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Delito de Opinião

Intuições

José Meireles Graça, 07.10.22

A intuição é traiçoeira, sabe-se: Então o Sol, que de manhã está num sítio e ao cair do dia está noutro, não se está a ver que não pára quieto? E é ou não verdade que os Australianos, se realmente a Terra fosse redonda, tinham de se agarrar às raízes das árvores para não caírem para o céu, que naquele caso estaria por baixo e não por cima?

Aprendemos na escola como as coisas não funcionam como os nossos sentidos nos dizem. Infelizmente, nas ciências sociais não temos demonstrações científicas inequívocas que nos impeçam de nos enganarmos a nós mesmos, pelo que temos de nos bastar com o que nos diz o passado (daí a importância da História), a nossa experiência de vida e o longo e interminável debate sobre o que está e não está certo, o que resulta bem e o que resulta mal, e a litania de hipóteses que os cientistas sociais vão construindo em direcção a sociedades mais justas, eficientes, ricas e, espera-se, felizes.

Nestas, as ciências sociais, a porca torce porém o rabo porque não apenas a intuição não encontra o antídoto certo que a infirma como não poucas reputações e teorias se constroem em cima de crenças. E são precisos muitos desastres e muitos efeitos perversos para umas teorias, e mesmo assim nem sempre, serem abandonadas.

Por exemplo: a intuição diz-nos que se há pobres e ricos basta transferir de uns para outros para todos ficarem remediados. A riqueza, todavia, é menos um conjunto de coisas e mais um processo criativo, que a redistribuição pode matar ou enfraquecer de mil maneiras, variáveis consoante as circunstâncias locais, a tradição, a cultura e outros múltiplos factores. Acaso isto existe na consciência social? Não, e a prova é que há economistas comunistas com geral aceitação, uma evidente contradição nos termos, e uma quantidade prodigiosa de reformadores, sobretudo daquela área contemporânea de engenharia social e alquimia reformada que persegue a pedra filosofal do progresso a golpes de impostos e inveja travestida de generosidade. Adiante, que esse não é o meu assunto.

Foi notícia há dias que o Governo tenciona, à boleia de recomendação dos nossos patrões europeus, “promover a redução da velocidade máxima para os 100 km/h”. Parece que, para já, será sob a forma de campanhas de propaganda que, se não surtirem efeito, passarão a imposições legais e, se surtirem, também, porque fica no primeiro caso demonstrado que os condutores são incorrigíveis e, no segundo, que reclamam a punição dos recalcitrantes. E em ambos venha a nós a multazinha, que engordar a receita pública a expensas de infractores é uma gratificante missão dos poderes públicos.

O pretexto é a crise energética, como já tinha sido, no tempo da Velha Senhora, com a primeira (ou segunda, já não recordo) crise do petróleo, que decidiu limitar a velocidade nas estradas nacionais a 90 km/h. Este novo limite é para autoestradas e o velho, ao menos na minha região, praticamente não se aplica porque as estradas nacionais se transformaram na prática em arruamentos, onde a velocidade, mais vezes sim do que não, está limitada a 50 km/h.

Não deve ser difícil fazer cálculos que demonstram que diminuindo a velocidade em 20 km/h se poupam milhões de Euros. E também que, entrando em conta com externalidades (tempo perdido, aumento da densidade do tráfego, etc.) o resultado será o oposto. É o bom que têm os estudos, seja para escolher a localização de um aeroporto ou alterar a moldura penal dos crimes ou combater a sinistralidade rodoviária ou outra coisa qualquer: concluem pela demonstração do bem fundado dos preconceitos de quem os faz.

Sucede que há aqui uma teimosa intuição, que é a de que a velocidade, por si, aumenta o risco de acidentes. E aumenta: é ou não verdade que o automóvel, se guardado na garagem, não causa nem é parte em acidentes de viação? E é ou não verdade que um choque a 40 km/h tem consequências menos gravosas que um a 100 km/h?

Porém, alguma coisa haverá que leva a que os limites de velocidade não sejam iguais em todos os países, e não pode ser a diferença de qualidade de redes viárias: na RFA não há, senão em alguns troços das autoestradas, limites de velocidade nelas, que todavia não são geralmente melhores do que, por exemplo, as nossas. Ora, a sinistralidade alemã não se distingue pelo elevado dos seus números.

Porque o parque automóvel é muito mais seguro, dirá o leitor arguto – os carros alemães são conhecidos pela sua qualidade e nós não temos meios para circular em tais máquinas. Ah bom, então é a qualidade dos carros. Será por isso que o turista que vai a 180 se vê ultrapassado pelo velhinho que tranquilamente circula no seu Audi a 200?

Carros com qualidade quer dizer melhores suspensões, melhores travões, melhor direcção, melhor segurança passiva e melhor tudo. Tudo o que progrediu muitíssimo na RFA e nos outros países porque era necessário fazer veículos cada vez mais seguros porque andavam depressa, legal ou ilegalmente. Se andassem devagar a concorrência teria levado a apostar-se noutras coisas (luxo, design, conforto, dimensões, etc.) e as soluções ensaiadas em competição jamais chegariam à produção corrente porque não eram necessárias.

De modo que o condutor que beneficia de travões de disco, suspensões inteligentes, pneus ao mesmo tempo resistentes e seguros, direcções precisas e toda a extensa lista de progressos visíveis e invisíveis que fazem com que um automóvel moderno em bom estado de conservação bata em todos os planos, incluindo o da segurança, modelos de gama muito superior mas concebidos há algumas décadas, bem pode agradecer aos furiosos do volante.

(O meu primeiro automóvel, que foi um Fiat 600, não atingia a velocidade máxima permitida pelos costumes, acima dos teóricos 90. No segundo, que foi um Ford Escort 1100, o tempo que fazia no percurso Porto/Guimarães pela estrada nacional e atravessando uma cidade era o mesmo que faço hoje pela autoestrada num automóvel cerca de quatro vezes mais potente e incomparavelmente mais seguro, se respeitar o limite. Ambos aqueles carros consumiam pouco, tão pouco que hoje os utilitários não fazem muito melhor, a não ser nas indicações de consumo que os jornalistas da especialidade coonestam com característica inépcia.)

Nas sociedades modernas e desenvolvidas tropeça-se em todas as esquinas da vida mais no Estado do que em qualquer momento no passado. Aconselha, proíbe, regula, ensina, cobra, persegue. E como tudo isso é feito em nome da colectividade, e o progresso é interpretado como consistindo em quantidades crescentes de intervencionismo, há uma pulsão permanente para, do caixão à cova, vivermos com absoluta segurança a golpes de proibições e sanções.

O automóvel não podia ficar à margem. E é um sinal ominoso dos tempos que a moda sejam os SUVs: mais pesados, com pior aerodinâmica, menos seguros, com muito maior atravancamento e mais espaço – aquilo é para ir lá no alto com uma falsa sensação de segurança, a velocidades que parecem mas não são muito altas porque andar depressa não é um progresso.

O raio dos SUVs (para quem não saiba são misturas de furgoneta e jipe com pneus de camião, com motores frequentemente muito potentes para arrastar os mastodontes) gastam muito – mais do que as berlinas equivalentes, que tendem a desaparecer dos catálogos. Coisa curiosa: os limites fazem-se em nome da poupança energética e da segurança – incentivando o lançamento e promovendo o sucesso de veículos mais caros e, a velocidades iguais, menos seguros e sempre mais sedentos. Ou que assim ainda vão sendo, mas crescentemente eléctricos, consumindo uma energia que como se sabe é extremamente abundante por ser produzida em paredes que tenham uma tomada.

A intuição reina, portanto: e esta tem a sanção da União Europeia, a mesma que é entusiasticamente contra a poluição causada pelos combustíveis fósseis, razão pela qual o consumidor é hoje refém de uma potência atómica para a qual se quis exportar a poluição.