Tudo começou por um pedido de ajuda para limpar um quintal algures em Lisboa.
Noutros tempos, aquele espaço terá pertencido à imensidão das construções abarracadas que compunham parte significativa da área da capital, mas perante a actual pressão urbanística justifica ser recuperado. Aviso de imediato que o propósito do presente postal não é falar sobre especulação imobiliária nem sobre o plano ortopédico-ideológico, feito com os pés e com a cartilha, que o governo anunciou para a habitação.
O referido espaço deixou de ser habitado há várias décadas e, por isso, acabou por se revelar numa espécie de cápsula do tempo. Além dos objectos que ali reencontrei doutros tempos da minha infância, muitos outros são anteriores a isso e, das várias vezes que ali fui, não houve nenhuma em que não tenha sido surpreendido.
Um dos capítulos destas descobertas surgiu quando a limpeza do espaço chegou ao pé de um monte de telhas de barro. O formato é o habitualmente designado como telha tipo “marselha”. Trata-se de uma telha plana que conheço bem. Aqui perto de mim já foram fabricadas milhões delas. A tradição e o conhecimento não se perdeu e na actualidade a CS - Coelho da Silva é a única fábrica de telha da região que sobreviveu e é o maior empregador do concelho de Porto de Mós.
Desde há muito tempo que as reservas de barro existentes no lado norte na EN8, entre a Cumeira de Cima e o Chão da Feira, justificaram que aquele troço de estrada fosse ladeado por inúmeras chaminés com várias dezenas de metros de altura. A temperatura para as cozeduras era conseguida a partir da lenha retirada dos pinhais ali existentes e que, também por isso, estavam sempre limpos de mato, a mão-de-obra era suficiente e barata e a procura alimentava toda aquela cadeia de criação de valor.
Há dias, na conversa com um vizinho meu, já octogenário, ele lembrou que quando era miúdo, criança mesmo, trabalhou numa fábrica a fazer tijolo burro onde tinha a tarefa de, com os próprios dedos, alisar as face dos tijolos. “Com as luvas que a minha mãe me deu”, terminou ele o relato, a sorrir, e com as duas mãos abertas.
A dinâmica industrial aqui criada permitiu que muita gente tenha vivido com ofícios muitos específicos e especializados, como é o exemplo dos construtores de fornos e chaminés que, residindo aqui, eram requisitados por todo o país. À volta da cerâmica dirigida à construção civil, assim como da faiança utilitária e decorativa, criaram-se também algumas empresas de camionagem. Já ouvi relatos de ter havido uma camioneta, ainda a gasogénio, a ir levar telha e tijolo, a trinta, e às vezes a quarenta à hora, pela estrada antiga, Rio Maior, Alcoentre, Alenquer, Vila Franca até Lisboa. E uma vez foram ao Porto.
Mas, regressando à surpresa, no referido espaço encontrei várias telhas tipo "marselha" fabricadas na zona de Lisboa.
Fábrica de Palença
A Fábrica de Palença localizava-se na margem sul, perto de Almada e, sobre ela, encontrei no blog Almada virtual um postal com informação detalhada e bem interessante.
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Companhia da Fabrica Ceramica Luzitania
Imagem da face exterior da telha
"Telha Ibérica Sem Rival"
A Companhia da Fábrica Cerâmica Luzitania existiu na Rua Saraiva de Carvalho, no Bairro de Campo de Ourique. Encontrei no blog Restos de Colecção um postal com fotos e várias imagens relativas a esta fábrica.
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Ceramica Luzitania Sylvain Bessiere
Pelo que encontrei no já referido postal do blog Restos de Colecção, neste documento dos Cadernos do Arquivo Municipal de Lisboa e neste artigo da publicação municipal "A mensagem" esta fábrica foi fundada em 1890 por Sylvain Bessiere, nos "arredores do matadouro de Picoas, entre a Rua Engenheiro Vieira da Silva, Av. Fontes Pereira de Melo e a Praça José Fontana". Após o falecimento do seu fundador, foi adquirida pela Companhia da Fábrica Cerâmica Luzitania, que para ali transferiu os seus escritórios. A chaminé do seu forno principal foi preservada e ainda pode ser vista nos jardins do edifício sede da Caixa Geral de Depósitos. Interessante é também a explicação dada à localização da cerâmica nesta zona. Naqueles terrenos existia barro e a fábrica conseguira o fecho da encomenda para o fornecimento de tijolo para a construção da Praça de Touros do Campo Pequeno.
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Ceramica Dias Coelho
Sobre esta cerâmica não encontrei qualquer referência na internet. Chamo a atenção à data da telha que na fotografia que ficou debaixo desta: 1911.
Esta Lisboa onde se extraía barro e que o transformava em telha e tijolo de construção, com operários e chaminés a fumegar, é uma Lisboa totalmente diferente da actual. Estas peças são testemunhos desse tempo.
Termino este postal acrescentando apenas que, na sequência desta descoberta, o Museu de Lisboa foi contactado e, por ter considerado de interesse, procedeu à recolha de uma amostra de cada uma das diferentes variedades que ali encontrámos.