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Delito de Opinião

Oferendas

jpt, 06.11.25

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Apesar de mim-mesmo, pessoa a qual me escuso de adjectivar, os amigos continuam a cumular-me de dádivas. Espirituais, em regime de abundância. E materiais...

Ontem encontrei-me no Restelo com um casal de amigos, daqueles desde há quarenta anos. Nas despedidas levaram-me até ao carro e disparou ele "toma lá" um pacote precioso. No qual, entre outras pepitas, estava a tradução policopiada do "Defeating Communist Insurgency: Experiences from Malaya and Vietnam", de Sir Robert Grainger Ker Thompson, um célebre especialista em contra-insurgência na Ásia, distribuída na Escola de Estudos Superiores da Força Aérea em 1969! E - com as páginas ainda por abrir!!! - os dois volumes de "África e o Comunismo", de Alejandro Botzàris, publicados em 1959/1961 pela Junta de Investigações do Ultramar...

Ajoujado pelo júbilo recuei aos Olivais, na senda de companhia mimosa. Ao invés deparei-me com máscula camaradagem, a qual me presenteou com sacos bibliófilos. Nos quais constavam meia dúzia de obras de Jorge Amado que não estavam nas minhas estantes - cá em casa a "dissidência" do autor havia minorado o fervor leitor do Senhor meu pai, naquilo do consabido (e não tão errado...) "o Jorge Amado não é um grande escritor", e a Senhora minha mãe era demasiado francófona para tais tropicalices; 25 volumes das Obras Escolhidas "do Camilo" - é assim que os propagandeados leitores de Camilo Castelo Branco se lhe referem -, para mim preciosos, pois aqui a prateleira do autor é composta por livros legados pelos bisavô e avô paternos, edições de Lello e Irmão, Lopes e Companhia, Civilização e assim, tudo lá do Porto, de finais de XIX e inícios de XX, alguns encadernados mas a maioria puídos, quase se desfazendo ao toque, efeitos dos ancestrais fervores leitores e da incúria do tempo... E uma outra preciosidade - se cá tenho a "Anna Karénina" traduzido do russo para a Relógio d'Água por António Pescada ( e nisto dá sempre para lembrar a atoarda de Mega Ferreira, que preferia as traduções de Tolstoi via francês) juntou-se-lhe agora o "Ana Karenine", luxuosa edição da Estúdios Cor (75 escudos em 1959!!!!) traduzida por... José Saramago!

E várias outras curiosidades, entre as quais este quase célebre "Férias com Salazar", pelo qual começarei a excursão - não que queira eu ter "Férias com Ventura", afianço.

Em suma, e repito-me, apesar de mim-mesmo, pessoa a qual me escuso de adjectivar, os amigos continuam a cumular-me de dádivas...

Sentido Obrigatório

jpt, 01.10.25

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Há alguns dias o meu amigo fotógrafo Pedro Sá da Bandeira inaugurou no Camões (Lisboa) a sua exposição "Senda Índica" (aqui deixei o que Graça Gonçalves Pereira escreveu para a "folha de sala" e o que eu naquele momento disse sobre este seu trabalho).

Nessa mesma sessão apresentei o meu livro "Sentido Obrigatório", (que pode ser comprado através da ligação colocada no título), o qual é uma colecção de 30 textos dedicados a Moçambique.

Neste postal coloquei a gravação de uma entrevista televisiva ao programa Mar de Letras, meia hora de conversa dedicada às vivências que conduziram aos meus livros "Torna-Viagem" e "Sentido Obrigatório". E juntei-lhe o "improviso escrito" que fiz para a sessão de apresentação deste novo livro.

Fica a referência para quem se queira interessar.

Uma Exposição Fotográfica, um Livro, uma Entrevista Televisiva

jpt, 18.09.25

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Hoje mesmo, 18 de Setembro, ao fim da tarde no (Instituto) Camões, sito exactamente no Marquês de Pombal, eu junto-me ao Pedro Sá da Bandeira, ele inaugura a sua exposição "Senda Índica" - que ficará até 2 de Outubro -, eu apresento o meu "Sentido Obrigatório", 30 textos de opinião sobre Moçambique (e algo de Portugal). Fica aqui o convite para quem quiser comparecer...

Quem tiver paciência para me ver a tentar divulgar este "Sentido Obrigatório" (e o anterior "Torna-Viagem"), aqui deixo ligação para a minha entrevista no "Mar de Letras", transmitida ontem, meia hora de conversa sobre Moçambique. Os livros podem ser adquiridos através desta ligação.

Ler (38)

Doze dos melhores livros que li em 2024

Pedro Correia, 01.06.25

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Eu sei que estamos a meio do ano, não é tempo para balanços. Mas por motivos vários não pude trazer antes o das minhas leituras de 2024. Referindo-me, em concreto, às melhores obras literárias, de vários géneros, que me passaram pelas mãos no ano passado. 

Confirmo agora: li 85 livros completos, sem fazer oscilar muito a média da década. Em dose menos elevada do que e2020 e 2021, quando li duzentos - uma centena em cada ano, nesses tempos que propiciavam poucas saídas e quase nenhumas viagens devido à pandemia. Mais próxima de 2022, ano do desejável e tão ansiado desconfinamento, quando me fiquei pelos 88. E claramente acima dos 71 lidos em 2023.

 

Deixo ali em baixo as doze obras que mais me empolgaram, por motivos diversos, em 2024. Anotando, de passagem, que certos títulos acumulados perto da minha cabeceira voltaram a ficar adiados: Herzog - Um Homem do Nosso Tempo (Saul Bellow), A Piada Infinita (David Foster Wallace), Na Minha Morte (William Faulkner), Os Sonâmbulos (Hermann Broch), Auto-de-Fé (Elias Canetti), A Consciência de Zeno (Italo Zvevo) e Rua Principal (Sinclair Lewis).

Isto só nos romances. Porque nos livros de História ou ensaio permanecem por ler vários outros. Estes, por exemplo: Jerusalém, de Simon Sebag Montefiore (657 pp.), Rússia - Revolução e Guerra Civil 1917-1921, de Anthony Beevor (671 pp.), O Novo Czar - Ascensão e Reinado de Vladimir Putin, de Steven Lee Myers (670 pp.), Mao - A História Desconhecida, de Jung Chang (803 pp.), O Século de Sartre, de Bernard-Henry Lévy (712 pp.) e Entrevistas, de Jorge de Sena (483 pp.).

Muitas páginas, pouco tempo. Que é o nosso bem mais precioso. Não se iludam: vamos tomando consciência disto a cada ano que passa. 

 

Seguem breves apontamentos dedicados a cada um destes doze. Por ordem alfabética: é a que prefiro.

 

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A CASA DAS BELAS ADORMECIDAS, de Yasunari Kawabata (1961). Espantosa meditação sobre o sexo, a infância, a velhice, a vida e a morte nesta novela carregada de simbolismo sobre um homem de 67 anos que procura a juventude perdida frequentando uma estranha casa nocturna onde paga sonos sobressaltados partilhando o leito com jovens adormecidas. Prosa poética, escrita com perfeição quase inultrapassável nesta obra tingida de melancolia crepuscular. Decorre no Japão, em época imprecisa, mas podia situar-se noutro quadrante porque fala de fantasmas que rondam tantos de nós. Do Nobel de 1968. Tradução de Luís Pignatelli. Edição D. Quixote.

 

COMO ESCREVER, de Miguel Esteves Cardoso (2024). Abundam hoje os livros de "escrita criativa", assinados por gente com reduzida aptidão tanto para escrever como para ensinar. Um dos mais influentes e experientes cronistas portugueses, com suave intenção irónica, desmonta nas entrelinhas esses manuais que enxameiam as prateleiras. E diz-nos, muito a sério, como tudo deve começar. Terá sido assim com ele ao vencer pela primeira vez o fantasma da folha em branco. Passo a passo, sem ter medo. Edição Bertrand.

 

KAPUTT, de Curzio Malaparte (1944). Uma das obras mais pungentes, dolorosas e originais sobre a II Guerra Mundial, cujos ecos voltam a assombrar a Europa. Malaparte cria aqui um género literário que viria a chamar-se "novo jornalismo" - reunindo crónica, reportagem, testemunho directo e óbvia efabulação com tintas de realismo mágico. O horror da guerra sempre em pano de fundo. Escrita superior, mesmo em trechos quase insuportáveis. Edição Cavalo de Ferro, recuperando e actualizando tradução de Amândio César.

 

JORNADA PARA A NOITE, de Eugene O'Neill (1956). Está em lugar cimeiro entre os dramas teatrais do século XX. Centrado numa família cheia de cicatrizes: droga, alcoolismo, desamor. Mãe, pai e dois filhos encerrados numa mansão povoada de memórias funestas que vão surgindo à superfície. A acção decorre num "medonho dia em quatro actos e cinco quadros", na definição de Jorge de Sena, cuja tradução valoriza ainda mais esta obra-prima de O'Neill, Nobel da Literatura em 1936. O cunho autobiográfico da peça, escrita em 1941, era óbvio ao ponto de levar o dramaturgo a exigir que só viesse a público após a sua morte, em 1953. Com aplauso generalizado e ampliado pela adaptação ao cinema por Sidney Lumet, em 1962, com Katharine Hepburn e Jason Robards nos papéis do casal Tyrone. Edição Cotovia.

 

LOS SANTOS INOCENTES de Miguel Delibes (1981). Prémio Cervantes de 1993, Delibes (1920-2010) continua ignorado pelas editoras portuguesas. Omissão imperdoável. Uma das suas melhores obras é esta novela desenrolada na Castela rural do início dos anos 60, próxima da fronteira portuguesa - com os seus fantasmas, os seus atavismos, as suas obsessões. Todos os condimentos do drama clássico, linguagem depurada com mão de mestre. Deu filme homónimo, realizado por Mario Camus e premiado em Cannes. Edição Planeta (Barcelona).

 

MATADOURO CINCO, de Kurt Vonnegut (1969). Romance em cenário bélico percorrido pela frase-chave "é a vida". Sempre com pinceladas de humor sombrio no rasto do anti-herói, Billy Pilgrim, americano mobilizado para a II Guerra Mundial e feito prisioneiro dos alemães em Fevereiro de 1945. O autor cruza literatura de guerra com ficção científica, de modo criativo, e marca também presença no enredo  - ele que testemunhou o massacre de Dresden em tempo real. O estilo, novidade quase absoluta para a época, não terá hoje o mesmo impacto. Mas ainda é obra marcante, também como reflexão sobre a vida. Tradução de Miguel Cardoso. Edição Alfaguara.

 

O GANGUE DA CHAVE-INGLESA, de Edward Abbey (1975). Originalíssimo romance norte-americano, com vários níveis de leitura - desde as típicas bravatas dignas de qualquer livro de aventuras, com toque juvenil, até um manifesto ecológico contra a falsa modernidade. Sem perder o fundo humanista nem deixar de ser um retrato genuíno da época em que surgiu, assinalada nos EUA pela contracultura e pelo pesadelo da guerra do Vietname que se arrastava sem fim à vista. Exemplar tradução de José Miguel Silva. Edição Antígona.

 

O OLHAR MAIS AZUL, de Toni Morrison (1970). Aqui testemunhamos a perda da inocência numa comunidade cheia de racismo e preconceitos diversos na chamada "América profunda" (Ohio), no início dos anos 40, quando o segregacionismo ali imperava e as memórias esclavagistas mal se tinham dissipado. Partindo dos olhares de três crianças negras - uma das quais é a menina que sonha ter olhos azuis, como as deslumbrantes actrizes que ela observa nas revistas. Comovente romance de estreia da escritora que receberia o Nobel em 1993. Tradução de Tânia Ganho. Edição Presença.

 

O OUVIDOR DO BRASIL, de Ruy Castro (2024). Conjunto de 99 crónicas originalmente publicadas na imprensa tendo como denominador comum um nome maior da música popular do século XX: Antônio Carlos Jobim (1927-1994). O melhor biógrafo brasileiro desvenda aqui segredos de Jobim com uma leveza de escrita que nunca deixa de ser profunda. Mergulhamos na paisagem artística e boémia do Rio de Janeiro e no inigualável mundo da bossa nova, precioso contributo do Brasil para o mundo. Edição Tinta da China.

 

SAGARANA, de João Guimarães Rosa (1946). Extraordinário livro de contos ambientados no sertão de Minas Gerais nas décadas iniciais do século XX. Guimarães Rosa regressa aqui ao mundo primordial e primitivo da sua infância, recriando-o com admirável talento literário. Já tomando balanço para Grande Sertão: Veredas, romance que viria a imortalizá-lo dez anos depois. São oito histórias redigidas com sábio ouvido para captar falares regionais, sugestivas metáforas e um vasto cortejo de neologismos, à semelhança do que Aquilino Ribeiro fazia na mesma altura em Portugal. Histórias povoadas de personagens castiças, confrontadas com a inclemência da natureza e rudes paixões humanas. "O Burrinho Pedrês", "O Duelo", "O Regresso do Marido Pródigo" e "A Hora e Vez de Augusto Matraga" são tão vibrantes hoje como quando foram escritas. Edição Nova Fronteira (Rio de Janeiro).

 

TEMPESTADES DE AÇO, de Ernst Jünger (1920). Talvez o melhor livro jamais escrito sobre a I Guerra Mundial, apesar da forte concorrência de autores como Ernest Hemingway e Erich Maria Remarque. Estamos envolvidos nas trincheiras, no lodo e na lama, nas longas esperas ansiosas, nos combates mais ferozes. Com fome, sede e frio. Chegamos a sentir repugnância pelo género humano e a duvidar de todas as crenças e todas as utopias. Entregues à missão primordial de sobreviver. Reportagem-romance ou romance-reportagem do grande prosador e pensador alemão? Os rótulos pouco importam. A ler ou reler com urgência. Tradução: Maria José Segismundo Santos. Edição Guerra & Paz.

 

TORNA-VIAGEM, de José Pimentel Teixeira (2024). Digressão literária, no tempo e no espaço, centrada na experiência deste antropólogo - um dos autores do DELITO DE OPINIÃO - como residente de longa duração em Moçambique, país que abraçou como segunda pátria. Espécie de Ulisses do avesso, agora no regresso melancólico ao torrão natal. Crónicas de torna-viagem, antigo termo de ressonância náutica criado a partir das odisseias dos portugueses pelo mundo. Algumas são, de facto, excelentes contos, justificando futura publicação autónoma com essa etiqueta. Edição Bookmundo.

Em Évora

jpt, 17.04.25

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No passado sábado fui apresentar o meu "Torna-Viagem" - a tal centena de crónicas, dois terços das quais dedicadas a Moçambique - na belíssima Biblioteca de Évora, dirigida pela nossa co-bloguista Zélia Parreira. Fui nisso acompanhado pelo escritor moçambicano José Paulo Pinto Lobo - que teve a paciência de elogiar o livro - e por uma trintena de amigos, numa verdadeira excursão que muito bem nos soube. Pois foi um dia memorável.

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Estando eu agora na posse do tão útil passe ferroviário - esse que alguns propagandistas avençados julgam ser "rodoviário" -, viajei de comboio, na companhia de uma parcela da escolta que me rodeava. Entre eles o também nosso co-bloguista Zé Navarro de Andrade. E assim, ali sobre carris, fui ofertado com o seu  recentíssimo (apresentado na véspera) "Toque de Jazz", um "Dicionário Subjectivo" que garanto ser precioso , em particular para os que não somos os "amadores" de jazz, esse clã tão peculiar...

Oriundos de várias proveniências congregámo-nos na célebre Praça do Giraldo.  E seguimos a um magnífico almoço, em boa hora reservado na "Associação Cultural É Neste País", naquelas cercanias. Foi o manjar aplaudido, em pé! E ficou o local como nossa referência eborense.

(Bem) Saciados seguimos à sessão, animada pelo belo texto do Pinto Lobo, pelo que eu balbuciei e ainda por um debate final, mais entusiástico do que eu esperaria. E depois o prato-forte: a directora da Biblioteca conduziu-nos numa visita pelas instalações, discorrendo sabiamente sobre as actividades que a sua equipa conduz. E terminou com uma demonstração de alguns dos livros antigos que abrilhantam a espantosa biblioteca. Algumas imagens apostas nos livros ficaram-nos impressionantes. Umas mais ligadas ao historial de Moçambique. Mas aqui partilho esta deliciosa Virgem Amamentando, claro que prévia ao concílio de Trento, no qual foram proibidas estas representações.

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Todos viemos encantados. E imensamente gratos à Zélia Parreira. Pois foi um grande dia. Melhor dizendo, um g'anda dia!

Adenda: deixei mais detalhes do dia - gastronómicos e não só -, e mais imagens, para além do texto do Pinto Lobo, neste postal mais extenso na minha recente página. Fica a ligação para quem tenha curiosidade.

A "lisboa" Literária

jpt, 30.03.25

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Há três anos fui beber um copo de fim-de-tarde com a minha querida amiga Ana Leão, que chegara de Moçambique. Disso deixei esta croniqueta - de que gostei, tanto que a meti no pacote "Torna-Viagem" que venho impingindo. Nostálgica, até saudosista, muito resmungona. Mas também esperançosa. Pois foi o dia em que descobri a Livraria Martins na Guerra Junqueiro - era muito recente, dela não ouvira falar, desconhecia a origem, até a julguei ser coisa de "carola" livreiro mas afinal é de grupo editorial (o que é bom, garantir-lhe-á alguma sustentabilidade).
 
Não fiquei cliente - não posso comprar livros. Mas fiquei simpático. E, passados anos, ao descobrir que organiza um "podcast" Quinteto Literário ouvi duas sessões. Agora a terceira deu imensa polémica. Pois o crítico e escritor João Pedro George espalhou-se, e muito (e muito mesmo...) ao falar da escritora Madalena Sá Fernandes, e com o beneplácito do moderador do programa (que também meteu os pés pelas mãos, já agora). George já fez a sua samokritica mas quero crer que não lhe chegará para acalmar más vontades e abrenúncios.
 
George é um tipo interessante de acompanhar (ler). É uma espécie de "etnógrafo" do "campo literário" português - e como é usual entre os etnógrafos quando se abalança às suas "monografias" escreve de modo insistente, repetitivo, até cansativo, tamanha a sanha expositiva. Nesse registo lembro quando dissecou o Cotrim e quando abocanhou o Mega Ferreira - então ainda vivos -, textos relevantes pois demonstrativos do "campo cultural-político" da "lisboa" em que vivemos.
 
Neste caso borregou. Porque falou em termos descabidos de uma escritora, e isso será uma conclusão unânime. Inventa-lhe uma auto-erotização publicitária que não é verdadeira. E critica-a por divulgar os seus livros ("so what?", perguntar-se-á em bom português). Mas a matéria mais relevante é o conteúdo da sua anunciada "abordagem sociológica" à escritora.
 
Eu não conhecia Sá Fernandes até há umas semanas. Tenho uma filha de 22 anos - já agora, a Carolina, que apenas vivera em Portugal durante os confinamentos e no ano do seu primeiro mestrado, emigrou ontem, "foi lá para fora ganhar a vida" - que é uma jovem Senhora bem lida. O que é normal, pois com uma mãe leitora, um pai que também o é, ainda que anárquico, e avós leitores. Nenhum de nós, seus ancestrais, somos da "literatura" mas fomos dando "dicas". E ela desde há anos que faz o seu rumo leitor. Há dias recomendou-me uma crónica de Sá Fernandes - sobre o Café Luanda e sua avó - na qual se reviu. Eu também, simpatizei. (E é ela quem agora me chama a atenção para este "caso").
 
E julguei aquela crónica bem melhor do que inúmeros textos na imprensa de escritores renomados - "consagrados", "canónicos", indiscutíveis membros da "literatura" - que anunciam como "crónicas" meros textos de opinião política. Opiniões essas (mais ou menos justas ao olhar de cada um, isso não interessa) que são formas de construir, sedimentar, reproduzir, publicitar, a "personalidade literária" de cada autor. Uma auto-construção do "eu", do "self" literário, que parece ofender os membros daquele podcast culto da Livraria Martins. Mas, de facto, alguém ficcionista/poeta que vai para os jornais escrever (sem sequer ser pago, como agora é norma) a favor/contra ucranianos, palestinianos, vítimas dos bancos, da violência doméstica, vacinas, trump e quejandos, está-se a "construir" / "divulgar" mais do que se for almoçar à bela Serpa e se deixar fotografar. Feliz.
 
(E, lamento, mas uma pessoa com 30 anos normalmente é mais bonita - fresca, que seja - do que com 50 ou 60. Estes últimos podem ter ganho prémios literários, terem sido louvados no Público e no JL, mas estarão encanecidos, engelhados, com papadas descendentes, barrigudos, carecas. Criticar-se os mais-novos por não estarem assim? E terem o desplante de sair à rua nesses mais ou menos belos modos?)
 
Enfim, a matéria da "abordagem sociológica" deste modo exercida desperta-me dois eczemas, ambos relacionados com a velha oposição "nós"/"outros", o que bem ultrapassa os conteúdos das obras (até porque não sou especialista da "literatura"). No fundo, trata-se da tal "lisboa" a autodefinir-se. E resmungo com esses meus pruridos assim:
 
1. Abordar o trabalho de alguém segundo o paradigma "Joana Marques". Ou seja, abandalhar. Acontece que Joana Marques tem humor, esse sacrossanto álibi. E de facto esmiuça, cruel, o lumpen do entretenimento nacional, o qual incessantemente produz mundividências muito criticáveis - o outro dia ouvi-a sobre um DJ que clamava que aqueles que não seguem boas "griffes" não saem da "sopa torta", por exemplo.
 
Mas é impertinente abandalhar uma escritora, pacífica, apenas porque se considera que escreve segundo os modelos da "escrita criativa", porque (!!!) não corresponde visualmente às angústias que (d)escreve. Francamente, esta é a tal "lisboa" - "eu sou escritor e crítico" diz George, como tal pertence à "literatura". Já Sá Fernandes é gozada por ter o desplante de dizer "entrei na literatura". Isto é mesmo a tal "lisboa" desbragada, a cagança...
 
2. O segundo ponto, meu eczema mais grave, pois é o que mais me irrita. Sá Fernandes é invectivada - "sabe como se mexer neste mundo de hoje" - por usar as "redes sociais" para se divulgar (a tik-tok, a instagram, se fosse há alguns anos seria no FB ou mesmo, antes, nos blogs, estes lugares de ilegitimidade...). Ao lado de George e do moderador (que aventa ser a escritora uma "destruidora de casamentos", uma "boca" tétrica), está uma outra escritora, Ana Bárbara Pedrosa, da qual não li livros. Algo arredada do tom cáustico sobre a escritora, mas aproveitando para dissertar sobre a tal "construção" de "personalidades literárias" através do manuseamento da imagem nas redes sociais. Ou seja, as "redes sociais" (a exposição pública, entenda-se) e a conjugação com outros escritores são vistas como fenómenos "ilegitimadores" ou, pelo menos, apoucam...
 
É esta "lisboa" de novo. Desconhecia Pedrosa até há pouco. Há meses, numa alvorada, alguns amigos de Maputo avisaram-me de um texto dela, publicado (claro) no "Público". Passado algum tempo insistiu e publicou outro na "Sábado". Enviaram-me esses amigos a ligação ao primeiro texto acompanhada de questões, a mais simpática das quais era "quem é esta gaja?".
 
Ambos os textos são "crónicas" de viagem, quase como se reportagens, dedicados à situação política moçambicana. Poupo nos adjectivos: são ignorantes. E absolutamente cagões. E uma verdadeira encenação, uma produção de "personalidade literária" - a escritora empenhada chegada ao país "em crise" (ou, se se preferir, "a África"), que logo percorre (enfim, a capital...) e que logo tudo percebe e sobre isso perora, ciosa opinativa. A clarividência "on the road"...
 
Ou seja, para George e para o moderador, uma jovem escritora que escreve como ensinam na "escrita criativa" e se divulga porque se sabe mexer nas "redes sociais" digitais não "faz parte" e é achincalhável. Mas uma jovem escritora que se mexe bem nas "redes sociais" da "lisboa", a "secção africanista" do "Público" (sobre a qual é melhor nem discorrer) ou quejandos jornais, a "rede social" "activista", e decerto que em "sites" decoloniais, etc.? Essa já "faz parte". Pois "é das nossas".
 
Não fosse eu ateu e diria que os espíritos do Cotrim e do Mega Ferreira - que bem mereceram ser escalpados, já agora - se estariam a rir. Pois, de facto, "les beaux esprits se rencontrent".

O tempo de todos os perigos

Pedro Correia, 28.03.25

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Passo por uma das livrarias que mais frequento e reparo nestes livros em destaque. Todos com um traço comum: falam-nos de um mundo cada vez mais perigoso. Um mundo onde voltou a banalizar-se a palavra guerra - até nesta Europa que alguns imaginávamos imune a novos conflitos armados, iludidos pela ordem internacional nascida dos armistícios de 1945 e embalados pela utopia da paz perpétua.

 

A verdade é que estamos no quarto ano consecutivo de guerra no continente europeu - por enquanto apenas na extremidade oriental, com a martirizada Ucrânia a sofrer sangrentas investidas diárias do inimigo moscovita. Mas acumulam-se outros sinais preocupantes. Aumento intensivo do orçamento nos Estados membros da União Europeia para despesas ligadas à segurança e à defesa. Rearmamento alemão, agora consagrado em revisão constitucional. Prestação de serviço militar obrigatório reponderada ou já reposta em países como Finlândia, Suécia, Polónia e Estados bálticosClivagem evidente entre os EUA e o pilar europeu da NATO, com ameaças directas da administração Trump a alguns dos seus parceiros na Aliança Atlântica, como o Canadá e a Dinamarca, enquanto o chefe da Casa Branca declara abertamente a intenção de anexar a Gronelândia.

Que mais?

Proposta de Emmanuel Macron para garantir a força nuclear francesa como elemento dissuasor face às crescentes ameaças da Federação Russa. Balcãs e Cáucaso sacudidos por ruidosas manifestações de rua em países tão diversos como Sérvia, Bósnia, Roménia, Bulgária e Geórgia. Turquia em convulsão enquanto Erdogan implanta uma ditadura sem disfarce algum. Expansionismo neo-imperial de Moscovo projectando sombras sinistras do Báltico ao Mar Negro, com Putin indiferente às centenas de milhares de vítimas que já causou. Pequim cada vez mais disposta ao assalto bélico a Taiwan, enquanto disputa águas territoriais com Vietname e Filipinas. O tirano da Coreia comunista multiplicando ameaças contra o vizinho do Sul, entre alusões contínuas ao holocausto atómico.

 

Não posso criticar. Também eu, se fosse editor, daria primazia absoluta a estes livros.

O culpado

Ana CB, 21.03.25

Parto do princípio que entre os leitores fiéis deste blogue há quem goste muito de viajar, e não devo andar longe da verdade. E agora eu pergunto: porquê? Porque é que gostam (gostamos) de viajar? Nem toda a gente é como nós. Conheço várias pessoas (até na minha família próxima) que preferem não sair da sua zona de conforto, contentam-se em ver o mundo em fotografias ou na televisão e não têm curiosidade em ir pessoalmente àqueles lugares, por mais maravilhosos que pareçam. Não se trata de terem medo de andar de carro, ou barco ou avião; também não é por não saberem o que é viajar, porque já o fizeram numa ou noutra ocasião, e até nem desgostaram de todo; é simplesmente por falta de vontade, de interesse.

Então porque é que umas pessoas têm o bichinho das viagens e outras não? Será uma questão genética? Terá a ver com a educação? Porque a primeira vez que viajaram foi tão boa que procuram repetir a experiência uma e outra vez? Para colmatar uma carência, uma necessidade?

Bom, lamento dizer-vos que não sei qual é a resposta. Se calhar nem existe uma resposta, provavelmente cada um terá a sua… Mas no meu caso sei, conheço perfeitamente uma das razões pelas quais tenho desde muito nova uma grande paixão por viajar.

Senhoras e senhores, apresento-vos o culpado do meu desassossego:

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Sim, é um livro. Chama-se precisamente “O Grande Livro de Viagens” e foi editado pelas Selecções do Reader’s Digest em 1970.

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Entrou em minha casa pelas mãos do meu pai, a pessoa de quem terei certamente herdado um gene de viajante, se houver alguma influência hereditária no caso (da minha mãe não foi, que ela pertencia mais ao género de viajar no sofá). Eu era miúda, e este livro foi para mim uma revelação.

Antes que comecem a achar que sou um bicho estranho, estou a falar de uma época em que só tínhamos televisão (a preto e branco, claro) durante algumas horas por dia e tudo o que líamos – jornais, revistas, livros – ou víamos em casa ou no cinema era cuidadosamente filtrado e censurado. E obviamente que coisas como vídeos, computadores ou internet não existiam nem nos nossos sonhos. A quantidade de informação que nos chegava era muito reduzida e vinha a conta-gotas, às vezes com grande atraso. Outros tempos.

Não é por isso de admirar (acho eu) que abrir este livro tenha sido para mim um bocado como abrir a caixa de Pandora – mas sem a parte dos males, só a do mundo. Fiquei fascinada pelas fotografias que me mostravam lugares que eu nem sequer imaginava, e à medida que fui lendo os textos mais fascinada ainda fiquei. São cinquenta textos, cada um sobre o seu local ou país, todos escritos por autores diferentes. Textos que vão muito para lá do básico e são verdadeiras histórias de viagens, daquelas que dá gosto ler. É claro que no meu imaginário não sedimentaram todos eles de igual modo – ler sobre o mercado de queijo na Holanda (eu, que detesto queijo…), sobre um casamento marroquino ou sobre os lutadores de Sumo, só para citar alguns exemplos, não despertou em mim qualquer interesse especial. Mas a verdade é que muitos (grande parte) dos lugares que ainda estão na minha lista de desejos, aqueles que eu me lembro de querer visitar desde sempre, se encontram neste livro – e estão nessa lista sobretudo por causa dele.

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Quando há uns anos quis “revisitá-lo”, descobri que na casa dos meus pais terá ido parar a parte incerta, escondido provavelmente atrás ou debaixo de alguns dos muitos livros que eles tinham. Por sorte, consegui descobri-lo (e barato!) num alfarrabista, e agora sou a feliz proprietária de um exemplar. Está meio desbotado, tem as folhas amarelecidas e cheira a mofo, mas ainda está em bastante bom estado. Pode parecer um disparate, mas fiquei felicíssima no dia em que o recebi. “Trauma” de infância, certamente…

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Também é claro que é um livro bastante datado. Muito do que ali está escrito hoje já é diferente, e nos nossos dias qualquer smartphone baratucho tira fotografias melhores do que as que ele tem. Mas esse acaba por ser outro dos seus motivos de interesse, ver como alguns lugares mudaram tanto em cinquenta anos, e outros mudaram tão pouco. Um dos exemplos de maior mudança é precisamente o nosso país. O texto que fala de Portugal, escrito por André Visson e que tem o (óbvio!) título de “Jardim da Europa à beira-mar plantado”, mostra-nos um país de pescadores, varinas e apanhadores de uvas descalços, onde “ninguém terá dúvida de que (…) reina o homem. Nas estradas da província, por exemplo, vêem-se mulheres com toda a espécie de volumes à cabeça (…) enquanto os homens seguem montados em burros, ou as acompanham a pé, com as mãos nos bolsos”. Um país de que já estamos um bocado longe – embora muito do que aqui se diz sobre Portugal e os portugueses continue a ser verdade.

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Passados estes anos todos, ainda só estive em talvez uma dúzia dos locais de que este livro fala. Continuam por cumprir muitos dos meus desejos de viagem, embora já tenha realizado vários outros que surgiram entretanto e foram mais fáceis de concretizar. A alguns deles planeio ir mais ou menos a curto ou médio prazo, outros continuarão mais tempo na lista, e outros ainda surgirão entretanto. Ao contrário dos livros, e sobretudo os de viagens, que são estáticos e congelam os lugares no tempo, nós, as pessoas, estamos sempre a procurar, a descobrir, a aprender, a conhecer novos lugares – e este é, afinal, um dos maiores prazeres da vida.

(Adaptado de um post do blogue Viajar Porque Sim)

Viagem de Inverno, de Maria Filomena Mónica

jpt, 22.02.25

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Uma amiga chega ao café do bairro e dá-me este "Viagem de Inverno" (Relógio d'Água, 2024), de Maria Filomena Mónica, acompanhado de um - até displicente - "passei ali pela Bertrand e achei que gostarias deste...". Eu angustio-me num "mais um livro!", a somar à cordilheira doméstica da minha dívida de leituras. Sei que este me chega às mãos por efeito de algumas conversas naquela mesma esplanada onde a autora também foi tema - há meses li-lhe com agrado a biografia de Eça de Queirós, entre outras coisas. Beijo a querida amiga, e generosa - e é-o muito para além da oferta do livro...

À noite avanço, devagar, no livro, pequenos textos de opinião e algumas crónicas, publicados na imprensa nas últimas duas décadas, todos com 2 ou 3 páginas. Arrumados por tópicos, os primeiros sobre o estado da nossa sociedade, depois como vai o país, o regime político, por aí afora. Sorrio, face ao pertinente cristalino do que vou lendo. Não que concorde com tudo o que ali está, claro - em especial franzo o cenho diante do apreço pela círculos eleitorais uninominais que M.F.M., demasiado britanófila, defende. Mas mesmo assim sigo agradado com a incisiva inteligência, suavemente apresentada, como se "deixada cair". Tanto que digo para a almofada - e presumo que se a autora viesse a ouvir isso decerto se abespinharia - "isto devia ser o manual daquela disciplina de Educação para a Cidadania", essa mesmo que põe uns punhados de tontos a espumar... 

Mais para a frente leio, e de novo sorrio face à inteligência alheia, clarividente de nada bombástica: "Vivo em paz com a banalidade da vida democrática. Não  preciso de utopias nem considero que exista uma crise de valores" (81-82).

E chego ainda este trecho, que desconhecia, uma pérola mesmo: "Sinto-me mais afastada da gente que, em 1789, se sentou ao lado esquerdo da Assembleia Nacional reunida em Paris do que de J. S. Mill que, em 31 de Maio de 1866, virando-se para os Tories, disse no Parlamento britânico: "Não quis dizer que os Conservadores sejam geralmente estúpidos; o que pretendi afirmar foi que as pessoas estúpidas são geralmente conservadoras". (88).

E logo me lembro destes "estúpidos", imensamente estúpidos, que por ora peroram, entusiasmados com Trump, Vance, Musk... Fecho o livro, apago a luz. E durmo. Hoje lerei o resto.

Encomendar livro

jpt, 22.02.25

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Foi na plataforma editorial bookmundo que alojei o meu livro "Torna-Viagem" (que só se compra através de impressão por encomenda nesta ligação). O qual o Pedro Correia teve a gentileza de aqui elogiar, em modo até hiperbólico. Ora a dita plataforma está a fazer uma promoção até meados de Março, período durante o qual não cobra os custos do envio postal de encomendas de 10 ou mais livros.
 
Por isso ocorreu-me perguntar nas minhas contas nas redes sociais (Facebook, Instagram e a telefónica Whatsapp) se ainda haveria interessados em comprar o livro. Interessados mas renitentes (ou desajeitados) em "comprar na internet"... E se entre eles se juntaria a tal dezena de exemplares. E - afinal! - ainda os encontrei, aos interessados, até agora já 40. Assim farei uma encomenda dessas dezenas de exemplares e depois reenviá-los-ei. 
 
E se algum visitante deste Delito de Opinião tiver interesse no livro poderá associar-se a esta encomenda conjunta, contactando-me por mensagem (nos comentários ou no email maschamba@gmail.com), dizendo-me a morada respectiva e combinando o pagamento da encomenda. 
 
 
 

Eça de Queirós no Panteão Nacional

jpt, 08.01.25

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1. Eça de Queirós foi mesmo um excelente escritor - ainda gosto mesmo muito do "A Ilustre Casa de Ramires", para além de outras obras. E continua a influenciar-nos imenso: basta ver a quantidade de patetas que se deixam retratar nesta pose, com a cabeça apoiada na mão, como se lhes pesasse um algo (que assim evidenciam inexistente).
 
2. A ideia de um "Panteão Nacional" como edifício que "albergue os restos mortais dos nossos mais ilustres, que se vão da lei da morte libertando" (ler isto em tom enfático, de voz cava e pausada, qual declamador de antanho, sff) é digna de ... cendrário.
 
3. A "polémica" sobre se Eça teria aceitado ou recusado o seu depósito num panteão (republicano, de cidadãos endeusados) é interessante, pois mostra como tendemos a tornar o passado num amontoado de frutas cristalizadas. Daquilo que dele li (e não sou um queiroziano, valha-me a Razão...) a este propósito retiro uma ideia: o Eça ainda jovem invectivaria esta hipótese, com o seu típico sarcasmo rutilante; o Eça quarentão aceitaria, se lhe pagassem adiantado o contrato de utilização das ossadas próprias; e um Eça sexagenário ou septuagenário - se a isso tivesse chegado - ficaria impante se lhe aventassem a possibilidade”..
 

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4. Folclore - republicano e mercantilista - à parte, esta barulheira é uma boa causa para se ir às estantes, a (re)ler o homem. Eu saquei este "Uma Campanha Alegre" - era para ontem à noite, mas fiquei a ver o Sporting-Porto, mais um passo para alargarmos o Panteão Leonino.
 
5. Li ontem aqui que este ano é o bicentenário de Camilo Castelo Branco (urram os camilianos, sempre avessos aos queirozianos). O que terá sido algo esquecido pelo Estado (e pela academia) - à imagem do acontecido o ano passado com a efeméride camoniana, que tanto atrapalhou os traumatizados com o "Império". Prepare-se pois mais uma gaveta endeusadora.

Livros: doze sugestões de Natal

Pedro Correia, 21.12.24

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AUTOCRACIA, INC., de Anne Applebaum (Bertrand). Lúcida, apaixonada e vibrante defesa da democracia liberal num mundo em que a ameaça dos regimes autocráticos se vai tornando cada vez mais preocupante em diversas latitudes - da Rússia oprimida pela ditadura de Vladimir Putin à Venezuela chavista hoje transformada em narco-Estado sob a força dos fuzis, sem esquecer a anquilosada teocracia iraniana, especializada em enforcar jovens que se atrevem a contestar os dogmas islâmicos e em torturar mulheres por ousarem sair à rua de cabelo descoberto. Sem achismos, com muitos dados factuais, o que torna este ensaio político ainda mais aliciante.

 

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O FIM DAS POLÍTICAS DE RAÇA, de Coleman Hughes (Guerra & Paz). Oportuno e desassombrado ensaio de um jovem colunista e comentador norte-americano que critica com dureza os movimentos racialistas prontos a atribuir todos os males do mundo à "culpa do homem branco", num infindável cortejo de atrocidades. Filho de pai norte-americano com origem africana e de mãe natural de Porto Rico, Coleman Hughes insurge-se contra o espírito de seita dos activistas ultra-radicais que acusam todos os brancos do pecado mortal da escravatura, merecendo penitência perpétua. Defende o "daltonismo" racial como proposta revolucionária. Para ele importam as ideias, não a cor da pele.

 

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A MULHER DO MEIO, de Ivone Mendes da Silva (Língua Morta). Há livros inclassificáveis. Este é um deles. Diário sem datas? Crónicas? Microcontos? Fragmentos de romance em construção? Paira aqui um ambiente de novela campestre inglesa do século XIX. Longe da multidão, Ivone Mendes da Silva descreve um quotidiano circular e sincopado, mas onde não faltam notas dissonantes. Observa com minúcia o que a rodeia - pessoas, animais, flores, cores, luzes, sombras. Este é o seu reino - só com pontos, sem uma vírgula. "Tenho às vezes insensatos desejos de viagem que nunca concretizo." Acima de tudo, a qualidade de escrita impera nesta obra de 2019 agora reeditada. Resgatando palavras bonitas, com sabor antigo: esparso, esgarçado, aprumo, afinco, afadigar.

 

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DE QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE DIREITA, de Jaime Nogueira Pinto (Bertrand). Estimulante ensaio com intuito pedagógico de um dos raros intelectuais portugueses que se intitulam de direita sem sentirem necessidade de se chegar cada vez mais ao centro. Mas existem várias direitas, não apenas uma, ao contrário do que alguns mais apressados ou superficiais supõem, reproduzindo catalogações esquemáticas. De meados do século XIX aos nossos dias, Jaime Nogueira Pinto conduz-nos em visita minuciosa a esse hemisfério, tantas vezes desconhecido e estigmatizado. Com escrita ágil, elegante e esclarecida.

 

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A NOITE MAIS SANGRENTA, de João Miguel Almeida (Manuscrito). Relato algo sumário, mas com sugestiva atmosfera daquela noite de terror do 19 de Outubro de 1921, quando uma alegada "camioneta fantasma" carregada de militares e civis com vocação para o homicídio conduziu à morte, por execução sumária, o presidente do Governo cessante, António Granjo, um liberal moderado, suprimindo também a tiro dois heróis da revolução republicana desencantados com aquela demencial república: Machado Santos e Carlos da Maia. Foi a página mais sinistra do regime implantado em 1910 e viria a apressar o seu fim, traçando-lhe um epitáfio nada lisonjeiro.

 

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JOHNNY MAN, de João Van Zeller (Afrontamento). Livro de memórias com mais de 500 páginas, um tanto desequilibrado e demasiado exaustivo em aspectos secundários, mas com um segmento fundamental, centrado no fim da presença portuguesa em Angola. Van Zeller viveu alguns anos em Luanda, acompanhou tudo de perto em 1974 e 1975, assistiu à rápida derrocada, teve de sair à pressa para nunca mais voltar - como aconteceu com centenas de milhares de compatriotas. Testemunho importante sobretudo para historiadores futuros. Meio século depois, urge pôr fim ao tabu sobre a desastrosa descolonização portuguesa e os regimes de pendor totalitário que deixámos instalados em Bissau, Praia, São Tomé, Luanda e Lourenço Marques.

 

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A TRADUÇÃO DO MUNDO, de Juan Gabriel Vásquez (Alfaguara). Este volume resulta de um ciclo de conferências do consagrado escritor colombiano a convite da Universidade de Oxford. Juan Gabriel Vásquez faz aqui uma fascinante digressão por obras-primas da literatura mundial: Em Busca do Tempo PerdidoGuerra e PazMemórias de AdrianoCem Anos de SolidãoConversa na CatedralO Coração das TrevasLord JimO Bom Soldado, Beloved. Partilhando com os leitores algumas das suas paixões literárias. «Tornamo-nos homens (ou mulheres) enquanto lemos - em busca de algo similar, temos, pois, recorrido à ficção ao longo dos séculos», conclui. Impossível não nos sentirmos contagiados por ele.

 

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O HOMEM MORTO, de Luís Naves (Astrolábio). Romance quase policial que durante cerca de dois terços parece integrar-se num género literário popularizado por Patricia Highsmith sobre homens solitários que vivem cercados de ameaças imaginárias e num quadro mental que oscila entre a neurose mais delirante e a amoralidade mais completa. Obviamente ambientado em Portugal, numa vila de província, mas em época imprecisa, que tanto pode ser um futuro próximo ou um passado nada distante. Pondo em paralelo a corrupção moral dos indivíduos com a degeneração da sociedade e a corrupção no país. No terço final ocorre uma incursão talvez demasiado rudimentar pela sátira política que desgradua o eixo ficcional. Mas merece elogio pela escrita ágil que prende o leitor do princípio ao fim.

 

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CONVERSAS SOBRE A FÉ, de Martin Scorsese e Antonio Spadaro (Casa das Letras). Livrinho que resulta do diálogo entre o cineasta norte-americano e um sacerdote italiano seu amigo sobre a relação entre crença religiosa e sensibilidade artística. Scorsese - nascido em Nova Iorque numa família de imigrantes italianos - confessa com notável franqueza a sua relação muito próxima com o Deus do catecismo. É católico, acredita na graça divina e a sua obra cinematográfica está impregnada desta crença. Confidencia que alimentou o sonho de filmar o Evangelho Segundo São Mateus até perceber que Pasolini se tinha antecipado. Declarações que constituem nova chave para compreender filmes como Os Cavaleiros do Asfalto, Taxi DriverO Touro EnraivecidoTudo Bons Rapazes e Casino

 

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COMO ESCREVER, de Miguel Esteves Cardoso (Bertrand). Nos dias que correm, abundam os livros de "escrita criativa", muitos dos quais assinados por gente com reduzida aptidão tanto para escrever como para ensinar. Um dos mais influentes e experientes cronistas portugueses, com suave intenção irónica, desmonta nas entrelinhas esses manuais que enxameiam as prateleiras. E diz-nos, muito a sério, como tudo deve começar. Terá sido assim com ele ao vencer pela primeira vez o fantasma da folha em branco. Passo a passo, sem ter medo. Consciente de que «escrever não é um passatempo, ou uma arte, ou uma competição de talentos: escrever é o nosso melhor meio de expressão.» Um dos mais recomendáveis livros de 2024 em Portugal.

 

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O OUVIDOR DO BRASIL, de Ruy Castro (Tinta da China). Conjunto de 99 crónicas originalmente publicadas na imprensa tendo como denominador comum um nome maior da música popular do século XX: Antônio Carlos Jobim (1927-1994), que o autor conheceu bem no exercício da profissão de jornalista em que atingiu o patamar supremo de talento e fama. Aqui mergulhamos na paisagem artística e boémia do Rio de Janeiro e no inigualável mundo da bossa nova, precioso contributo do Brasil para o mundo. Ruy Castro desvenda segredos de Jobim com uma leveza de escrita que nunca deixa de ser profunda.

 

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VERMELHO DELICADO, de Teresa Veiga (Tinta da China). Ficção de pequeno formato com inegável qualidade. Confirma-se a capacidade de efabulação de Teresa Veiga, com uma escrita expurgada de adornos verbais: sente-se que mantém o gosto de narrar uma boa história. Num estilo muito próprio, mesclando simplicidade e complexidade em doses sábias, com insólitos desfechos que surpreendem e seduzem o leitor. Destaque para três contos dignos de figurar em qualquer antologia do género: "A Estalagem de Aldebarã" (o primeiro e maior), "Equinócio da Primavera" e o que dá nome ao livro.

Nos 100 anos do cinema Tivoli

Teresa Ribeiro, 19.12.24

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Para quem adora Lisboa e cinema como eu, não lhe pode ter resistido. Frequento o Tivoli desde criança. Vi nesta sala, com a minha mãe, o incontornável "Música no Coração", numa das várias reposições que lá estiveram. E a Gata Borralheira. E outros filmes de bonecos que me prepararam para outras emoções, mais adultas, tendo sempre o celulóide de permeio. Mais tarde apaixonei-me por Robert Redford, para mim até hoje o homem mais bonito do mundo, quando o vi em "O Grande Gatsby", ao lado de Mia Farrow (desculpa, Leonardo Di Caprio, mas não chegas lá). Tantas vezes saí da velha sala da avenida a flutuar que quando me surgiu a oportunidade de contar a sua história em livro, para assinalar os 100 anos de vida, exultei. Não foi trabalho, foi a possibilidade de poder escrever uma longa carta de amor a um dos amores da minha vida de cinéfila e de lisboeta. Claro que por dever profissional pus de parte a minha história com o Tivoli. Mas ela inspirou-me para ir em busca das muitas histórias que tantos de nós guardámos dele. Garimpei e consegui, acho, demonstrar que não sou caso único. "Tivoli cem anos na nossa vida" (uma edição da UAU, em parceria com a Have a Nice Day) é um tributo a uma das salas mais icónicas de Lisboa onde se conta também o que fomos e vivemos ao longo do último século, através dos depoimentos de muitas das pessoas que lhe deram vida. 

À venda no site da ticketline.

Canto dos Torna-Viagem

jpt, 19.12.24

(José Mário Branco, Canto dos Torna-Viagem)

 "Então é Natal e estás a publicitar os livros dos outros? E o teu", Zé?, amigo alveja-me no Whatsapp, a propósito de eu (merecidamente) louvar/recordar o "Sair da Estrada" do Dentinho...

Ok, tem razão esse meu amigo. Assim aqui fica esta magnífica "Canto dos Torna-Viagem" do José Mário Branco, na qual ele - entre outras luzes - acendeu a "Cândida ignorância / Grande desimportância / Os frutos da errância / Já lá vão...". Que é também a minha.
 
E a qual procurei deixar no meu "Torna-Viagem". Livro que já aqui impingi várias vezes. Fica a insistência, para quem (ainda) se possa interessar durante esta quadra consumista.

Síria, via Paulo Dentinho

jpt, 19.12.24

Sair da Estrada de Paulo Dentinho - Livro - WOOK

É Natal, alguns compram livros para ofertar. E é também época para se ir até às estantes em busca de livros que ainda não tenham sido lidos (talvez até ofertas recebidas...). Ou para reler um ou outro, por completo ou excertos que venham à cabeça, por uma razão ou outra. Aconteceu-me agora com este "Sair da Estrada" do Paulo Dentinho - livro sobre o qual deixei um postal quando o li. 

Certo, sou amigo do Paulo, vamo-nos vendo de quando em vez, normalmente refeições partilhadas em pequenos comités, dados ao escárnio e maldizer, nisso de remoermos "a questão que tenho comigo mesmo", este Portugal nossa pátria amada... E também - mais ritualmente - aos natais de cada ano, quando se junta um grupo mais alargado (e heterogéneo) de amigos e conhecidos com os quais nos cruzámos (ou não) em Moçambique, portugueses que lá vivemos e nos quais o país se entranhou, a cada um à sua maneira.

E foi lá que nos fizemos amigos - e um dos tijolos disso foi uma situação peculiar: eu já passei por algumas agruras, no meu "Sair da Estrada", que também o fui tendo. Mas nunca me acontecera, nem voltou a acontecer, estar sentado com um amigo (ele-mesmo, pois claro - então correspondente da RTP em Maputo) e virem-no ameaçar de morte: "Dentinho, aqueles ali estão a dizer que te vão matar!", os molwenes (miúdos de rua) mandados para dizer isso, e nós a levantarmo-nos da mesa para ir ver quem eram os esbirros no tal carro apontado... Isto foi uns meses antes de Carlos Cardoso ter sido assassinado, dois anos depois de Lima Félix ter sido morto, não era brincadeira. "Vai-te embora, Paulo, tens cá as filhas...", resmungava-se-lhe diante da sucessão de ameaças que recebia (aquilo dos telefonemas noite afora), e ele empertigado na sua missão de informar, renitente em sair dali: (e o problema é o Venâncio, clamam agora, um quarto de século depois e sempre para pior, os escritores alapados às benesses do partido-Estado e os visitantes de "esquerda", sorrio, cáustico...). 

Enfim, divago... Lembrei-me do Paulo e do seu livro quando ouvi Morais Sarmento lamentar a inexistência de reportagens da RTP sobre Moçambique, apesar de lá haver uma delegação. Sabendo do que fala, o ex-ministro referiu que ou o correspondente não produz ou - e é o mais provável - as suas peças não são incluídas nos telejornais, por critérios da direcção de informação lisboeta. E lembrei-me das discussões tidas com o Dentinho, naqueles finais de XX. Em Moçambique havia apenas duas estações, a pública TVM e a RTP-África, então inicial. Lisboa estava muito ufana por ter a estação, pensava-a emitindo como se cobrindo o território nacional: pouco interessava que um antropólogo andasse pelo país e dissesse que não era captada nas capitais de distrito nem ... em várias capitais provinciais. Mas em Maputo - no "cimento" - era vista. E as reportagens do Dentinho tinham ali impacto. E provocavam resmungos locais, dado o tom espectacular que tinham. Lembro-me de com ele protestar devido a isso, pois causavam algum mal-estar entre os nossos "anfitriões": um caso célebre foi uma reportagem dele sobre o antigo zoológico da Beira, cujas abandonadas jaulas tinham sido ocupadas pela população, que nelas residia. E em Maputo a burguesia nacional contestava essa "imagem" passada no telejornal, eu (e outros compatriotas) secundávamos num "para quê?, Paulo, o fundamental é construir uma boa relação!", cheios de pruridos diplomáticos. E ele a resmungar, defendendo-se - e tinha toda a razão!, uma razão deontológica, jornalística, um zoo habitado por homens é exemplar motivo de reportagem, denotativo, demonstrativo.... -, nisso também referindo que se não forçasse "a nota", a espectacularidade, em Lisboa, na RTP, nada lhe transmitiriam, desinteressados que estavam de Moçambique. E isto foi há um quarto de século, bem antes do extremo frenesim da notícia "lite" que tanto agora predomina.

 

Enfim, entre o lembrar-me disto do Paulo e o ir buscar o livro foi um ápice. O seu "Sair da Estrada" é uma espécie de making of - bem humorado, numa escrita que realça o seu amor pela profissão, e sem "engajamentos" apatetados - de grandes reportagens em 13 países (insisto, escrevi este texto qual recensão). E tem um capítulo (entre as páginas 105-145) imensamente actual, pois sobre as suas andanças na Síria (2012, 2016), durante as quais (também) entrevistou Bashar al-Assad. São páginas que não só elucidam um pouco do que agora vai acontecendo como comprovam o seu olhar arguto sobre as realidades nas quais trabalha: "Vou agora (2012) para a (...Síria) no pressuposto, quanto a mim errado, de estarmos perante o colapso do regime..." (105), "Chadi fala-nos do radicalismo sunita crescente e dessa quase impossibilidade de continuarem a viver lado a lado com eles, como fizeram durante séculos" (110), "os seus receios quanto à agenda rebelde, "eles não são sírios, vêm todos dos países em volta" (118), "na Síria, para os combatentes que se reclamam do Islão Sunita, a corrente maioritária no país, ter na presidência Bashar al-Assad é uma blasfémia. Não só por ele ser alauíta, um ramo do xiismo, corrente religiosa pela qual têm um enorme desprezo, mas também por ele representar um regime laico e igualitário. Repressivo e brutal também." (120),  "o liberalismo de Bashar assenta no modelo chinês. Nem pensar em pôr em causa o partido. E o capitalismo sírio é apenas para alguns "amigos"..." (140). 

Enfim, uma pequena amostra de como o Paulo "apanhou" a Síria. Tal como "apanhou" (até ao osso) Moçambique. E tantos outros locais. 

Ou seja, é Natal. Compre-se, oferte-se, leia-se o "Sair da Estrada" (Caminho, 2021).

Nas esquinas do olhar

Sérgio de Almeida Correia, 16.12.24

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(créditos: Macau Daily Times)

"(...) Sobre a matéria de facto, cumpre-me dizer que quando comecei a rabiscar estas linhas dei comigo a pensar que a literatura, como alguém disse, talvez seja a única arte em que se pode transgredir sem culpa. A única em que, recuperando o poliptoto que nos idos de 1968 se diz ter sido escrito nas paredes da Sorbonne, “il est interdit d’interdire”.

E em que quando se transgride, ainda assim, se distingue facilmente a boa da má prosa, a escrita banal da que tem o condão de nos transportar para uma realidade paralela que nos obriga a descolar, como se fôssemos à boleia de uma espécie de drone para uma outra dimensão do pensar, da estética, dos sentidos, da cor, do espaço, por vezes da própria história que nos está a ser contada.

“Nas esquinas do olhar”, mantendo o rumo inicialmente traçado pelo autor, a sua marca de água, a açorianeidade tingida de azul profundo, projecta-nos para um modo de ver distinto daquilo que nos comunicou n’ “A humidade dos dias” e em “Navegações e outras errâncias”.

O livro que o Luís Mesquita de Melo escreveu, secamente, à primeira vista é uma viagem. E que viagem.

Uma viagem que caminha entre a realidade e a ficção, tornando difícil a distinção entre ambas, não obstante o aviso que o autor faz ao leitor.

Uma viagem na qual o escritor, na evocação de seu pai, que nunca o leu, antes, porque hoje onde quer que esteja poderá fazê-lo e ficará agradado com o que seus olhos virem, assume a tripla condição de alquimista, autor modernista e autor de versos em prosa. Não necessariamente a de um poeta, apesar de tal como este, na pele do protagonista, também concorrer na frequência das leitarias e cafés de Lisboa.

Álvaro dos Reis, figura maior desta viagem, é um produto da alquimia do autor. Herança de um rico laboratório vivencial que conseguiu fundir numa única personagem o “dandy, burguês e blasé”, Álvaro de Campos, que escrevia por impulso – considerando não valer a pena ter ido ao Oriente e visto a Índia e a China, porque “[a] terra é semelhante e pequenina/ E há só uma maneira de viver” (Opiário), para no fim acabar refugiado no ópio –, com o viajante equilibrado, pacífico e harmonioso que era Ricardo Reis. Aquele que um dia decidiu, disse-nos nas Odes, seguir o seu destino, regar as suas plantas e amar as suas rosas, porque o resto, o que fica, “é a sombra/ De árvores alheias.”

“Nas esquinas do olhar” é uma história que começa e acaba nas ilhas. Ou, se quiserem, em muitas ilhas, ainda quando estas assumem forma continental, mas de onde, apesar disso, só se pode sair por mar em busca de uma nova vida.

Há nesta obra uma demarcação meticulosa do autor/narrador das suas personagens, enquanto minuciosamente as descreve.

Surge-nos, por um lado, uma mulher atraente, discreta, subtil, “impossívelmente bonita”. E do outro lado do mundo chega um Álvaro dos Reis com rugas que “lhe despontam nas esquinas do olhar”. Entre os dois interpõe-se um tipo horroroso, vindo de Fujian, que chega com uma pochete Luís Vuitton e comichões nas virilhas.

Álvaro, que fisicamente é “magricela e esbranquiçado, quase transparente a uma certa luz” (p. 21), causando até alguma repulsa a quem lê, contrapõe-se à jovem Thu. Esta, nem alta nem baixa, possuindo um “corpo perfeito e inquieto”, uma espécie de extraterrestre com uma pele que era “coral recém-nascido no mais puro dos oceanos”. Mulher de “curvas e contracurvas”, é marcada por um olhar “terno com traços de tinta-da-china alongados num sorriso sem trincheiras” (pp.23, 24), cujo áo dài (p. 25) encobria um “corpo esculpido por um cinzel divino” (p. 33).

É o autor quem o diz. Eu limito-me a apreciar a beleza das descrições.

E, pensando na sorte do magricela do Álvaro dos Reis, aqui, junto às águas barrentas e descoloridas que nos rodeiam, soterrado na insalubridade do ar, nos perigos do dengue e da escarlatina, nas salmonelas e gastroenterites colectivas, na confrontação com a realidade, quase sonhando, imagino o que será uma mulher com a beleza de Thu, com pele de coral recém-nascido, e tento adivinhar, sem sucesso, já que Álvaro dos Reis não quis partilhar esse segredo com os leitores, fugindo dessa confissão ao narrador, se na noite do Maxim’s o seu colo cheiraria ao azul atlântico do mar ou a Chanel número 5.

No caso de Thu, o leitor não se deixará iludir por tamanha beleza. Era mulher para pendurar o coração dos homens nos seus piercings quando a música parava, coisa que para os eleitos será bastante dolorosa àquela hora avançada no ambiente pesado de um cabaré como aquele que nos é desvendado pelo autor, de onde exalava, seja lá o que isso for, o “cheiro a donaire parisiense misturado com o cheiro de suor doce embebido em pau-de-sabão caseiro e flores nocturnas”. (pp. 26-29)

Psicologicamente, as personagens desvendam-se nos ambientes que quotidianamente frequentam, nas suas rotinas e nos seus sonhos.

Mais, diria, no confronto entre o dia e a noite. Entre a claridade matinal de Lisboa e a decrepitude do escritório do “Cavalo Branco” onde Álvaro dos Reis “aprendeu a escrever a incerteza da justiça com as palavras certas” (p. 41). Entre a alvura de Thu, que desaparece sob o peso dos néones coloridos, e a fealdade da clientela na noite do Maxim’s.

Mas é ali naquele lugar que se desinfectam as saudades e as tristezas (p. 26) e se vêem aportar homens como o chinês, com “os olhos rasgados de fúria” (p. 41) e tatuagens domesticadas (p. 75), a quem escorre a baba por uma boca de incisivos amarelecidos pelo tabaco e a abundância de chá oolong, ladeados, num quadro cru e quase roçando o asco, por uns caninos dourados (p. 42) que sobressaíam a cada palitar dos dentes, por vezes, recorrendo à “unha multifuncional do dedo mindinho” (pp. 50, 51).

Não vou aqui desvendar a trama. Não é isso o que se pretende. Tampouco irei retirar-vos o prazer da leitura.

O leitor é revisitado pel’ “A humidade dos dias”, que se lhe cola à pele por onde quer que se desloque, instalando-se logo com “a luz húmida da manhã” (p. 14) num carrossel que percorre todas as estações e está sempre presente ao longo do livro: “da confiança do final do Verão” (...) “à baixa pressão do Outono”, na sua “luz oblíqua”(p. 31); manifestando-se tanto nas “cores da Primavera na Avenida da Liberdade” (p. 28), como “na luz outonal de um farol que se perdeu no mar” ou nos “olhos legendados de Verões sem fim”(p. 15), cujos restos são sobrevoados por pássaros num voo sem destino (p. 157).

Ou, ainda, “nos dias frios e cristalinos do Inverno onde as noites são mais azuis” (p. 19), num suceder de imagens, estados, emoções e sensações pontuados pelas diferentes tonalidades da luz e de cores que só se conseguem ver na Europa ou na Ásia, como diz o narrador e acontece com Álvaro dos Reis, quando se vive para além do mar, “deixando atrás os olhos de quem quer viver”, e ver, “para além do mar” (p. 17).

Atrever-me-ia a dizer que os marcos que situam a história, tal como a viagem pelas estações do ano e pelos lugares de memória de Álvaro dos Reis, são os mesmos que atravessam toda a vida do narrador, igualmente protagonista e relator de uma história que se confunde com a personagem por si criada, e que numa imagem plena de simbolismo se desembaraça fisicamente da ilha, “sem data de regresso”, para depois ser temporariamente aprisionado pelos estudos antes de voltar a partir.

Reparar-se-á que a libertação é apenas física, o que torna irrelevante saber quando ocorrerá a viagem de volta. O autor será sempre, é, na sua psicologia um irremediável prisioneiro das ilhas e da estética que delas brota nas suas sete partidas do mundo.

Os lugares de memória, que passarão a ser os nossos, estão incrustados na história da viagem que encetou, qualquer que seja o espaço para onde o autor se movimente, fazendo como que haja uma espécie de transplantação do universo das ilhas para o continente, tão presente nas “fumarolas vulcânicas das castanhas assadas à beira da estrada” (p. 19) e nas, para si, ilhéu desterrado, longínquas “conversas continentais”. E esse movimento de vaivém da memória adquirirá sentido inverso no regresso de Álvaro dos Reis, no encontro do Peter, depois do amor ser enterrado vivo.

O percurso do estudante apartado de casa encerra um sentimento de orfandade, quase de perpétua solidão, representado na figura do “desalojado do Atlântico”, no “sem-abrigo do anticiclone” que se refugiava na escuridão das “sessões tardias do Quarteto”. Sessões que, recorde-se, fizeram as delícias de tantos graças à generosidade e à visão, fica a lembrança, do saudoso Pedro Bandeira Freire.

O narrador veste então a pele do protagonista que logo se confunde com este nas descrições taurinas da Boa-Hora, talvez em homenagem a Laborinho Lúcio e aos exemplos que dava aos seus alunos, ali bem perto, no Limoeiro, nas sessões do Centro de Estudos Judiciários.

Enfim, deixando para trás as “festas de Verão dos santos padroeiros” (p. 21), marcadas pela “roupa a cheirar a América” (idem), em espaços e detalhes a que, compreensivelmente, por eu não ser um Açoriano extraviado da minha geografia, sou estranho, tudo o que Luís Mesquita de Melo escreve vem com uma bússola pessoal que o situa, rodeia e acompanha qualquer que seja a geografia por onde navegue. E que acaba por se revelar nos cheiros e nas estações do ano, assim fazendo com que o leitor viaje entre as suas constelações, os seus espaços de memória, quase que diria, atrevo-me a dizê-lo, autobiográficos, como se quem lê acabasse por ser parte da própria trama.

Mas “Nas esquinas do olhar”, mais do que uma viagem ou um livro em forma de viagem, que isso já era “A humidade dos dias”, talvez involuntariamente, e aqui entramos na ausência de consenso, na provocação, encerra um verdadeiro livro de viagens, de um amante destas e dos grandes espaços.

À semelhança de Bernardo Soares, o autor apresenta-se com o seu Álvaro dos Reis como pertencendo, no que confesso também me revejo, “àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem” e que “não vêem só a multidão” (Livro do Desassossego, Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido...).

Essa é uma virtude atlântica irrepreensível que o autor cultiva e lhe dá horizonte, permitindo-lhe viajar, permanecer e mergulhar, com Álvaro dos Reis ou no lugar do narrador, mais do que nas esquinas do olhar, no interior do mundo que o rodeia.

E depois segue na peugada de Mark Twain (Innocent Abroads, 1869), por exemplo, aqui citado a partir de Theroux, quando este nos recorda que “a viagem é fatal para o preconceito, a intolerância, a estreiteza de espírito, e muitos dos nossos precisam urgentemente dela por causa dessas coisas. Visões largas, sadias e benevolentes de homens e coisas não se podem adquirir vegetando toda a vida num cantinho da Terra”. O autor e Álvaro dos Reis sabem isso.

Em certa medida é o que o Luís Mesquita de Melo escritor faz com este livro, fazendo finalmente viajar muitos leitores, não apenas os que nunca saíram do Faial, que não tendo nascido numa ilha, e ficado prisioneiros de uma qualquer açorianeidade mais ou menos longínqua, viveram na Ásia, fosse em Macau, em Hong Kong, no Vietname, sem nunca a terem conhecido. O autor retira-os do preconceito e oferece-lhes com este seu livro um bilhete que lhes dá acesso a um mundo, riquíssimo nas suas especificidades, que tendo estado ao seu lado nunca foi deles conhecido ou desvendado.

E quando nisto penso legitimamente me perguntarão o que se vê. E quem vejo?

Releia-se então “Le Voyage”, nas Flores do Mal, e aqui encontraremos a criança que amava mapas e selos, desejosa de conhecer um universo igual ao seu apetite.

Também Álvaro dos Reis se apresenta como os verdadeiros viajantes. É esse espírito que surge quando admite partir, ir à procura da sua América para o lado contrário, para oriente, indo para a grande China como um livro em branco (p. 55), na busca de Macau, ante o “assombro da lonjura” (p. 49), “da quinta dimensão da lonjura” (p. 57), “a razão para dizer adeus”.

E é ele quem nos diz, ao contrário do vulgar turista, que “a viagem nunca acaba, só os viajantes se perdem, atirados para fora da estrada, quando morrem ou quando desistem” (p. 49). E não há que temer a partida, pois que quem fica é que se lembra, toda a vida/ Das saudades de quem parte/ E dos olhos de quem morre.

Ele, autor, ou o seu Álvaro dos Reis, poderia ser um deles, um dos que, como R. L. Stevenson, não viajava para ir a parte nenhuma, mas para ir, viajando pela viagem.

Ou, ainda como escreveu Baudelaire, aquele viajante que parte para partir, com o coração leve como se fosse um balão, que nunca se afasta do seu destino, e que sem saber porquê diz sempre “Vamos!”

Mais les vrais voyageurs sont ceux-là seuls qui partent

Pour partir; cœurs légers, semblables aux ballons,

De leur fatalité jamais ils ne s'écartent,

Et, sans savoir pourquoi, disent toujours: Allons!

E à semelhança do que nos deixou Rimbaud, em “Bateau Ivre”, depois cantado e por tantos amado na voz única de Leo Ferré, também o Álvaro dos Reis protagonista, ou o Luís Mesquita de Melo autor, viajante, velejador, mergulhou nas águas do Poema do Mar, conheceu “os céus crivados de clarões, as trombas,/ Ressacas e marés”, viu o entardecer, viu “[a] Aurora em explosão como um bando de pombas”, e algumas vezes viu “o que o homem quis ver”.  

Sem remorso digo que quase todos os espaços que o autor descreve, em Lisboa, em Macau, quando se refere ao jetfoil Horta, que a tantos de nós transportou, ou quando evoca a velha e terna Saigão, recuperada no Continental, na Ópera, no Rex, no Majestic, coloca-nos em mundos que são, nos foram ou se tornam, para quem não os conheceu, infinitamente familiares.

Alguns tê-los-ão percorrido antes, outros irão percorrê-los na leitura. E sem o sabermos estaremos juntos caminhando, porventura em noites iguais, numa solidão acompanhada na exacta medida da proporção dos nossos dramas e dos nossos sonhos.

E hoje, graças às esquinas do seu olhar, estamos a revivê-los. Tanto nessas imagens como na evocação de Duras, na lindíssima imagem dos amantes percorrendo as ruas sinuosas, connosco leitores, passageiros da Vespa que nos leva por uma imaginária Salerno oriental e ao longo da esmagadora costa amalfitana.

As descrições de uma Macau e de espaços e figuras que desapareceram, caso do polícia sinaleiro no cruzamento da Praia Grande com a Almeida Ribeiro, ao lado de outros que teimosamente sobrevivem, como o Hotel Metrópole, com a chinesa que “cantava afinada dentro de um cheongsam com cores a mais e sílabas a menos” (p. 77), não podia faltar.

Enfim, o leitor é colocado perante lugares, na maioria perdidos no tempo, perenes na lembrança, que terão sido em algum dia familiares a muitos dos que nas décadas de oitenta e de noventa do século XX aqui desembarcaram.

Na memória permanecerão como metas de encontro, boémia, encantamento, paixão, partilha e saudável perdição. Numa noite que era, di-lo o narrador com a autoridade de quem por ela deambulou à boleia de Álvaro dos Reis, não do autor, uma “espécie de caleidoscópio, a cheirar a jogo, sexo e improviso” (p. 76). Ao que me limitaria a acrescentar, por experiência própria, o cheiro a mofo e a tabaco ordinário que se desprendia das alcatifas húmidas, dos veludos coçados e queimados por pontas de cigarro, por vezes pegajosos, tudo agora recuperado e para sempre gravado na escrita apurada e actual do Luís Mesquita de Melo.

Memória que, como a vaga que entra por terra, percorre uma Hong Kong já afundada ao largo do porto de Vitória, e que nesse tempo era “uma janela para o azul” (p. 81), entretanto levada nas asas dos aviões que sobreviveram ao rendilhado que precedia as aterragens de Kai Tak, na solitária herança deixada pelas longas noites de Suzy Wong ou de um qualquer Joe Bananas.

É essa memória que, não obstante a distância, logo faz o autor regressar à imagem de sua casa, único refúgio de onde brota essa belíssima “claridade líquida que encharca os olhos de insularidade viciante”. E prazer.

Tudo por oposição à falta de dimensão atlântica e de cor desta espécie de mar pastoso e cada vez mais fechado que nos rodeia e que propiciou, de tão lamacento, o aparecimento dessa fauna, espelhada na genuína figura do chinês com sangue incolor que geria o apartamento da Areia Preta, numa feliz súmula de agiota, cabeça-de-cobra, bate-fichas e proxeneta, com os “dedos amarelados do tabaco e as unhas esverdeadas dos feltros das mesas de jogo” (p. 136).

Retrato que é também a recuperação de algumas figuras características que por aqui ganharam importância, enriquecendo na exploração de lupanares e cantinas oleosas e malcheirosas, e que por aí, em menor número, é certo, ainda pululam, à civil, quais anões, participando mascarados em regulares desfiles patrióticos, dando cabo de todo o coral, incluindo do mais vetusto, traficando as Thu desta vida e corrompendo sempre que possível quem se atravesse no seu caminho.

De uma forma ou de outra, o autor desdobra-se em vários eus. No ilhéu que parte e no que fica, no contador de histórias, no fadista, no viajante, no músico com quem partilha gins tónicos, atingindo o seu epicentro nas descrições do velejador experiente que na profusão de termos e imagens náuticas sofre com o “gemer constante das escotas nos molinetes de bronze”, assistindo ao “lamuriar do casco que vai estalando os ossos a cada solavanco” (p. 148), num léxico diarístico muito especial e já presente em escritos anteriores, verdadeira expressão do poeta discreto e tímido, refugiado no seu caderno, vagueando por uma prosa rica na sua simplicidade e roupagem – “prosa transatlântica”, chamaram-lhe – , e que a espaços se acomoda nos trechos de poemas que intercalam a narrativa e que o autor vai buscar a Álvaro de Campos, a Pessoa, a Pedro Támen, a O’Neil. Mas também a outros menos convencionais como Ary dos Santos, acima citado, Homem de Mello e Jorge Palma, porventura em resultado dos seus próprios estados de alma.

Indispensável é uma nota ao excelente diário de bordo, espécie de filme autónomo enxertado na narrativa. 

*

E lavrado que está este sumário dos factos e dos argumentos, gostaria de aqui deixar algumas notas finais, isto é, as conclusões, ónus que me foi imposto quando aceitei o convite. Até porque sem conclusões uma peça fica sempre amputada.

Espero, todavia, que a sua brevidade não as torne deficientes ou obscuras, o que seria sempre penoso para quem me trouxe e, em especial, para vós que tendes a bondade de estoicamente me escutar até aqui.

Faço-o, todavia, com a advertência de que não irei completá-las em momento posterior. Nessa altura, o Luís Mesquita de Melo prosador, contista, poeta, viajante,  que sabe que os aguaceiros têm horas, era capaz de atirar borda fora este seu leitor sem esperar por o ver encharcado.

Escrever, como o autor bem sabe, não é fácil e exige o domínio da arte.

O Luís Mesquita de Melo sabe que isso é fundamental. E assume-o, qual Álvaro de Campos, quando nos diz que “escrever é uma espécie de cavalgada a galope procurando palavras escondidas ao acaso pelo deserto” (p.30). Escrever é “a procura incessante da escrita” (pp.55, 56).

Mostrou, antes e de novo neste livro, qual Ricardo Reis, que sabe manejar essa arte com a destreza e a elegância com que o bom esgrimista usa o sabre, o florete ou a espada.

Isso dá-lhe uma responsabilidade acrescida em tudo aquilo que escreve.

Um escritor, ao construir a obra, molda o seu estilo; este passará a ser a sua marca distintiva, uma espécie de tatuagem eterna. Irá transportá-la consigo ao longo da vida.

O leitor, e aqui não fala o amigo nem o advogado que patrocina o prosador, é o primeiro a identificar o estilo do escritor. Dos que têm estilo, evidentemente. E o que aqui está connosco tem estilo próprio, já evidenciado nos livros anteriores.

“Nas esquinas do olhar” é uma extensão do que vem de trás. Lê-se com curiosidade e gosto porque o autor sabe que é a escrita, e neste caso a boa escrita, que procura o escritor (p. 56), e que de qualquer lado se pode ver o Universo, desde que para tal se tenha engenho e nos saibamos colocar na pele do outro. E isso é algo que não depende da altura de cada um.

O Luís Mesquita de Melo é na sua escrita um pouco como aquele a quem Baudelaire perguntava no poema:

"‘Eh! qu'aimes-tu donc, extraordinaire étranger?

- J'aime les nuages... les nuages qui passent... là-bas... là-bas... les merveilleux nuages!"  (L’étranger, Petits poèmes en prose, 1869)

Com este pequeno romance, o Luís Mesquita de Melo entra por direito próprio, ao invés de outros que para aí publicam sem que percebamos por que raio escrevem, ou versejam com erros, na galeria dos escritores que sabem escrever, dos escritores que sabem português. E esta é uma bênção para nós, portugueses, que o lemos.

Como amigo desejo ao Luís escritor que tenha sucesso. Que venda muitos livros.

Como leitor sou bem mais exigente. Quero que o Luís continue a escrever, sem alinhar em modas, por natureza efémeras, nem enfileirar na escrita por atrevimentos woke ou neo-realistas que só banalizam, quando não raro descontextualizam a beleza da escrita, danificando a língua e a fragilidade do coral recém-nascido.

Que o Luís faça como na canção de outro Açoriano, como o Tiago Bettencourt: se o vento empurrar suas velas de algodão, ele que se deixe levar acertando a direcção. E se o vento o impelir para bem longe da razão, que aprenda a seguir acertando a direcção, acertando a direcção.

Escrever, creio, é uma acção que deve ser empreendida, inclusive no sonho, com olhos de ver. Para que a escrita seja o reflexo do que os outros não vêem, e do que o escritor vê e quer que os outros consigam vislumbrar. E compreender. Aí se revela o seu verdadeiro desafio, a beleza e a perenidade da boa escrita. E a boa escrita, a boa literatura, como ele bem sabe, para onde quer que o vento nos leve, é intemporal.

E para isso basta que o Luís Mesquita de Melo mantenha presente o que de mais importante nos ensinou esse outro eu que de nós se emancipou e por aí andou, e ainda anda, guardando sonhos e alimentando rebanhos de tresmalhados sob o nome de Alberto Caeiro, bastando-lhe jogar na estrofe com que termino com o ver e o escrever:

O essencial é saber ver,

Saber ver sem estar a pensar,

Saber ver quando se vê,

E nem pensar quando se vê,

Nem ver quando se pensa

Vai por aí, Luís. Há sempre um livro em branco à espera do futuro."

Macau, 14 de Dezembro de 2024

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