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Delito de Opinião

Rumor Civil

jpt, 19.03.24

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Cada vez menos leio ficção ou poesia. E vou lendo estas colectâneas do passado, crónicas ou (é este o caso) textos de opinião - a quem o novo cânone chama também "crónicas". Descubro agora nas estantes este "Rumor Civil", uma colecção de textos de Nuno Brederode dos Santos (1944-2017), publicada pela Relógio d'Água em 1990. Com ele cheguei a privar, escasso convívio intermediado por amigo comum em já enubladas noites no "Procópio", onde ele era figura predominante. Eu ainda jovem, cabelo azeviche, talvez exageradamente radical pois pouco atreito àquele que já então considerava um apparatichk das letras, ele já bastante velho - mais novo do que eu sou agora... Brederode era um fazedor de opiniões, colunista afamado do "Expresso" quando isso era relevante, fervororo paladino socialista, e disso tinha o perfil e o teclado. Escrevia bem e era caústico, alinhado mas caústico, justiça lhe seja feita. E culto, nota-se na leveza - por vezes irónica, outras sarcástica, mas também sensível - com que deixava transparecer o percurso de leituras havidas.

Esta colecção abarca de 1985 a 1990, o primeiro quinquénio do "cavaquismo", e é nisso muito interessante, fazendo recordar o acinte de então. E se alguns textos envelheceram por "de ocasião" em demasia, outros são relevantes por demonstrarem o ambiente cultural (e de cultura política) daquela época, e que tanto persistiu e persiste. Por exemplo, foi de Brederode o abjecto elitismo do "socialismo" maçónico - tão continuado pelos adeptos PS até ao final do mandato de presidencial de Cavaco Silva, e que continuam a repetir em formato avatar, sem pudor e sem abdicarem da caraça "esquerda" - "foi fácil tirar o homem de boliqueime, mas agora não conseguem tirar boliqueime do homem" (121). E é até engraçado ver como em plenos finais dos 80s o reaccionarismo da "esquerda" encartada era tão impante que lhe aplaudiam um texto aviltando a CEE por regulamentar a criação avícola - hoje o homem seria lapidado como CHEGA pelo PAN, mas será conveniente recordar que aquela década foi a da disseminação europeia da sensibilidade política ecológica... mas que no "Portugal da CEE", à Lisboa que abominava "boliqueime" e lia o "Expresso", isso ainda não tinha chegado.

Mas não quero exagerar os remoques diante do livro. Pois ele é precioso não só no que denota como também no que explicita e recorda. Como quando Brederode aponta os que então queriam controlar o acesso às fotocopiadoras, por serem uma tecnologia estratégica... Parece-nos ridículo, agora, essas preocupações em finais dos anos 80s, dos descendentes dos tempos da "outra senhora", os antepassados do socialista José Magalhães, coisas de que nos esquecemos...

Mas mais interessante será recordar, em particular aos agora adeptos do PS, o que dizia em 1987 o socialista Brederode dos Santos no "Expresso". Tão interessante que deixo a longa citação: "Aquilo que, de 1985 [eleição de Cavaco Silva] para cá, mudou foi o modelo de relacionamento entre o poder político e o poder económico - que passou do piropo avulso e do apalpão furtivo a algo de qualitativamente diverso que nos ameaça com a mancebia incestuosa. (...)

Não foi a corrupção que nasceu: já havia. Não foi o compadrio incidental deste alto funcionário ou daquele político - já havia também. Foi a descoberta, por alguns dos grupos económicos que ganharam entretanto peso e dimensão, da lógica e da valia instrumental dos lobbies: é possível antecipar, inflectir, protelar ou impedir as decisões políticas por forma a melhor corresponder aos nossos interesses. Mais vale uma boa cumplicidade política do que um bom investimento. O jogo é legislativo, administrativo, contabilístico - mas nunca económico, que é do interesse geral. Por isso o lobby não é desenvolvimentista, mas apenas corruptor. Por isso o lobby não visa criar riqueza, mas apenas distribuir melhor em seu proveito aquela que já existe.  O lobby parasita o Estado e o património público, tal como o fazia o empresário afilhado da ditadura..." (114-115).

Para Brederode dos Santos a "esquerda" - entenda-se, principalmente o PS - era virtuosa e a "direita" vil, presa ao "populismo" de Cavaco. Que o PS estivesse incrustado na administração das participações (económicas) do Estado e, então, na governação do "boom" macaense não surge nesta colecção de textos, assim parecendo que irrelevante para o autor. Alguns anos depois deste textos, lá para 1995, deixei de comprar o "Espesso" como então se dizia, não mais acompanhei os ríspidos (vénia) textos do autor. E depois emigrei, deixei de seguir o seu percurso. Não sei assim se alguma vez ele veio a abandonar esta dicotomia, virtude vs vilania, se conseguiu "tirar boliqueime de dentro dele próprio", por assim dizer.

Mas sei uma coisa, os seus camaradas de partido e os seus sucessores na produção de opinião não o leram. Ou, vá lá, não acreditam nele.

O Manifesto d'Os Lusíadas

jpt, 21.02.24

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Um belíssimo amigo, meu (bastante) mais-velho, morreu já há cerca de 15 anos. Mas vem-se mantendo presente nas nossas conversas, nas cíclicas alusões à sua verve, seu sarcasmo até ternurento, suas atitudes convocatórias... Agora, há meses, morreu a sua viúva. As filhas, cada uma em seu saudável rumo, desfazem a casa. E nisso dividem entre si a vasta biblioteca do casal, segundo os seus múltiplos interesses respectivos. Depois sou chamado, amigo mais-novo do saudoso pai, para "ir ver" "se há alguma coisa que te interesse...". Acorro até cerimonioso, mas sou admoestado num mui franco "leva tudo o que queiras". Saio ajoujado. E deliciado.
 
E enceto os sacos com este opúsculo, que desconhecia, O Manifesto d'"Os Lusíadas", a prelecção de Adriano Moreira quando recebeu o honoris causa na Universidade do Amazonas (Manaus), naquele 1972 centenário da publicação da epopeia de Camões. Vigorosas 50 páginas, demonstrativas do pujante intelecto de Moreira. E que a mim, leigo que sou em Camões, me despertam a curiosidade sobre as causas do efectivo silêncio nacional, estatal e não só, neste quinto centenário do nascimento do poeta. Ou seja, convocando-me a outras leituras sobre a sua obra e sobre a utilização que dele foi sendo feita em diferentes épocas históricas.
 
Mas, e o que é mais importante, reavivando-me a memória do seu antigo dono. Por isso, Coronel, aqui bebo um uísque consigo enquanto passeio entre livros.

Em alemão

Cristina Torrão, 06.02.24

Publiquei o meu primeiro livro em alemão.

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O texto já tem aliás uns bons anitos. Foi com esta história que me iniciei na blogosfera, em 2010. Não passou despercebida, foi referida pelo falecido jornalista Pedro Rolo Duarte, num programa radiofónico, incluindo leitura de um excerto.

Tive, no entanto, de mexer muito no texto. O formato em que foi publicado tem regras muito definidas, nomeadamente, no que diz respeito ao número máximo de caracteres. Não foi fácil, cheguei a pensar não o conseguir. Mas desistir nunca foi meu apanágio.

Decidi apresentar-me como Cristina Santos, por duas razões. Ninguém consegue pronunciar o nome Torrão, por aqui. E, se alguém se lembra de recomendar o livro, não lhe quero dificultar a vida. O segundo motivo é a dificuldade que tenho sentido, em Portugal, em vender os meus livros. Perguntei-me então se o apelido Santos me daria mais sorte. Nem chega a ser um pseudónimo, pois faz parte do meu nome. Foi-me transmitido por um bisavô materno, que nunca conheci, mas cuja história de vida me emociona. Foi um exposto da Santa Casa de Lisboa, com apenas duas semanas de vida. Baptizaram-no Carlos da Graça e Santos. Sinto-me feliz ao honrá-lo desta maneira.

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Gostaria ainda de referir que este projecto não seria possível sem a preciosa ajuda do meu marido Horst Neumann. Apesar de possuir o meu “canudo de Germânicas” e viver neste país há trinta e um anos, ainda tenho problemas em certos pormenores gramaticais. E não seria capaz de dar um livro à estampa, sentindo dúvidas desse tipo.

O livro está à venda numa plataforma online, surgida recentemente no mercado alemão, a StoryOne, com sede em Viena. Este ano, a StoryOne tornou-se mais atractiva ao estabelecer uma parceria com uma das maiores redes livreiras alemãs, a Thalia. Um júri irá apreciar as publicações submetidas até 10 de Março e escolherá cerca de cem, que serão postas à venda, em papel, nas cinco principais filiais da Thalia: Hamburgo, Berlim, Colónia, Düsseldof e Viena.

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Estou tão entusiasmada com este tipo de projecto, que o segundo livro já está em preparação (cada pessoa é autorizada a participar com o máximo de três obras). No cinquentenário da nossa revolução, escolhi um conto baseado em certos aspectos do 25 de Abril, que tenho na gaveta há cerca de três anos. Além da tradução, não precisei de mexer muito no texto, pois não excedia o número de caracteres exigido. Falarei em breve desse projecto também.

Desejem-me sorte!

Ler (31)

Os melhores livros do meu ano - III

Pedro Correia, 03.02.24

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Há os livros pequenos, os livros grandes e os livros gigantes. Os primeiros, por motivos que ignoro, vão-se tornando cada vez mais raros. Lamento, pois alguns dos mais deslumbrantes livros que li na adolescência eram de formato breve, prodígios de concisão, ainda mais admiráveis por não esbanjarem uma palavra. Obras que fixei para sempre, que transporto comigo na memória grata de leitor atento: A Metamorfose, de Kafka; A Peste, de Camus; O Velho e o Mar, de Hemingway; O Triunfo dos Porcos, de Orwell. Também de autores portugueses. Recordo, por exemplo, O Barão (Branquinho da Fonseca), O Anjo Ancorado (José Cardoso Pires), Casa na Duna (Carlos de Oliveira), Angústia para o Jantar (Luís de Sttau Monteiro), até O Que Diz Molero (Dinis Machado). Sem esquecer O Mandarim (Eça de Queiroz).

A partir de certa altura, quase todos os escritores abandonaram o formato curto e dedicaram-se em exclusivo à escrita mastodôntica, julgando-se émulos de Victor Hugo (Os Miseráveis), Herman Melville (Moby Dick) ou Marcel Proust (Em Busca do Tempo Perdido). Tenho junto a mim três desses romances de vasta dimensão, que exigem mergulho prolongado, disponibilidade total: Uma Casa para Mr. Biswas, de V. S. Naipaul (759 páginas), Rua Principal, de Sinclair Lewis (459 páginas) e Auto de Fé, de Elias Canetti (525 páginas).

Entre os calhamaços à minha espera, além dos que já mencionei aqui, incluem-se Breve História da Filosofia Moderna, de Roger Scruton (Guerra & Paz, 343 pp), Neoconservadorismo, de Irving Kristol (Quetzal, 482 pp) e Lenine, o Ditador, de Victor Sebestyen (Objectiva, 662 pp). Quase 1500 páginas, só nestes três.

Há-de chegar o tempo deles  Agora fica o registo dos dez melhores romances que li em 2023 - todos de autores estrangeiros. Alguns estavam há muito na minha lista de leituras prioritárias, foram sendo ultrapassados por motivos que já não recordo.

Ler é uma actividade sinuosa, com os seus rituais indecifráveis e sujeita a contingências de vária ordem. Pegamos com entusiasmo num livro que acaba de nos chegar às mãos enquanto vamos ignorando outros, que nos acompanham em resignado silêncio durante anos. Como se tivesse de ser mesmo assim, sem que saibamos explicar porquê.

 

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A ESTRADA, de Corman McCarthy (2006). Impressionante novela que nos transporta a um mundo apocalíptico, na sequência de uma devastação nuclear. A luta pela sobrevivência domina o quotidiano dos raros sobreviventes e toda a crença num futuro promissor foi reduzida a cinzas. O estilo de escrita adapta-se ao tema em comunhão perfeita: é uma das ficções literárias mais marcantes deste século XXI. Edição Relógio d' Água.

 

ANIQUILAÇÃO, de Michel Houellebecq (2022). Até que ponto o mundo que conhecíamos na próspera fortaleza europeia já morreu, restando-nos apenas a sombra de uma ilusão que ainda nos sugere estar vivo? Interrogação do polémico autor francês neste perturbante romance que nos fala de política, religião, família, corrupção moral, decrepitude e morte. Sempre com mais perguntas do que respostas. Edição Alfaguara.

 

GUERRA E PAZ, de Lev Tolstoi (1869). O clássico dos clássicos. Tolstoi rivaliza com historiadores ao descrever com espantosa minúcia o impacto das invasões napoleónicas na Rússia do início do século XIX. Alternando vívidos quadros bélicos com a ansiedade palaciana de uma aristocracia ameaçada pelo alucinante carisma de Bonaparte. E assim, várias décadas depois dos factos, revolucionou também a literatura. Edição Inquérito.

 

IMPÉRIO, de Gore Vidal (1987). Decalque anacrónico do romance oitocentista que nos envolve na atmosfera política e jornalística dos EUA no final do século XIX e da primeira década do século XX, durante os mandatos dos presidentes William McKinley e Theodore Roosevelt, com a sombra gigantesca de Lincoln a pairar com irresistível nostalgia. Um dos pontos culminantes da ficção norte-americana das últimas décadas. Edição Presença.

 

LUZ EM AGOSTO, de William Faulkner (1932). Nobel da Literatura em 1949, Faulkner legou-nos uma porção de admiráveis romances sobre o sul profundo dos EUA, terra seca e dilacerada por confliltos raciais, onde o fanatismo religioso era corrente, o rasto da civilização parecia longínquo e preconceitos de toda a espécie impunham uma lei não escrita, conduzindo com frequência à morte. Obra-prima absoluta. Edição Dom Quixote.

 

O HOMEM DO CASTELO ALTO, de Philip K. Dick (1962). Distopia regressiva, opus magnum de um dos principais autores da chamada literatura de antecipação. Aqui, por uma vez, reescrevendo o passado. Com base neste mote: e se as potências do Eixo tivessem vencido a II Guerra Mundial, com a Alemanha e o Japão a dividirem os despojos do planeta? Ainda dá muito que pensar, a tantos anos de distância. Edição Relógio d' Água.

 

O OLHAR MAIS AZUL, de Toni Morrison (1970). Romance de estreia da escritora que viria a ser galardoada em 1993 com o Prémio Nobel. Começou muito bem: é um poderoso libelo anti-racista. Sem chavões, sem usar a literatura para fazer contrabando de cartilhas políticas. A propósito de duas meninas negras, uma das quais sonha ter olhos azuis para ficar parecida com as estrelas de cinema há quase cem anos, nos EUA. Edição Presença.

 

PAISAGEM DE OUTONO, de Leonardo Padura (1998). Último título do "Quarteto de Havana": romances que funcionam em separado mas devem ser lidos em sequência. Literatura policial, sim, mas não só. A pretexto de um crime, investigado pelo detective (não privado) Mario Conde, Padura faz a autópsia da sociedade cubana, envolta numa atmosfera cinzenta e opressiva: a esperança rumou a parte incerta. Edição Porto Editora.

 

PARALELO 42, de John dos Passos (1930). Hemingway, que não era de elogio fácil, não hesitou em classificá-lo assim: «Sem dúvida, o maior romance escrito nos Estados Unidos nos últimos cem anos.» Merece o qualificativo: é um original mosaico da sociedade norte-americana nas duas décadas iniciais do século XX, centrado em cinco personagens, com as suas luzes e sombras. Em trepidante toada modernista. Edição Presença.

 

PROFESSOR UNRAT, de Heinrich Mann (1905). Originalíssimo romance, ousado para a época, em torno da degradação moral de um professor, eminente burguês de uma cidade alemã obcecado por uma cantora de cabaré. Personagens credíveis, diálogos mordazes, sátira social muito bem conseguida ao quotidiano do Império Alemão, já em fase crepuscular. Serviu de inspiração ao célebre filme O Anjo Azul (1930). Edição E-primatur.

Ler (30)

Os melhores livros do meu ano - II

Pedro Correia, 26.01.24

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No ano que passou, raros terão sido os dias em que não li algum livro durante pelo menos uns tantos minutos. Em qualquer lado, em qualquer ocasião.

Ao contrário do que tanta gente afirma, confessando-se incapaz de ler na cama, ou na praia, ou em transportes, ou ao sol, ou à sombra, eu não sou nada esquisito. Vou lendo onde calha, aproveitando o melhor que posso.

Haverá melhor maneira de desfrutar momentos livres do que mergulharmos nesses mundos alternativos que a escrita literária nos proporciona?

 

Dos livros que fui lendo, privilegiei a ficção. Para contrastar com as numerosas leituras de âmbito profissional que sou forçado a fazer.

Leio sobretudo à noite. Vinte minutos, meia hora. Se o livro for interessante, o relógio deixa de contar: sigo com ele noite adiante, várias vezes acompanha-me madrugada fora. Sou pouco dado a insónias, mas quando tenho alguma o responsável máximo é quase sempre um livro. Por ser demasiado interessante, por me prender em excesso, por não me apetecer parar ali.

Hei-de falar da escrita de ficção que me acompanhou em 2023 no próximo - e último - texto desta curta série. Li bastante mais autores estrangeiros do que portugueses. Tolstoi, Dostoievski, Conrad, Faulkner, Borges, Thomas Mann, John dos Passos, Doris Lessing, Gore Vidal, Milan Kundera (falecido a 11 de Julho). O norueguês Jon Fosse, recentemente galardoado com o Nobel. Algumas obras-primas.

Falarei delas para a semana. Hoje destaco cinco livros de autores portugueses de diversos géneros: crónica, biografia, ensaio político, ensaio literário. Todas recentes, todas dignas de atenção.

 

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BIBLIOTECA, de Pedro Mexia (2015). Criteriosa recolha de textos de um dos nossos melhores cronistas, que tem a vantagem acrescida de cultivar uma paixão genuína pelos livros. Em evidente contraste com certas eminências académicas, que usam o tema só para exibir erudição postiça. Aqui se confessam amores por obras de escritores diversos, vários dos quais fora de moda. Não é defeito: é virtude. Edição Tinta da China.

 

COMO PERDER UMA ELEIÇÃO, de Luís Paixão Martins (2023). Todos os políticos deviam ler este livro. Também útil para o cidadão comum que se interessa pela política e assume convictamente a sua condição de eleitor. Escrito por quem conhece bem os bastidores da política sem se deslumbrar com ela. Até por não ignorar que «todas as carreiras políticas terminam em fracasso», como Churchill alertou. Edição Zigurate.

 

O DEVER DE DESLUMBRAR, de Filipa Martins (2023). Natália Correia desvendada até onde foi possível nesta biografia escrita com elegância e sem esbanjar vénias à escritora que dividiu opiniões pela sua verve vulcânica. Figura entre os melhores títulos do género publicados em anos recentes, na linha das biografias de Alexandre O'Neill (por Maria Antónia Oliveira) e José Cardoso Pires (por Bruno Vieira Amaral). Edição Contraponto.

 

«O MAIS SACANA POSSÍVEL», de António Araújo (2022). A mítica revista Almanaque só teve 18 edições, de 1959 a 1961. Mas deixou um rasto que foi perdurando por ter sobressaltado algum imobilismo salazarista. Num registo não destituído de ironia, aqui se traça o percurso acidentado dessa publicação que reuniu uns tantos intelectuais boémios daquela irrepetível Lisboa - meio cosmopolita, meio provinciana. Edição Tinta da China.

 

TODOS OS LUGARES SÃO DE FALA, de Paulo Nogueira (2022). Um dos melhores ensaios publicados entre nós sobre a famigerada tentação de censurar obras de arte em nome de novas ideologias identitárias que pretendem reescrever a História, castrar a linguagem e no limite guilhotinar o pensamento. Felizmente há sempre alguém que diz não, como este jornalista brasileiro que viveu muitos anos em Portugal. Edição Guerra & Paz.

Ler (29)

Os melhores livros do meu ano - I

Pedro Correia, 19.01.24

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Um ano terminou, outro começa. Mas algo nunca se interrompe, cá por casa: o fluxo de leituras. Mesmo que os filmes sejam vistos em menos quantidade e até várias séries televisivas tenham ficado por consumir - com uma excepção que tenciono mencionar aqui dentro de dias, antes que a agitação política volte a dominar-nos o quotidiano. A leitura merece prioridade.

De qualquer modo, por motivos muito pessoais, em 2023 li menos do que gostaria. E bastante menos do que nos dois anos anteriores. Em 2020 e 2021, conforme dei nota aqui, li 200 livros completos - uma centena em cada ano, nesses tempos que propiciavam poucas saídas e quase nenhumas viagens devido à pandemia. O que constituiu um incentivo suplementar à leitura.

Em 2022, já com o vírus posto à distância, reduzi um pouco o caudal de livros em que mergulhei de fio a pavio durante esses doze meses: foram 88. Mais, apesar de tudo, do que os do ano recém-terminado: desta vez fiquei-me por 70. Quase seis por mês, em média, apesar de tudo. Num país em que 58,1% dos nossos compatriotas (alguns de vocês, presumo) ficaram totalmente em branco: nem um livro para amostra foram capazes de ler em 2022, último ano em que há estatísticas.

Estatísticas que nos envergonham. E que nos deixam atrás de vários países do chamado Terceiro Mundo.

 

Como em anos anteriores, faço agora um balanço das minhas leituras de 2023. Dividindo-o em três partes: os cinco melhores ensaios de autores estrangeiros (já hoje, aqui em baixo), os cinco melhores livros de autores portugueses, os dez melhores romances (todos estrangeiros, em tradução).

Breve apontamento dedicado a cada um. Por ordem alfabética: é a que prefiro.

 

Entretanto, olho para o que se amontoa à minha cabeceira. Livros de centenas de páginas, daqueles que nos absorvem durante semanas ou até meses, exigindo grande parte da nossa atenção, quase em exclusivo.

Eis alguns: Jerusalém, de Simon Sebag Montefiore (657 pp.), Rússia - Revolução e Guerra Civil 1917-1921, de Anthony Beevor (671 pp.), O Novo Czar - Ascensão e Reinado de Vladimir Putin, de Steven Lee Myers (670 pp.), Mao - A História Desconhecida, de Jung Chang (803 pp.), Liderança, de Henry Kissinger (559 pp, das quais já li cerca de metade), O Século de Sartre, de Bernard-Henry Lévy (712 pp.) e Entrevistas, de Jorge de Sena (483 pp.). Sem esquecer Escritores y Artistas Bajo el Comunismo, de Manuel Florentín (910 pp.), que mão amiga acaba de trazer-me de Madrid.

Só estes já são programa para um ano inteiro.

 

Verifico entretanto que vários títulos que constavam do meu plano de leituras para 2023 permaneceram em pousio: ainda não foi desta que lhes peguei. Anoto-os no parágrafo que vai seguir-se, como uma espécie de incentivo suplementar a mim próprio.

Uma Casa Para Mr. Biswas (V. S. Naipaul), Herzog - Um Homem do Nosso Tempo (Saul Bellow), A Piada Infinita (David Foster Wallace), Na Minha Morte (William Faulkner), O Templo da Aurora (Yukio Mishima), Sagarana (Guimarães Rosa), Os Sonâmbulos (Hermann Broch), Auto-de-Fé (Elias Canetti), A Consciência de Zeno (Italo Zvevo), Rua Principal (Sinclair Lewis), Este Lado do Paraiso (Scott Fitzgerald). 

Será desta que os abrirei?

Daqui a um ano, se não for antes, voltamos a conversar.

 

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A BIBLIOTECA DE ESTALINE, de Geoffrey Roberts (2022). Minuciosa investigação deste historiador irlandês ao que resta do vasto espólio bibliográfico do tirano soviético, leitor compulsivo. Estaline não se limitava a ler: fazia constantes anotações nas obras que tinha sempre à mão, tanto no Kremlin como na sua confortável mansão de campo. Lia poesia e conhecia grande parte dos clássicos da literatura. Edição Zigurate.

 

A RELIGIÃO WOKE, de Jean-François Braunstein (2022). Talvez o melhor livro publicado entre nós, até ao momento, sobre as novas censuras que alastram em meios académicos e jornalísticos em nome de boas causas que servem de pretexto para torpedear direitos e liberdades. Louvável liberdade de pensamento expressa nestas páginas: o historiador francês não hesita em navegar contra a corrente. Edição Guerra & Paz.

 

A VIDA POR ESCRITO, de Ruy Castro (2022). Jornalista de formação, este talentoso carioca nascido em Minas é hoje o melhor biógrafo do nosso idioma. Nesta sua mais recente obra enuncia as regras fundamentais da escrita que podem transformar cada biografia num sucesso literário. Com ele tem sido assim - daí ter tantos leitores, não apenas no Brasil mas também em Portugal. Edição Tinta da China.

 

DIREITO A OFENDER, de Mike Hume (2015). Excelente reflexão deste jornalista e colunista britânico sobre os limites cada vez mais rígidos à liberdade de expressão impostos pelo ar do tempo. Como tem sido tragicamente demonstrado em acontecimentos que fazem proliferar o medo: aconteceu com o massacre de Janeiro de 2015 na redacção do Charlie Hebdo, em Paris. Não augura nada de bom. Edição Tinta da China.

 

OH JERUSALÉM, de Dominique Lapierre e Larry Collins (1971). Ao contrário do que alguns supõem, os conflitos na Palestina não começaram em 1948, com a fundação de Israel. São muito anteriores, como demonstra esta obra já clássica. Investigação jornalística sobre aqueles dias do pós-Holocausto, quando a ONU deu luz verde ao nascimento do Estado que serviu de refúgio a um dos povos mais perseguidos da História. Edição Bertrand.

O Museu da Inocência

Paulo Sousa, 05.01.24

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A partir de uma recomendação ouvida num podcast e no seguimento de alguma curiosidade anterior sobre o Nobel turco Orhan Pamuk, dei por mim com o “Museu da Inocência” nas mãos.

Confesso que logo após o arranque do livro me questionei se a história não se estaria a tornar demasiado obsessiva, melancólica e irremediável. No entanto o ritmo da narrativa e as descrições da classe rica, e menos rica, de Istambul dos anos 70, e também alguma curiosidade de como é que aquilo poderia terminar, levou a que insistisse na leitura.

Não quero estragar a boa surpresa de quem não conhece a obra e por isso serei económico nos detalhes, mas, como ocorre apenas depois da leitura de alguns livros, não pude deixar de ficar impressionado com o super-poder que alguns romancistas têm ao conseguirem criar um universo denso, cheio de detalhes tão credíveis que nos levam a acreditar que tudo aquilo poderia ser real. As particularidades que aproximam a história à realidade resultam da forma como o romancista transporta a sua vivência para dentro da sua obra, o que nesta caso acaba por acontecer de uma forma literal. Como quem faz um cozinhado, o autor mistura aquilo que já viu, viveu e sentiu, com ingredientes criados pela sua imaginação. É como se quem escreve fosse um alambique que destila a sua realidade, sendo que quem se dispõe a contar uma história o faz de uma forma única e irrepetível, moldando o produto final com se de uma impressão digital se tratasse.

Como já senti noutras vezes, terminei o livro com vontade de realizar uma viagem, desta vez a Istambul de onde tenho boas recordações, mas que numa próxima oportunidade me obrigará a circular pelo tradicional bairro de Çukurcuma e a visitar o chão pisado pela bela Füsum e pelo seu obsessivo amante Kemal Bey.

Recomendo a leitura.

Livros que mudam as nossas vidas

Cristina Torrão, 23.12.23

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Entre a primeira publicação deste romance histórico e a sua tradução em português contam-se vinte e nove anos. O da esquerda foi por mim comprado em Londres, em 1996. A edição portuguesa é recente, de Outubro passado.

Nos meus primeiros anos na Alemanha, a fim de continuar a praticar o inglês, o meu marido costumava oferecer-me livros neste idioma. Um dia, chegou a casa com o romance histórico The Reckoning. Eu nunca tinha ouvido falar da autora. E, depois deste livro, decidi ler tudo quanto ela tivesse escrito.

No dito ano de 1996, aproveitei uma breve estadia em Londres para entrar numa enorme livraria e comprar todos os seis romances (em edições de bolso da Penguin) de Sharon Kay Penman que lá encontrei (na altura, a autora publicava como Sharon Penman). Escolhi uma grande filial de uma conhecida rede inglesa de livrarias para precisamente aumentar a possibilidade de encontrar diferentes livros da autora.

Os romances de Sharon Kay Penman influenciaram grandemente a minha vida. Em primeiro lugar, convenci o meu marido a passar uma semana de férias no País de Gales, depois de ler a sua trilogia sobre os últimos tempos dessa nação como Principado independente e a sua conquista pelo rei inglês (séculos XIII, XIV). A autora escreve de maneira tão fascinante sobre todo o processo, que me pôs com uma vontade irresistível de ir conhecer essas paragens.

A maior influência exercida por Sharon Kay Penman em mim foi, porém, a minha resolução em escrever romances históricos. Ela provocou uma verdadeira odisseia na minha vida, na procura pormenorizada de factos históricos, durante anos e sem grandes meios, a fim de escrever romances sobre os dois mais importantes reis da nossa época medieval: D. Afonso Henriques e D. Dinis. E acabei igualmente por escrever, já em 2018, sobre D. Teresa.

Sharon Kay Penman, falecida em 2021, não estava ao nível de um Nobel, mas possuía grande sensibilidade, levando-nos a apaixonar-nos pelas suas personagens, fazendo das suas lutas as nossas lutas, alegrando-nos, sofrendo e mesmo chorando junto com elas. Pouco mais se pode exigir de uma escritora, ou escritor.

Sempre me entristeceu o facto de os seus livros não estarem traduzidos em português. Foi, por isso, uma agradável surpresa tomar conhecimento deste. O título Quando Cristo e os seus Santos Adormeceram é uma frase tirada de uma crónica medieval, sobre o período em questão: Never before had there been greater wretchedness in the country…And they said openly that Christ and His saints slept (The Peterborough Chronicle).

Os acontecimentos relatados nestas mais de 700 páginas são contemporâneos do nosso Afonso Henriques. No século XII, a Inglaterra foi devastada por uma guerra civil durante dezanove anos. O único filho varão de Henrique I morreu jovem, ao afundar-se a sua embarcação na travessia do Canal da Mancha. Henrique I nomeou sucessora a filha Matilda, conhecida como imperatriz Maude por ter sido casada com o imperador germânico Henrique V. Matilda enviuvou muito cedo e regressou a Inglaterra. Mas, por ser mulher, foi o seu primo Stephen quem acabou por ser coroado, depois do falecimento do rei.

A imperatriz Maude nunca se conformou. Ela e o rei Stephen digladiaram-se numa sangrenta e longa guerra civil (que decorria ainda por alturas da Conquista de Lisboa, a razão por não terem saído de Inglaterra tantos cruzados como seria de esperar). Matilda nunca conseguiu alcançar o trono, mas foi o filho do seu segundo casamento quem o herdou, dando início a uma das mais conhecidas dinastias da História. Henrique II, marido de Leonor da Aquitânia e pai dos famosos Ricardo Coração de Leão e João Sem-Terra, foi o primeiro rei Plantageneta. O seu pai francês era conhecido por esse título, aliás, uma alcunha, pois, verdadeiramente, ele era conde de Anjou.

A edição portuguesa foi traduzida por Elsa T. S. Vieira e publicada pela Kathartika.

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Feliz Natal