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Delito de Opinião

Lição de vida

Pedro Correia, 03.03.24

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No Monólogo do Vaqueiro, primeira peça exibida na RTP (1957)

 

«A morte é certa, não vale a pena estar a pensar nela. Vivam a vida, vivam, vivam, vivam, vivam e saibam o que fazer com a liberdade. A liberdade é uma coisa muito bonita -- e a democracia também.»

Ruy de Carvalho, anteontem, no dia em que festejou 97 anos. Em palco, como ele mais gosta. Parabéns!

Ja som Ukrajinec

Pedro Correia, 24.02.24

 

Na Ucrânia, faz agora dez anos, já se lutava pela liberdade contra os esbirros de Moscovo, quando Vladimir Putin, através de um fantoche do Kremlin, queria pôr a pata em Kiev. Não se lutava apenas nas ruas e nas praças. As batalhas da propaganda política também se tornaram decisivas, com o recurso às novas tecnologias. Este vídeo, por exemplo, teve rápida difusão mundial: em poucos dias recebeu 3,5 milhões de visualizações.

Dois minutos: não foi preciso mais. Uma jovem chamada Yulia difundiu a mensagem, clara e directa, recorrendo à técnica do vivo televisivo: "Queremos ser livres".

Foi quanto bastou para o essencial ficar dito. E para o eco se propagar: "Ja som Ukrajinec".

Marco vitorioso na luta contra o fascismo neocomunista: o fantoche foi derrubado.

 

Hoje volta a ser imperativo, quando se assinalam dois anos da criminosa invasão da Ucrânia pela Rússia, potência nuclear 28 vezes maior do que o mártir país vizinho: a autodeterminação dos povos não pode ser flor de retórica, há que erguer bem alto o clamor da liberdade.

E de novo proclamar: Ja som Ukrajinec.

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Foto: Nacho Doce / Reuter

Liberdade sim, mas só para nós

Pedro Correia, 03.01.24

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Meio século depois do 25 de Abril, chegámos a isto: queremos a democracia para nós enquanto toleramos e até aplaudimos a implantação de ditaduras noutros quadrantes. Tenho pensado nisto enquanto escuto à minha volta várias vozes mostrando indiferença ou até uma discreta simpatia pelos regimes de Cabul e de Teerão, entre outros.

Ao ouvir isto concluo, uma vez mais, que pecamos por falta de apego à liberdade. Tenho a convicção de que muitos portugueses não se importariam de voltar a ver por cá um regime "musculado". Só isso explica a defesa que fazem, nas redes sociais, dos regimes autoritários ou ditatoriais implantados além-fronteiras.

 

O mais contraditório é que muitas das pessoas que emitem opiniões deste género estão sempre a enaltecer o "nosso" 25 de Abril. Enquanto negam que outros povos tenham o seu próprio 25 de Abril. Democracia aqui, tudo bem; ditadura noutros países, tudo bem também.

«Não me venham falar em direitos humanos», vou lendo e escutando demasiadas vezes. Frase que poderia ter sido proferida por Salazar, reeditada neste Portugal do século XXI. Como se a atracção pelos regimes de "pulso forte" estivesse inscrita no nosso código genético. E se calhar está mesmo.

Diaconisas Sem-Remédio

Pedro Correia, 18.10.23

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Volto hoje a apreciar muito os filmes das décadas de 80 e de 90, quando ainda não havia os tais "consultores de intimidade" que agora pululam por Hollywood à espreita de um mamilo ou uma nádega - os novos censores, de tesoura em riste. A mando das Diaconisas Sem-Remédio.

Havia muito mais liberdade nessas duas décadas do que existe hoje. Nem se compara.

O cartoon da RTP e o catavento socialista

jpt, 11.07.23

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Apesar de nos seus congressos, aquando no poder, o PS ser um partido unanimista - como o comprova a memória dos apoios albaneses neles sempre conseguidos por Guterres, Sócrates e Costa - os socialistas não são exactamente monolíticos. Vê-se agora na disputa interna sobre a pertinência e até legitimidade do cartoon anunciando o racismo assassino ("de Estado") da polícia, transmitido pelo serviço público televisivo. Há dirigentes contra, e até o ministro da administração interna, há os que o defendem, em nome da radical liberdade de expressão.

O ministro da Cultura surgiu agora defendendo o direito ao cartoon e atacando os seus detractores. E acabo de ver - no canal público RTP3 - o ex-ministro Paulo Pedroso também defendendo o supremo direito a essa liberdade de expressão, enquanto invocava, como exemplo contrário, episódios censórios do humor suportados por políticos do PSD (a patética inibição de um livro de Saramago, o ridículo ataque a Herman José feito pela igreja católica, apoiado pelo actual presidente da república, então presidente do PSD). Mas se Pedroso já não é da elite partidária -  julgo mesmo ter saído do partido --, a posição de Adão e Silva tem um peso diferente. Não só por ser ministro. Mas também porque Adão e Silva, de quem se diz ser uma criatura maçónica, o que dará substrato à sua influência política, foi um arreigado plumitivo socratista, não só directamente mas também como contribuidor do pérfido amplexo digital Câmara Corporativa/Jugular, agregando-se a gentes como as Câncios, os Galambas e os Vales de Almeidas na desmesurada e desbragada defesa dos desmandos de Sócrates. Ou seja, Adão e Silva está no cerne do actual poder político.

Essa sua centralidade política dá mais relevo à defesa que veio fazer do cartoon invectivador da polícia. Não vou discutir a adequação do cartoon à sociedade portuguesa, nem a sua pertinência no serviço público televisivo, nem mesmo a sua correspondência aos factos da realidade francesa (à qual, a posteriori, veio a ser ligado pelos seus transmissores, ainda que tal não explícito no seu conteúdo). Vou-me restringir a esta realidade de um ministro socialista, da ala socratista, e de um ex-ministro socialista, que nunca foi socratista, surgirem a defender a irredutibilidade do direito ao... cartoon, à liberdade criativa, de expressão. E sua divulgação. 

É interessante - e para mim em particular - porque isto é avesso à concepção que aquele partido, e suas figuras gradas, vêm tendo nas últimas décadas relativamente à liberdade criativa, em especial se sita aos cartoons. E dou exemplos comprovativos dessa contradição, que em muito ultrapassam os recentes ataques à caricatura de António Costa usada pelos sindicalistas do FENPROF (ligado ao PCP), e a posterior censura de organismo sob financiamento estatal ao trabalho daquele professor-cartonista. Lembro episódios mais antigos - que o comentador televisivo Paulo Pedroso deverá desconhecer, pois não os convocou para o seu episódio de comentário de hoje - e que, exactamente pela sua antiguidade e por não se restringirem às querelas da política portuguesa, mais demonstram a mundivisão estrategicamente censória que conduz os próceres socialistas.

Recordo que após o tétrico atentado de 2015 à "Charlie Hebdo" o antigo ministro Oliveira Martins, também relevante figura de instâncias culturais nacionais, dinamizou um debate sobre liberdade criativa e nele defendeu o estabelecimento de limites à liberdade de expressão - censura e, acima de tudo, auto-censura. Narrei o espantoso desplante aqui. Mas mais relevante ainda, por mais demonstrativo do que é a elite socialista, também já recordei que o ministro dos Negócios Estrangeiros de um governo PS em 2005 criticou oficialmente a publicação de cartoons num jornal dinamarquês porque "atentatórios de crenças e sensibilidades alheias". 

Mais interessante ainda - e também já o recordei - é que em pleno parlamento um deputado socialista, e antigo governante, considerou que cartoonistas e assassinos terroristas são iguais. E é muito relevante, para o entendimento do PS actual, que esse notável socialista, correligionário próximo de Sócrates, e que tem essa peculiar concepção de liberdade criativa, de expressão e divulgação, - repito, a igualdade entre um cartoonista e um assassino terrorista, tornada posição parlamentar do seu partido - foi recentemente proposto pelo PS para membro do Tribunal Constitucional. E num país onde um outro candidato ao mesmo Tribunal fora dissecado por em 1984 ter escrito algo contra a interrupção voluntária de gravidez, e um outro zurzido por em 2011 ter resmungado junto dos seus alunos sobre a influência de uns propalados lóbis "gay", ninguém se preocupou com o facto do PS ter proposto tal personalidade, com tal concepção de liberdade de expressão, para o importante Tribunal Constitucional.

Eu notei o caso, protestei - e o influente Vitalino Canas meteu-me em tribunal e lá tive que recuar, doando 200 euros ao IPO. Mas os outros, em particular o socratista (e quiçá maçónico) Adão e Silva e o ex-ministro Paulo Pedroso, agora palavrosos, sobre essa candidatura nada disseram! Passou-lhes, não devem ter considerado relevante. Mas surgem agora veementes a defender que a RTP enuncie, de modo implícito, o racismo da polícia portuguesa. O racismo sistémico, estatal, para usar o jargão. 

Enunciam por catavento. Nada mais. E vão para o governo. E depois para a televisão, formar opinião pública em trejeitos de "comentadores". Já agora, Vitalino Canas também por lá anda, num desses painéis. Ainda o apanharão a defender a liberdade de expressão, se tiverem paciência para assistir a tal coisa.

Cada vez menos livres

Pedro Correia, 05.07.23

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Observando caricaturas antigas, de mestres do desenho satírico como José Vilhena (1927-2015), é fácil concluir que vivemos tempos menos livres do que naquelas décadas de 70, 80 e 90 em que ele pontificava em publicações diversas, sempre com o seu traço corrosivo e cáustico, sem fazer vénia fosse a quem fosse.

Hoje, nestes dias do respeitinho e da autocensura, vemos pouco ou nada disto. Aliás os cartunistas tornaram-se espécie em vias de extinção - desde logo no The New York Times, que ajoelhou ao ponto de banir desenhos satíricos das suas páginas. Gigante do jornalismo a comportar-se como anão perante micro-indignações tribais. Com muitos outros a seguirem-lhe o exemplo, cá também.

Atentos, veneradores e obrigados. De cerviz dobrada até ao chão.

O pódio da vergonha

Pedro Correia, 11.05.23

Consulto o Índice Mundial de Liberdade de Imprensa, da prestigiada organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras. Neste anuário, os três últimos lugares - autêntico pódio da vergonha - são ocupados por três países comunistas: Coreia do Norte, República Popular da China e Vietname.

Outra ditadura comunista, Cuba, figura nos dez piores entre 180 Estados analisados. Os restantes? Irão, Turcomenistão, Síria, Eritreia, Birmânia e Barém.

Não há coincidências. 

 

A ameaça fascista

Paulo Sousa, 04.05.23

"Portugal caiu para nono lugar no ‘ranking’ mundial da liberdade de imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF) e passou a liderar o grupo de 44 países com “uma situação satisfatória”, foi hoje anunciado.

Em 2022, Portugal ficou em sétimo lugar e no grupo de oito países com uma “situação muito boa” para a liberdade de imprensa.

Segundo a 21.ª edição do ‘ranking’ mundial da liberdade de imprensa da ONG Repórteres sem Fronteiras (RSF), publicado hoje por ocasião do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa e com 180 países e territórios avaliados, este ano à frente de Portugal e no grupo de oito países numa situação muito boa para a liberdade de imprensa ficaram, por ordem decrescente, Noruega, Irlanda, Dinamarca, Suécia, Finlândia, Países Baixos, Lituânia e Estónia."

Mais detalhes em +M

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 23.01.23

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Hoje é O Dia Mundial da Liberdade 

«Em Portugal o Dia da Liberdade comemora-se a 25 de Abril, mas a data internacional para celebrar a liberdade calha no calendário internacional a 23 de Janeiro. Foi criada pela ONU e proclamada pela UNESCO. 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos contempla a liberdade no artigo 1.º: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”

O artigo 2.º refere: “Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação.»

Apesar de todos sabermos que a igualdade universal é uma miragem e que o corolário resume a falta de liberdade, nós, os que vivemos neste recanto português, nem nos podemos queixar dessa falta , apenas das nossas más escolhas.

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Hoje é O Dia da Escrita à Mão /Caligrafia

«A escrita, elemento que separa a pré-história da história, é uma habilidade fundamental que eleva a civilização humana e nos permite comunicar e negociar em larga escala. As verdadeiras origens da escrita são obscuras, mas sabemos que surgiu em várias regiões do mundo antigo por volta de 3400 a.C. As primeiras escritas conhecidas vêm do actual Iraque: sinais pictóricos que depois foram substituídos por um complexo sistema de caracteres baseado nos sons da língua suméria, conhecida como cuneiforme.

Os sistemas de escrita diferem na construção. Alguns contam com simbolismo pictórico, outros combinam caracteres para formar novos significados, outros usam estruturas gramaticais para criar frases completas de profundidade e de significado. A caligrafia eleva a escrita a uma forma de arte requintada. Exemplos de caligrafia tradicional incluem artigos em bronze chineses antigos, hieróglifos maias, manuscritos iluminados da Europa Ocidental e inscrições em mesquitas islâmicas.

Embora no mundo digital de hoje tenhamos a tendência de gravar tudo em dispositivos electrónicos, escrever à mão traz benefícios que o digital não oferece. Aumenta a concentração, reduz o estresse e fortalece a memória. Além disso, uma carta manuscrita tem mais valor do que qualquer correspondência digitalizada ou enviada por e-mail. Tentemos escrever uma carta, um diário ou uma simples lista de tarefas à mão e observemos a diferença por nós mesmos.»

Ainda sou do tempo... é verdade! Ainda sou do tempo em que escrevia cartas aos meus amigos ou ao meu namorado, quando ia de férias para longe, para locais distantes como eram Alfeizerão, Lagos ou Albufeira. Comprava papel de carta colorido ou com desenhos, aperfeiçoava a minha escrita, colava bonequinhos fofinhos, colava um selo de correio e enviava às dezenas, a contar as minhas aventuras diárias por terras bizarras. Escrevi centos de cartas. No Natal era imperativa a troca de postais de Boas Festas. Uma tradição que nem saía barata com tanta família e amigos, nem era fácil de executar, pois requeria muito tempo para escrever os postais e os envelopes. 

Presentemente, se recebermos dois ou três postais, é muito. Se vamos para fora, enviamos mensagens com fotos e pronto. Já ninguém escreve postais.

  (Imagens Google)

Irão e China em luta pela liberdade

Pedro Correia, 05.12.22

«A palavra "revolucionário" só pode aplicar-se a revoluções cujo objectivo é a liberdade.»

Hannah Arendt

 

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Foi preciso morrerem pelo menos 500 pessoas - incluindo muitas crianças - nos protestos iniciados em 16 de Setembro no Irão devido à fúria repressora da ditadura teocrática que ali vigora desde 1979, para os aiatolás recuarem, atemorizados pela imparável vaga de manifestações populares. O regime de Teerão acaba de anunciar a dissolução da sinistra "polícia da moralidade" que perseguia, torturava e matava mulheres só por não cobrirem todo o cabelo com o véu islâmico. É o princípio do fim da tirania, graças à imensa coragem cívica de largos milhares de jovens que correm o risco de ser condenados à morte pelo simples facto de reclamarem direitos, liberdades e garantias considerados banais em diversas outras parcelas do globo - incluindo, felizmente, em Portugal.

 

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Também em Pequim a ditadura está em recuo. Pressionada igualmente por gigantescos protestos em várias cidades e vilas do país. Da parte de gente que vai perdendo o medo e ousa desafiar os mecanismos de repressão do estado policial chinês, controlado desde 1949 em monopólio absoluto pelo Partido Comunista. Destituídos dos mais básicos direitos, incluindo o direito de sair de casa e de circular na rua a pretexto de um "controlo sanitário" que dura há quase dois anos, os chineses atrevem-se a dizer "basta". Muitos já exigem não apenas o fim das restrições impostas a pretexto do combate ao covid-19 mas a demissão do líder supremo, Xi Jinping. Acossado pelos protestos, o regime começou a suavizar as normas sanitárias. Enquanto a proscrita palavra "liberdade" vai ecoando cada vez com mais força em praças e avenidas por multidões de jovens

Minudências legais

Sérgio de Almeida Correia, 05.09.22

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Por estes dias, a lei é o princípio e o fim de tudo. Até quando não serve para nada na perspectiva da sua criação. Mas é fundamental que exista. Que seja um instrumento ao serviço de tudo menos da própria lei. Da antiga. É por isso que a lei serve de justificação para a sua própria violação. É o que se chama violação da lei dentro do espírito da lei. A lei não pode ser violada, a não ser que a violação esteja dentro da lei, que respeite a vontade do legislador de serviço. A violação que está dentro da lei é a chamada violação legal. Não se conforma com o espírito do legislador, mas sim com o do intérprete. Um avanço em relação aos escritos de Ferrara e de Manuel de Andrade. Porque é o intérprete que diz se a lei foi violada ou se está conforme a violação legal. Não é difícil de entender. Uma espécie de violação consentida. A violação consentida da lei é a pedido da vítima. Que nesse momento deixa de ser vítima. Um súbdito não é uma vítima. E se houver alguma dificuldade em cumprir o desiderato da violação legal ainda se pode sempre alterar a lei. Se a alteração ficar mal feita não convém dar parte de fraco. Procede-se então à reinterpretação correctiva do emplastro. Tudo de acordo com o espírito do legislador nomeado. Os tribunais depois confirmarão as declarações de Monsieur Dupont, confrontando-as com as de Monsieur Dupond. Única garantia de conformidade com a legalidade da lei violada. De outras vezes, quem declara é Mr. Thompson, no que é rapidamente secundado por Mr. Thomson. O resultado é sempre o mesmo. A legalidade basta-se a si própria. E esta é uma garantia de segurança na violação da lei. Só assim se conferem mais direitos aos cidadãos. Perdão, aos residentes. No âmbito das autonomias não há cidadãos, apenas residentes. O cidadão pensa, coloca "likes", e embora não se possa dizer logo à partida que comete crimes quando o faz, é evidente que revela problemas de mentalidade e ideologia. De mentalidade legal e de ideologia legal. O residente, pelo contrário, vive, agradece e aplaude. Além de "manter a espinha relativamente direita", pois que de outro modo teria dificuldade em curvar-se perante a violação legal da lei. Não coloca "likes", que é uma tendência perigosa, para não correr o risco de revelar os seus problemas mentais e ser internado num estabelecimento de reabilitação legal. Para aprender a colocar "likes" de acordo com a lei e corrigir os problemas de mentalidade e ideologia. Espero que numa próxima oportunidade alguém me esclareça como lidar com os "likes" colocados inadvertidamente, isto é, com os não-dolosos, que são os que coloco quando vejo fotografias de Sanna Marin ou de Kaja Kallas. É que na maior parte das vezes nem olho ao conteúdo das notícias. É automático. Espero que esses caiam no espectro dos "likes" legais, e que por aí não se revelem os meus problemas de mentalidade e ideologia. É sempre desagradável ter de justificar para onde se está a olhar. Ou o que se está a ler. E com os olhos fechados ainda é mais difícil. A lei ainda não contempla as violações legais consentidas de olhos fechados. Que pelo que me apercebo são actualmente as mais frequentes. Uma lacuna a corrigir pelo legislador. 

Pela liberdade

Paulo Sousa, 21.06.22

É difícil transmitir a energia e a intensidade que transpira das imagens dos estimados 60.000 manifestantes que ontem à ontem estiveram nas ruas de Tblisi, mostrando o seu apoio a que o seu país possa aspirar a um dia ser membro da UE.

A Geórgia é uma nação antiga que sempre esteva rodeada de grandes impérios e não foram poucas as vezes que foi desprezada e humilhada. Tem frequentes problemas de instabilidade política e nem sequer controla o território que lhe é reconhecido pela ONU como seu. A Ossétia do Sul e a Abcásia são territórios ocupados pela Rússia e, de uma forma simplificada, estão para a Geórgia como a Transnístria está para a Moldávia. São factores de destabilização permanentes que inquinam a capacidade destes países poderem focar-se na sua modernização e no cumprimento das aspirações do seu povo, por paz e prosperidade.

Não pretendo de todo aqui fazer um ensaio de geopolítica, mas tal como vimos acontecer recentemente na Ucrânia, o que seria uma anémica conformidade pelo dia-a-dia, que travava a aspiração por uma evolução rápida dos equilíbrios políticos, acabou por ser tremendamente sacudida e acelerada após a invasão russa à Ucrânia.

Há mudanças efectivas a acontecer. A guerra decorre na Ucrânia, mas para além da luta por cada metro de terreno no Donbass, o combate que se trava é entre duas visões opostas do mundo. Com todas a falhas e imperfeições da UE, é óbvio que neste combate será decidido se as gerações futuras destes povos, e de todos os europeus, poderão viver em liberdade ou sob o autoritarismo que Putin consubstancia.

Tudo está em aberto e ontem os georgianos mostraram que querem estar do lado da liberdade.

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 03.05.22

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Celebramos neste dia 3 de Maio O Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.

 

"O objectivo deste dia é sensibilizar os líderes políticos e os cidadãos em geral para a defesa da liberdade de imprensa - elemento essencial para o desenvolvimento de uma sociedade. Também se presta homenagem aos profissionais do sector da imprensa que morreram enquanto desempenhavam as suas funções.

Este dia foi criado na 26.ª Sessão da Conferência Geral da UNESCO, em Paris, que ocorreu em Outubro e Novembro de 1991."

 

"Se pudesse decidir se devemos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, eu não vacilaria um instante em preferir o último."

( Thomas Jefferson)

 

O melhor indicador de uma democracia saudável é a sua imprensa. O jornalismo de investigação é seguramente a pedra de toque de toda a informação. A isenção, o rigor, a competência para avaliar e reflectir, e sobretudo a perspectiva de aproximação e divulgação da notícia, são os braços da  balança da democracia.

Ocorrências que chegam ao conhecimento do público do outro lado do mundo, por exemplo, em directo ou diferido em minutos, não seriam possíveis num regime totalitário onde a imprensa é controlada pelo estado, cujo crivo azula os acontecimentos à medida dos seus interesses.

Nunca me esquecerei daquele dia 17 de Janeiro de 1991, quando Peter Arnett, da varanda do seu hotel em Bagdad, transmitiu pela primeira vez para o mundo, através da CNN, a guerra em directo.

Sem grilhões e com fé no futuro, a informação continuará a espraiar conteúdos com justeza e exactidão.

 

(Foto do Google)

Ainda sobre o 48.º aniversário

Paulo Sousa, 27.04.22

Há muitos anos que não se celebrava um aniversário da Revolução que derrubou a ditadura do Estado Novo, num enquadramento tão propício a apreciarmos os valores democráticos. E não me refiro apenas à guerra em curso.

A liberdade a que este dia de há 48 anos abriu a porta foi celebrada com as cerimónias protocolares habituais, mas, talvez sem o destaque merecido, foi celebrada também pelo fim da obrigatoriedade do uso da máscara.

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Imagem DN

Nestes cerca de dois anos que passaram, as máscaras impostas pela pandemia, que agora parece recuar, além de terem escondido indiscriminadamente lábios e sorrisos, perturbaram a forma como comunicamos, atrasaram a aprendizagem da fala aos mais novos, fizeram que muitas crianças não se recordem dos sorrisos das suas educadoras, impediram que reconhecêssemos amigos com que nos cruzámos, atrapalharam e reduziram a quantidade dos beijos dados pelos amantes e alteraram a forma como nos cumprimentamos.

É claro que também ocultaram os dentes cariados e falhos dos mais humildes, proporcionaram-nos uma desculpa para podermos ignorar pessoas que não queríamos realmente cumprimentar e até, talvez apenas, ajudaram-nos a entender melhor o que é o mau hálito.

Como animais de hábitos que somos desenvolvemos alertas visuais sempre que num espaço público víamos alguém sem o devido resguardo facial. Agora, e desde este Abril de 2022 já estamos a desenvolver o alerta contrário.

As máscaras não vão desaparecer instantaneamente, não serão proibidas, nem mesmo aos que insistem em usá-la abaixo do queixo, mas o seu uso passará a depender do entendimento de cada um. E isso é uma excelente forma de celebrar a liberdade.

Vivemos em sociedade e aceitamos as regras como moeda de troca pelos incontáveis benefícios de a ela pertencer. Diferentes regimes definem de forma diversa o ponto de equilíbrio entre o que deve ser decidido pela polis ou pelo indivíduo, e cada um de nós terá também diferentes entendimentos dessa relação.

O debate sobre o seu uso foi acalorado e não irá terminar de imediato. Foi interessante para procurarmos novos argumentos e novos critérios para definirmos essa mesma fronteira entre o nós e os outros. Não há uma resposta nem um critério único. Antes de Abril, antes do Abril de há 48 anos, haveria certamente um critério único, inequívoco e inquestionável. Depois desse Abril, foi definido um critério, foram cometidos erros (claro, somos governados por palermas) mas podemos manifestar a nossa discordância. Afirmar que somos governados por palermas, além de ser verdade, é também uma forma de celebrar Abril. E de cara destapada.

A distopia chinesa

Paulo Sousa, 20.04.22

aqui postei sobre a ameaça que o regime chinês constitui para a nossa liberdade. A previsibilidade e a capacidade de decisão a longo prazo dos regimes autoritários em geral podem ser atractivos, especialmente em tempos conturbados.

Vivo com a triste convicção de que existe uma parte significativa da nossa espécie que não aprecia assim tanto a liberdade. Quando na história pessoal de um individuo existem falhas frequentes de bens essenciais como sendo refeições regulares, habitação e a possibilidade de planear o futuro, então a liberdade de expressão pode ser considerada como um preço aceitável para que se consiga assegurar os básicos. Encontramos isso actualmente em muitas geografias e também na nossa história bem recente. As carências materiais explicam essa falta de apreço.

O sucesso material chinês é por isso um desafio à própria lógica autoritária sob a qual o regime assenta. Até que ponto os seus cidadãos estarão dispostos a pagar esse preço? Os chineses sabem que se aceitarem as regras poderão prosperar e, pelo contrário, se as questionarem o regime desencadeará os procedimentos definidos para esses casos.

O confinamento que se vive actualmente em Shangai resulta de uma rígida política de Covid zero, assim como mostra que a vacina chinesa da Sinovac é francamente menos eficaz do que as que foram produzidas na Europa e EUA.

Apesar da censura chinesa que pretende filtrar toda a informação que sai do país, têm chegado ao ocidente alguns vídeos que mostram o desespero de quem está aprisionado em casa, guardado por cães robotizados e por drones equipados com câmaras e com altifalantes que transmitem as instruções do partido. Para os que se atrevem a contrariar as instruções, as autoridades não hesitam em recorrer às agressões, independentemente da idade do prevaricador. Crianças ou velhos, todos são agredidos até entenderem quem é que manda ali.

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Segundo o jornal britânico Independent alguns drones voam em frente às varandas dos apartamentos apelando à calma de todos os que estão impedidos de sair de suas casas. Pelos seus altifalantes debitam frases como: “Por favor cumpram as restrições Covid. Controlem o desejo da vossa alma por liberdade. Não abram as janelas nem cantem.

Perante estas frases fico sem saber como terminar o postal.

No silêncio, entre cadáveres

Pedro Correia, 06.04.22

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Albert Camus escreveu um dos mais fabulosos textos que conheço para uma alocução proferida em Novembro de 1948, num encontro internacional de escritores.
 
Este texto, intitulado "O Testemunho da Liberdade", tem uma espantosa actualidade perante os vertiginosos acontecimentos que se sucedem no mundo de hoje. É uma reflexão que devia constituir uma espécie de código de conduta para todos os intelectuais contemporâneos.
 
Passo a transcrever alguns trechos*:
 
«Os verdadeiros artistas não dão bons vencedores políticos, pois são incapazes de aceitar levianamente, ah, isso sei eu bem, a morte do adversário! Estão do lado da vida, não da morte. São os testemunhos da carne, não da lei. (...) No mundo da condenação à morte, que é o nosso, os artistas testemunham o que no homem é recusa de morrer. Inimigos de ninguém, a não ser dos carrascos! (...) Um dia virá em que todos o hão-de reconhecer e, respeitadores das nossas diferenças, os mais válidos de nós deixarão então de se dilacerar, como hoje o fazem. Hão-de reconhecer que a sua profunda vocação é a de defender até ao fim o direito dos seus adversários a não terem a mesma opinião que eles. Hão-de proclamar, consoante o seu estado, que mais vale uma pessoa enganar-se, sem assassinar ninguém e permitindo que os outros falem, do que ter razão no meio do silêncio e pilhas de cadáveres.»
 

Hoje, mais que nunca, estas palavras devem merecer-nos profunda meditação.
 

* Tradução (excelente) de Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes para a editora Contexto (2001)

A liberdade melhora a performance desportiva das nações

Sérgio de Almeida Correia, 21.02.22

(créditos: Helsinki Times)

Marcados pelas medidas extremas relacionadas com a pandemia, pela falta de neve natural, um boicote político por parte de alguns países, a ausência de público, as más condições oferecidas a alguns, uma comida que ficou a desejar, a subserviência do COI aos interesses económicos, o impedimento e a criação de obstáculos ao livre acesso dos participantes à informação e à Internet, e uma intensa máquina de propaganda, os Jogos Olímpicos de Inverno chegaram ao fim.

Tal como em edições anteriores, não faltaram momentos de alegria e de drama, os recorrentes casos de doping, muitas lágrimas e sorrisos. E também choveram medalhas.

Se no tempo da Guerra Fria era por via dessa contabilidade medalhística que os blocos de então se procuravam afirmar para justificarem a superioridade dos modelos políticos e sociais que representavam, não menos verdade será que nos dias de hoje e com o reavivar de tensões à escala global se volte de novo a esse padrão.

É por isso inevitável, perante as bandeiras que foram agitadas e as acusações mútuas de politização dos Jogos, agora que as competições chegaram ao fim, que se volte a olhar para os quadros. Muitos balanços e análises poderão ser feitas, embora seja previsível que se termine sempre a olhar para as medalhas.

E quanto a estas há sempre duas maneiras de olhar para elas. Há quem privilegie o número total. Há quem prefira colocar a tónica apenas nas medalhas de ouro.

Olhando apenas para o total verifica-se que a Noruega sai a ganhar com 37, logo seguida da Rússia, com 32 – dizer que a Rússia não pode participar e que quem participa é o Comité Olímpico Russo é uma falácia do COI para enganar os tolos –, da Alemanha com 27, do Canadá com 26, dos EUA com 25, da Suécia e da Áustria ex aequo com 18, e dos Países Baixos e da Itália, ambos com 9. 

Pela contabilidade dos ouros, a Noruega volta a vencer com 16 medalhas, seguida da Alemanha com 12, da China com 9, dos EUA, Suécia e Países Baixos todos com 8, da Áustria e da Suíça com 7, da Rússia com 6 e da França com 5.

Não deixa de ser curioso que países com uma população reduzida, e alguns também de pequenas dimensões, consigam estar à frente de outros muito maiores e mais poderosos que sentem uma necessidade quase permanente de vincarem o seu nacionalismo e patriotismo. A Noruega tem apenas 5,379 milhões de nacionais, a Suécia, a Suíça e a Áustria têm menos de 10 milhões, os Países Baixos menos de 18 milhões, enquanto a China tem 1,4 mil milhões, a Rússia 144 milhões, os EUA 329 milhões. 

E se estabelecermos o paralelo com os Jogos Olímpico de Verão, em Tóquio, verificamos que aqui os EUA ficaram à frente tanto em medalhas de ouro (39) como no total (113), com a China em segundo lugar (38 ouro, 88 no total), surgindo logo a seguir o Japão (27 de ouro, 58 no total), a Grã-Bretanha (22 de ouro, 65 no total), a Rússia (20 de ouro, 71 no total), a Austrália (17 de ouro, 46 no total), os Países Baixos (10 de ouro, 36 no total) e a França (10 de ouro e 33 no total). 

Há, todavia, uma contabilidade que nestes tempos conturbados que atravessamos também não pode deixar de ser feita. Porque se a Guerra Fria ficou lá atrás, se não faz muito sentido ver estes números em termos de blocos e alianças, há, todavia, uma comparação que se torna inevitável, posto que é essa que já no presente define as nossas escolhas e estará cada vez mais presente no futuro.

Trata-se da contabilidade entre os resultados obtidos por países democráticos e não-democráticos ou autocráticos. Por mais que nos tentem atirar areia para os olhos, ditaduras e totalitarismos não são conceitos diferentes de democracia. Não é possível falar de liberdade onde os nossos passos são permanentemente vigiados, seguidos e controlados, o acesso à informação é limitado, a liberdade de imprensa não existe, onde não é permitido o livre exercício de direitos básicos fundamentais consagrados internacionalmente, o número de filhos é controlado pelo Estado, onde é impossível afastar os incompetentes que exercem o mando e criticar o partido no poder ou o seu líder é um crime contra a segurança nacional e dá direito a prisão.

E quanto à contabilidade medalhística entre as democracias e autocracias, a verdade é que as primeiras dão uma cabazada às segundas. Até para proporcionarem condições de treino. O que só prova que também no desporto é necessária a liberdade para se garantir a prevalência de bons resultados. Por mais bandeirinhas que se agitem, por mais esmagadora que seja a propaganda, ou por todos os dólares que selem a "amizade" com os responsáveis do COI.

Será a liberdade que irá vencer?

Paulo Sousa, 01.12.21

Há alguns anos, num alfarrabista, tropecei neste “breviário de cultura”, o décimo quarto da coleção da escritora Gabrielle Froment-Meurice, dedicado à Vida Soviética e publicado no nosso país em 1976.

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A palavra “breviário” só a associava aos livros de orações diárias e por isso, por aparecer ali ao lado da foice e do matelo, despertou-me uma atenção especial.

A autora começa por descrever a grandeza do território da URSS. Para sobrevoar os seus 60.000 km de fronteiras seriam necessários três dias e três noite de voo num Tupolev 800 km/h. O clima é “sadio e tónico”, acrescentado que “os Russos veem nisso o segredo da sua robustez proverbial (“Aí onde um alemão morreria três vezes, o Russo nem sequer adoece”). O “a” minúsculo reservado para o gentílico da Alemanha é substituído por um decidido “R” maiúsculo para o congénere russo, o que também faz parte da mensagem.

Sobre os meios de transporte anotei duas passagens. “Contrariamente ao que se passa nos EUA, a aviação privada não existe na URSS” e ainda “As vias-férreas têm o afastamento de 1,52m (na Europa 1,44m) o que permite comboios mais pesados, mas reduz a velocidade.”

Sobre a população é referido que “o regime soviético procura reunir em torno de um ideal colectivo e de um trabalho comum conducente à homogeneidade social de grupos humanos pouco homogéneos por todas as suas características”. Esta passagem poderia alimentar uma extensa dissertação para quem estivesse interessado em desenvolver a temática do identitarísmo, o que não é o meu caso, mas não deixa de ser interessante.

No que respeita à urbanização o optimismo está sempre presente. É apontado o exemplo de Katchkanar no norte dos Urais “onde há dez anos se arroteava taiga, ergue-se hoje uma cidade de 35 000 habitantes, prevendo-se que dentro de poucos anos tenha 100 000. (ver link)” E continua dizendo que “Estas novas cidades não se criam por acaso, mas são inscritas no Plano.”

Depois de descrito o maior país do mundo, o assunto passa a ser o socialismo. No seu primeiro ponto “Fins e resultados” replica-se a sinopse da contra-capa.

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Não pretendo trazer para aqui todo o livro, que ainda apresenta uma extensa lista de estatísticas onde se incluem máquinas de costura produzidas, frigoríficos, aspiradores, rádios reparados e pares de calçado consertados, mas retenho um excerto da conclusão: “Ainda se está longe de resultados que satisfaçam uma sociedade à qual é cada vez mais difícil impor sacrifícios.”

Em 1976, este tipo de literatura podia condicionar escolhas políticas, era aliás esse o seu objectivo. Tal e qual como acontece em algumas religiões, o comunismo pratica um proselitismo quase agressivo e publicações como esta faziam parte do esforço de propaganda do país e do regime que aspirava a “mostrar o caminho para todo o Universo”.

Simultaneamente decorria a chamada corrida espacial que, se não servisse para mais nada, pelo menos servia para mostrar ao mundo a capacidade científica e tecnológica da URSS.

Pouco se sabia relativamente ao dia-a-dia efectivo do povo soviético. Era difícil confirmar a informação que chegava ao ocidente e os vazios que daí resultavam eram preenchidos pela imaginação dos apoiantes assim como dos opositores. O que se passou em Budapeste, e mais tarde em Praga, bastou para afastar alguns defensores do comunismo, mas nunca faltou quem continuasse a acreditar nos amanhãs que cantam.

Dúvidas relativas às falhas do capitalismo assim como das democracias liberais, eram alimentadas pela propaganda que garantia as vantagens da previsibilidade do Plano. Qual seria o desenlace deste confronto? Venceria o rigor do socialismo científico ou, pelo contrário, seria o caótico sistema liberal a perdurar no tempo? Quais os resultados da justaposição de uma infinidade de escolhas ditadas pelo livre arbítrio dos indivíduos e das empresas em concorrência, quando confrontados com o rigor da economia planificada?

O que aconteceu no virar da década de 80 para 90 já sabemos, mas enquanto que agora quando ouvimos tanta balela podemos esboçar um sorriso condescendente, nos anos 70 e 80 as dúvidas sobre a comparação dos dois modelos eram reais e o cenário de um possível holocausto nuclear era tudo menos animador.

No entanto, o confronto entre o sistema liberal e o autoritarismo socialista está longe de estar resolvido.

O que temos visto acontecer na China nas últimas duas décadas pode alimentar dúvidas similares. Que hipóteses têm os países democráticos, por muita criatividade e capacidade científica que tenham, perante um colosso industrial e económico dirigido a uma só voz, com uma visão de longo prazo, que não perde tempo na contagem de votos nem receia levar a cabo reformas repentinas? A URSS caiu devido às suas debilidades económicas, dirão alguns, mas o modelo chinês, além de parecer ter encontrado forma de que isso não lhe aconteça, lidera algumas áreas do conhecimento e da tecnologia e ousa desafiar a hegemonia dos EUA, e consegue-o mesmo sem ter um único aliado.

Encontram-se explicações para todos os gostos. Para uns o segredo estará na respectiva matriz cultural confucionista, que define a lealdade do indivíduo, para com os seus próximos e para com o seu governante, como uma das grandes virtudes humanas. Por oposição, a matriz judaico-cristã, da qual emana a essência cultural do ocidente, dá uma importância muito superior ao indivíduo. Numa conversa de café pouco preocupada com o rigor da terminologia, isto podia ser resumido como se os chineses e outros povos orientais vivessem numa lógica de formigueiro, em que os indivíduos não hesitam sem se sacrificar pela comunidade, o que nunca seria tão linear no mundo individualista do ocidente.

Os defensores da  China argumentam que o Império do Meio já foi na antiguidade, e durante muitos séculos, o país com a maior economia e o mais poderoso do mundo, estando agora apenas a regressar ao estatuto que já teve, e de caminho aproveita para acertar contas das humilhações sofridas nos séc. XIX e XX.

Quem se identifica com este regime autoritário explica que o perverso sistema dos créditos sociais é muito querido entre os cidadãos chineses, e que apesar de até obrigar à leitura diária de algumas passagens do pensamento do Sr. Xi Jinping, é uma excelente medida para que todos se motivem a fazer parte do que descreveu num artigo de opinião no Diário de Notícias como sendo a Comunidade de Destino Comum da Humanidade.

Os que não aplaudem este Grande Irmão Orwelliano não têm sequer oportunidade de se manifestar, sendo-lhes reservado assim o papel das formiguinhas sacrificadas pelo bem da comunidade.

Será a dimensão da economia chinesa e a sua capacidade científica e tecnológica o seguro de vida deste regime autoritário? Até que ponto o seu sucesso constitui uma ameaça para os regimes liberais?

Jaime Nogueira Pinto, num dos excelentes podcasts em que participa, Radicais Livres e Conversas à Quinta, referindo-se ao fim da URSS, acrescenta um ponto que merece ser destacado. Segundo ele, mesmo com a baixa de preço do petróleo orquestrada pelos EUA e pelos sauditas nos anos 80, que conseguiu abalar irremediavelmente as finanças soviéticas, o que realmente desencadeou o seu colapso foi o fim do medo. A abertura do sistema iniciada pela Glasnost e seguida pela Perestroika levou ao fim do medo e, esse sim, era o cimento do regime.

A mais alta nomenclatura do PC Chinês sabe isso e não abre a mão do controlo férreo sobre os eventuais dissidentes. Alguns alertas sobre a solidez da economia do Sr. Xi Jinping mostram que o capitalismo de estado não está livre de erros nem das respectivas correcções, e correcções significam sempre crises. Mas, como disse acima, os donos da China sabem que mais importante que do manter o crescimento económico a um ritmo regular, o que precisam mesmo é de mostrar aos espíritos rebeldes, àqueles que aspiram a uma “liberdade” diferente, que se não seguirem ordeiramente dentro dos curros colocados pelo PCC, então têm tudo a perder. Os casos do desaparecimento temporário do empresário Jack Ma, ou mais recentemente da tenista Peng Shuai, são bem exemplificativos da forma como o regime chinês lida com quem internamente o afronte ou pense estar fora da sua alçada.

Não podemos esquecer também a forma como a minoria uígure é tratada. Apesar das poucas informações que conseguem cruzar a fronteira, o que sabemos é suficiente para a podermos designar como sendo o Gulag comunista do sec. XXI.

Tudo isto para enquadrar a questão que dá título ao postal. Do confronto entre os regimes liberais e o comunismo soviético, já sabemos o resultado. Qual será então o desenlace da competição estratégica em curso? Estará o mundo livre condenado a recuar naquilo que o define e, pouco a pouco, a aceitar o escrutínio de pensamentos idêntico ao do regime do Sr. Xi Jinping, ou poderão de facto todos os seres humanos aspirar a decidir sobre as suas vidas, a exprimir-se livremente e até a criticar os seus líderes se assim o entenderem?

Passarão muitos anos até que esta questão possa ser respondida, talvez tantos que muitos de nós não assistirão a esse dia. O trajecto até lá não será rectilíneo, mas não duvido que a aspiração pela liberdade é algo partilhado por todos os seres humanos, onde os chineses estão obviamente incluídos. Por isso, o comunismo voltará a ser derrotado.