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Delito de Opinião

Reflexão do dia

Pedro Correia, 24.05.24

«Parece-me pacífico que proferir a frase [de André Ventura] não equivale a praticar acto violento nem ameaçar ninguém. Também não vejo qualquer base para afirmar que a frase incita à violência e ao ódio: não parece galvanizadora de milícias encapuçadas com bastões. Sobre o carácter difamatório ou injurioso, trata-se de uma definição cheia de zonas cinzentas, cujo abuso pode levar a sérias limitações à liberdade de expressão. Condenar criminalmente alguém por uma frase destas equivaleria a uma deriva de higienização do discurso incompatível com a versão da democracia liberal na qual me revejo e almejo viver.»

 

Susana Peralta, no Público

A liberdade em marcha-atrás

Mortágua em 2024 desmente o Louçã de 2008

Pedro Correia, 21.05.24

 

Mariana Mortágua lidera um movimento favorável à supressão da liberdade de expressão no reduto onde ela deve estar mais salvaguardada: a sala das sessões da Assembleia da República, sede da soberania nacional.

Uma frase de mau gosto debitada por André Ventura na sexta-feira de manhã desencadeou uma onda de exclamações inflamadas contra o presidente da Assembleia da República por não ter mandado silenciar aquele deputado. Aguiar-Branco declarou, pelo contrário, que advoga um conceito muito lato, nada restrito, da liberdade de expressão. Pelo mais louvável dos motivos: não tem vocação para censor.

Faz muito bem. O contrário é que seria preocupante, tratando-se da segunda figura do Estado.

Era o que faltava, neste ano em que celebramos o 50.º aniversário do 25 de Abril, os cravos murcharem ao ponto de alguns quererem transformar o presidente da AR num mestre-escola a distribuir reguadas pelos meninos irreverentes ou num velho regedor de aldeia pronto a suprimir expressões indecorosas. Como se a liberdade em Portugal andasse em marcha-atrás.

 

Acontece que o presidente da AR não pode censurar nenhum deputado. O mandato popular confere-lhes, em absoluto, o direito a não serem perseguidos judicialmente pelas opiniões que emitem em sede parlamentar.

Nem poderia ser de outra forma. Concordemos ou discordemos do que dizem, todos representam a nação, eleitos pelos portugueses. Se exprimirem opiniões que detestamos, mais ainda devemos garantir que possam continuar a emiti-las.

Esta é uma trave mestra da democracia liberal. 

 

Não me espanta que a coordenadora do Bloco de Esquerda pretenda silenciar quem discorda dela: o radicalismo que imprimiu ao partido, desfazendo o legado de relativa moderação de Catarina Martins, é o corolário disto.

Nem sequer me surpreende que um cortejo de «personalidades da música e do entretenimento» tenha logo saído em defesa da lei da rolha. E que uma organização intitulada SOS Racismo, que nenhum português elegeu, exija aos gritos a demissão de Aguiar Branco. Dando razão a Ricardo Araújo Pereira, quando em 24 de Abril escrevia no Expresso: «A frase, tão popular, "a minha liberdade acaba onde a dos outros começa" é curiosa porque, fingindo ser sensata, costuma ser usada para justificar vários atropelos à liberdade. Normalmente, quem a profere não está mesmo a falar dos limites da sua liberdade. A minha formulação "a minha liberdade acaba" faz parte do logro. É sempre da liberdade dos outros que se trata.»

Já me espanta um pouco mais que uma dirigente socialista que respeito, como Alexandra Leitão, navegue nas mesmas águas. Ao ponto de, nessa manhã de sexta-feira, quase ter intimado Aguiar Branco a retirar a palavra ao líder do Chega. Como se o presidente da AR tivesse alguma tutela sobre aquilo que os restantes 229 deputados afirmam, no pleno uso da liberdade que a Constituição lhes faculta.

 

Neste lamentável episódio, Mortágua faz o papel de José Sócrates, que em 11 de Julho de 2008, no mesmíssimo local, exigiu a Francisco Louçã - fundador e então deputado do BE - que tivesse «tento na língua». Enquanto bradava: «Eu não confundo a liberdade com a liberdade de insultar.» E perorava sobre «o excesso de liberdade que põe em causa a liberdade dos outros.» Nada mais triste.

Levou réplica sem demora.

«Entendo que qualquer vertigem censória nunca passará neste parlamento. Eu direi sempre aqui, na minha bancada e neste parlamento, tudo aquilo que quero dizer. E se algum dia alguém lhe disser a si para ter tento na língua, eu estarei a defendê-lo. A grandeza da democracia é defender também o direito de opinião de todos, sem excepção.» 

Palavras de Louçã nessa sessão parlamentar, ripostando a Sócrates em defesa intransigente da liberdade de expressão. Palavras que mereciam aplauso antes e continuam a merecer aplauso agora.

Que diferença. Que degenerescência do Bloco de Louçã para o actual bloco censório de Mariana Mortágua. Pronto a silenciar os outros - hipocritamente, em nome da liberdade.

Pensamento da semana

Pedro Correia, 15.12.23

Há que tomar cuidado com o que se diz e com o que se escreve. O respeitinho é muito bonito, como se dizia antigamente: eis uma frase agora ressuscitada. A liberdade de expressão está cada vez mais restringida. A lista de interditos aumenta de dia para dia. Sabe-se lá quando e onde terminará.

 

Este pensamento acompanha o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

Disparar com excesso de rapidez

Pedro Correia, 12.07.23

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1

O ministro da Cultura, que terá recebido instruções de António Costa para sair do doce recato em que permanecia há 15 meses, deu enfim prova de vida política. Mas não da melhor maneira. Em dois dias seguidos, colidiu com os deputados da comissão parlamentar de inquérito à TAP e com o seu colega da Administração Interna.

Num caso esteve quase bem, noutro esteve muito mal. Sem perceber, de qualquer modo, que se contradizia por completo nas duas intervenções públicas.

 

2

Esteve quase bem quando saiu em defesa da liberdade de expressão a propósito do controverso ataque em forma de desenho satírico aos agentes da polícia, apontados como potenciais homicidas racistas na televisão do Estado.

A liberdade editorial dos cartunistas deve ser irrestrita: sempre pensei assim e continuo a pensar. Mesmo quando a sátira ofende, é de mau gosto e estigmatiza um sector socio-profissional, como as forças de segurança. Adão estaria bem, sem o advérbio quase, se não entrasse em polémica pública com José Luís Carneiro: nem parece que se sentam ambos no Conselho de Ministros.

Outra trapalhada absolutamente desnecessária. Esta, certamente Costa não lhe agradeceu.

 

3

Esteve muito mal ao esgrimir contra os deputados, esquecendo-se de um princípio fundamental do Estado de Direito: o Governo é responsável perante a Assembleia da República, devendo-lhe respeito institucional. Além disso, sendo membro do Executivo, viola o sagrado princípio da separação de poderes - outro pilar das democracias liberais - ao ter dito o que disse.

«Os deputados são uma espécie de procuradores do cinema americano de série B da década de 80. Isto contribui para a degradação da imagem da democracia», declarou Adão e Silva em entrevista à TSF, talvez nostálgico dos dias em que ganhava a vida como tudólogo do comentário bem remunerado na televisão, na rádio e nos jornais. Agora em dura crítica aos parlamentares que se atreveram a fazer perguntas incómodas na sede própria, agindo como representantes dos eleitores.

Ironicamente, o mesmo ministro que sai em defesa da liberdade de expressão para os cartunistas ataca o exercício dessa mesma liberdade pelos deputados. Uma coisa não cola com a outra. Acontece a quem dispara mais rápido do que a própria sombra após longa hibernação mediática.

Faz lembrar o que cantava Sérgio Godinho nos idos de setenta: «Só quer a vida cheia quem teve a vida parada.» 

 

4

Quem esteve muito bem - este sim - foi o deputado socialista António Lacerda Sales, ex-secretário adjunto da Saúde e presidente da comissão parlamentar de inquérito à TAP. Reagindo às farpas lançadas pelo titular da Cultura.

Em dois momentos.

Primeiro, afirmando isto à Lusa: «Parece-me uma falta de respeito pelo trabalho dos senhores deputados, da comissão e do próprio parlamento. Relembro que o Governo responde ao parlamento. Nenhum político está isento de respeitar as instituições, por maioria de razão o parlamento, especialmente os ministros.»

Depois, acentuando isto à Antena 1: «Os membros do Governo, mesmo quando se sentam à mesa do café ou em esplanadas, nunca se devem esquecer que são membros do Governo.»

Parafraseando aqui o que disse António Costa em Abril de 2016, quando afastou do Governo, por delito de opinião, João Soares - um dos antecessores de Adão e Silva. O primeiro-ministro é mesmo assim: molda os princípios às conveniências da sua geometria política, sempre muito variável.

 

5

Lacerda Sales merece aplauso. Defendeu a instituição parlamentar e deu uma bofetada metafórica ao ministro impertinente.

De luva branca, claro. São sempre as que doem mais.

Eu, a minoria absoluta

Paulo Sousa, 05.12.22

Já aqui há dias postei sobre as ameaças à liberdade de expressão.

Dentro da mesma temática, recomendo a leitura deste artigo de Patrícia Fernandes no jornal Observador, que enquadra toda a lógica das políticas identitárias. Este texto apresenta de uma forma sucinta o raciocínio que leva à restrição de direitos de quem que não pertença a uma das minorias com capacidade de ascender às tribunas.

No final do seu artigo, Patrícia Fernandes refere o caso Brett Weinstein, que ilustra bem o tipo de excessos que estamos a falar. Pelo atraso que estas modas demoram sempre a cá chegar, podemos já ir praticando contra-argumentos.

Como é fácil de concluir, se ascender às tribunas inclui em si mesmo um privilégio, esse privilégio tem um potencial de opressão perante as demais minorias. De que forma se podem hierarquizar minorias? Quando cada um de nós, individualmente, é o exemplo acabado da minoria absoluta...

Eu, talvez antiquado, continuo a achar que todos têm direito a continuar a dizer palermices, e por isso não abdico de dizer as minhas.

Adriano Moreira, o totalitarismo e Garrincha entram num bar

Paulo Sousa, 04.11.22

O recente desaparecimento de Adriano Moreira motivou muitos textos de homenagem e de comentários vários, também aqui no DO, sobre quem foi e como contribuiu para a evolução entre o Portugal em que nasceu e aquele que, cem anos depois, o viu partir.

Num desses textos, João Carlos Espada, no Observador, recorda uma explicação prévia dada por Adriano Moreira à dupla pergunta: “O que é ser de esquerda?” e “O que é ser de direita?”. Apesar deste episódio se ter passado nos idos anos 80, a explicação prévia continua actual como se tivesse sido dada hoje.

O totalitarismo não é de esquerda nem de direita — inclui o nacional-socialismo de Hitler e o comunismo de Stalin — eles não estiveram coligados? Na actualidade, o totalitarismo abrange os regimes de Leste, as ditaduras de capitalismo selvagem sul-americanas, muitos regimes do Terceiro-Mundo.”

E a seguir explicou enfaticamente: uma vez definida a diferença fundamental entre totalitarismos (de esquerda e/ou de direita), podemos então conversar tranquilamente sobre as escolhas entre direita e esquerda democráticas: “Serão de esquerda os que dão um papel predominante ao Estado, e de direita os que dão um papel predominante às pessoas e às instituições “.

Alguns psicólogos explicam a devoção pelos totalitarismos como uma patologia assente na vontade de uns dominarem todos os demais, a qualquer custo e sem travão, assim como pela incapacidade de outros em decidir por si, preferindo seguir cegamente quem lhes mostre convicções fortes e explicações simples. Uns e outros, tal como lobos disfarçados de cordeiro, circulam por aí disfarçados de democratas. Uns dizem-se de esquerda, outros de direita, mas, mais do que qualquer outra coisa, são apenas amantes do totalitarismo e não hesitarão um instante em derrubar a democracia para lhe tomarem o lugar.

Nos tempos da comunicação contínua, em que o caudal de estímulos é de uma dimensão que torna impossível digerir tudo o que nos acerta, somos facilmente levados pela nossa natureza e pelos nossos enviesamentos cognitivos. Mais apelativo do que quaisquer factos que precisam de ser ponderados e trabalhados, são as emoções que mais facilmente nos mobilizam e agitam. Os amantes do totalitarismo sabem disso, e não hesitam em armadilhar essa informação contínua de forma a poderem chegar ao poder.

Lívia Sant’Anna Vaz, promotora de Justiça no Estado da Bahia, entrevistada há dias pela Folha de São Paulo, dribla magistralmente o conceito básico da liberdade de expressão. Não se chega ao “Anjo das Pernas Tortas”, que foi Garrincha, mas bem que tenta (perdoem-me a formulação sul-americana).

Questionada sobre como a desinformação tolhe a liberdade de expressão, ela começa por afirmar que “as pessoas”, coitadas, não conseguem aceder a elementos que lhes permita ter o que ela designa como “liberdade de expressão consciente”. Por isso acabam por apenas repetir o que ouvem, “supostamente exercendo a sua liberdade de expressão”, mas que é apenas uma “liberdade de expressão manipulada”. Mostra-se assim preocupada com a “absolutização da liberdade de expressão de grupos hegemónicos”. De imediato, como só um estrábico com um joelho varo e o outro valgo conseguiria, e por isso fez-me lembrar o mítico ponta brasileiro, avança e avisa que “os inimigos da democracia podem estar na própria democracia”. E quando? “Quando nós tornamos em valor absoluto determinados princípios da própria democracia, como a liberdade de expressão”.

Jinga que finge que não jinga e avança, como se de um jogo de espelhos se tratasse, salta rapidamente para deduzir que como a sociedade é misógina, racista e LGBTfóbica, em consequência, isso reproduz-se nas redes sociais. Após mais umas simulações e uns faz-de-conta, lá chega à frente da baliza, e após tão elaborada jogada, remata com um “acaba a ser uma ditadura da liberdade de expressão”.

Quem não conseguiu ver bem por onde é que a bola passou, precisa de repetição, ou do VAR, que me dizem ser a moda actual. E é então no VAR que, deixando o estádio incrédulo, Lívia Sant’Anna Vaz afirma que “a liberdade de expressão é um elemento fundamental da democracia, MAS não se pode tornar num elemento absoluto e minar e destruir a própria democracia”. “Então é importante que a gente tenha limites à liberdade de expressão para concretizar a própria democracia”.

Os finteiros que sugerem uma democracia com limites à liberdade de expressão, não são mais do que totalitaristas disfarçados de cordeiros. É gente perigosa. Adriano Moreira avisou-nos.

Os novos censores andam aí

Pedro Correia, 08.06.21

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Há leis que deviam envergonhar os legisladores. Se essas leis são aprovadas na Assembleia da República sem sequer um honroso voto contra, a vergonha aumenta. E quando o Presidente da República - supremo vigilante dos direitos, liberdades e garantias - as promulga sem sombra de hesitação, a vergonha redobra.

Aconteceu a 17 de Maio, com a aprovação da Lei 27/21 no hemiciclo de São Bento - um diploma com o pomposo (e algo ridículo) título de Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. Com votos favoráveis do PS, PSD, BE, CDS e PAN, e abstenções do PCP, PEV, IL e Chega.

No seu artigo 6.º, esta Lei condiciona a liberdade de imprensa, tornando-a pasto de tentações autoritárias de qualquer governo de turno. Cinicamente, a pretexto do reforço do exercício da cidadania e do jornalismo.

Em vez de incentivar a auto-regulação dos meios de comunicação social, tenta impor-lhes cangas administrativas através de um órgão composto por comissários políticos e moços de fretes ao serviço de estruturas partidárias.

Em vez de reforçar a isenção e a independência das empresas editoriais, tenta impor-lhes controleiros e certificados de bom comportamento a pretexto da instituição de mecanismos de verificação de factos. Cinicamente, uma vez mais, invocando um louvável motivo: o combate à desinformação e ao boato tornados notícia.

 

Li com atenção este artigo 6.º, que me suscita sérias reservas e as objecções que sintetizo aqui:

«O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Acção Contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou colectivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou dinfundam narrativas consideradas desinformação.» (art. 6.º, n.º 1)

Este dispositivo legal, em interpretação extensiva, permitiria reintroduzir em Portugal a Comissão de Censura, justificada aliás, em termos legais, com terminologia semelhante à que vigorou no salazarismo. Destinada a "proteger" os incautos cidadãos, colocados sob a asa vigilante do Estado paizinho e protector. A expressão "narrativas" deixa evidente que já não está só em causa a componente noticiosa dos conteúdos informativos: há via aberta para o delito de opinião. Não este blogue, mas o delito mesmo.

 

«Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja susceptível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.» (art. 6.º, n.º 2)

Dizendo-se proteger a democracia, os legisladores condicionam seriamente a democracia. E lesam uma das principais receitas dos órgãos de informação: toda a actividade publicitária, "criada para obter vantagens económicas". Algo tão simples como "Omo lava mais branco" corre risco de interdição. Esta linguagem ambígua, imprecisa e vaga propicia a criação de um Ministério da Verdade de inspiração orwelliana. Endeusando e glorificando as "políticas públicas", eufemismo para o exercício da actividade governativa.

 

«Todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social queixas contra as entidades que pratiquem os actos previstos no presente artigo.» (art. 6.º, n.º 5)

Compete aos tribunais, mediante apresentação de queixas-crime, ajuizar sobre eventuais abusos da liberdade de imprensa. Não à ERC, entidade que não emana de qualquer poder auto-regulador da actividade jornalística nem tem vínculos ao poder judicial: é mero órgão administrativo, com membros nomeados pela Assembleia da República e que age ao sabor das conveniências políticas. Basta lembrar que um dos seus presidentes, Azeredo Lopes, viria depois a exercer funções de chefe de gabinete do presidente da Câmara Municipal do Porto (com Rui Moreira) e de ministro da Defesa (com António Costa).

 

«O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.» (art. 6.º, n.º 6)

Compete aos próprios meios de comunicação social, mediante o cumprimento do Código Deontológico em vigor, avaliar em permanência a veracidade dos factos antes da publicação de qualquer notícia. O Estado não tem vocação para o exercício do jornalismo, mas para a instituição de mecanismos de propaganda. Os "selos de qualidade", equiparando órgãos de informação a restaurantes recomendados, são insultuosos para o jornalismo ao instituir certificados de bom comportamento - isto é, de respeitinho e veneração ao poder político.

 

Esta lei vergonhosa, que infelizmente o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa já promulgou, só entra em vigor no dia 27 de Julho. Ainda há tempo para travá-la, suscitando a apreciação da constitucionalidade.

Vem a propósito lembrar o artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa: «Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de se informar, sem impedimentos nem discriminações. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.»

O eclipse segue dentro de momentos

Sérgio de Almeida Correia, 07.06.21

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(com a devida vénia ao Ponto Final e ao Rodrigo Matos)

 

O eclipse total da Lua, ocorrido em 26 de Maio pp., marcou o final de uma fase que coincidiu com a entrada num tempo marcado pela borrasca atmosférica e política, que veio juntar-se à sanitária que há muito se manifesta em praticamente todo o mundo. Tão depressa controlada e dando sinais de esperança, como descontrolada gerando acrescidos receios, e que depois da extemporânea proclamação de vitória, voltou a dar sinal de corpo presente aqui ao lado, em Guangdong.

Com o eclipse chegaram ondas de choque que por uma ou outra razão nos vão atormentando. Vindas de lugares tão variados como a Bielorrússia, Israel, Angola, Congo, EUA, Espanha, da África do Sul e até de Portugal – seja por causa dos negócios do Ambiente, da (des)Administração Interna ou do simpático acolhimento dado pelas autoridades portuguesas aos hooligans do “chuto-na-bola” –, não são suficientes para nos fazerem esquecer os dramas que hoje se vivem nesta parte da Ásia. Saber se vai haver Jogos Olímpicos é assunto menor perante o vazio que se está a cavar.

Em Macau, o facto mais marcante da última semana não foi a proibição da vigília de 4 de Junho. Foi, sim, a decisão do Tribunal de Última Instância (TUI) proferida no Processo n.º 81/2021, na sequência da decisão anterior da PSP. Sobre tal aresto, cuja análise será a seu tempo por outros realizada com o necessário enquadramento jurídico à luz da Declaração Conjunta Luso-Chinesa, da Lei Básica e do Código Penal de Macau, pouco direi. Aqui estou mais preocupado com as consequências que dele resultam, e que são de modo a tornarem cada vez mais periclitante o modo de vida dos residentes de Macau e a continuidade do seu sistema jurídico-político até 2049, que aliás há anos está posto em causa pelos silêncios e a conivência das autoridades portuguesas, de alguns estorvos diplomáticos e de um ou outro parlamentar mais atrevido e mal informado.

Pessoalmente, não tenho ilusões. Mas não deixa de causar estranheza que para o mais alto Tribunal de Macau, a propósito de uma decisão na essência meramente administrativa, é essa a interpretação que faço, os princípios e liberdades consagrados para o segundo sistema, a nível jurídico, autonómico, político (e até os factos de leitura histórica) devam obediência a razões de natureza conjuntural, sufragando e aplaudindo uma decisão policial que inclusivamente se sustenta na instrução do processo em documentos que não foram produzidos pelo recorrente e lhe são alheios, bem como à própria organização da vigília em anos anteriores (“as fotos 4 e 5 não têm nada a ver com o promotor da reunião com velas de 4 de Junho”; “os escritos mostrados nas fotos 4 e 5(...) não foram exibidos na reunião com velas de 4 de Junho realizada pela União para o Desenvolvimento da Democracia”, “as fotos 7 a 10 foram tiradas durante o dia, e a reunião com velas de 4 de Junho é realizada durante a noite, pelo que a Polícia enganou-se deliberadamente para inventar crimes para a reunião de 4 de Junho”, lê-se na argumentação da recorrente transcrita pelo TUI, afirmações sobre as quais não há uma censura ou crítica a este modo de actuação de que aquela se queixa quanto à PSP, o que pode levar a pensar que seja legal, legítimo e moralmente aceitável fundamentar uma decisão de proibição com base neste tipo de argumentação).

Estou inteiramente de acordo com a decisão quando esta afirma que “inútil é uma Justiça que não se faz valer pela força dos seus argumentos” e que “a mera força sem Justiça não passa de (pura) arbitrariedade”, lamentando apenas que destas lapidares afirmações de princípio não tenham sido extraídas as devidas consequências.

O argumento da exibição pública de um quadro em que o retratado está num momento da sua vida privada cai pela base se esse momento for inócuo, não ofender qualquer lei ou moral pública, e se aquela pessoa tiver dado o seu consentimento, ou até for do seu interesse, a respectiva exibição pública, não havendo neste caso qualquer colisão “com o direito à privacidade e intimidade que ao visado legalmente assiste”.

De igual modo, a justa crítica à acção governativa, política e institucional, ou às “verdades oficiais”, nunca foi nem é crime, seja em Macau, antes ou depois da criação da RAEM, ou em qualquer outra parte do mundo que se reja por valores decentes, caros aos sistemas demo-capitalistas-liberais, que não admitam uma ditadura sobre o pensamento e o policiamento da livre expressão.

Não é pelo facto de haver uma interpretação oficial policiável que se passa uma esponja sobre a História, e que os factos, e também os mortos – porque os houve – desaparecem, independentemente da expressão que os designe. O silêncio sempre omite, mas não purifica.

Preocupa-me, para além da evidente desproporcionalidade entre a proibição e o exercício do direito de manifestação que estava em causa, não tanto que a vigília tenha sido impedida com base em argumentos, salvo melhor opinião, que a si próprio se invalidam por força das circunstâncias que o aresto invoca, mas antes por se entrar numa área que em princípio aos tribunais estaria vedada, como seja a do policiamento da linguagem, do direito de crítica e do pensamento à luz do discurso oficial.

A justificação da pandemia é triste, faz aristotélica tábua rasa da ausência de casos locais há muitos meses, e ignora os milhares que diariamente, sem transporte próprio, oficial ou motorista, são obrigados a circular dentro de elevadores e de autocarros apinhados sem qualquer distância física de segurança, ou que se acotovelam e empurram dentro de superfícies comerciais nesse mesmo centro da cidade para usufruírem das promoções e dos saldos de alguns estabelecimentos.

A decisão proferida, clarificando a posição do TUI e fixando as balizas para a liberdade de expressão e o exercício dos direitos de reunião, manifestação e desfile, vem tornar mais imperceptível a cada vez mais ténue separação de poderes na RAEM. Indo além do jurídico para impor restrições de natureza política ao exercício de direitos fundamentais, sem que no passado eventuais violações tenham alguma vez sido sancionadas à luz das mesmas normas fundamentais vigentes, coloca-se em crise sem qualquer necessidade aquele que era desde há décadas o entendimento dos limites do sistema jurídico-político-constitucional da RAEM, como seja o exercício do direito de crítica pública nos termos em que sempre foi admitido, enfileirando pela adesão às “verdades oficiais”, as únicas que a partir de agora são legítimas e admissíveis sob pena de se estar a violar a lei penal.

E também não será por se mudar o nome aos bois, ou se proibir o seu uso público quando a eles nos estejamos a referir, que eles o deixam de ser, o que em si relativiza a força da própria decisão judicial e reforça o clima de receio, medo, delação e intrusão policial na vida pública para todos aqueles que pensem de maneira diferente neste sistema ou se aventurem, em determinados dias, a circular por determinados locais da cidade. E que é cada vez mais visível na redução de uma opinião crítica estruturada e séria na comunicação social, para não ofender os poderes instituídos ou perder negócios, ou nas mudanças que se quis impor na informação da TDM e em que, pelo menos oficialmente, houve depois um recuo devido à forma canhestra como tudo se processou. Até à próxima investida.

O acórdão em causa pouco contribuirá, na minha modesta e sempre criticável opinião, para melhorar a imagem externa da RPC, fomentar as virtudes do sistema vigente na RAEM ou a percepção que a opinião pública poderá vir a ter do caminho que se está a trilhar, o que também em nada servirá para amenizar ou resolver das preocupações do Presidente Xi Jinping quando este apela a uma mudança de discurso das autoridades chinesas e se queixa da falta de diplomacia dos porta-vozes oficiais sempre que se trata de fazerem passar a sua mensagem.

Na verdade, quando há dias o Presidente chamou a atenção, numa reunião do Politburo (vd. notícias do SCMP e do Global Times), ao aperceber-se do aprofundamento da falta de resultados das campanhas de propaganda externa e da imagem negativa que resulta para o país e o regime junto da opinião pública internacional, para a necessidade da China melhorar a sua comunicação e a sua imagem, mais não estava a fazer do que a criticar o modelo e o discurso oficial cultivados desde o XIX Congresso do PCC, e de que constituem bom exemplo as conferências de imprensa diárias do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês. Quem não quer ser visto e tratado como um lobo não lhe veste a pele.

A linguagem estereotipada usada por Pequim, dominada por uma retórica agressiva e de permanente confronto, em especial contra países mais fracos – a RPC não usa com a União Europeia ou os EUA a mesma linguagem que usa com a Austrália, as Filipinas, a Malásia ou a Nova Zelândia –, indispõe e afasta qualquer destinatário menos crente, ou menos interesseiro, na bondade dos seus argumentos e da sua prática. E só encontrará paralelo, na sua virulência, no discurso radical das décadas de sessenta e setenta do século passado, até se iniciar o processo de abertura e reforma conduzido por Deng Xiao Ping.

Será sempre impossível criar uma imagem externa favorável, “to make friends”, com tais registos ameaçadores e inflamados, quando se evita discutir de forma aberta os problemas, quando se impõem temas tabu, quando se fazem exercícios militares que são alvo das queixas de terceiros por violação do seu espaço aéreo ou marítimo, quando se rejeita qualquer crítica, por mais bem intencionada que seja, ao modo como a pandemia foi tratada, quando cientistas se queixam de não lhes terem facultado dados essenciais em bruto para a descoberta da verdade, ou ainda quando se reage de forma desbragada aos pedidos para uma investigação séria sobre a origem do vírus, atirando com um discurso belicista aos quatro ventos, ao mesmo tempo que se fazem acordos com a mais nacionalista e retrógrada direita europeia levando milhares de cidadãos às ruas aparentemente contra a simples construção de um campus universitário.

E o problema não é de tradução porque a ameaça, a pose e o estilo, bem como um renovado culto da personalidade, acompanharam o endurecimento do discurso e do regime a partir de 2017 e do XIX Congresso do Partido Comunista Chinês.

O que não se pode, e isso já foi visível nas posições de alguns sipaios que se dedicam ao policiamento das redes sociais, ao bullying e à mistificação da realidade sem qualquer vergonha, nalguns casos aplaudida mesmo sem temor a Deus (atendendo à sua fé católica e posição institucional), é fazer propostas para que se “mascarem” o discurso e as políticas oficiais, fazendo-as passar por aquilo que não são, apelando à fraude na transmissão da mensagem oficial, como se as pessoas fossem destituídas.

Depois do mal causado à imagem externa da RPC não será esse seguramente o caminho da redenção, nem será por aí que lhes chegará o desejado maná.

Muito menos estará em se procurar nos fantasmas da segurança interna e na pandemia as desculpas para as escolhas que se revelaram erradas, para a má governação (que não se quer que seja criticada a não ser depois de alguém de cima o fazer) e as más estratégias que prejudicam o desenvolvimento da RPC. Alguns erros, como o da comunicação agressiva ou o da política do filho único, foram tão evidentes, tão antipatrióticos e socialmente tão desestabilizadores que não será pela simples mudança do estilo da propaganda que a imagem externa ou uma afirmação na arena internacional se tornará mais consistente com o seu legado cultural e filosófico, os desafios do presente, os desígnios e a grandeza do país.

O mal está feito e será de muito difícil reparação na próxima década. Se é que não será já de todo impossível.

O aperfeiçoamento da roda

Paulo Sousa, 01.06.21

A tão falada Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era digital entrará em vigor em meados de Julho.

Imediatamente pela leitura do nome desta lei somos remetidos para um melhoramento do conceito da roda. Na sua reconhecida modéstia, entendeu o Governo da República Portuguesa, esse farol que irradia esclarecimento e sentido humanista, dar uns retoques para corrigir alguma distracção da Assembleia das Nações Unidas.

Acontece que esta lei estabelece no seu artigo 6.º – o tal que abre a porta à censura – que a apreciação de eventuais queixas sobre os conteúdos caberá à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e não a um qualquer tribunal. Ora, por mais garantias de independência que os estatutos da ERC estabeleçam, já foram demasiadas as vezes que entendemos que as suas decisões foram tão coincidentes com aquelas que o governo escolheria, que torna legitima a pergunta: existirá alguma hipótese de um governo português poder condicionar uma entidade reguladora, neste caso a ERC?

Numa rápida pesquisa, encontrei esta notícia de 2011 do Jornal de Negócios. O então Presidente da ERC, Dr. Azeredo Lopes, defendia que a representação partidária no respectivo Concelho Regulador devia ser alargada a um terceiro partido. Esta sua opinião surge em resposta a uma pergunta da então deputada do BE, Ana Drago. Olhando para isto a partir de 2021 é fácil concluir até que ponto a ERC é sujeita a interferências do executivo.

Esta é claramente uma lei feita por um partido convicto de que as decisões lhe pertencem por direito, e que nem considera a hipótese de num futuro ainda mais negro do que a nossa actualidade, com um eventual governo com pulsões ainda mais autoritárias que o actual, esta será a lei a que esse futuro poder recorrerá para limitar a oposição, e eventualmente para tirar o pio aos senhores que ambicionaram arredondar a roda.

Travar a propaganda, combater a mentira

Pedro Correia, 29.05.21

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Por amável convite do Luís Serpa, obreiro da livraria Ler por Aí, em parceria com a Universidade Autónoma de Lisboa e a Oficina da Liberdade, participei na manhã de ontem no primeiro painel dum ciclo de debates por via digital subordinado ao tema "Comunicação Social: Liberdade de Expressão e Responsabilidade Social".

Este painel integrava também José Manuel Fernandes, Carlos Fernandes e Luís Aguiar-Conraria, com moderação de Isabel Damásio, jornalista e professora da Autónoma. 

Eis algumas das questões postas a debate, também com a participação do público que ia acompanhando via Facebook:

Como assegurar a liberdade de expressão em situações de crise?

Quais os limites e constrangimentos da liberdade de expressão?

Como vê a liberdade de expressão durante a crise da Covid-19?

 

Em síntese, deixei estas reflexões sobre o tema:

    •  A pandemia reforçou a dependência dos jornalistas das fontes oficiais, limitando - até por constrangimentos físicos motivados pelo confinamento - a obtenção de notícias a partir de vias alternativas. Isto permite que a verdade de um dia se torne a mentira do dia seguinte. A título de exemplo, a garantia dada pela ministra da Presidência que só 12 mil britânicos viriam assistir à final da Liga dos Campeões no Porto onde estariam sempre envolvidos numa "bolha" de adeptos em trânsito entre o aeroporto e o estádio com regresso imediato ao aeroporto. Os últimos dias mostram-nos uma Cidade Invicta já invadida por milhares de forasteiros do Reino Unido a pretexto da realização do jogo, num desmentido vivo das garantias da ministra.

 

  • A mera reprodução do discurso oficial, sem análise crítica, induz o jornalista a desinformar os cidadãos. Não é possível, por exemplo, a máscara "transmitir uma falsa sensação de segurança" (directora-geral da Saúde dixit) e tornar-se obrigatória por ser um imprescindível instrumento de combate à pandemia. 

 

  • O mesmo se aplica à reprodução acrítica das opiniões de supostos especialistas em saúde pública e em doenças infecciológicas que - com poucos dias de intervalo - emitem opiniões contrárias às que emitiram anteriormente, falando sempre de cátedra como se fossem autoridades supremas na matéria. 

 

  • Os chamados "argumentos de autoridade" devem ser encarados com desconfiança e sujeitos a escrutínio jornalístico. Para haver fronteiras entre factos e propaganda. Durante semanas sucessivas andaram a vender-nos um ilusório "milagre português" como excepção num mundo contaminado pela pandemia. Era uma "verdade" com pés de barro: meses depois, Portugal surgia nas piores estatísticas do planeta em novos contágios e óbitos por milhão de habitantes.  

 

  • Há que combater a tendência cada vez mais acentuada para a produção de "jornalismo de pacote": o que escreve um, escrevem todos os outros por mero efeito mimético.

 

  • Há que criticar sem rodeios aqueles jornalistas que aproveitaram a grave crise sanitária para se travestirem de tele-evangelistas, pregando lições de moral e bons costumes aos cidadãos em vez de difundirem notícias.

 

  • O jornalista tem o dever deontológico de combater a censura. Mas também de contrariar a múltipla corrente de micro-censuras que proliferam por aí, geradas pelas mais diversas tribos de ressentidos e ofendidos. Um exemplo: ninguém fala em vírus chinês para não ferir a delicada sensibilidade de Pequim, mas há contínuas alusões à estirpe inglesa e brasileira ou à variante indiana deste vírus. Tal como continuamos a aludir à gripe espanhola de há um século que nada teve a ver com Espanha.

 

  • Com a pandemia assistimos à proliferação de termos como "negacionismo" ou "negacionista" para rotular todas as fugas à norma e catalogar qualquer voz discordante. O dever deontológico dos jornalistas é combater estas etiquetas que mais não visam do que condicionar a liberdade de expressão equiparando moralmente todos os "dissidentes" àqueles que negam a existência do Holocausto.

 

  • O jornalismo é, infelizmente, uma das profissões menos escrutinadas. Os órgãos de informação que escrutinam ao mais ínfimo pormenor as actividades profissionais de médicos, professores, magistrados, arquitectos, enfermeiros, militares ou polícias esquecem-se de estender esse escrutínio ao exercício da própria profissão, cada vez mais proletarizada e sujeita a toda a espécie de riscos. Que independência editorial subsiste em empresas jornalísticas falidas ou em vias disso, com editores a receberem pouco mais que o salário mínimo e os próprios directores a correrem o risco permanente de despedimento?

 

  • O chamado "jornalismo de cidadania" é um mito, por vezes perigoso quando se cruza com o pior dos populismos. Todo o jornalismo exige a minuciosa investigação de factos, a confirmação desses factos por fontes credíveis, o estabelecimento de contraditório e a audição de todas as partes envolvidas. 

 

  • A ética jornalística consiste na permanente procura da verdade com a noção antecipada de que não existem verdades absolutas. O jornalista tem o dever deontológico de contrariar a propaganda, de desmascar falsidades, de combater a mentira. Só assim cumpre realmente a sua função. 

Poderiam VV. Exªs considerar, se não for incómodo*

José Meireles Graça, 22.05.21

Muita da gente que é gente disse o que tinha a dizer sobre a indigna legislação aprovada pela Assembleia da República em 8 de Abril passado, com a abstenção do PCP, PEV, Chega e Iniciativa Liberal. Em todos os textos se consigna o mesmo espanto e indignação.

O Presidente Marcelo promulgou a avantesma em 8 do corrente mês; o Primeiro-ministro Costa referendou-a em 11; e a 17 foi publicada – é a Lei nº 27/2021, para entrar em vigor em 60 dias.

Rentes de Carvalho, escritor e porventura o blogger com mais direito a ser considerado um depositário vivo de fides, gravitas e virtus, tem a seguinte declaração no rodapé de todos os textos que vem publicando no Tempo Contado desde 12 de Maio:

Sem nenhum voto contra, no dia 8 de Maio de 2021, foi promulgada pelo Presidente da República a “Carta de Direitos Humanos na Era Digital” que estabelece um novo Direito de “protecção contra a desinformação”, e que institucionaliza e legaliza a censura, através de uma Entidade Reguladora e não dos Tribunais, de pessoas singulares ou colectivas que “produzam, reproduzam ou difundam” narrativas consideradas pelo Estado como “desinformação.”

Está tudo dito. Mas esperei para ver a publicação no DR, com um resto de incredulidade: seria possível que na casa da democracia não houvesse um estremeço, um coice, um frémito, uma voz que na plateia se apercebesse, e na tribuna denunciasse, a porta que a legislação escancara, e que estava fechada desde 25 de Abril de 1976?

Foi. E proponho-me por isso analisar, enquanto posso, a expectoração parlamentar.

Artigo 2.º

Direitos em ambiente digital

1 — A República Portuguesa participa no processo mundial de transformação da Internet num instrumento de conquista de liberdade, igualdade e justiça social e num espaço de promoção, proteção e livre exercício dos direitos humanos, com vista a uma inclusão social em ambiente digital.

Não há qualquer processo mundial de transformação etc. Há países onde a Internet é livre, que são grosso modo as democracias de tipo ocidental. E há países onde ela não é nem, até onde a vista alcança, virá a ser, como a China, a totalidade dos países comunistas e os de democracias vigiadas, como a Rússia. Mas mesmo nas democracias de tipo ocidental, a haver alguma coisa, é retrocesso: motores de busca como o Google ou redes como o Facebook ou o Twitter são hoje espaços onde a opinião é censurada (no caso do Google  falseando a ordem de aparição dos resultados das buscas), ao serviço dos interesses ou opiniões dos detestáveis mandarins que detêm a propriedade de tais meios.

A “inclusão social em ambiente digital” é uma frase redonda significando nada, a menos que os poderes públicos tomem sobre si o encargo de disponibilizarem acesso dos sem-abrigo à Internet, caso em que talvez não fosse pior proporcionarem-lhes previamente um tecto.

Artigo 3.º

Direito de acesso ao ambiente digital

2 — Com vista a assegurar um ambiente digital que fomente e defenda os direitos humanos, compete ao Estado promover: a) O uso autónomo e responsável da Internet e o livre acesso às tecnologias de informação e comunicação; b) A definição e execução de programas de promoção da igualdade de género e das competências digitais nas diversas faixas etárias; j) A definição e execução de medidas de combate à disponibilização ilícita e à divulgação de conteúdos ilegais em rede e de defesa dos direitos de propriedade intelectual e das vítimas de crimes praticados no ciberespaço.

O que é um “uso autónomo e responsável”? Quer o legislador que só navegue na Internet quem, para o fazer, não obedeça a ordens? E então quem pesquise por instrução do empregador? E responsável significa o quê? Que a visualização de sites de pornografia por quem pertença ao clero ou sofra de insuficiências cardíacas não é admissível, por exemplo?

A “igualdade de género” é um equívoco e esse pode, como quaisquer outros, ser promovido por quem defenda tal disparate, mas não pela lei nem pelo Estado. Sexos há dois, biologicamente determinados, e continua a haver qualquer que seja a orientação sexual. As outras combinações da doutrina LGBT (hoje, aliás, incluindo mais letras ainda do que as que contém o alfabeto) correspondem a uma teoria segundo a qual sexo não é aquele com que se nasceu, mas o que o indivíduo sente como seu. Estou a simplificar, como deve ser óbvio, mas o legislador não tem de tomar, nem deve, partido numa questão controversa que tem aspectos científicos, sociais, psicológicos, que estão longe de terem coalescido seja em que forma for de consenso. A menos que o consenso seja aquilo em que o Bloco de Esquerda, ou outras demências em forma de partido, acreditam.

O que são “conteúdos ilegais”? Quais são os crimes que até agora estavam omissos nas leis penais? E quem são os queixosos que, com as leis existentes, se viam impedidos de ser ressarcidos?

Artigo 4.º

Liberdade de expressão e criação em ambiente digital

3 — Todos têm o direito de beneficiar de medidas públicas de promoção da utilização responsável do ciberespaço e de proteção contra todas as formas de discriminação e crime, nomeadamente contra a apologia do terrorismo, o incitamento ao ódio e à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, o assédio ou exploração sexual de crianças, a mutilação genital feminina e a perseguição.

Outra vez a recorrente utilização de conceitos que não se definem – esta lei, se não tiver sido redigida por gente de má-fé, tê-lo-á sido por analfabetos. Quem decide o que é e não “utilização responsável do ciberespaço”? O que é e não “incitamento ao ódio”? Quem deu legitimidade ao legislador para proibir o “ódio”, que é um sentimento, portanto insindicável, ou pode ser, e muitas vezes é, uma mera opinião assim qualificada por quem dela discorde?

Apologia do terrorismo? Qual terrorismo? O dos muçulmanos que fazem atentados um pouco por toda a parte? O dos israelitas que bombardeiam o Hamas, ou o do Hamas que bombardeia os israelitas? O do Irão? O dos Americanos numa das suas guerras, quando há danos “colaterais”? O do regime Russo contra oposicionistas? E, e, e…?

4 — A criação de obras literárias, científicas ou artísticas originais, bem como as equiparadas a originais e as prestações dos artistas intérpretes ou executantes, dos produtores de fonogramas e de videogramas e dos organismos de radiodifusão gozam de especial proteção contra a violação do disposto no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 63/85, de 14 de março, em ambiente digital.

Especial protecção?! O quê, um direito ofendido goza de “especial protecção” se o for em “ambiente digital”? E se há razões, que não se explicam, para que assim seja, porquê não alterar o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos nos artigos pertinentes e, em vez disso, recorrer a uma alínea muito pouco clara de uma lei genérica?

Artigo 6.º

Direito à proteção contra a desinformação

1 — O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação, nos termos do número seguinte. 2 — Considera -se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos. 3 — Para efeitos do número anterior, considera-se, designadamente, informação comprovadamente falsa ou enganadora a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios.

A “narrativa considerada desinformação” é assim classificada por quem? Já hoje há várias organizações de “fact check” que não poucas vezes se limitam a papaguear a versão oficial dos factos. E a própria utilização da palavra “narrativa” é um poço sem fundo: aos mesmos factos históricos historiadores diferentes atribuem causas diferentes, bem como consequências. E isto é com o passado, que fará com os contemporâneos, embrulhados em paixões e interesses.

A “ameaça aos processos políticos democráticos” é um libelo dirigido directamente ao Partido Comunista, que defende a democracia popular, isto é, uma organização social da qual estão ausentes a liberdade de expressão da opinião, as eleições periódicas com partidos e pessoas com opiniões opostas, e a economia de mercado. Mas não pode ser do Partido Comunista que a lei está a falar porque é reconhecido pacificamente pelo Tribunal Constitucional e os costumes, para não falar do eleitorado que o apoia. Fica a pergunta: se não é o PCP, quem é?

O resto do articulado, mesmo descontando a sua intolerável vaguidão, chega a ser cómico: boa parte da publicidade destina-se precisamente a obter vantagens económicas enganando, e pode causar prejuízo público se uma qualquer organização de consumidores, em particular da variedade ecológica, se der ao trabalho de o demonstrar.

Artigo 7.º

Direitos de reunião, manifestação, associação e participação em ambiente digital

2 — Os órgãos de soberania e de poder regional e local asseguram a possibilidade de exercício dos direitos de participação legalmente previstos através de plataformas digitais ou outros meios digitais.

Direitos de participação? Este artigo não vai abrir a porta a que os partidos políticos e sindicatos se pendurem, para a sua propaganda e iniciativas, não na subvenção a que têm direito ou nas quotas, mas em novos meios públicos?

Artigo 9.º

Uso da inteligência artificial e de robôs

2 — As decisões com impacto significativo na esfera dos destinatários que sejam tomadas mediante o uso de algoritmos devem ser comunicadas aos interessados, sendo suscetíveis de recurso e auditáveis, nos termos previstos na lei.

Olha que bom. E esta notável disposição vai ser transmitida à Google, ao Twitter, ao Facebook, etc.? Boa sorte lá com isso. O ex-presidente Trump, a quem foi cortado o pio naquelas duas redes, vai gostar de saber. Alguém que, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, lhe comunique com urgência a boa nova. Não precisa de ser em bom Inglês, que o dele também deixa a desejar.

Artigo 11º

Direito ao desenvolvimento de competências digitais

Todo o articulado é um imenso disparate. Os meios electrónicos de acesso ao conhecimento são um meio, não um fim em si mesmos, e não requerem competências especiais. As novas gerações, aliás, poderiam com facilidade ensinar duas ou três, ou mesmo quatro, coisas nesta matéria às anteriores. A menos que o corpo docente seja constituído por adolescentes, hipótese não inteiramente de excluir por o legislador, nesta lei, se evidenciar como infante.

Artigo 19.º

Direitos digitais face à Administração Pública

Perante a Administração Pública, a todos é reconhecido o direito: b) A obter informação digital relativamente a procedimentos e atos administrativos e a comunicar com os decisores; e) A beneficiar de regimes de «dados abertos» que facultem o acesso a dados constantes das aplicações informáticas de serviços públicos e permitam a sua reutilização, nos termos previstos na lei;

Nada que não suceda já, excepto por um detalhe que esta lei não contempla: Que acontece se o serviço, como sucede frequentemente, não responder?

O acesso a dados é excelente. Mas “nos termos previstos na lei” significa na prática que serão todos os dados, menos os que interessariam, ou os que interessam mas mediante o pagamento de taxas, que o artigo não exclui.

Artigo 20.º

Direito das crianças

2 — As crianças podem exprimir livremente a sua opinião e têm a liberdade de receber e transmitir informações ou ideias, em função da sua idade e maturidade.

Os pais, como é óbvio, não têm nada a dizer, em razão do perigo de não verem com bons olhos o bem-pensismo e a formatação estatista de que esta lei é um exemplo.

 

Respiguei apenas alguns artigos. O resto são piedades, redundâncias e proclamações. Esta lei é uma vergonha, ainda que a palavra esteja puída pelo uso inadequado, porque institucionaliza a censura com o conteúdo e a extensão que o Poder do dia lhe quiser dar. E deste naufrágio não se salva quase nada: nem o Parlamento, nem os partidos, nem a quase totalidade da comunicação social, nem o Presidente da República.

Nem nós. Ou aqueles de nós que, reconhecendo a todos o direito à livre expressão da opinião, também o querem para si, num teclado de computador não menos do que em qualquer outro suporte.

 

* Publicado também aqui

A polícia na Faculdade de Arquitectura

jpt, 23.10.20

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Em Março de 2017 o professor Jaime Nogueira Pinto, homem consabidamente de direita, viu cancelada uma conferência para qual havia sido convidado, a realizar na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. O motivo foi a ameaça de acção violenta feita pela Associação de Estudantes, disse-se que ligada ao BE, auto-legitimada pela ideologia do orador. A direcção da faculdade atemorizou-se e cedeu. Os organizadores propuseram pagar a protecção policial. A direcção negou-se a fazer entrar a polícia no espaço universitário, uma já saudável tradição académica, mesmo que para defender o fundamental direito de liberdade de expressão. E de associação. Então a organização propôs arranjar segurança privada. A direcção recusou, e cancelou definitivamente a acção. Seguiu-se polémica. Vários professores, dali e de outras instituições, vieram a público mentir - quem acredita que há um qualquer "Juramento de Hipócrates" vinculando os académicos à demanda da(s) verdade(s) está redondamente enganado - clamando que o objectivo da organização era convocar os holigões neo-nazis para a universidade. Em privado alguns académicos - daquele vácuo eixo MES/BE - foram-me dizendo, com desplante sorridente, "ah, também o Nogueira Pinto é muito reaccionário ...". Sê-lo-á, porventura. E depois, que interessa isso?, calei eu, já então enojado com o ambiente geringoncico desta pequena lisboa, do campo grande à avenida de berna, "do choupal até à lapa" ... Mas do episódio retive três dimensões: o aldrabismo de tantos intelectuais; a cobardia académica; que só em situações extremas é que a polícia entra nos campi, nem mesmo para defender direitos fundamentais.
 
Leio agora, através do texto do Pedro Correia, que a PSP foi chamada, por denúncia anónima, e acorreu à Faculdade de Arquitectura, com desconhecimento da Direcção académica. Que deteve e multou um professor à porta da sala de aula. Devido a ter este retirado a máscara durante um período da sua prelecção. Passaram alguns dias. Googlo e não encontro quaisquer reacções, daquela faculdade, do seu corpo docente, ou no restante mundo académico, individual ou organizacional.
 
Para além do choque com esta mentalidade delatora e com este excesso de zelo, inculto e ilegal, de uns quaisquer polícias, o que se pode retirar? Que para o mundo universitário português é normal, e até requerido, evitar a acção policial para defender as liberdades de expressão e de associação. Mas que é mais do que aceitável, até requerida, a sua acção para obrigar a usar máscaras em espaço académico. Mesmo sem permissão ou solicitação das autoridades universitárias.
 
Não haja dúvida de que se vive uma histeria sanitária, promotora de mentalidades antidemocráticas. Mas o silêncio corporativo também nos mostra outra coisa. Que naquele meio existem, como se diz na tropa, "filhos de muitas mães". E isto até para mau entendedor chega ...
 
(A latere: ao colocar este texto no blog pesquisei o logotipo da Faculdade de Arquitectura para o ilustrar. Para me deparar com uma figuração completamente .... maçónica! Como é isto possível, estes termos para a representação de uma instituição pública numa república laica? Como não se exige a depuração deste simbolismo?)

Inaceitável

Pedro Correia, 23.04.20

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Amarga ironia: a única deputada independente do parlamento português é impedida de falar na sessão solene alusiva ao Dia da Liberdade.

Por mais que discorde do que Joacine Katar Moreira possa dizer, defenderei sempre o seu direito a falar no hemiciclo. Sobretudo num dia como este.

Se ela continuar impedida de subir à tribuna parlamentar no 25 de Abril, Ferro Rodrigues volta a cobrir-se de vergonha. Com máscara ou sem máscara.

Cocktails Molotov contra a Porta dos Fundos

Paulo Sousa, 25.12.19

Tem sido notícia o ataque com cocktail molotov ao edifício da conhecida produtora humorística Porta dos Fundos, após a divulgação do seu Especial de Natal.

Trata-se de um ataque violento contra a liberdade de expressão, e esta frase não pode ser acrescentada com a conjunção “mas”. O ataque contra o Charlie Hebdo, com um nível muito superior de violência e que causou doze mortes, lançou um debate que utilizou demasiadas vezes a conjunção “mas”.

É um facto que é muito mais confortável e cómodo fazer humor sobre a Igreja e os seus membros do que sobre o Islão. A título de exemplo é fácil lembrar todas a imitações que o popular humorista português Ricardo Araújo Pereira já fez dos padres com sotaque beirão sem que isso nunca lhe tenha levantado qualquer problema. Podemos também contar pelos dedos de uma mão amputada quantas piadas é que ele já fez sobre muçulmanos, e isso não se deve à sua falta de talento mas, arrisco, a uma sensação defensiva que associamos normalmente a um determinado orifício corporal.

Essa escolha, consciente ou não, é humana e aceitável mas acaba por ser redutora das suas inegáveis capacidades. De quantas boas piadas sobre o Ramadão, ou sobre os restantes quatro pilares do Islão, já fomos privados apenas porque é mais seguro imitar um padre? Já o ouvimos várias vezes a elaborar sobre os limites do humor mas continuo à espera de uma boa piada sobre Meca.

No Brasil, a religião é vivida com uma intensidade bem superior à da Europa, ou da maioria dos países maioritariamente cristãos, e isso não justifica de nenhuma forma o ataque, embora possa explicar em que contexto ele aconteceu. A religião faz parte da equação da crispação que caracteriza a vida política brasileira dos últimos anos e este ataque não poderá ser desligado das posições políticas assumidas desde sempre pela Porta dos Fundos.

Mudar de canal, de página ou do café que frequentamos continua a ser a forma civilizada de lidar com o humor, bem ou mal conseguido, que possa apoucar as nossas convicções religiosas, políticas, clubísticas ou outras. Ninguém é obrigado a assinar o Charlie Hebdo, a ver os vídeos da Porta ou a ouvir o Mata Bicho do Bruno Nogueira, na rádio pública. Basta mudar de canal.

Gosto de enquadrar esta abordagem numa outra mais alargada e que consiste em não ambicionar reeducar outros sujeitos, especialmente adultos. O cepticismo prévio para com a capacidade dos humanos em agir com grandeza, permite-me ficar por vezes deliciado quando sou surpreendido com o sentido de dignidade, de generosidade e abnegação de algumas pessoas. Prefiro contar com tacanhez e descobrir grandiosidade do que contar com razoabilidade e tropeçar em grosseria.

Mas isto pode ser tratado noutro post.

Ferro proibicionista

Pedro Correia, 16.12.19

Em tempos proibicionistas, com a liberdade de expressão cada vez mais comprimida, o senhor Ferro Rodrigues lembrou-se de interditar a palavra "vergonha" naquele que devia ser o espaço da liberdade por excelência: o hemiciclo da Assembleia da República. Um local onde desde o tempo da monarquia constitucional se pronunciaram as mais acaloradas diatribes contra o poder de turno e só foi transformado em mausoléu da interdição durante os anos em que ali se sentavam as silenciosas sumidades da Assembleia Nacional.

Se "vergonha" é expressão a banir, com horrores de blasfémia, questiono-me o que acontecerá no dia em que um deputado da Nação se atrever a proclamar que se está «cagando para o segredo de justiça». Mas talvez aqui o senhor Ferro Rodrigues abrisse uma benevolente excepção.