entre cuidar dos netos, a hidroginástica, as compras, os exercícios culinários e outras tarefas domésticas, etc. não sobra assim tanto tempo.
E ler na cama é, para mim, uma prática condenada à partida, porque adormeço com grande facilidade. Vou lendo meia dúzia de páginas por dia e espero que Setembro me traga as duas semanas de farniente, aquele ócio que guardo ciosamente para pôr em dia a escrita e as leituras.
O meu cunhado de Braga, que veio de visita, deixou-me dois presentes. Ambos se enquadram nas minhas preferências, de autor e escrita. “A Troca” de John Grisham é a continuação de “A Firma" volvidos quinze anos. Gabriel Garcia Márquez dispensa apresentações. “Vemo-nos em Agosto” é um excelente romance, fácil de ler e muito agradável. Ambos os livros são para ler, enquanto os outros são para ir lendo.
Hoje, estou esperançada de ganhar mais três ou quatro livrinhos de presente, mas, desconhecendo quais serão, pronunciar-me-ei sobre eles numa outra ocasião. Boas leituras.
Já o dissera na primeira série de "livros de cabeceira": este é-me "sítio de cabecear, assim de nunca trabalho. E quanto menos ando a ler mais os livros aqui apostos, alguns trazidos por mero fastio e depois aboletando-se, outros para rever só umas poucas páginas e depois esquecidos, mais aqueles vários que percorro em simultâneo, e uma ou outra escassa novidade". Ou seja, nenhum deles tem lugar cativo, alguns nem serão lidos, vieram para mera companhia, aguardando o regresso à prateleira devida.
É-me agora uma cabeceira solteira. Neste rumo, e com o passar do tempo, primeiro os livros ganharam o direito a pernoitar no leito, até dengosos a meu lado, plácidos pois nada ciumentos face às leituras alternadas (e distraídas, tantas vezes desamorosas) que lhes faço a desoras. E depois, um ou outro deles, tornados mais íntimos, arrogam-se mesmo a ali ficarem para matabicho e até "brunch", pois na manhãs de Verão nem os incomodo em arrumações, basta-me esticar lençóis e edredom. E se viesse a haver visita, companheira - sorri o mariola que em mim ainda habita, embora fenecido -, decerto seria bibliófila, não se atrapalharia.
Dorme comigo agora o "Faca...", a memória do atentado que Rushdie sofreu em Chautauqua, oferta do meu amigo Pedro. E me lembra quando evoquei os nossos que "compreendem" os terroristas islamistas, assim seguindo avessos à liberdade de expressão ao exigirem cerimónia - de "contextualização" e "multiculturalismo" feita -, que nada seja "ofensiva" das "crenças" alheias. Rushdie lembra alguns deles, os "democratas" - políticos, académicos, mas também escritores - que contra ele se indignaram, e que depois também desconsideraram os ataques aos caricaturistas franceses (e antes aos dinamarqueses, acrescento). Tal como se insurge contra os "correctistas" que querem a falsa pureza da "língua resgatada". Diz com alguma auto-ironia, diante do mais solidário ambiente que agora o acolheu após a convalescença: "Se a fortuna me tornou uma espécie de virtuosa Barbie, amante da liberdade, o Rushdie Liberdade de Expressão, abraçarei esse destino". E, denunciando a hipocrisia culturalista, culmina em grande "O respeito pela religião" tornou-se uma frase codificada que significa "medo da religião"." As religiões, tal como todas as outras ideias, merecem crítica, sátira e, sim, o nosso intimorato desrespeito". Mas o livro tem outros rumos, mostra o homem Rushdie, nas suas ambivalências, limites e vaidades. Ri-me quando - após criticar o fim da "privacidade" devido à mania das "redes sociais", - lembra ter colocado na véspera do atentado uma fotografia ("selfie"?)... na Instagram. E mais sorri, lá mais para a frente, com a nota da sua investida no Twitter. Afinal? E desilude-me quando simula um diálogo com o "A(sno)" que o atacou, páginas pouco vibrantes e demasiado autojustificativas, além das derivas "ensaísticas" sobre a religião, carregadas de um pobre evolucionismo oitocentista.
No monte, à espera, vem o "O Outro Nome", o I-II da septologia de Jon Fosse. A Ingrid, minha tão querida que eu não via há... 28 anos, ofereceu-mo durante o delicioso dia em que estivemos em Lisboa (e, tal como ela, quantos de nós - em tempos idos - não oferecemos Saramago a estrangeiros?, ufanos do nosso Nobel?). Já o provei, notei que é registo denso, monopolizador, incompatível com outras leituras simultâneas. Será em Agosto?, ou no mais soturno Inverno? Também aguarda, mas a fazer-me ansioso, o "No Cavalo de Pau com Sancho Pança", ensaio de Aquilino Ribeiro sobre Cervantes, que me foi dado pela Marta, oriundo da biblioteca do seu pai, o meu tão saudoso amigo Aventino Teixeira. Estou a acabar o "Histoire de la Province de Santa Cruz que nous nommons le Brésil", de Pero de Gândavo, autor louvado por Camões, o nosso primeiro livro sobre o Brasil (1576 - aqui em tradução francesa oitocentista), uma verdadeira pepita que nunca lera, uma atenta prenda da minha amiga Graça. E que decerto em breve será ululado pelos "reparadores da história", pois - enquanto descreve a magnífica natureza e as gentes lá alojadas - de modo bem despreocupado apresenta a boa vida dos colonos se dotados de mera meia-dúzia de escravos, quanto mais quando tendo centenas... Também por oferta, mas como se "institucional", chegou-me o "Monitoria de Políticas Públicas e Direitos Humanos em Países de Língua Oficial Portuguesa: uma Análise Comparada", que ainda aguarda o meu... sorriso descrente. E, ao invés, diante do meu sorriso crente na pilha mora o "A Trombeta do Anjo Vingador", um dos de Dalton Trevisan que comprei na última Feira do Livro. Tal como, e há pouco chegado, o "Derradeiro Suspiro Real", do nosso José Navarro de Andrade, um romance contrafactual (a República não foi...) que só descobri depois de há pouco lhe ter lido o "Terra Firme", do qual muito gostei.
Sou fraco leitor de revistas, é um suporte que nunca me agradou. Mas gosto de revistas antigas, legado dos meus pais... As literárias são uma verdadeira delícia - o tempo passado demonstra a recorrência das hipérboles, as loas aos livros "imperdíveis" já esquecidos, às grandes "revelações" entretando desvanecidas. Mas também trazem pérolas do passado, iluminações, reminiscências. Ali, já na outra mesa (como se com carimbo "visto"), de partida segue um suplemento da "Le Magazine Littéraire", o especial "Les années Apostrophes par Bernard Pivot", de 2015, simpática homenagem a Pivot que recuperei quando este morreu.
Em monólogo resmungão ressurgiu-me o tão sábio senhor Pangloss. E lembrei-me de há muito não (re)ler o "Cândido", de Voltaire. Preguiçoso estou, fui buscá-lo na versão portuguesa. E pude reviver esse precursor dos actuais turistas, algo intrigado com os nossos costumes locais: "Após o tremor de terra que destruíra três quartos de Lisboa, os sábios do país cogitaram em que o meio mais eficaz para prevenir a ruína total da cidade consistia em dar ao povo um rico auto-de-fé. Fora decidido pela Universidade de Coimbra que o espectáculo de várias pessoas queimadas a fogo lento, com grande cerimonial, era um seguro infalível para impedir a terra de tremer". E bem me rio com as suas espadeiradas, ainda que "cândidas", aos inquisidores e aos jesuítas, enquanto louva (sim!) o amor interracial - além de nos lembrar como se produzia a cana-de-açúcar que tanto adoça a vida. Pois, de facto, naquela sua correria (des)venturosa não fica pedra sobre pedra: "P: Mas então com que fim foi o mundo criado? R: Para nos enfurecer."
Uma (pequena) crónica por dia, ou um pouco mais, é como leio "A Bagagem do Viajante", antigos "dizeres de um fala-só" de José Saramago (o livro é de 1973), uns mais datados, outros bem menos: "não há dúvida que Portugal envelhece", concluiu ele há cinquenta anos após relatar o que o circunda, também já desagradado com os "flácidos" monumentos municipais, e notava seguirem já vetustas algumas expressões correntes, de tão pejorativas que soam. O naipe, mesmo se aqui e ali deixa perceber o que aí lhe vinha (como em "História do rei que fazia desertos"), muito mostra como se lhe transformou a escrita nas últimas décadas de vida.
Irritado (irritadíssimo, mesmo!) com umas disparatadas declarações sobre o passado português (publicitadas no "Público", claro, e que encontrei via Henrique Pereira dos Santos), retirei da estante e para aqui trouxe o belo "A Rota dos Escravos: Angola e a Rede do Comércio Negreiro", cujo texto fundamental é de Isabel Castro Henriques, o qual tem imensas (e apelativas) ilustrações. Entretanto ainda cá está o "Comme les Amours" de Javier Marías, mas engasguei-me na sua leitura, é provável que não a acabe. E, marinando na mesa, ali aportado em dia de maior negrume, a colecção "Ficções do Interlúdio" de Fernando Pessoa. Vou (re)lendo, mas com muito cuidado. Pois não me convém exagerar nisso do "O porto que sonho é sombrio e pálido..." Pois para pior já (me) basta assim.
Confesso: faço aqui uma pequena batota. A fotografia foi tirada em Fevereiro, a minha mesa de cabeceira mudou um pouco de então para cá. Não por ter menos livros, mas por acumular alguns outros em vez de uns quantos destes.
É verdade: costumo ter vários em lista de espera. Não mais de dez, não menos de cinco. Assim empilhados, junto da cama. Sempre de géneros diferentes. Vou tirando o que mais me apetece - às vezes por impulso, às vezes por intenção deliberada. O que está por cima é aquele que me acompanha com maior regularidade. Será para ler até ao fim no mais curto prazo possível. E logo dá lugar a outro.
Assim aconteceu com Sagarana - edição já antiga, adquirida na Grande Livraria Santiago, outrora igreja, na bela vila de Óbidos. Senti alguma relutância inicial em mergulhar na densa prosa de João Guimarães Rosa, semeada de regionalismos e neologismos. Comparo-o nisto ao nosso Aquilino Ribeiro, de quem era costume dizer-se que só podia ser lido com um dicionário à mão. Desconfiança sem fundamento: é um livro fascinante, que nos transporta ao Brasil primitivo, rural, em que o ser humano parece inseparável da natureza em estado bruto, confundindo-se com ela.
O português recria-se pela pena inconfundível do autor de Grande Sertão: Veredas. Com ele viajamos aos confins de Minas Gerais, sua região natal, conciliando uma espantosa criatividade lexical com a ambiência juvenil das narrativas de aventuras.
O Gangue da Chave-Inglesa - trepidante romance ecologista norte-americano, publicado muito antes de o ambientalismo estar na moda - também já abandonou a minha mesa de cabeceira. Com nota muito positiva. Tal como já não consta O Outro Lado do Paraíso, romance de estreia de Scott Fitzgerald, publicado em 1920, quando o futuro autor de O Grande Gatsby pouco mais era do que um adolescente - e reflecte isso, na sua fragilidade que a escrita elegante mal disfarça. Outra obra entretanto removida foi Uma Casa Para Mr. Biswas, copiosa narrativa ficcional de V. S. Naipaul. Mais quantidade (de páginas) do que qualidade: não o considerei obra-prima.
Os restantes permanecem in situ. Alguns haviam sido abandonados a meio, por motivos diversos: aconteceu-me com as obras de Bellow e Canetti. Outros, nem os abri ainda. Chegará o seu tempo.
Tudo isto faz parte dos meus rituais de leitura. E dos pequenos prazeres quotidianos, em que os livros são marco permanente. Os anos passam, mas certas coisas nunca mudam.
Em rigor, o Casate y Sé Sumisa ainda não está na minha mesa de cabeceira e, se tudo correr bem, não ficará por ali muito tempo. O meu objetivo é, conto com a vossa discrição, comprá-lo o mais depressa possível e colocá-lo lá como quem não quer a coisa. Depois é só esperar que a curiosidade feminina faça a sua parte. Se tudo correr bem, em menos de duas horas o livro terá transitado para as mão da belíssima proprietária da mesa de cabeceira situada do lado de lá da cama. A partir daí, e com a ajuda da providência divina e da editorial Novo Início, ligada ao Arcebispado de Granada, os ensinamentos ali recolhidos começarão a produzir efeitos. Bem sei que são 16 euros de investimento e a vida não está para loucuras. Mas o livro, originalmente publicado em Itália por Constanza Miriano e ali recordista de vendas, contém de acordo com os editores a fórmula, dirigida exclusivamente ao elemento feminino do casal, da obediência leal e generosa: a submissão. Uma pechincha, portanto. Já antecipando o sucesso desta iniciativa, colocarei também na minha mesa de cabeceira, em jeito de reforço da mensagem, o nº 167 (Janeiro de 1948) da saudosa revista Menina e Moça. Mais uma vez, conto com a curiosidade feminina como cúmplice. Se assim for, a belíssima proprietária da mesa de cabeceira situada do lado de lá da cama estará em breve a ler passagens tão inspiradoras como esta:
(...) Por conseguinte, a mulher ideal deverá ser boa dona de casa mas sem massar os outros com os acontecimentos caseiros, compreensiva dos gostos e necessidades alheios, afectuosa para a família do marido, pontual, discreta, económica, sincera e leal, com bom génio, dócil, séria, pouco tagarela e sem usar baton.
É certo que os tempos são outros. Será caso de aligeirar um pouco a nota e creio que a utilização do baton poderá admitir-se em certas e restritas ocasiões. Mas, em tudo o mais, estaremos de acordo que a mensagem tem ainda uma espantosa actualidade. Se tudo correr bem, a minha vida mudará radicalmente. É que, como dizia Brecht (este já tenho à cabeceira) em a Apologia da Dialéctica, a continuação da opressão depende de nós. E eu, pela minha parte, conto com o sucesso deste plano genial para mudar as coisas cá por casa. Agora, se não se importam, vou indo. Está na hora de fazer uma máquina de roupa. Branca.