Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Expurgar Agatha Christie

jpt, 27.03.23

agatha.jpg

Agora todas as semanas segue mais um "expurgo", "protector" das "sensibilidades", "racializadas" ou quejandas. O mais recente  é com os livros de Agatha Christie, toca a retirar-lhes termos que possam ofender alguns trastes - é a instrução dada pela sua editora, atenta aos temíveis efeitos actuais das agressões cometidas pelos pressupostos de época de Miss Marple, Hercule Poirot e restantes personagens daquele pequeno emaranhado pós-vitoriano, tão pequeno-doméstico de facto.

Tendemos a confundir estas trapalhadas - o outro dia foi notícia que uns rústicos americanos, lá de uma aldeia de fundamentalistas cristãos, despediram a directora de escola porque havia mostrado uma obra-prima renascentista aos petizes, ofendendo-lhes as progenituras devido ao pequeno pirilau aposto por Michelangelo ao "David". Gente do mesmo universo que volta e meia é notícia por querer impor o ensino do criacionismo nas suas escolas locais - efeitos directos da peculiar administração escolar dos EUA e consequências do molde de secularismo (comunitarismo) desbragado que vigora naquele país. E que por cá os esquerdistas querem assumir - a maioria dos quais sem mesmo perceber que é disso que falam, tamanha a indigência intelectual que os caracteriza. 

Mas estas “depurações” literárias que se vão acumulando têm outra dimensão… Não provêm de minorias social e geograficamente excêntricas. Vêm embrulhadas no capital “cultural”/“académico” dos proponentes e defensores e estão a penetrar nas administrações dos grupos económicos editoriais. Tornam-se “elite”, “norma”. E há imbecis à nossa volta que os defendem…

O Cancelamento dos "Cinco" de Enid Blyton

jpt, 20.03.23

enid_blyton2_g.jpg

Finalmente começaram a ser retirados de circulação os exemplares da colecção "As Aventuras dos Cinco", literatura infanto-juvenil de Enid Blyton, agora - tão tardiamente - considerada inapropriada.
 
Apesar da popularidade das obras e da tendência de se valorizar aquilo que aproxima a juventude da leitura, não deixo de me congratular com este cancelamento de "Os Cinco". Pois trata-se de um insidioso proselitismo do modo de estar lesbiano, subrepticiamente inculcado às petizas através daquela Zé, dita "maria-rapaz", ainda para mais em despropositadas derivas inter-raciais, por via das intervenções da sua peculiar amiga "ciganita", tão a ela similar, sósia mesmo...

Polémicas literatas

jpt, 15.03.23

eça.jpg

Não sou muito dado a livros, quase nada às novidades e ainda menos às coisas e causas da literatura portuguesa. E vivi 20 anos fora. Por tudo isto nada percebo destas polémicas literárias, trâmites que associava a um "Chiado" bem recuado, lido no liceu da vida - e nessa candura bem me surpreendera há poucos meses ao saber que o bom do António Cabrita, vindo de Maputo "a banhos", acabara rojado à calçada portuguesa em plena Av. de Roma ao procurar ele (no seu intrínseco civismo) apartar uma contenda entre poetas e críticos algo excêntricos aos escaparates. Bisonho episódio que me alertara para que nesta era de podcasts e tik toks ainda há, a sul do Trancão, quem se exalte em torno de livros... Mas tudo isso se me escapa, pois a última polémica livresca de que me lembro foi sobre este "A Tragédia da Rua das Flores", então confrontando-se os veementes avessos à publicação do calhamaço rascunho e os acalorados defensores da sua imprescindibilidade, tudo isso quando o meu pai teria mais ou menos a minha idade de agora... (e quem o lerá hoje em dia?).
 
Vem-me isto ao teclado diante do actual debate entre os autores, e respectivos amigos e adeptos, das duas recentes biografias de Pessoa, uma dita de pendor "académico", outras vocacionada para ser "popular". A surpresa para mim é tetra (que não tétrica...): 1) que os autores se zanguem em público, e de modo tão desabrido, tanto que até dá para demissões nos "jornais de referência"; 2) algumas das matérias que provocam dissenso - entre as quais avulta a relevante temática sobre se Pessoa frequentaria prostíbulos femininos, era dado aos "prazeres helénicos" ou teria morrido virgem. Isto para além de ser tópico de debate o tamanho do seu membro viril; 3) que tanta gente compre (e até mesmo leia) biografias, já 12 mil da "académica" e a "popular" para lá caminhará!... - mas isso é coisa do meu gosto, avesso que vou a tal molde, para o qual não tenho paciência; 4) o tamanho das tais muito compradas biografias, ao que consta cartapácios de 1200 páginas (a "académica") e quase 1000 (a "popular")! Tanto há para dizer... Enfim, nada tenho contra quem escreve, quem lê, nem mesmo contra quem discute o que escreveu ou leu. Apenas me surpreendo.
 
Já agora, e para que não me digam obscurantista, quero dizer que também leio, e até livros grandes. Andei agora a ler alguns sobre escravatura em África (e não só). "Porquê?", filial pergunta, "Apetece-me", paternal resposta... E também são grandes, afianço. Um deles é sobre a escravatura na África oriental - com apenas laivos sobre Moçambique, dado o pendor francófono dos autores: Henri Médard et al, "Traites et Esclavages en Afrique Orientale et dans l’Océan Indien", 2016. E também tem as tais dimensões pelos vistos apropriadas - 900 e tal páginas.
 
Num capítulo do organizador-mor, Henri Médard, escreve ele a propósito do tão na moda "racismo" (é minha a atabalhoada tradução do francês): "A racialização revela-se como um instrumento de dominação eficaz e popular, muito para além do Ocidente. Se o seu absurdo é universal, cada racismo tem as suas especificidades (mágicas, bíblicas, "científicas"...), as suas originalidades, as suas trajectórias próprias (em particular à luz das migrações e das lutas políticas contemporâneas). Essas evoluções africanas são abundantes... As distinções físicas [actuantes na escravização e no tráfico] são demasiado cómodas para que as lógicas sociais das dominações não as utilizem sempre que surge a oportunidade para tal".
 
Ou seja, bastaria este breve parágrafo para atirar para o lixo muito da tralha demagógica ("identitarista") que anda aí à solta, em vestes mais ou menos "decoloniais". E agora imagine-se se se ler as tais outras 900 e tal páginas. Mais alguns outros livros, vários deles também de vigorosa lombada. Em suma, e é a minha mera opinião, mais vale isto do que andar a ler (ou a comprar) sobre a pila do Pessoa.

Um Livro de Areia

João Sousa, 08.03.23

Homem.jpg

Há semanas, um alfarrabista juntou ao seu catálogo este livro: 307 páginas, lê-se na descrição técnica. Pouco mais de trezentas páginas, pelos vistos, bastaram para Hans Hass escrever um tratado científico sobre os mistérios do comportamento do homem. Já se ele tentasse o mesmo para a mulher, "Mulher: os mistérios do seu comportamento", só o conseguiria com uma espécie de livro de areia borgesiano: um enigma com páginas infinitas, onde nenhuma é a primeira e nenhuma é a última, e nunca se consegue encontrar duas vezes a mesma página.

Z-Library e o acesso livre via "bibliotecas-sombra"

jpt, 03.03.23

z-l.jpeg

No passado 4 de Novembro aqui me insurgi face à investida da polícia internacional contra a Z-Library, obrigando a organização a mergulhar na clandestinidade (a via TOR, entenda-se). É agora com júbilo que partilho a informação de que a Z-Library já está de novo disponível através dos portões ("browsers") comuns. Basta pesquisar e entrar... E encontrar um acervo gigantesco em acesso livre: 22, 5 milhões de livros, 80 e tal milhões de artigos. Neste entretanto disseminou-se o acesso ao "Arquivo de Anna", um precioso e muitíssimo funcional conglomerado das chamadas "bibliotecas-sombra" (a dita Z-Library, a Genesis, a Sci-Hub).
 
É evidente que este assunto convoca várias questões, várias das quais não são de fácil resolução. No fundo é uma situação que algo replica o rombo acontecido há décadas no mundo da edição musical (para facilitar a memória aludo ao caso Napster). Mas neste estralhaçar dos verdadeiros oligopólios editoriais, ficam pendentes (ou arrasadas) temáticas como as dos direitos autorais/de propriedade intelectual, da viabilidade das editoras, e a da sua pluralidade, a da indistinção entre a criação literária e o trabalho de índole científico-académica, o aplainar das diferenças entre trabalhos financiados a priori (na sua maioria estes científicos, promovidos por assalariados no âmbito das suas obrigações laborais) e os emanados de perspectivas remuneratórias captadas a posteriori, em particular literários ou os de investigadores franco-atiradores ("liberais"). Mas há uma temática sobre a qual não tenho dúvidas, a da pertinência do acesso livre aos arquivos do saber, o gigantesco acervo da literatura académico-científica produzida. E que está resguardado, sob preços altíssimos, até especulativos, de forma a obrigar as instituições reprodutoras do saber a enormes espórtulos para que possam servir os seus profissionais investigadores e docentes e seus alunos. E nisso, e por mim também falo, penalizando aqueles que fazem, por gosto ou necessidade, investigação independente, sem cobertura institucional - e nisso sem senha de acesso às tais caríssimas subscrições do acesso ao... que já foi feito e remunerado.
 
Sobre aquilo que é contemporâneo, agora produzido, não tenho qualquer dúvida, muito prefiro as plataformas de adesão individual, nas quais cada um pode optar por colocar o que entende divulgar da sua reflexão e trabalho: eu estou na Academia.edu e na Research Gate, nas quais coloquei alguns laivos (ou resquícios) do meu modesto percurso. Mas em relação ao legado societal, ao acervo de produção científica (e, vá lá, "humanística"), não tenho quaisquer dúvidas - ele deve ser "liberalizado", no sentido de libertado. Entenda-se, ficar sob acesso aberto ao público.
 
Dou o meu exemplo: há uns anos intentei um infausto projecto, o de uma tese de doutoramento em Antropologia. Pedi uma bolsa para tal - o que me possibilitaria financiar as propinas que a instituição pública cobra para esse processo - mas não me foi possível obtê-la (resumi o caso aqui). Face a isso avancei, quixotesco, na realização individual (ambicionando uma hipotética "candidatura externa" após a conclusão do texto). Trabalhei sobre Moçambique - país sobre o qual tenho em casa uma extensa bibliografia. E com o olhar de antropólogo - disciplina sobre a qual tenho uma decente "biblioteca". E tenho acesso gratuito, como cidadão, às bibliotecas institucionais do país, que estão providas de recursos suficientes. Mas não à rede das bibliotecas digitais institucionais, caríssimas - e espartilhada, de modo a obrigar a várias subscrições, em evidentes manobras especulativas. Então voz companheira chamou-me atenção (em 2016) para as bibliotecas-sombra, em particular para esta Z-Library. E, de facto, um novo mundo - um novo universo, melhor dizendo - se me abriu, na apreensão de um imenso manancial de saber, uma miríade de textos de que nem ouvira falar. E estou eu nos meus 50 anos, imagine-se o impacto que estas facilidades poderão ter nos mais jovens...
 
Por isto tudo, Viva o Acesso Livre. Viva a Z-Library, e as outras congéneres...
 

Os revisionistas da literatura

jpt, 01.03.23

anita.jpeg

Está na berra a aparente patetice (que será, mais do que tudo, uma estratégia comercial muito mariola) de "expurgar" os livros infantis de Roald Dahl dos termos malévolos (entendidos como "discriminatórios"). Esta deriva nem sequer é original - já há anos muitos apareciam a querer mudar os textos de Mark Twain, exactamente pelas mesmas razões... E não só. E isto vai tanto assim, até por cá, que mesmo o Prof. Louçã - antigo coordenador do correctismo político nacional - veio a terreiro dizer que assim também é demais...
 
Esta fúria purificadora fez-me lembrar coisas de há duas décadas, na alvorada dos blogs. Eu já vivia no estrangeiro há bastantes anos, e ia desconhecendo o país. Acima de tudo ia cândido quanto às pantominas reinantes e ignaro das nascentes - e bem pujantes, que eram ainda os inícios do bloco de esquerda -, estas que tanto floriram no bloguismo.
 
Ora uma das primeiras febres do tal "correctismo" que encontrei, até surpreendendo-me, foi o fel vertido contra a "Anita" (colecção infantil que agora é publicada sob o nome original "Martine"), essa que não só lera quando petiz como me preparava para entregar à minha filha, então com 2/3 anos. Para aquela pobre gente a "Anita" era um poderoso instrumento de inculcação do poder machista e outras atrozes malevolências.
 
Vinte anos depois, continuo na minha. Este "correctismo" pode parecer uma mera patetice. Mas é uma vilania, ela sim perversa, no afã de encontrar o demo na literatura infantil ou de tentar arrancá-lo da literatura adulta (local onde ele deve estar presente, e de todas as maneiras possíveis e imagináveis). Mas os "correctistas" ("revisionistas", melhor dizendo) andam por aí...
 
No fundo, ver a "Anita" como alfobre de oprimidas de género é o mesmo que considerar a Miss Marple como cântico à prescrição da virgindade ou Poirot como a malvada ridicularização da emasculação. Ou mesmo os "Cinco" de Enid Blyton como fábrica de lesbianismo.
 
Enfim, naquela época botei um postal, crónica até assustada após ter oferecido à Carolina o seu primeiro livro da "Anita" - ela depois não veio a aderir a esta colecção, preferindo (e que me perdoe a indiscrição) desde muito cedo tornar-se visualizadora/leitora de Astérix, Calvin & Hobbes e Mafalda. Reproduzo-o agora, acima de tudo com saudades de poder oferecer a "Anita" à minha filha:
 
 
Este Natal ofereci à minha mais-que-tudo a sua primeira Anita, "No Jardim Zoológico", ainda que ela mal fale (disse hoje "abião"). Primeiro (egoísta) pus-me a ler, e a reviver as maravilhosas recordações daquelas cores, das ilustrações, e de quem me lia tudo aquilo, me encantava (e me dava sumo de groselha). Segundo (papá) deliciei-me a mostrar todos os animais do Zoo, "o Gato" (é leão, mas há gato em casa), "a Girafa", "o Urso", "a Zebra", e os outros, e a animar todos eles com os bonecos correspondentes que por cá abundam - e a miúda a apontar um homem gordo diante de uma jaula, e a gritar feliz "papá, papá!!" e o meu ego, enfim, o meu ego coitado... Terceiro (motorista) pus o carro na revisão, para irmos rápido ao Kruger avivar os bichos todos.
 
Mas, passo atrás, volto ao Natal. Ao comprar-lhe o livro trouxe outro, o extraordinário "Anita no Circo", para ofertar à filha de três anos de um casal aqui expatriado que viria partilhar a ceia. Chegada a hora dos presentes e os pais da miúda um bocado engasgados, até desagradados "ah, nunca lemos isso", e a mãe quasi entre-dentes a dizer que já os seus pais achavam aquilo muito reaccionário (e isto há mais de trinta anos), e portanto nunca tal tinha entrado em sua casa. E eu meio-aflito, mais valia ter estado quieto, que não me quero meter na educação de cria alheia. Enfim, foram gentis e à saída lá levaram a peçonha sexista e fascista para casa, não sei que destino lhe deram. 
 
"Pronto, paciência, o que vale é a intenção", ecoava-me a mãe da minha, a acalmar-me os resmungos enquanto levantávamos a mesa da janta, eu para ali num "ele há cada um, é só malucos, que paranóias...". Realmente que triste gente é esta que consegue desgostar da Anita por causa de uns pinduricalhos que lhes meteram na cabeça.
 
Hoje estou a ver blogs, alguns que nem conhecia, e dou de caras com quem deteste a Anita, gente hirsuta a protestar com os tais estereótipos, e ainda com um desbragado a defender a dita, com uma acidez que corrói a própria Anita. Não há dúvida: "estes romanos são loucos". Como se existissem coisas para miúdos, e das quais eles gostassem, que não tivessem, fossem, estereótipos. E como se valesse a pena tais protestos com estes feminismos serôdios, cegos ao ridículo e eles-próprios os maiores reprodutores de clichés, por puro fastio, diga-se.
 
Lembro-me a chatear os meus (óptimos) pais, a querer pistolas. E eles fiéis ao "não dar armas às crianças". E a desistirem, talvez já fartos da minha insistência, talvez por terem percebido que combatia eu com armas emprestadas e a melancolia que isso me causava. A alegria que eu tive com a minha pistola de fulminantes! Ah, e a minha bisnaga vira-bicos, ainda hoje me aviva lembrá-la. Tais experiências seguindo as luminárias ditas de "esquerda" ter-me-iam tornado um assassino em série ou, pelo menos, um militarista exarcebado. Mas não, apenas me tornaram cansável face a estas ininteligências disfarçadas de hermeneutas. 
 
[E falta-me o tempo para aqui lembrar todas as maravilhas da Enid Blyton, Salgari, Os Pequenos Vagabundos, Verne, Karl May, etcs., já para não falar nesse terrível "brincar aos médicos" - mas que gente infeliz...]
 
*Adenda: os blogs que estavam ligados neste texto (furibundos anti-Anita, furibundos pró-Anita) desapareceram, pelo que retirei as agora inúteis ligações.

O Podcast Mudo (4): o Bisneto de Marx

jpt, 08.02.23

Coracao-da-Europa.jpg

Foi Flávio (belo nome) Arriano que nos legou os dizeres do seu mestre, o estóico Epicteto - pois este nada terá sido dado aos afazeres da escrita (académica, ainda não se dizia naquela época). Entre esses a crua constatação de que "Não são as próprias coisas, mas as opiniões acerca das coisas o que atormenta os homens", tão impressiva que, 17 séculos depois, Sterne a elevou a epígrafe quando decidiu inventar o romance, ou quase... Cada um interpretará como assim o quiser mas fico-me eu a pensar que o antepassado militava na inquietude intelectual, a da crença de que tudo isto que nos ocorre na vida seria - se bem pensado - algo harmónico, por isso previsível pois compreensível e assim até justo. Disso retirando uma enérgica, como se heróica, placidez - o tal estoicismo - face ao fado, próprio e alheio, fazendo por controlar o controlável e resignada diante do imenso incontrolável. E que nessa inteligência, apesar de tamanhas agruras e amarguras que sempre brotam, o insuportável não é o destino mas sim o desatino, não a dor inadiável e inultrapassável mas sim as meras atoardas que os vizinhos vão perorando.

Lembro-me agora disso, um ano já que vai passando de guerra na Ucrânia. Do sobressalto (também cívico) que se sofreu. E muito das tais atoardas que atormentam, travestidas de pensamento "livre" e "alternativo", tão bastantes então foram elas. Um pouco das austrais - que me são (e sempre serão, sei-o) também vizinhas: na Ilha de Moçambique o escritor Agualusa logo se aprestou a namorar o belo mercado da esquerda brasileira regurgitando a propaganda russa na imprensa daquele país, ao nela clamar o nazismo dos ucranianos. Entretanto, um pouco mais a Sul inúmeros intelectuais erguiam-se contra os "ocidentais" (entenda-se, brancos), pois viciosos no nosso racismo por nos preocuparmos com uma guerra na Europa enquanto nos calamos com as desgraças africanas - curiosas argumentações, irritei-me eu, vindas de opinadores que desde há décadas praticam, por exemplo, um sepulcral silêncio sobre os milhões de sepulcros congoleses, ali quase vizinhos, e que mesmo haviam sofrido tão recentes anos de pasmo mudo face à "insurgência" no Norte do próprio país.

Mas ainda mais me atormentei com os dislates por cá, inúmeros. Entre esses tantos recordo, quais marcos topográficos, o da "estrela mediática" e deputada bloquista Mortágua defendendo - ela sim - a argumentação nazi na sua legitimação do "espaço vital" russo, o do coordenador da biblioteca Ephemera e renomado militante do PSD Pacheco Pereira, arvorado em relativista no amornar do imperialismo russo e apoucando a nossa adesão simpática ao povo agredido, pois também ele entoando o trinado do nosso racismo omnipresente. E os quotidianos dos nossos generais, feitos comentadores televisivos, afinal tão avessos à NATO que furiosos russófilos. Entretanto o nosso PCP desdobrou-se em dichotes, culminados com a publicitação da "notável solução que a União Soviética encontrou para a questão das nacionalidades e o respeito pelos povos e suas culturas", inacreditável e inaceitável declaração em pleno XXI mas afinal recebida não com a ira devida mas já como se apenas despiciendo murmúrio moribundo. Mas talvez o mais sonante foi o da junção de 20 personalidades que, ancoradas nos seus prestígios biográficos e intelectuais - e após terem exarado incessantes diagnósticos culpabilizadores dos EUA e das restantes exploratórias democracias ocidentais -, vieram anunciar-se como perseguidos e até criminalizáveis devido ao seu pensamento livre, muito mais capaz pois complexificador e avesso às campanhas propagandísticas do "pensamento oficial", único e totalitário, que disseram vigente. A altivez intelectual, tricotada ao anti-americanismo mais básico - próprio dos vários tipos de crença comunista congregados (da mais ortodoxa até à do "brigadismo" do terrorismo urbano, passando pelo dito "pós-marxismo" "abissal") - nessa última "carta aberta" foi então um "must" das tais "opiniões" que "atormentam os homens". 

Logo então a reclamação da tal "complexidade" do pensamento próprio, enfrentando as "campanhas propagandísticas" do "pensamento único" capitalista, feita por gente que presume serem as suas biografias comprovativos da sua justeza intelectual, lembrou-me este livrinho, que herdei das estantes paternas: "No Coração da Europa... "Primavera" ou "Outono" de Praga?", editado pela Agência de Imprensa Órbis em 1979, e que terá a curiosidade de ter sido traduzido por José Saramago - não posso saber se por iniciativa própria se por encomenda editorial e/ou partidária... O seu autor é Robert-Jean Longuet (1901-1987), um bisneto de Marx, jurista e jornalista. O qual teve um rumo ideológico algo heterodoxo, de tendência socialista, passando por patriotismo gaulista durante a II Guerra Mundial e jornalismo em periódicos comunistas, para além de uma rica biografia, da qual destaco o seu pioneirismo anticolonialista, com denúncias ao racismo subjacente nas colónias francesas, tendo sido fundador da relevante revista Maghreb e autor de um punhado de livros. Deixo estes detalhes para realçar não aparentar ele ter sido um "ortodoxo" comunista nem um "funcionário partidário" ou mero fiel "intelectual orgânico" ao longo de toda a sua vida. E de ser credor de respeito intelectual - para os mais distraídos: nos anos 1920s não abundavam europeus activos anticolonialistas...!

Dito isto, este seu "No Coração da Europa..." é uma obra exemplar, de tão demonstrativa é de um olhar "militante" e dito "analítico". Resulta de uma longa reportagem que Longuet fez na Checoslováquia em 1972, quatro anos após a invasão soviética que tanto brado deu. E que o autor apenas decidiu publicar em 1979 - recordo que já depois dos Acordos de Helsínquia (1975) e, mais significativamente ainda, já acontecida a Carta 77, recomeço simbólico do movimento democratizador checoslovaco, pontificado por Vaclav Havel.  Longuet fizera antes a tal reportagem, com uma profusão de entrevistas a membros do aparelho de Estado, do partido comunista e "operários e camponeses". Disso resultou este livro, totalmente laudatório do regime comunista de Praga, anunciando os seus sucessos, sublinhando as suas virtudes, antevendo a sua ainda maior ascensão futura. E a tudo associando um veemente vitupério ao boicote e intrusão dos países ocidentais, comandados pelos americanos, que teriam causado os problemas de 1968, o tal para ele "Outono de Praga". E Longuet justificou a publicação - 7 anos após a conclusão do texto, 11 anos após a invasão de Praga - devido à necessidade de dar a conhecer a sua "análise serena, objectiva e mais profunda das causas" para "restabelecer os factos e dar informações objectivas" sobre os "progressos constantes desde 1970, na Checoslováquia, em todos os domínios" (11), tudo isso permitido pelo seu pensamento , dito livre, complexificador, ultrapassando a verdadeira censura hostil à Checoslováquia, dominante no "mundo imperialista", tarefa essa tão elogiada no prefácio de Jeannette Thorez-Vermeersch, viúva do antigo secretário-geral do PC francês, esta tão ciente seguia do desagregrado estado desse mundo e do florir socialista, tão bem capturado pela análise do autor.

(Re)Leio este "pensamento livre", "complexificador", indagador das verdadeiras "causas dos fenómenos", avesso ao "discurso único", "dominante" no "mundo capitalista" (esse que agora se diz "ocidental"), invectivando as democracias por todos os males e mentiras e prenunciando um "óbvio" rumo histórico.  E como sei da história desde 1979 não deixo de sorrir diante de tamanha basófia intelectual, tanta que já nem atormenta. Tal e qual, sem tirar nem pôr, a destes tipos de agora. Enfim, que belo legado me foi este livrinho, a desartormentar-me diante da vacuidade alheia, a destes Longuets lusos. E esse é bom passo, ainda que paradoxal, no rumo do estoicismo.

Os melhores livros do meu ano (3)

Pedro Correia, 05.02.23

livros3.jpg


Já vos confessei noutros momentos: sou cada vez mais adepto de releituras. Tenho-o feito com proveito e gosto. Quando o livro é mesmo bom, abre-nos novas perspectivas quando mergulhamos nele. À segunda ou à terceira, já nos interessa menos a trama e estamos mais atentos a certos aspectos da construção frásica, da linguagem ou da crítica social ali contidos. Aconteceu-me, noutros anos, com vários romances de Eça - como Os Maias ou A Cidade e as Serras. Enquanto me resta um só dos seus livros por desvendar: A Ilustre Casa de Ramires. Ainda não aconteceu em 2022.

Reservo às releituras o terceiro e último bloco de dez títulos que funciona como súmula dos 88 que pude ler no ano passado. Em boa verdade, nenhum me decepcionou: gostei muito dos livros que já me haviam atraído, achei insólitos ou desinteressantes os que já me haviam suscitado reservas. Mas nunca senti que estava a perder o tempo. Isso é o que mais importa.

Partilho esta lista convosco: são seis romances ou novelas de autores portugueses, dois romances estrangeiros, um volume de crónicas e outro de contos. Por ordem alfabética, mantendo o critério assumido aqui e aqui.

 

................................................................

 

A PAZ DOMÉSTICA, de Teresa Veiga (1999). Este curto romance é um dos meus preferidos entre os que se foram publicando em Portugal no último quarto de século. Primeira - e bem-sucedida - incursão no género de uma das nossas mais enigmáticas escritoras, que nunca dá entrevistas e raras vezes é vista em eventos sociais. Contista por vocação, nota-se esta característica na economia de meios do romance, valorizando-o. Retrato de uma mulher ao longo de algumas décadas - que é também, de algum modo, o retrato do País.

 

ALEXANDRA ALPHA, de José Cardoso Pires (1987). Não é bem uma releitura. Explico já: este é um livro que nos dá luta. Só em 2022, à terceira tentativa, consegui lê-lo até ao fim. Da primeira, há vários anos, pareceu-me pastoso e aborrecido; da segunda, mais recente, perdi-me a meio daquela intriga e troquei-o por outro, mais estimulante. Agora está concluído. Romance com fragmentos de sátira à intelectualidade alfacinha dos anos 80, aliás com figuras facilmente identificáveis, mas longe de ser o melhor de Cardoso Pires.

 

ALVES & C.ª, de Eça de Queiroz (1925). Uma das obras que permaneceram um quarto de século guardadas em estado virginal na arca do escritor, quase tão célebre como a de Fernando Pessoa. Novela de atmosfera lisboeta, esboçando nesta prosa ainda de juventude a demolidora crítica à burguesia da capital, que a geração de Eça considerava a classe social mais decadente do País. O escritor guardou o texto sem o rever, mas o essencial do seu estilo mantém-se neste retrato irónico de um marido enganado mas complacente.

 

CONTOS COMPLETOS, de Fernando Pessoa (2012). O poeta de Mensagem era um escritor compulsivo: chegava a escrever em bilhetes de eléctrico. Quase autor póstumo, com apenas um livro publicado em vida. Tantos anos depois, o espólio pessoano ainda produz novidades. Como este livrinho, que recolheu a sua esparsa prosa de ficção, inédita ou dispersa por publicações há muito falecidas. Desperta curiosidade, mas nada tem de empolgante. Só um dos contos, "O Banqueiro Anarquista",  justifica leitura mais atenta.

 

ECLIPSE DO SOL, de Arthur Koestler (1941). Este romance foi muito divulgado em Portugal com outro título: O Zero e o Infinito. Corajosa denúncia do estalinismo por parte deste autor, que conheceu por dentro o pesadelo totalitário e teve forte influência nas obras similares de George Orwell. Esta versão portuguesa decorre do original alemão, que durante muito tempo se imaginou perdido, e não do exemplar inglês, base da tradução anterior. O novo título faz sentido. A denúncia mantém-se vigorosa. E actual como nunca.

 

O ANJHO ANCORADO, de José Cardoso Pires (1958). Trinta anos antes de Alexandra Alpha, Cardoso Pires escreveu esta novela numa toada quase musical, em sagaz olhar sobre a atmosfera social de um país enclausurado à luz do sol. João, empresário a caminho da meia idade, e Guida, jovem professora recém-saída da universidade, encontram-se e desencontram-se numa tarde de fim-de-semana à beira-mar entre gente ignota e rude que os observa à distância. Inacreditável, este livro nunca ter gerado um filme.

 

O HOMEM QUE ERA QUINTA-FEIRA, de G. K. Chesterton (1908). Espécie de antepassado das novelas de espionagem, ou de paródia antecipada às ditas, quando o anarquismo estava em voga naqueles anos que precederam a I Guerra Mundial. Chesterton aborda com humor o mesmo tema a que Joseph Conrad deu tratamento sério no romance O Agente Secreto, publicado em 1907: impossível não ver relação entre as duas obras. No confronto entre ambas, há quem prefira esta sátira ligeira e muito divertida: é o meu caso.

 

REVOLUCIONÁRIOS QUE EU CONHECI, de Vera Lagoa (1977). No PREC, em 1975, produziu-se muita literatura panfletária, para consumo imediato, alimentando o confronto ideológico travado neste país que alguns queriam "em marcha acelerada para o socialismo". Na facção oposta avultava Vera Lagoa, recentemente recordada em Três Mulheres. A série da RTP levou-me a reler este livro, que reúne demolidoras crónicas jornalísticas. Com trechos divertidos, outros injustos. Era um sinal daqueles tempos.

 

SIGNO SINAL, de Vergílio Ferreira (1979). Um dos romances menos conhecidos do autor de Aparição, que aqui faz uma espécie de autópsia do processo revolucionário português, centrado numa aldeia devastada por um terramoto. A cáustica sátira política surge aqui a traço grosso, envolta numa linguagem desbragada raras vezes usada por Vergílio Ferreira - mas que faz algum sentido por caracterizar aquela época de todas as ilusões, povoada por uma vasta galeria de vira-casacas e oportunistas de todos os matizes.

 

UMA ABELHA NA CHUVA, de Carlos de Oliveira (1953). Talvez o melhor romance daquela escola literária que entre nós se convencionou chamar "neo-realista". Numa linguagem depurada e límpida, raras vezes usada por outros autores da mesma corrente estilística, e sem os chavões da praxe que transformavam personagens em caricaturas. Neste drama aldeão há gente concreta e paixões atávicas que se sobrepõem a qualquer cartilha ideológica. Inspirou o filme homónimo de Fernando Lopes, que merece ser revisto.

Os melhores livros do meu ano (2)

Pedro Correia, 04.02.23

20230203_235736[4528].jpg

Foi uma das poucas boas heranças dos longos meses da pandemia, pontuados por estados de emergência, recolher obrigatório e teletrabalho em larga escala: sobraram-me horas para a leitura. Daí ter lido cem livros em 2020, outros cem em 2021 e 88 no ano que há pouco terminou.

Ontem destaquei aqui dez dessas obras que me acompanharam em 2022, escritas apenas por autores portugueses: seis romances, uma ensaio memorialístico, uma biografia, um livro de crónicas e outro de apontamentos literários. De escritores já antigos, como Vergílio Ferreira ou Urbano Tavares Rodrigues, e outros contemporâneos, ainda jovens, como Djaimilia Pereira de Almeida ou Afonso Reis Cabral.

Hoje destaco outras dez, mas só de autores estrangeiros. São oito romances, um ensaio literário e um extenso volume com prosa diarística. De três galardoados com o Prémio Nobel (Thomas Mann, John Galsworthy e Mario Vargas Llosa) e de épocas muito diversas - de meados do século XIX até quase à década em que hoje vivemos. Gostei de todos, em graus diversos. Alguns foram excelentes surpresas.

Alinhados também por ordem alfabética, para maior facilidade de consulta.

 

................................................................

 

A FAMÍLIA FORSYTE, de John Galsworthy (1922). Um monumento literário sobre meio século de vida de um clã de prósperos negociantes londrinos que simbolizavam o apogeu e decadência da Inglaterra vitoriana. Com personagens inesquecíveis: o pérfido Soames e o seu primo direito Jolyon, mais dado às artes dos que aos negócios, além de Irene, a mulher que ambos disputaram. Originou filmes e séries, sempre com sucesso.

 

A FESTA DO CHIBO, de Mario Vargas Llosa (2000). Um dos melhores romances do popular escritor peruano, aqui num ousado exercício de estilo que cruza a ficção com segmentos de reportagem em torno de um dos mais execráveis ditadores da América hispânica: o dominicano Rafael Trujillo, assassinado em 1961. Autópsia de uma tirania com bisturi literário de mestre exibindo uma escrita inigualável.

 

DIÁRIOS 1950-1962, de Sylvia Plath (2000). Viver era escrever para a poetisa norte-americana, que sofria de depressão desde a adolescência e foi capaz de elevar esta doença à categoria de obra de arte enquanto matéria literária. Eis a versão mais completa dos seus diários, só há meses publicada em português. Permite-nos perceber como a tragédia do suicídio, aos 30 anos, se prenunciava nos belos textos que redigia.

 

E TUDO O VENTO LEVOU, de Margaret Mitchell (1936). Epopeia em torno da Guerra Civil norte-americana (1861-1865) que dilacerou os EUA com reflexos que chegaram aos nossos dias. Scarlett O'Hara, que resiste às adversidades do destino na vasta propriedade rural de Tara, na Geórgia, simboliza a tenacidade sulista, deslocada num mundo em mudança vertiginosa. Uma das grandes personagens femininas da literatura.

 

MORTE EM HAVANA, de Leonardo Padura (1997). Inesquecível, o Quarteto de Havana integrado por quatro policiais, cada qual ambientado numa das estações do ano - que na Cuba comunista são pequenas variações do mesmo sistema concentracionário, emoldurado por um oceano que em vez de libertar oprime. Mario Conde, polícia que sonhava ser escritor, protagoniza os quatro romances, de que este é o meu eleito.

 

NOSTROMO, de Joseph Conrad (1904). O escritor anglo-polaco era capaz de conciliar a novela de aventuras com a fabulosa criação de atmosferas densas e perturbantes. Aqui numa fictícia república da América do Sul, inaugurando um subgénero que fez furor com títulos como Tirano Banderas (Valle Inclán, 1927), O Senhor Presidente  (Miguel Angel Asturias, 1947) ou O Outono do Patriarca (Gabriel García Márquez, 1975).

 

O BARULHO DAS COISAS AO CAIR, de Juan Gabriel Vásquez (2011). Um dos melhores romances da nova geração sul-americana. O autor, colombiano, presta homenagem ao realismo mágico mais pelas palavras do que pelas ideias numa obra sem concessões ao imaginário pícaro. O livro disseca com desassombro a tragédia do terrorismo ligado ao narcotráfico, que paralisou o Estado e estilhaçou a sociedade.

 

O  INFINITO NUM JUNCO, de Irene Vallejo (2019). Deslumbrante ensaio que se aproxima de um romance sobre o apego à leitura, iniciado antes da invenção do papel. Leva-nos aos grandes pensadores da Grécia antiga, faz-nos conhecer as penas mais talentosas da velha Roma. Caso extraordinário de paixão desmedida pela palavra escrita que a historiadora espanhola transmite com inegável fascínio aos seus leitores.

 

O MONTE DOS VENDAVAIS, de Emily Brontë (1847). Exemplo clássico da ficção gótica, centrada numa mansão onde o rasto dos mortos assombra os vivos. O inferno transposto para o bucólico cenário rural inglês em forma de romantismo exacerbado, tendo no centro a figura do demoníaco Heathcliff na sua demencial obsessão por Catherine, uma das primeiras e mais emblemáticas heroínas da literatura. 

 

OS BUDDENBROOK, de Thomas Mann (1901). A fortuna da família Buddenbrook, argamassada há três gerações no norte da Alemanha, ameaça ruir quando os filhos tomam o lugar dos pais naquele final do século XIX, já com a velha burguesia luterana a dissolver-se enquanto âncora moral da sociedade. Genial romance de juventude que valeu o Nobel ao prosador germânico: nunca voltaria a escrever tão bem.

O Patriotismo

jpt, 04.02.23

"...patriotism - a somewhat discredited sentiment, because the delicacy of our humanitarians regards it as a relic of barbarism ... It requires a certain greatness of soul to interpret patriotism worthily - or else a sincerity of feeling denied to the vulgar refinement of modern thought which cannot understand the august simplicity of a sentiment proceeding from the very nature of things and men". 

(Joseph Conrad, Prince Roman, Selected Short Stories, Wordsworth, 1997, p. 206).

 

 

Neste Fevereiro cumpre-se um ano de guerra na Europa. A qual vem implicando um enorme esforço assente no "patriotismo", o ucraniano. E é interessante ver como na Europa, e por cá, a extrema-direita "soberanista" logo se tombou por simpatias pela força imperial agressora contra o que sempre diz defender, as tais nações, nisso confluindo com a esquerda comunista, esta que sempre se reclama de avessa aos "impérios". Sendo os democratas, mais ou menos confederativos, os grandes apoiantes desse esforço patriótico. De como a realidade bem mostra a falácia das demagogias.

Os melhores livros do meu ano (1)

Pedro Correia, 03.02.23

livros.jpg

 

Já vem algo tarde, mas ainda a tempo. O balanço das minhas leituras ao longo de 2022. Após dois anos consecutivos em que consegui ler cem, com a crise pandémica a dar forte contributo por nos ter amputado grande parte da vida social, baixei um pouco neste mais recente, entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro: desta vez foram 88. De várias épocas, de vários estilos, de vários géneros, de autores de diversas nacionalidades.

Como em anos anteriores, dou-vos nota das minhas leituras em 2022. Dividindo-as em três listas de dez títulos, precisamente aqueles de que mais gostei. Não gostei de outros - e houve até uns tantos que detestei. Mas desses falarei noutra ocasião, não nesta.

Hoje menciono apenas obras de autores portugueses. Amanhã, de autores estrangeiros. No terceiro dia, ficará aqui um apontamento sobre as melhores releituras. Sempre dez em cada bloco. Por ordem alfabética, critério que gosto de seguir.

 

Tal como já tinha sucedido em 2020 e 2021, dediquei muito mais tempo à leitura do que ao cinema, contrariando um hábito há muito enraizado. Nos dias que correm, os filmes interessam-me bastante menos. Porque, confesso, já vi grande parte do que gostaria de ver - incluindo a esmagadora maioria dos clássicos da Sétima Arte. E também porque nada me atrai hoje na chamada "indústria cinematográfica", precisamente a que domina os circuitos de exibição e comercialização. 

Ao contrário dos livros. E se algum me decepciona, há sempre um título em alternativa na fila de espera. Para 2023, já revelei quais são as minhas prioridadesGuerra e Paz como leitura de Inverno, Em Busca do Tempo Perdido como leitura de Verão.

Não serão os únicos. Olho a pilha que se avoluma na sala. Contém pelo menos estes: Uma Casa Para Mr. Biswas (V. S. Naipaul), Herzog - Um Homem do Nosso Tempo (Saul Bellow), A Piada Infinita (David Foster Wallace), Na Minha Morte (William Faulkner), O Templo da Aurora (Yukio Mishima), Sagarana (Guimarães Rosa), Os Sonâmbulos (Hermann Broch), Auto-de-Fé (Elias Canetti).

Qual irá seguir-se?

O sortilégio da leitura passa também pela incerteza destas escolhas em rumo errante. É acaso, é destino? De viagem em viagem, todas nos transportam para mundos bem diferentes sem necessidade de darmos um passo. Apetece dizer como Jorge Luis Borges: «Que outros se gabem dos livros que lhes foi dado escrever; eu gabo-me daqueles que me foi dado ler.»

 

................................................................

 

A MESA ESTÁ POSTA, de Jorge Silva Melo (2019). Recolha de crónicas de Jorge Silva Melo, figura magna do teatro e do cinema que morreu há quase um ano. Na sequência do magnífico Século Passado - quase o romance que nunca escreveu. Ainda bem que nos deixou estes livros por legado: preciosos testemunhos de uma época que vai passando.

 

A VOZ DOS DEUSES, de João Aguiar (1984). Quem diria que Viriato seria personagem credível de um romance português numa prosa sem artifícios nem rodriguinhos? Há quase 40 anos, este livro distinguiu-se por uma proeza difícil: teve sucesso junto do público e da crítica. Resiste hoje à mais dura das provas - a do tempo. Falando-nos desta terra que já tinha identidade própria antes de ser Portugal.

 

CALENDÁRIO PRIVADO, de Fernanda Botelho (1958). Escritora discreta por opção própria, a autora de Xerazade e os Outros abordava neste seu segundo romance, de algum modo ainda de aprendizagem, temas quase clandestinos, como o aborto. Numa obra de forte toada psicológica, contrariando as tendências político-sociais então em voga.

 

COM OS HOLANDESES, de J. Rentes de Carvalho (1972). Há longos anos radicado nos Países Baixos, o autor de Ernestina desenrola o fio da memória desde o tempo em que ali desembocou como imprevisto emigrante, sem saber uma palavra do idioma local. No seu estilo empático e desenvolto, fala-nos com humor do país de acolhimento e dos choques culturais que lá sofreu.

 

DE QUASE NADA A QUASE REI, de Pedro Sena-Lino (2020). Minuciosa biografia do Marquês de Pombal (1699-1782) escrita por um poeta apostado em investigar a figura do ministro de D. José que ascendeu a vulto mais influente do reino. Bem documentada, sem as liberdades literárias que Camilo e Agustina dedicaram ao homem que reergueu Lisboa após o terramoto e mandou executar opositores com requintes de crueldade.

 

LIVRO DOS PREFÁCIOS À OBRA DE AGUSTINA BESSA-LUÍS, de vários autores (2022). Reúne os textos que funcionaram de pórtico a diversos livros da notável prosadora. Uma galeria notável de admiradores desfila aqui - de António Barreto a Rui Ramos, de João Bénard da Costa a José Tolentino de Mendonça. A melhor das introduções ao espólio literário de Agustina.

 

LUANDA, LISBOA, PARAÍSO, de Djaimilia Pereira de Almeida (2018). Singular romance, de uma frescura surpreendente e notável domínio da linguagem escrita polvilhada de marcas da oralidade contemporânea num amargo cruzamento de rotas entre Angola e Portugal. Em perfeito contraste com tantas outras obras actuais de onde a vida está ausente. 

 

O CAMINHO FICA LONGE, de Vergílio Ferreira (1943). Aqui o futuro autor de Para Sempre dava os primeiros passos como escritor. Já com destreza oficinal ao revelar-se como romancista. Durante décadas, esta obra sobre o meio estudantil coimbrão de final dos anos 30 permaneceu fora do mercado. Felizmente foi possível relançá-la. Texto juvenil, com virtudes e defeitos próprios de quem começa.

 

OS INSUBMISSOS, de Urbano Tavares Rodrigues (1961). Um dos raros romances portugueses centrados no mundo jornalístico, por experiência directa do autor. Hoje vale mais como documento do que como marco literário: a linguagem é demasiado carregada de adjectivos e muitos diálogos soam a falso. Mas certas cenas merecem destaque. Como a última, com os amigos na praia cantando o hino nacional - a revolta possível naqueles anos de chumbo.

 

O MEU IRMÃO, de Afonso Reis Cabral (2014). Obra-prima da novelística portuguesa contemporânea, justamente galardoada com o Prémio Leya, fala-nos da atribulada mas enternecedora relação entre um jovem universitário e o seu irmão mais velho, deficiente profundo. Com emoção contida, evitando chavões sentimentais e sem nunca escorregar para o melodrama.

Leituras imperdíveis?

jpt, 14.01.23

fbimg.jpg

Como é mais do que normal tendemos a apagar as memórias do que nos encheu o quotidiano durante os recolhimentos provocados pela Covid-19. E poucos ainda se lembrarão das polémicas, de dichotes feitas, devidas à disseminação das intervenções televisivas feitos em retiros domésticos e transmitidas via Zoom (uma empresa que muito se divulgou então) ou afins. Nelas se criticava, com sarcasmos e iras, aquilo dos intervenientes apareceram diante de estantes com livros. "Pose", ululava o povo irado..., assim como se os "sans-culottes" se tivessem tornado agora nuns "sem-livros" (ainda que com computadores para as redes sociais) mas mantendo as "virtudes" morais e o fado histórico salvífico. Alguns, com fel mais analítico, dissecavam os conteúdos bibliográficos perceptíveis. E outros, porventura de pendor mais estético, registavam criticamente algumas alterações nas lombadas visíveis nas casas dos participantes regulares - nisso mostrando a crença, até dogmática, de que as disposições nas prateleiras devem ser perenes, intocadas..., como se altares (votados a um qualquer Demo) sejam. Face a tal alarido aprendi que nas redes sociais é melhor não mostrar livros e pouco deles falar, não vá o tal Demo tecê-las e dizerem-me com poses de letrado, logo arrastando-me desta salamandra até à guilhotina (moral ou mesmo real), aposta no largo do pelourinho da freguesia digital.
 
Mas abro agora uma excepção, por causa da excitação que vou vendo nas redes sociais, onde alguns incautos (pois falam de livros) se multiplicam na referência a dois livros - confirmei que recentemente traduzidos e publicados em Portugal. Ao primeiro tinha visto uma referência elogiosa (tipo "leitura imperdível"), emanada por um desses políticos que vão à televisão "comentar" a política e depois nos dizem o que ler, ouvir, ver e etc. - função "magisterial do pensamento" antes atribuída a curas ou lentes e agora a ex/actuais/futuros governantes "anunciados na tv". Nessa noite, ao ver a referência em pleno telejornal dominical, sorri ao saber a Ruth Benedict - uma quase founding mother da antropologia - ser promovida a imperdível para o público em geral em pleno 2022.
 
Mas enfim, o que vinha desabafar é que mantenho o sorriso diante desta tanta adesão ao "A Espada e o Crisântemo", o Japão de Ruth Benedict, e ao "Como a Europa Subdesenvolveu a África" de Walter Rodney. Livros importantes, significantes, com temas, pressupostos, corolários bem diversos. E acima de tudo livros ensaísticos dos seus tempos, verdadeiros "clássicos", com valor intrínseco, inseridos nesta continuidade cumulativa que é a das reflexões histórico-antropológicas. Mas que agora provoquem frémitos leitores, devidas à sensação de encontro com as verdades ali patentes, é um bocadinho sinal do que para aqui vai... Enfim, talvez daqui a 50 ou 70 anos se publiquem outros livros sobre estas temáticas, escritos nestes nossos dias. E que então também serão considerados "imperdíveis" na sua actualidade e pertinência... E as pessoas (algumas) também se excitarão. Ou então talvez o mercado editorial português mude durante essas próximas 7 décadas...
 
Pronto, dito isto, e porque sou muito actual nestas coisas das leituras vou deitar-me a ler "Os Cheuas de Macanga" de António Rita-Ferreira. Boa noite. E não leiais muito. Ou, se o fizerdes, nem às paredes o confesseis. Que elas têm ouvidos...

Livros: dez sugestões de Natal

Pedro Correia, 20.12.22

500x.jpg

 

DIREITA E ESQUERDA, de Joseph Roth (Cavalo de Ferro). Viagem à Berlim de há cem anos, no fugaz interlúdio entre a guerra e a fracassada erupção comunista, por um lado, e a ascensão do nazismo, por outro. Dinheiro, hipocrisia social e radicalismo político são ingredientes deste romance de Roth (1894-1939) enfim editado em Portugal.

 

500x (1).jpg

 

NA CABEÇA DE XI, de François Bougon (Zigurate). Inspirado ensaio biográfico sobre o mais poderoso ditador do nosso tempo: Xi Jinping, o Presidente da China, ainda encarado com benevolência em meios geralmente mal informados. Título de referência nesta nova editora, digna de aplauso por surgir em tempos difíceis e não mutilar consoantes.

 

NTF8MjM0MTYyNTF8MTkzNzk5MzF8MTYzMTE0MjAwMDAwMA==.j

 

O SONHO DA CHINA, de Ma Jian (Quetzal). Impiedosa sátira social ao outro lado do espelho do "milagre económico" chinês, marcado pela corrupção da oligarquia comunista agora que a geração dos adolescentes formados na tenebrosa "Revolução Cultural" chegou ao poder. Este romance está proibido na China e o seu autor vive no exilio.

 

300x.jpg

 

FRANCISCO - O CAMINHO, de Maria João Avillez (Temas e Debates). Transcrição da recente entrevista feita pela jornalista ao Papa para a TVI. Com um prefácio que explica ao leitor como foi possível consegui-la e o contexto concreto em que decorreu, no Vaticano. Francisco pede aos jovens de todo o mundo para «abrirem janelas», com vistas largas. 

 

7520059_400x.webp

 

BREVE HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA, de Roger Scruton (Guerra & Paz). Um dos mestres pensadores do nosso tempo revisita alguns dos filósofos que mais o marcaram. Fascinante percurso pela rota das ideias que fazem girar o mundo. Num estilo elegante e fluente, provando que a erudição não tem de ser árida nem aborrecida.

 

ab5c7953d77c4f41ba376044511beb20.jpg

 

OLIVENÇA NA HISTÓRIA, de vários autores (Assembleia da República). Muito se fala de Olivença, mas poucos conhecem com rigor o tema - na sua dimensão histórica, cultural e jurídica. Lacuna aqui colmatada, com chancela parlamentar, em textos de valor desigual sobre uma parcela de território sob domínio espanhol que é portuguesa de raiz e lei.

 

9789896717148-1-scaled.webp

 

«O MAIS SACANA POSSÍVEL», de António Araújo (Tinta da China). A frase, que o autor adaptou a título com inegável argúcia, é de José Cardoso Pires e serviu de mote inspirador à revista Almanaque, que marcou o início da década de 60 no meio intelectual português. Ainda hoje se fala dela. Toda a história desse mirabolante projecto é contada aqui.

 

500x.jpg

 

O MUNDO PELOS OLHOS DA LÍNGUA, de Manuel Monteiro (Objectiva). Um dos nossos mais esclarecidos linguistas regressa com uma obra útil a todos quantos escrevem. Alertando para o uso e abuso de erros de palmatória neste nosso idioma por vezes tão maltratado por quem mais devia cuidar dele. Felizmente vai resistindo a quase tudo.

 

500x.jpg

 

QUARTETO DE HAVANA, de Leonardo Padura (Porto Editora). Na Cuba comunista também há crimes, como em qualquer outro país: o paraíso terreal está longe de existir ali. Quem tiver dúvidas, repare neste excelente escritor, dos raros que não foram presos ou desterrados. Romances policiais ao sol das Caraíbas. Para ler nas linhas e nas entrelinhas.

 

500x (2).jpg

 

O INFINITO NUM JUNCO, de Irene Vallejo (Bertrand). Declaração de amor à literatura pela pena ágil de uma investigadora espanhola neste ensaio que parece um romance e foi monumental sucesso de vendas no país vizinho. Fascinante digressão pela civilização greco-romana que há muitos séculos nos ensinou a ler, a escrever, a pensar e a sonhar.

Ler

Sérgio de Almeida Correia, 02.12.22

Breve História da Democracia - John Keane - Compra Livros na Fnac.pt

"(...) a democracia posiciona-se contra todas as formas de húbris. Considera o poder concentrado cego e, consequentemente, perigoso; pressupõe que aos humanos não deve ser confiado um domínio incontido sobre os seus semelhantes, nem sobre os biomas que estes habitam" (p. 175)

 

O australiano John Keane resolveu escrever um livro que sendo simples, claro e acessível não deixa de ser rigoroso. Fê-lo com elegância e os seus vastos conhecimentos sobre a matéria que aborda, dando-nos uma visão global da evolução daquilo a que se convencionou chamar democracia desde as primeiras assembleias de que há notícia, na Síria-Mesopotâmia, cerca de 2500 a.C., até aos dias hoje.

Basicamente, dividiu a sua história em três grandes períodos que correspondem na sua óptica a diferentes modelos de democracia: democracia de assembleia, democracia representativa e aquilo a que chama de democracia monitorizada.

É esta última que pode suscitar mais controvérsia.

O autor interroga-se sobre o próprio da democracia liberal e não deixa de referir, enaltecendo, apesar de todos os seus defeitos, o exemplo indiano quando afirma que a Índia constituirá o exemplo acabado de como milhões de pessoas pobres e analfabetas , "sobrecarregadas por uma miséria de proporções confrangedoras", "rejeitaram o preconceito de que um país tem de ser rico antes de ser democrático" (p. 143).

Apoiando-se no teólogo estado-unidense Reinhold Niebuhr, remete-nos para uma frase famosa deste ("A aptidão do homem para a justiça torna a democracia possível, mas a tendência do homem para a injustiça torna a democracia necessária") que em seu entender terá estado na base de uma nova compreensão da democracia "como um contínuo escrutínio público, moderando e controlando o poder segundo padrões 'mais profundos' e mais universais do que os antigos princípios de eleições periódicas, governo pela maioria e soberania popular".

Segundo Keane, a democracia monitorizada "está associada às sociedades saturadas pelos meios multimédia – cujas estruturas de poder são acompanhadas e combatidas de forma permanente pelos cidadãos e seus representantes no âmbito dos ecossitemas dos meios digitais", numa espécie de "mundo de abundância comunicativa" que é estruturado por "dispositivos mediáticos que combinam o texto, o som e a imagem", permitindo uma "comunicação por vias de múltiplas plataformas de utilizadores, no âmbito de redes globais moduladas, acessíveis a muitas centenas de milhões de pessoas espalhadas pelo mundo"; afirmando-nos que "a democracia monitorizada e as redes mediáticas informatizadas são gémeas siamesas".  "Se a nova galáxia de abundância comunicativa implodisse subitamente, é provável que a democracia monitorizada não sobrevivesse" (p. 156).

A pandemia e as suas implicações, cada vez mais presentes pelo que se está a passar na China, a tal "democracia que funciona" e que os seus arautos propagandeavam, teve, e tem, implicações na distribuição de riqueza, no bem-estar e no emprego, sendo por isso mesmo questões políticas incontornáveis.

Com evidente oportunidade, cita James Mill e remete-nos para a lembrança de que "se o fim do Governo é produzir a maior felicidade do maior número, esse fim não pode ser alcançado fazendo o maior número de escravos" (p. 187).

Trata-se, afinal, como ele escreve, de "pensar a democracia como guardiã da diversidade do pensamento livre e defensora do poder publicamente responsabilizado", o que tornará a sua ética mais capaz, "mais universalmente tolerante das diferentes e conflituosas definições de democracia", capaz, por isso mesmo, de "respeitar a frágil complexidade dos nossos mundos humanos e não humanos" (p. 174).

Ideias interessantes, conceitos discutíveis, num livro que abre novas pistas de discussão e acaba por ser, nessa medida, intelectualmente estimulante.

O Último Adeus, de Balzac

jpt, 12.11.22

O-Ultimo-Adeus.jpg

[Nestes dias de combates nas zonas do Dniepre deixo aqui um postal que colocara no meu Nenhures em Abril passado]

É uma total coincidência, devida a que há poucos dias uma querida amiga me disponibilizou uma preciosa pilha de livros. A qual encetei, desconhecendo o seu conteúdo, por este "O Último Adeus" (Adieu), pequena novela de Balzac publicada originalmente em 1830 (em edição Europa-América, tradução de João Gaspar Simões).

A trama romanesca é interessante, ainda que hoje surja algo secundária, até pelo tom de época, de hipérbole sentimental: o coronel Philippe de Sucy - veterano da campanha russa, regressado a França após seis anos na Sibéria como prisioneiro de guerra - reencontra por mero acaso a sua apaixonada, a condessa de Vandières. Esta está tresloucada, devido aos padecimentos sofridos desde que se tresmalhara durante a retirada do exército napoleónico, pois durante a batalha de Berezina enviuvara do general de Vandières e apartara-se de Sucy, que ficara prisioneiro. 

 

Velhas revistas

jpt, 05.10.22

estante.jpg

Sempre fui fraco leitor de revistas, generalistas, especializadas ou mesmo profissionais - excepto das de banda desenhada, que tanto me moldaram gosto e ser. Razões para tal nem as tenho claras, pois de algumas delas até gosto, será mesmo um qualquer infundamentado desconforto com o molde, uma parva embirração. Mas de uma coisa gosto, isto de folhear as revistas antigas que se amontoaram em casa, as herdadas e as que fui comprando - tantas destas para apenas as entreabrir, até com fastio, apesar do interesse imediato ao vê-las, feito compulsão compradora (quando dessa maleita podia sofrer) -, soslaios que permitem um sorridente aquilatar da realidade das "novidades" ou "dramas" que foram apregoados, com mais ou menos veemência...

Neste Verão já findo recebi os dois últimos caixotes de livros (e revistas) vindos da minha mãe, as partilhas familiares da pequena biblioteca que a acompanhou nos últimos anos na "residência" (o lar de terceira idade). Nesse conjunto vieram mais algumas revistas, das que restaram, "sobreviventes" à habitual partilha deste tipo de leituras. E que me fazem, saudoso, lembrar de quando após um almoço familiar levámos a nossa mãe (e avó) à papelaria vizinha, a qual abastecia diariamente a residência do inevitável duo Correio da Manhã e Público. E do (genuíno) encanto da proprietária diante daquela já nonagenária ainda arguta e, ainda por cima, francófona e anglófona. E logo ali se combinou que providenciasse ela a entrega diária de revistas e jornais que julgasse apropriadas ao gosto e interesses da minha mãe, que a gente pagaria mensalmente... Para alguns meses depois resmungar eu - já então a sopesar os custos do rancho e a racionar o Amber Leaf e o Queen Margot - a "conta calada" daquilo tudo, que do "Paris-Match" e "Hola!" britânica até à "Magazine Littéraire" tudo lhe ia chegando, e do meu murmurado e miserável ataque de sovinice, eu leitor diário do "Record" a criticar "raisparta, a mãe nunca leu estas tralhas ao longo da vida, para quê comprá-las agora?", as revistas "sociais", entenda-se, como se matar o tempo não fosse o fundamental, não seja o fundamental, antes da morte que se nos aproxima...

Enfim, divago, pois o que queria trazer a este postal é esta revista "Estante" que algum de nós lhe levou e que me chegou agora. De 2018, o número 17 desta simpática iniciativa - uma revista literária bem conseguida, no grafismo e no conteúdo, num registo adequadamente "leve" mas não superficial. 10 000 exemplares distribuídos gratuitamente pelos clientes da FNAC - e serve agora para memória (talvez surpreendente para as gerações mais novas) de uma longínqua época em que a cadeia FNAC vendia livros, uma era já finda na história económica.

E o que me apelou a recuperar este exemplar é um dos seus artigos, no qual os jornalistas Carolina Morais e Tiago Matos indagaram a sete escritores e editores "quem merecia o Nobel da Literatura de 2018?", pergunta bem adequada a este tipo de revista, muito mais tendente à divulgação literária do que a  uma reflexão crítica sobre pertinência das premiações e dos seus critérios e, ainda menos, às dinâmicas estruturantes do(s) "campo(s) literário(s)". E ler o resultado dessa demanda promove agora um sorriso, algo entristecido. Pois Ana Teresa Pereira, Carlos Vaz Marques, Francisco Vale, Hélia Correia, Isabel Lucas, Manuel Alberto Valente e Pedro Mexia (o grupo inquirido) deram, obviamente, várias pistas. Mas no final o escritor que sobressaiu como desejável premiado em 2018 foi Javier Marías. Pois, a Academia Sueca atrasou-se, irremediavelmente...

(Nem de propósito, eu a esquiçar este postal e a encontrar o Pedro Correia a inaugurar uma, ambiciosa, série...).

Homenagem à Banda Desenhada Portuguesa

jpt, 04.10.22

bd.jpg

Já está disponível este "Variantes, Uma Homenagem à Banda Desenhada Portuguesa" - será apresentado amanhã, 5.10, em Coimbra, às 16 horas na Livraria Dr. Kartoon, e no dia 8 haverá uma sessão em Lisboa. Edição de A Seita (72 páginas, capa dura, 17 euros - para um produto destes é um preço pré-Guerra da Ucrânia). 

Trata-se de um passeio por 24 obras da BD no país ao longo da história, desde XIX até ao final de XX. Autores actuais (ditos "jovens", nesta ditadura contemporânea da "eterna juventude", gente sub-40) fazem vénias (sob formato de pranchas e desenhos inéditos), desde à considerada como primeira BD portuguesa,  Apontamentos de Raphael Bordallo Pinheiro Sobre a Picaresca Viagem do Imperador do Rasilb Pela Europa  (1872), até ao Tu És a Mulher da Minha Vida, Ela a Mulher dos Meus Sonhos, de João Fazenda e Pedro Brito (2000). Nisso passando por Victor Mesquita (1975, Eternus 9 - publicado na célebre e saudosa "Visão") Relvas (1978, Espião Acácio), Louro/Simões (1985, Jim del Monaco), Saraiva/Pinto (1994, Filosofia de Ponta), e outros, como é óbvio.

O rol dos autores é rico : André Caetano; André Pereira; Daniela Duarte; Fábio Veras; Francisco Nunes; Gonçalo Varanda; Jorge Coelho; José Smith Vargas; Madalena Abreu aka Hada; Marco Mendes; Marta Teives; Paula Cabral; Ricardo Baptista; Rita Alfaiate, Sofia Neto. E ainda Álvaro, Fernando Relvas e Pedro Burgos.

A capa é do Pedro Morais. Companheiro, mostrou-me a ilustração completa....

 

capabd.jpg

Rui Mateus Pereira

jpt, 16.09.22

rmp.jpg

A última edição da revista Etnográfica inclui um In Memoriam dedicado a Rui Mateus Pereira, morto em 2020 - com textos de Adolfo Yáñez Casal, Ana Isabel Afonso, Frederico Delgado Rosa e Laura Almodôvar, colegas que lhe foram próximos e que com ele constituiram amizades. Tive com o autor um relacionamento muito mais distante e esparso. Mas, e até porque a nossa interacção não se enquadrou no espaço universitário, aqui deixo a minha memória. Na qual, e porque escrita em blog próprio, não tenho o espartilho dos limites de caracteres - comum em publicações institucionais - nem prescindo do exclusivo tom de memória pessoal.

 

 

Lost in Fuseta

Cristina Torrão, 09.09.22

Não é todos os dias que se recebem comentários a um postal publicado há mais de três anos, mas ontem aconteceu-me. E qual não foi a minha surpresa, quando hoje deparo com mais um.

Escrevia eu, a 6 de Julho de 2019, sobre Portugal-Krimis, ou seja, livros policiais alemães, tendo Portugal como cenário.

E falava então no Lost in Fuseta, de Gil Ribeiro:

Lost in Fuseta.jpg

O autor, um alemão com o pseudónimo Gil Ribeiro, brinca com a palavra Lost, pois o seu investigador chama-se Leander Lost, um alemão que, na sequência de um intercâmbio policial (nem sei se isso existe), é colocado na Fuseta. Ou seja, a tradução directa do título não é “Perdido na Fuseta”, embora o Leander Lost se sinta muitas vezes perdido. Este investigador tem o síndrome de Asperger, o que o torna num polícia muito especial: tem uma memória fotográfica (muito útil, na sua profissão), não sabe mentir (o que, por vezes, é desvantajoso) e encara os acontecimentos destituído de emoção (o que lhe permite manter o sangue-frio em certas situações).

Ontem, a comentadora Paula Bonifácio Vilas disse que a televisão alemã ia passar o filme Lost in Fuseta no Sábado. Por acaso, o meu marido, que já leu duas ou três aventuras algarvias do Leander Lost, já me tinha falado nisso. Hoje, o comentador Artur Nunes pedia um link, onde se pudesse assistir ao primeiro episódio.

De facto, trata-se de um série e o ARD (1º canal alemão, ou Das Erste) até vai apresentar amanhã os dois primeiros episódios. A minha revista televisiva apresenta o primeiro com a frase: Jetzt geht's also an die Algarve! - «Agora, vai-se então até ao Algarve!»

Lost in Fuseta 1 a.png

Este episódio vai ser apresentado às 20h15m, o segundo às 21h45m (hora alemã).

Lost in Fuseta 2.png

Ambos podem ser já vistos online, na Mediathek do ARD. Já deixei os links ao comentador Artur Nunes, mas aqui vão, mais uma vez, caso haja mais alguém interessado. Para quem não percebe alemão, servem para ir dar uma olhada.

Primeiro episódio:

https://www.ardmediathek.de/video/krimis-im-ersten/lost-in-fuseta-1-ein-krimi-aus-portugal/das-erste/Y3JpZDovL2Rhc2Vyc3RlLmRlL2tyaW1pcy1pbS1lcnN0ZW4vYTJjM2Y1NWMtOGQ5Yy00ZTc1LTljNDAtMTNmNTNjOWZiMWJi

Segundo episódio:

https://www.ardmediathek.de/video/krimis-im-ersten/lost-in-fuseta-2-ein-krimi-aus-portugal/das-erste/Y3JpZDovL2Rhc2Vyc3RlLmRlL2tyaW1pcy1pbS1lcnN0ZW4vMDg3MjI3OWUtMjJiNy00MWNjLWFhOTUtOWI3NzgwZDU3NjRj

 

A Livraria Martins

jpt, 26.08.22

LIVRARIA 6.jpg

(Como ontem se inaugurou a Feira do Livro de Lisboa deixo este postal sobre uma livraria que acabo de conhecer)

Vim a Lisboa para a ver, querida e antiga amiga, companheira em Moçambique, ela andarilha lá e no mundo, agora regressada após meses, quase um ano, na "Pérola..." e a calcorrear os "distritos", para minha - até dolorosa - inveja. Abraçamo-nos, eu sigo no defeito da franqueza e "estás óptima", ela riposta, impiedosa connosco num "estou nada, estou velha!", eu rio-me, pois por mim concordo (e muito) mas não nela, que sempre lhe noto o viço do olhar límpido, esse daqueles que ainda se conseguem encantar. Com lucidez...

Sentamo-nos na esplanada, ali junta à Avenida de Roma, as cercanias dela. Encaramos o célebre - pois "dos tempos" - "Cockpit", enfrenta ela um cocktail vistoso, eu a monástica imperial, e juntos depenicamos um qualquer petisco elegante. E mergulho, até sôfrego, no que me narra sobre esse do Niassa ao Maputo que agora voltou a percorrer, dos trâmites do seu enérgico trabalho, e uns laivos (a meu pedido) sobre os amigos comuns. Não vertemos saudosismo - o muito que então nos foi bom assim nos ficou -, ambos isentos do cândido sonho de regressar ao passado. Temos, sim, interesse: o meu nela, e seus passos, e espero que tal lhe seja recíproco, apesar do baço que manco. E sobre o país, daqueles tão enviesados rumos e esdrúxulos discursos, isso tudo que quando por lá até deixamos de estranhar mas que - e felizmente - nunca se entranhou.