Liguagem inclusiva
«Elena Ferrante é uma das grandes escritoras contemporâneas».
[The New York Times]
Frase impressa na contracapa do livro A Amiga Genial, de Elena Ferrante
(tradução de Margarida Periquito, Relógio d'Água 2011)
Esta frase suscita-nos dúvidas. Quando diz «uma das grandes escritoras contemporâneas», engloba escritores e escritoras? É Elena Ferrante apenas uma das melhores entre uma parte dos que escrevem, ou entre todos? Considerando que a frase foi originalmente escrita em Inglês, concluímos que englobará o universo de todas as pessoas que escrevem livros. Mas é preciso considerar o original para tirarmos esta conclusão. À semelhança da maioria das línguas, a nossa, neste caso, não esclarece.
Paciência, dirão alguns, é assim que funciona a língua portuguesa. E não seria melhor mudar? Não, é a nossa língua, com as suas regras, nada a fazer.
Pois, não me parece! E explico porquê.
As línguas não são entidades autónomas, algo superior que se rege por leis divinas e que existe independentemente de nós. Nós não somos escravos da língua. Somos mais velhos do que qualquer idioma, já por cá andávamos, antes de eles surgirem. As línguas foram criadas e desenvolvidas unicamente pelo ser humano e existem para o servir, não o contrário. Claro que uma língua deve ser respeitada e também desenvolve uma dinâmica própria, mas essa dinâmica está intimamente ligada ao nosso comportamento, às nossas crenças, hábitos, etc. Ela reflecte aquilo que vivemos e em que acreditamos. As regras que a definem foram sendo criadas ao longo dos tempos, a fim de facilitar a comunicação. Nos inícios da nossa nacionalidade, um português do Norte dificilmente compreenderia um português do Sul, havia grandes diferenças regionais (e até línguas diferentes). Ao decretar o Português como língua oficial da corte, um dos objectivos de D. Dinis foi precisamente criar uma língua-padrão susceptível de ser entendida em todos os cantos do reino.
Até, digamos, há trinta anos, passava pela cabeça de muito pouca gente que uma mulher pudesse estar incluída no clube restrito dos melhores escritores mundiais (entre 1901 e 1990, o Prémio Nobel da Literatura foi atribuído a apenas seis autoras, não chega a uma por década). Quando se falava de uma das melhores escritoras, considerava-se, em regra, apenas o mundo das mulheres que escreviam. Por isso, não havia necessidade de clarificar casos destes. Se recuarmos ainda mais no tempo, nem sequer se considerava que uma mulher pudesse escrever livros.
Vivemos, há milénios, numa sociedade patriarcal. As línguas foram desenvolvidas por essa sociedade e projectam isso mesmo. Para dar um exemplo: no galaico-português, não havia género feminino para muitos substantivos, nomeadamente os acabados em “-or”. Por isso se dizia “senhor” mesmo em relação a uma mulher. Na nossa Idade Média, havia “lavrador”, mas não havia “lavradora”. As mulheres não contavam, mesmo aquelas que fizessem o mesmo trabalho de homens.
As coisas vão mudando ao longo dos tempos, mas algumas custam muito a mudar. E é um erro considerar que já chegámos ao fim do processo. Nem preciso de recuar assim tanto no tempo. Tenho cinquenta e seis anos e lembro-me bem do sururu criado, quando, depois do 25 de Abril, Maria de Lurdes Pintasilgo foi nomeada primeira-ministra. Hoje, custa a acreditar, mas não havia, na língua portuguesa, o género feminino para a palavra “ministro”. Nem para “juiz”, já agora (como ainda hoje não há para “bispo”, pois a Igreja Católica, ao contrário da Luterana, não concebe mulheres a exercerem essa função). Quando, em 1979, se instalou a discussão, com gente a ter o desplante de clamar que uma mulher “ministro” devia ser chamada “ministra”, a maior parte da população indignou-se (tive um belo exemplo em minha casa: o meu pai, professor do ensino primário, era profundamente alérgico a termos como “ministra” e “juíza”). A designação “primeira-ministra” era das maiores aberrações linguísticas que essas pessoas podiam imaginar, atingia estatuto de sacrilégio. Os homens (e muitas mulheres) desdenhavam ou zombavam. Achava-se preferível, imagine-se, dizer “a primeiro-ministro”, ou “a senhora primeiro-ministro”, muito à semelhança do “mia senhor” medieval.
Dizer que a gramática não tem sexo e que não é discriminatória é uma falácia. O plural masculino abrangente é de facto discriminatório. Vem igualmente da era medieval, em que as mulheres não contavam. A palavra “portugueses”, usada para se dirigir aos naturais de Portugal, vem desses tempos, em que as mulheres estavam impedidas de tomarem posições e resoluções sociais, porque os homens tomavam por elas. O rei, os condes e os nobres em geral, quando comunicavam as suas resoluções, ou davam as suas ordens no que respeitava ao governo das suas terras, não consideravam dirigirem-se às mulheres. Por isso, “portugueses” chegava muito bem. E chegou, até há quase cinco décadas. Antes de as mulheres poderem votar, que necessidade havia de os políticos se dirigirem às “portuguesas”?
É interessante que muita gente rejeita a versão “portuguesas e portugueses” (a ordem é indiferente), mas acha muito natural dizer “minhas senhoras e meus senhores”. Entre os defensores e as defensoras da linguagem inclusiva, há reivindicações complicadas, mas não me parece que casos destes sejam difíceis de pôr em prática. Nas missas alemãs, por exemplo, tanto católicas, como protestantes, já é regra dizer “irmãos e irmãs” (a ordem é, mais uma vez, aleatória). E, sim, a actual tradução alemã do Evangelho inclui essa fórmula. No Jornal Católico da diocese de Hildesheim, também se têm operado algumas mudanças, com a preocupação de não tornarem o texto muito complicado. Quando se nomeiam várias profissões, escrevem-se alternadamente no género masculino e feminino, por exemplo: "médicos, advogadas, professores, engenheiras, enfermeiros, escritoras". Havendo consenso em que, escrevendo assim, são considerados os dois géneros nas várias profissões nomeadas, esta modalidade bem se poderia tornar regra em qualquer língua.
Podia dar muitos mais exemplos de como a nossa língua reflecte toda uma postura patriarcal e machista. Mas também considero dever evitar-se radicalizações (ressalvo que não tenho competência para falar em nome de grupos que não se revêm nos géneros tradicionais). Muitas propostas tornam a escrita (e a fala) demasiado complicada. Terá de se encontrar uma solução prática, que, porém, só será atingida através de um debate sério e ponderado. Mas eu acredito na criatividade e na inteligência do ser humano. Não encontrar uma forma praticável de linguagem inclusiva seria um verdadeiro atestado de incompetência ao homo sapiens sapiens.
Vai demorar até encontrarmos um consenso, ou um modelo, que não nos complique demasiado a vida. Estou, contudo, certa de que a mudança acontecerá. Uma língua tem de ter regras, sim, mas somos nós que as fazemos. As leis também se mudam e adaptam ao progresso humano. As regras da gramática mais não são do que as leis da língua.