Rumor Civil
Cada vez menos leio ficção ou poesia. E vou lendo estas colectâneas do passado, crónicas ou (é este o caso) textos de opinião - a quem o novo cânone chama também "crónicas". Descubro agora nas estantes este "Rumor Civil", uma colecção de textos de Nuno Brederode dos Santos (1944-2017), publicada pela Relógio d'Água em 1990. Com ele cheguei a privar, escasso convívio intermediado por amigo comum em já enubladas noites no "Procópio", onde ele era figura predominante. Eu ainda jovem, cabelo azeviche, talvez exageradamente radical pois pouco atreito àquele que já então considerava um apparatichk das letras, ele já bastante velho - mais novo do que eu sou agora... Brederode era um fazedor de opiniões, colunista afamado do "Expresso" quando isso era relevante, fervororo paladino socialista, e disso tinha o perfil e o teclado. Escrevia bem e era caústico, alinhado mas caústico, justiça lhe seja feita. E culto, nota-se na leveza - por vezes irónica, outras sarcástica, mas também sensível - com que deixava transparecer o percurso de leituras havidas.
Esta colecção abarca de 1985 a 1990, o primeiro quinquénio do "cavaquismo", e é nisso muito interessante, fazendo recordar o acinte de então. E se alguns textos envelheceram por "de ocasião" em demasia, outros são relevantes por demonstrarem o ambiente cultural (e de cultura política) daquela época, e que tanto persistiu e persiste. Por exemplo, foi de Brederode o abjecto elitismo do "socialismo" maçónico - tão continuado pelos adeptos PS até ao final do mandato de presidencial de Cavaco Silva, e que continuam a repetir em formato avatar, sem pudor e sem abdicarem da caraça "esquerda" - "foi fácil tirar o homem de boliqueime, mas agora não conseguem tirar boliqueime do homem" (121). E é até engraçado ver como em plenos finais dos 80s o reaccionarismo da "esquerda" encartada era tão impante que lhe aplaudiam um texto aviltando a CEE por regulamentar a criação avícola - hoje o homem seria lapidado como CHEGA pelo PAN, mas será conveniente recordar que aquela década foi a da disseminação europeia da sensibilidade política ecológica... mas que no "Portugal da CEE", à Lisboa que abominava "boliqueime" e lia o "Expresso", isso ainda não tinha chegado.
Mas não quero exagerar os remoques diante do livro. Pois ele é precioso não só no que denota como também no que explicita e recorda. Como quando Brederode aponta os que então queriam controlar o acesso às fotocopiadoras, por serem uma tecnologia estratégica... Parece-nos ridículo, agora, essas preocupações em finais dos anos 80s, dos descendentes dos tempos da "outra senhora", os antepassados do socialista José Magalhães, coisas de que nos esquecemos...
Mas mais interessante será recordar, em particular aos agora adeptos do PS, o que dizia em 1987 o socialista Brederode dos Santos no "Expresso". Tão interessante que deixo a longa citação: "Aquilo que, de 1985 [eleição de Cavaco Silva] para cá, mudou foi o modelo de relacionamento entre o poder político e o poder económico - que passou do piropo avulso e do apalpão furtivo a algo de qualitativamente diverso que nos ameaça com a mancebia incestuosa. (...)
Não foi a corrupção que nasceu: já havia. Não foi o compadrio incidental deste alto funcionário ou daquele político - já havia também. Foi a descoberta, por alguns dos grupos económicos que ganharam entretanto peso e dimensão, da lógica e da valia instrumental dos lobbies: é possível antecipar, inflectir, protelar ou impedir as decisões políticas por forma a melhor corresponder aos nossos interesses. Mais vale uma boa cumplicidade política do que um bom investimento. O jogo é legislativo, administrativo, contabilístico - mas nunca económico, que é do interesse geral. Por isso o lobby não é desenvolvimentista, mas apenas corruptor. Por isso o lobby não visa criar riqueza, mas apenas distribuir melhor em seu proveito aquela que já existe. O lobby parasita o Estado e o património público, tal como o fazia o empresário afilhado da ditadura..." (114-115).
Para Brederode dos Santos a "esquerda" - entenda-se, principalmente o PS - era virtuosa e a "direita" vil, presa ao "populismo" de Cavaco. Que o PS estivesse incrustado na administração das participações (económicas) do Estado e, então, na governação do "boom" macaense não surge nesta colecção de textos, assim parecendo que irrelevante para o autor. Alguns anos depois deste textos, lá para 1995, deixei de comprar o "Espesso" como então se dizia, não mais acompanhei os ríspidos (vénia) textos do autor. E depois emigrei, deixei de seguir o seu percurso. Não sei assim se alguma vez ele veio a abandonar esta dicotomia, virtude vs vilania, se conseguiu "tirar boliqueime de dentro dele próprio", por assim dizer.
Mas sei uma coisa, os seus camaradas de partido e os seus sucessores na produção de opinião não o leram. Ou, vá lá, não acreditam nele.