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Delito de Opinião

Ler (37)

Sabemos de onde partimos com um livro na mão sem imaginar aonde nos conduz

Pedro Correia, 03.10.24

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São inúmeros os casos de livros que mudam uma vida.

Napoleão, ao que consta, nunca mais foi o mesmo depois de ler O Príncipe, de Maquiavel. Pessoa imitou um dos seus autores favoritos, Poe, em parte da obra e grande parte da vida. Marx influenciou as vidas de milhões de pessoas. E Nietzsche também -- dizem que até influenciou um certo cabo que combateu na I Guerra Mundial e usava um bigodinho ridículo. Ibsen influenciou legislação sobre os direitos das mulheres. Conan Doyle e Georges Simenon influenciaram tanto (e tantos) que personagens saídos da sua imaginação, como Sherlock Holmes e o comissário Maigret, se tornaram mais conhecidos do que os autores. Romeu e Julieta, figuras de papel, seduziram mais do que inúmeras pessoas de carne e osso.

E já nem falo dos mundos que se descobrem em cada livro da Bíblia...

Sabemos sempre de onde partimos com um livro na mão. Mas somos incapazes de imaginar até onde ele nos conduz. É também isto -- é sobretudo isto -- que faz o fascínio da literatura.

Ler (36)

Ano após ano, centenas de palavras entram em desuso entre nós

Pedro Correia, 12.09.24

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Tornei-me ainda mais adepto do género epistolar desde que entrámos na era dos sms. Uma era que nos tem conduzido a uma rápida compressão vocabular.

Fala-se cada vez mais rápido e cada vez de forma mais "económica": bastam algumas dezenas de vocábulos para assegurar a comunicação instantânea. Tudo muito básico, muito linear. Ano após ano, centenas de palavras entram definitivamente em desuso entre nós.

Para combater esta tendência, nada melhor do que regressar a páginas já antigas, algumas até de livros amarelecidos pela erosão do tempo.

Regressar aos romances de Eça de Queiroz, regressar ao Livro do Desassossego de Fernando Pessoa. Regressar aos diários de Miguel Torga, regressar à prosa diarística de Vergílio Ferreira hoje só disponível em alfarrabistas, regressar aos contos de José Rodrigues Miguéis e José Cardoso Pires, aos versos de Sophia de Mello Breyner Andresen, aos inflamados panfletos de Jorge de Sena. Às cartas de todos eles.

Para que este nosso precioso mas tão frágil património não se perca para sempre.

Ler (35)

Jamais esquecerei alguns autores de que hoje quase ninguém fala

Pedro Correia, 15.08.24

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Oiço de vez em quando que determinado escritor está "fora de moda". Não considero isso depreciativo.

Aprendi a ler com autores que o cânone actual considera fora de moda - de Miguel Torga a Jack London. E muitos outros - de Adolfo Simões Müller a Júlio Dinis.

Também com Agatha Christie e Rex Stout. E Maurice Leblanc, o criador de Arsène Lupin. E com as aventuras de capa-e-espada: Alexandre Dumas, Rafael Sabatini. Walter Scott. E Júlio Verne, claro. E alguma poesia, muita poesia: António Gedeão, Sidónio Muralha, José Gomes Ferreira. E com os Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes. Vergílio Ferreira e a sua Manhã Submersa. Romeu Correia e os seus Bonecos de Luz. Erico Veríssimo com a sua Clarissa e sagas subsequentes.

Alguns autores de quem quase ninguém já hoje fala. E a quem devo muito. Jamais os esquecerei.

Ler (34)

Nada melhor do que um prazer que se partilha

Pedro Correia, 22.06.24

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Adquiri estes nas minhas três deslocações à Feira do Livro de Lisboa em Maio e Junho. De variados géneros - da ficção ao ensaio, passando pelo teatro e até ao desenho.

A Hora dos Lobos, de Harald Jähner (D. Quixote)

A Próxima Guerra Civil, de Stephen Marche (Zigurate)

Agarra o Dia, de Saul Bellow (Relógio d' Água)

Entre a Mentira e a Ironia, de Umberto Eco (Gradiva)

Fui Tão Feliz Com a Minha Thompson, de Sérgio Sousa Pinto (Avenida da Liberdade Editores)

Goodbye, Columbus, de Philip Roth (D. Quixote)

Jornada Para a Noite, de Eugene O'Neill (Cotovia)

O Render dos Heróis, de José Cardoso Pires (Moraes)

Os Ratoneiros, de William Faulkner (Portugália)

Pnim, de Vladimir Nabokov (Relógio d' Água)

 

São muito diferentes. Dois foram adquiridos em pavilhões de alfarrabistas, com chancelas de editoras há muito extintas (Moraes e Portugália). Andei anos em busca de ambos. Num caso por se tratar de um dos romances menos conhecidos de Faulkner, aliás há muito esgotado no mercado português. Noutro por ser talvez o único que me falta ler de Cardoso Pires.

A original obra pictórica de Sousa Pinto comprova que o talento deste deputado socialista - que conheço há 27 anos - não se esgota na escrita ou na oratória: está patente também nos seus desenhos, com óbvia influência de mestres da banda desenhada, como Hugo Pratt. A jovem editora que lhe lançou a obra merece-me igualmente simpatia. Gosto de incentivar novos projectos nesta área, contrariando os profetas da desgraça sempre prontos a jurar que os livros estão condenados. Alguns evacuam há décadas sentenças deste género, felizmente nunca confirmadas.

Russo que renegou o seu país sob a ditadura soviética, Nabokov escreveu Lolita, romance fundamental do século XX - é quanto basta como carta de recomendação. Bellow e Roth são ficcionistas norte-americanos que aprecio - mais o Nobel de 1976, confesso, mas senti curiosidade em conhecer a primeira novela do autor de A Conspiração Contra a América, publicada quando tinha apenas 26 anos. O dramaturgo O'Neill - Nobel de 1935 - é autor que lerei pela primeira vez.

Quanto aos ensaios políticos, um vira-se para o futuro próximo, outro para o passado. A Hora dos Lobos detalha a vida quotidiana na Alemanha em ruínas do pós-guerra, com raro aliciante: observar factos históricos na perspectiva dos derrotados em conflitos bélicos. Contrariando o relato dominante, na óptica dos vencedores.

Há ainda o livrinho de Eco, pensador sempre estimulante. Mesmo quando escreve sobre temas aparentemente menores.

 

Destes dez, já li dois. E sobre um deles até escrevi aqui, recomendando-o sem reservas: A Próxima Guerra Civil Americana. Tema mais actual que nunca: está já em marcha a próxima corrida à Casa Branca.

Sobre o outro terei ocasião de escrever também. Quando gosto a sério de um livro, sinto vontade de divulgar a notícia. Faz parte do sortilégio da leitura: nada melhor do que um prazer que se partilha.

Ler (33)

Quando o jornalismo se torna literatura

Pedro Correia, 05.05.24

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Kim Kardashian: «lábios de embuste»

 

Já falei aqui sobre o meu crescente interesse pela literatura espanhola. Ao ponto de vários dos meus romances ou novelas favoritos dos últimos cem anos serem de autores do país vizinho. Estes, por exemplo: Tirano Banderas (Ramón de Valle-Inclán), Nada (Carmen Laforet), Os Mares do Sul (Manuel Vásquez Montalbán), Coração Tão Branco (Javier Marías), Instruções Para Salvar o Mundo (Rosa Montero), Pátria (Fernando Aramburu) e Os Teus Passos nas Escadas (Antonio Muñoz Molina).

Este interesse estende-se aos colunistas da imprensa. Pelo mais óbvio dos motivos: escreve-se muito bem nos jornais espanhóis. São peças de literatura as crónicas, as reportagens, até os editoriais. Abundam os escritores que recusam enclausurar-se em torres de marfim, molhando os pés e exercitando a pena em colunas quotidianas onde exibem a sua prosa inconfundível, marcada pelo "ruído da rua" (título da coluna de Raúl del Pozo no El Mundo). E não faltam jornalistas que em nada se distinguem dos melhores prosadores contemporâneos de língua castelhana: Pedro Cuartango, Lucía Méndez, Ignacio Camacho, Jorge Bustos, Manuel Jabois, Emilia Landaluce, José Peláez, Maite Rico, Daniel Gascón, Rebeca Argudo. Falei de alguns aqui, em 2017, quando o El Mundo deixou de distribuir edição impressa em Portugal - decisão felizmente revertida algum tempo depois.

O melhor colunista é aquele que não se limita a emitir opinião: consegue criar metáforas e expressões tão sugestivas que se incorporam na linguagem comum. Tivemos nós também um deles, o melhor de todos: Vasco Pulido Valente, que cunhou o termo geringonça, aplicado à solução política que António Costa encabeçou entre 2015 e 2019. Mas, de modo geral, quem escreve na imprensa portuguesa perde fatalmente na comparação com Espanha. Mesmo nos temas mais fúteis.

Acabo de ler, no ABC de ontem, uma crónica de Ángel Antonio Herrera sobre a "influenciadora" norte-americana Kim Kardashian - talvez uma das mulheres mais fotografadas do mundo. Descreve-a com aquela linguagem castiça que tanto aprecio entre os espanhóis dizendo que ela tem «lábios de embuste». Espantosa expressão, tão inesperada e sugestiva.

Eis um caso concreto em que o jornalismo se transforma em literatura, libertando-se do estéril lugar-comum. Quem gosta de ler agradece. E que não restem dúvidas: continuamos a ser muitos. 

Ler (32)

Afinal porque se escreve?

Pedro Correia, 04.05.24

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Porque se escreve? O que leva alguém a tornar-se escritor? Qual a atracção desta actividade tão intensa mas também tão desgastante e tão solitária? Uma das melhores definições que conheço sobre este tema foi expressa por um profundo conhecedor da matéria: o escritor espanhol Eduardo Mendoza, autor do romance A Cidade dos Prodígios. Ao receber em 2010 o Prémio Planeta, pelo seu livro Riña de Gatos: Madrid 1936, Mendoza declarou o que o leva a sentir a irresistível pulsão da escrita: «Não escrevo livros com um objectivo concreto: escrevo-os para ver como acabam.»

Excelente definição. Ainda mais saborosa por ser irónica. Ou por ser um misto de sinceridade e construção ficcional. Como nos ensinou Fernando Pessoa, num escritor não há distâncias entre fingimento e realidade.

Ler (31)

Os melhores livros do meu ano - III

Pedro Correia, 03.02.24

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Há os livros pequenos, os livros grandes e os livros gigantes. Os primeiros, por motivos que ignoro, vão-se tornando cada vez mais raros. Lamento, pois alguns dos mais deslumbrantes livros que li na adolescência eram de formato breve, prodígios de concisão, ainda mais admiráveis por não esbanjarem uma palavra. Obras que fixei para sempre, que transporto comigo na memória grata de leitor atento: A Metamorfose, de Kafka; A Peste, de Camus; O Velho e o Mar, de Hemingway; O Triunfo dos Porcos, de Orwell. Também de autores portugueses. Recordo, por exemplo, O Barão (Branquinho da Fonseca), O Anjo Ancorado (José Cardoso Pires), Casa na Duna (Carlos de Oliveira), Angústia para o Jantar (Luís de Sttau Monteiro), até O Que Diz Molero (Dinis Machado). Sem esquecer O Mandarim (Eça de Queiroz).

A partir de certa altura, quase todos os escritores abandonaram o formato curto e dedicaram-se em exclusivo à escrita mastodôntica, julgando-se émulos de Victor Hugo (Os Miseráveis), Herman Melville (Moby Dick) ou Marcel Proust (Em Busca do Tempo Perdido). Tenho junto a mim três desses romances de vasta dimensão, que exigem mergulho prolongado, disponibilidade total: Uma Casa para Mr. Biswas, de V. S. Naipaul (759 páginas), Rua Principal, de Sinclair Lewis (459 páginas) e Auto de Fé, de Elias Canetti (525 páginas).

Entre os calhamaços à minha espera, além dos que já mencionei aqui, incluem-se Breve História da Filosofia Moderna, de Roger Scruton (Guerra & Paz, 343 pp), Neoconservadorismo, de Irving Kristol (Quetzal, 482 pp) e Lenine, o Ditador, de Victor Sebestyen (Objectiva, 662 pp). Quase 1500 páginas, só nestes três.

Há-de chegar o tempo deles  Agora fica o registo dos dez melhores romances que li em 2023 - todos de autores estrangeiros. Alguns estavam há muito na minha lista de leituras prioritárias, foram sendo ultrapassados por motivos que já não recordo.

Ler é uma actividade sinuosa, com os seus rituais indecifráveis e sujeita a contingências de vária ordem. Pegamos com entusiasmo num livro que acaba de nos chegar às mãos enquanto vamos ignorando outros, que nos acompanham em resignado silêncio durante anos. Como se tivesse de ser mesmo assim, sem que saibamos explicar porquê.

 

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A ESTRADA, de Corman McCarthy (2006). Impressionante novela que nos transporta a um mundo apocalíptico, na sequência de uma devastação nuclear. A luta pela sobrevivência domina o quotidiano dos raros sobreviventes e toda a crença num futuro promissor foi reduzida a cinzas. O estilo de escrita adapta-se ao tema em comunhão perfeita: é uma das ficções literárias mais marcantes deste século XXI. Edição Relógio d' Água.

 

ANIQUILAÇÃO, de Michel Houellebecq (2022). Até que ponto o mundo que conhecíamos na próspera fortaleza europeia já morreu, restando-nos apenas a sombra de uma ilusão que ainda nos sugere estar vivo? Interrogação do polémico autor francês neste perturbante romance que nos fala de política, religião, família, corrupção moral, decrepitude e morte. Sempre com mais perguntas do que respostas. Edição Alfaguara.

 

GUERRA E PAZ, de Lev Tolstoi (1869). O clássico dos clássicos. Tolstoi rivaliza com historiadores ao descrever com espantosa minúcia o impacto das invasões napoleónicas na Rússia do início do século XIX. Alternando vívidos quadros bélicos com a ansiedade palaciana de uma aristocracia ameaçada pelo alucinante carisma de Bonaparte. E assim, várias décadas depois dos factos, revolucionou também a literatura. Edição Inquérito.

 

IMPÉRIO, de Gore Vidal (1987). Decalque anacrónico do romance oitocentista que nos envolve na atmosfera política e jornalística dos EUA no final do século XIX e da primeira década do século XX, durante os mandatos dos presidentes William McKinley e Theodore Roosevelt, com a sombra gigantesca de Lincoln a pairar com irresistível nostalgia. Um dos pontos culminantes da ficção norte-americana das últimas décadas. Edição Presença.

 

LUZ EM AGOSTO, de William Faulkner (1932). Nobel da Literatura em 1949, Faulkner legou-nos uma porção de admiráveis romances sobre o sul profundo dos EUA, terra seca e dilacerada por confliltos raciais, onde o fanatismo religioso era corrente, o rasto da civilização parecia longínquo e preconceitos de toda a espécie impunham uma lei não escrita, conduzindo com frequência à morte. Obra-prima absoluta. Edição Dom Quixote.

 

O HOMEM DO CASTELO ALTO, de Philip K. Dick (1962). Distopia regressiva, opus magnum de um dos principais autores da chamada literatura de antecipação. Aqui, por uma vez, reescrevendo o passado. Com base neste mote: e se as potências do Eixo tivessem vencido a II Guerra Mundial, com a Alemanha e o Japão a dividirem os despojos do planeta? Ainda dá muito que pensar, a tantos anos de distância. Edição Relógio d' Água.

 

O OLHAR MAIS AZUL, de Toni Morrison (1970). Romance de estreia da escritora que viria a ser galardoada em 1993 com o Prémio Nobel. Começou muito bem: é um poderoso libelo anti-racista. Sem chavões, sem usar a literatura para fazer contrabando de cartilhas políticas. A propósito de duas meninas negras, uma das quais sonha ter olhos azuis para ficar parecida com as estrelas de cinema há quase cem anos, nos EUA. Edição Presença.

 

PAISAGEM DE OUTONO, de Leonardo Padura (1998). Último título do "Quarteto de Havana": romances que funcionam em separado mas devem ser lidos em sequência. Literatura policial, sim, mas não só. A pretexto de um crime, investigado pelo detective (não privado) Mario Conde, Padura faz a autópsia da sociedade cubana, envolta numa atmosfera cinzenta e opressiva: a esperança rumou a parte incerta. Edição Porto Editora.

 

PARALELO 42, de John dos Passos (1930). Hemingway, que não era de elogio fácil, não hesitou em classificá-lo assim: «Sem dúvida, o maior romance escrito nos Estados Unidos nos últimos cem anos.» Merece o qualificativo: é um original mosaico da sociedade norte-americana nas duas décadas iniciais do século XX, centrado em cinco personagens, com as suas luzes e sombras. Em trepidante toada modernista. Edição Presença.

 

PROFESSOR UNRAT, de Heinrich Mann (1905). Originalíssimo romance, ousado para a época, em torno da degradação moral de um professor, eminente burguês de uma cidade alemã obcecado por uma cantora de cabaré. Personagens credíveis, diálogos mordazes, sátira social muito bem conseguida ao quotidiano do Império Alemão, já em fase crepuscular. Serviu de inspiração ao célebre filme O Anjo Azul (1930). Edição E-primatur.

Ler (30)

Os melhores livros do meu ano - II

Pedro Correia, 26.01.24

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No ano que passou, raros terão sido os dias em que não li algum livro durante pelo menos uns tantos minutos. Em qualquer lado, em qualquer ocasião.

Ao contrário do que tanta gente afirma, confessando-se incapaz de ler na cama, ou na praia, ou em transportes, ou ao sol, ou à sombra, eu não sou nada esquisito. Vou lendo onde calha, aproveitando o melhor que posso.

Haverá melhor maneira de desfrutar momentos livres do que mergulharmos nesses mundos alternativos que a escrita literária nos proporciona?

 

Dos livros que fui lendo, privilegiei a ficção. Para contrastar com as numerosas leituras de âmbito profissional que sou forçado a fazer.

Leio sobretudo à noite. Vinte minutos, meia hora. Se o livro for interessante, o relógio deixa de contar: sigo com ele noite adiante, várias vezes acompanha-me madrugada fora. Sou pouco dado a insónias, mas quando tenho alguma o responsável máximo é quase sempre um livro. Por ser demasiado interessante, por me prender em excesso, por não me apetecer parar ali.

Hei-de falar da escrita de ficção que me acompanhou em 2023 no próximo - e último - texto desta curta série. Li bastante mais autores estrangeiros do que portugueses. Tolstoi, Dostoievski, Conrad, Faulkner, Borges, Thomas Mann, John dos Passos, Doris Lessing, Gore Vidal, Milan Kundera (falecido a 11 de Julho). O norueguês Jon Fosse, recentemente galardoado com o Nobel. Algumas obras-primas.

Falarei delas para a semana. Hoje destaco cinco livros de autores portugueses de diversos géneros: crónica, biografia, ensaio político, ensaio literário. Todas recentes, todas dignas de atenção.

 

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BIBLIOTECA, de Pedro Mexia (2015). Criteriosa recolha de textos de um dos nossos melhores cronistas, que tem a vantagem acrescida de cultivar uma paixão genuína pelos livros. Em evidente contraste com certas eminências académicas, que usam o tema só para exibir erudição postiça. Aqui se confessam amores por obras de escritores diversos, vários dos quais fora de moda. Não é defeito: é virtude. Edição Tinta da China.

 

COMO PERDER UMA ELEIÇÃO, de Luís Paixão Martins (2023). Todos os políticos deviam ler este livro. Também útil para o cidadão comum que se interessa pela política e assume convictamente a sua condição de eleitor. Escrito por quem conhece bem os bastidores da política sem se deslumbrar com ela. Até por não ignorar que «todas as carreiras políticas terminam em fracasso», como Churchill alertou. Edição Zigurate.

 

O DEVER DE DESLUMBRAR, de Filipa Martins (2023). Natália Correia desvendada até onde foi possível nesta biografia escrita com elegância e sem esbanjar vénias à escritora que dividiu opiniões pela sua verve vulcânica. Figura entre os melhores títulos do género publicados em anos recentes, na linha das biografias de Alexandre O'Neill (por Maria Antónia Oliveira) e José Cardoso Pires (por Bruno Vieira Amaral). Edição Contraponto.

 

«O MAIS SACANA POSSÍVEL», de António Araújo (2022). A mítica revista Almanaque só teve 18 edições, de 1959 a 1961. Mas deixou um rasto que foi perdurando por ter sobressaltado algum imobilismo salazarista. Num registo não destituído de ironia, aqui se traça o percurso acidentado dessa publicação que reuniu uns tantos intelectuais boémios daquela irrepetível Lisboa - meio cosmopolita, meio provinciana. Edição Tinta da China.

 

TODOS OS LUGARES SÃO DE FALA, de Paulo Nogueira (2022). Um dos melhores ensaios publicados entre nós sobre a famigerada tentação de censurar obras de arte em nome de novas ideologias identitárias que pretendem reescrever a História, castrar a linguagem e no limite guilhotinar o pensamento. Felizmente há sempre alguém que diz não, como este jornalista brasileiro que viveu muitos anos em Portugal. Edição Guerra & Paz.

Ler (29)

Os melhores livros do meu ano - I

Pedro Correia, 19.01.24

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Um ano terminou, outro começa. Mas algo nunca se interrompe, cá por casa: o fluxo de leituras. Mesmo que os filmes sejam vistos em menos quantidade e até várias séries televisivas tenham ficado por consumir - com uma excepção que tenciono mencionar aqui dentro de dias, antes que a agitação política volte a dominar-nos o quotidiano. A leitura merece prioridade.

De qualquer modo, por motivos muito pessoais, em 2023 li menos do que gostaria. E bastante menos do que nos dois anos anteriores. Em 2020 e 2021, conforme dei nota aqui, li 200 livros completos - uma centena em cada ano, nesses tempos que propiciavam poucas saídas e quase nenhumas viagens devido à pandemia. O que constituiu um incentivo suplementar à leitura.

Em 2022, já com o vírus posto à distância, reduzi um pouco o caudal de livros em que mergulhei de fio a pavio durante esses doze meses: foram 88. Mais, apesar de tudo, do que os do ano recém-terminado: desta vez fiquei-me por 71. Quase seis por mês, em média, apesar de tudo. Num país em que 58,1% dos nossos compatriotas (alguns de vocês, presumo) ficaram totalmente em branco: nem um livro para amostra foram capazes de ler em 2022, último ano em que há estatísticas.

Estatísticas que nos envergonham. E que nos deixam atrás de vários países do chamado Terceiro Mundo.

 

Como em anos anteriores, faço agora um balanço das minhas leituras de 2023. Dividindo-o em três partes: os cinco melhores ensaios de autores estrangeiros (já hoje, aqui em baixo), os cinco melhores livros de autores portugueses, os dez melhores romances (todos estrangeiros, em tradução).

Breve apontamento dedicado a cada um. Por ordem alfabética: é a que prefiro.

 

Entretanto, olho para o que se amontoa à minha cabeceira. Livros de centenas de páginas, daqueles que nos absorvem durante semanas ou até meses, exigindo grande parte da nossa atenção, quase em exclusivo.

Eis alguns: Jerusalém, de Simon Sebag Montefiore (657 pp.), Rússia - Revolução e Guerra Civil 1917-1921, de Anthony Beevor (671 pp.), O Novo Czar - Ascensão e Reinado de Vladimir Putin, de Steven Lee Myers (670 pp.), Mao - A História Desconhecida, de Jung Chang (803 pp.), Liderança, de Henry Kissinger (559 pp, das quais já li cerca de metade), O Século de Sartre, de Bernard-Henry Lévy (712 pp.) e Entrevistas, de Jorge de Sena (483 pp.). Sem esquecer Escritores y Artistas Bajo el Comunismo, de Manuel Florentín (910 pp.), que mão amiga acaba de trazer-me de Madrid.

Só estes já são programa para um ano inteiro.

 

Verifico entretanto que vários títulos que constavam do meu plano de leituras para 2023 permaneceram em pousio: ainda não foi desta que lhes peguei. Anoto-os no parágrafo que vai seguir-se, como uma espécie de incentivo suplementar a mim próprio.

Uma Casa Para Mr. Biswas (V. S. Naipaul), Herzog - Um Homem do Nosso Tempo (Saul Bellow), A Piada Infinita (David Foster Wallace), Na Minha Morte (William Faulkner), O Templo da Aurora (Yukio Mishima), Sagarana (Guimarães Rosa), Os Sonâmbulos (Hermann Broch), Auto-de-Fé (Elias Canetti), A Consciência de Zeno (Italo Zvevo), Rua Principal (Sinclair Lewis), Este Lado do Paraiso (Scott Fitzgerald). 

Será desta que os abrirei?

Daqui a um ano, se não for antes, voltamos a conversar.

 

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A BIBLIOTECA DE ESTALINE, de Geoffrey Roberts (2022). Minuciosa investigação deste historiador irlandês ao que resta do vasto espólio bibliográfico do tirano soviético, leitor compulsivo. Estaline não se limitava a ler: fazia constantes anotações nas obras que tinha sempre à mão, tanto no Kremlin como na sua confortável mansão de campo. Lia poesia e conhecia grande parte dos clássicos da literatura. Edição Zigurate.

 

A RELIGIÃO WOKE, de Jean-François Braunstein (2022). Talvez o melhor livro publicado entre nós, até ao momento, sobre as novas censuras que alastram em meios académicos e jornalísticos em nome de boas causas que servem de pretexto para torpedear direitos e liberdades. Louvável liberdade de pensamento expressa nestas páginas: o historiador francês não hesita em navegar contra a corrente. Edição Guerra & Paz.

 

A VIDA POR ESCRITO, de Ruy Castro (2022). Jornalista de formação, este talentoso carioca nascido em Minas é hoje o melhor biógrafo do nosso idioma. Nesta sua mais recente obra enuncia as regras fundamentais da escrita que podem transformar cada biografia num sucesso literário. Com ele tem sido assim - daí ter tantos leitores, não apenas no Brasil mas também em Portugal. Edição Tinta da China.

 

DIREITO A OFENDER, de Mike Hume (2015). Excelente reflexão deste jornalista e colunista britânico sobre os limites cada vez mais rígidos à liberdade de expressão impostos pelo ar do tempo. Como tem sido tragicamente demonstrado em acontecimentos que fazem proliferar o medo: aconteceu com o massacre de Janeiro de 2015 na redacção do Charlie Hebdo, em Paris. Não augura nada de bom. Edição Tinta da China.

 

OH JERUSALÉM, de Dominique Lapierre e Larry Collins (1971). Ao contrário do que alguns supõem, os conflitos na Palestina não começaram em 1948, com a fundação de Israel. São muito anteriores, como demonstra esta obra já clássica. Investigação jornalística sobre aqueles dias do pós-Holocausto, quando a ONU deu luz verde ao nascimento do Estado que serviu de refúgio a um dos povos mais perseguidos da História. Edição Bertrand.

Ler (28)

Nos 70 anos de uma das revistas da minha vida

Pedro Correia, 19.11.23

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Há uma grande revista informativa europeia que acompanho há décadas. Li-a durante a adolescência, nos anos decisivos da minha formação intelectual. Naquele Portugal pós-revolucionário, tinha uma característica ímpar: era de pendor liberal e não se envergonhava de o proclamar: pelo contrário, fazia-o com manifesto desassombro, com vocação para romper tabus. Por penas tão prestigiadas como as de Raymond Aron e Jean-François Revel, pensadores de excelência. Quando a moda eram os socialismos de todos os matizes que prestavam culto a Marx e epígonos menores. 

L' Express surgiu, contra a corrente, num dos países mais jacobinos e centralistas da Europa Ocidental, que então encaravam o liberalismo como vírus maléfico importado do lado de lá do Atlântico, capaz de ferir o majestático Estado gaulês. Quando a França via crescer o Partido Comunista - que chegou a ser o segundo mais poderoso do continente a oeste da Cortina de Ferro - enquanto procurava salvar os últimos redutos do seu império colonial, na Indochina e na Argélia. Tinha os seus pensadores de referência - com destaque para Albert Camus, que também quebrara tabus, naquele início da década de 50, ao lançar O Homem Revoltado com a célebre frase de abertura: «O que é um rebelde? Um homem que diz não.»

Fundada em Maio de 1953, adoptou pouco depois o formato da Time norte-americana, marcando assim também uma diferença face ao clássico padrão da imprensa europeia em matéria de estilo. Assim a conheci naqueles anos ávidos em que se rasgam todas as janelas sobre o mundo, quando em minha casa a recebiamos por assinatura, tal como à Newsweek. Serviu não apenas para consolidar os meus conhecimentos da língua francesa mas também para a minha formação no domínio das ideias. Ler Aron e Revel naqueles anos bastava para alargar horizontes.

 

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1954: Servan-Schreiber e François Giroud com François Mauriac, Nobel da Literatura

 

Quando falo dos meus heróis do jornalismo, jamais esquecerei a dupla que durante cerca de três décadas vertebrou L'Express: Jean Jacques Servan-Schreiber (JJSS) e Françoise Giroud. Criaram uma revista arrojada, moderna, interveniente e livre. Que fazia da reportagem um dos seus pilares e da qualidade de escrita um lema. Que foi pioneira na infografia e cultivava o cartoon político com a mestria do traço de Sempré e Tim. Uma publicação assumidamente europeísta, anticolonialista e antitotalitária onde escreveram várias das penas mais prestigiadas de França e que jamais deixou de questionar o poder - incluindo o poder do general De Gaulle, herói nacional que resgatara a honra manchada do país nos dias de fogo e cinzas da II Guerra Mundial. 

L'Express manteve-se como marco de referência na imprensa europeia. Enfrentou com sucesso todas as crises - políticas, geracionais, económicas, tecnológicas. Sobreviveu a cisões - que deram origem às rivais Le Nouvel Observateur (fractura pela esquerda) e Le Point (fractura pela direita)- e à partida dos fundadores, sabendo renovar-se. Continua a ser um produto de excelência, fiel ao lema de JJSS: «Devemos dizer a verdade tal como a vemos.» Ou na versão mais requintada de Camus: «O gosto pela verdade não impede tomar partido.»

Durante uns tempos, por motivos diversos, distanciei-me dela. Mas reencontro-a agora, como quem recupera um amor antigo, nesta magnífica edição especial destinada a celebrar o 70.º aniversário. Guardo-a desde já como objecto de colecção: serei sempre grato a tudo quanto L' Express me ensinou.

Ler (27)

Fechado um livro, saímos dele mais intensos e às vezes até mais felizes

Pedro Correia, 13.10.23

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Os livros estão em movimento perpétuo. Como todos nós, afinal.

Os livros levam-nos onde nenhum meio de transporte nos conduz. Seja de barco, seja de comboio, seja de avião.

Nos livros viajamos no espaço e no tempo. Conhecemos novos mundos, rasgamos horizontes, galgamos fronteiras reais ou imaginárias, conhecemos uma infinidade de pessoas das mais diversas proveniências.

 

Os livros são os mais fiéis e pacientes companheiros de percurso: nunca nos deixam sós.

 

Com eles subimos um rio, nas profundezas do Congo, navegando com o capitão Charles Marlow. Perseguimos uma baleia a bordo de um navio comandado pelo obsessivo capitão Ahab. Fazemos a pescaria da nossa vida logo reduzida a quase nada, ombro a ombro com o velho Santiago ao largo de Cuba.

De manhã deambulamos pelas margens do vasto delta do Mississípi com Huckleberry Finn, à tarde tomamos chá num Verão londrino com Clarissa Dalloway e subimos o Chiado com João da Ega, ao pôr do sol jantamos na mansão de Jay Gatsby.

 

Página a página, testemunhamos a paixão desmedida que une Sarah Miles a Maurice Bendrix nos escombros de Londres durante a guerra. Caminhamos com Mersault sob um sol escaldante numa praia argelina ou sentimos o frio trespassar-nos a pele e os ossos no campo de concentração siberiano onde Ivan Denissovitch vegeta.

Com os livros viajamos em calhambeques de camponeses esfomeados como o que levou -- e levará até aos confins dos séculos graças à imortalidade da literatura -- a família de Tom Joad do Oklahoma para a Califórnia.

Seguimos o Malhadinhas pelas veredas sinuosas das serras beirãs.

Brincamos em Salvador como os capitães da areia, que chegam a homens sem nunca serem meninos.

Descemos com outro capitão, chamado Nemo, às profundezas submarinas.

Arrastamo-nos nas sórdidas vielas da Londres vitoriana com Oliver Twist. Ou nas faiscantes festas novaiorquinas onde Holly Golighly brilha para a eternidade.

Exercemos medicina, como Jivago. Ou a advocacia, como Atticus Finch. Ou o jornalismo, como Santiago Zavala, o Zavalita.

Ou fazemos do segredo a nossa profissão, imitando George Smiley.

 

Enquanto leio, chamo-me D' Artagnan e sou um galante capitão ao serviço da rainha. Cavalgo como Ivanhoe à conquista do coração de Lady Rowena. Transfiguro-me em Fabrizio Del Dongo, cruzando-me com Napoleão em Waterloo. E respondo pelo nome de Sandokan quando navego nos mares da Malásia.

Torno-me Winston Smith e vivo num sistema totalitário. Prendem-me e eu, Joseph K, não faço a menor ideia de qual será o motivo - ter-me-ão confundido com Raskolnikov?

 

Mas mesmo preso eis-me livre nos livros, Phileas Fogg percorrendo o globo em 80 dias, rumando ao planeta do Principezinho.

Matando como Tom Ripley, morrendo como Robert Jordan. Ou como o coronel Aureliano Buendía, recordando perante o pelotão de fuzilamento a tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.

Diletante como Dorian Gray. Solitário como Robinson Crusoe, solidário como Jean Valjean.

Apaixonado à primeira vista, às primeiras letras, por Margarida Dulmo.

 

Mario Vargas Llosa tem razão: fechado um livro, saímos dele «mais intensos, mais ricos, mais complexos, mais felizes, mais lúcidos», enquanto regressamos à «constrangida rotina da vida real».

Exactamente como me sinto agora. 

Ler (26)

Os meus 50 livros preferidos escritos por mulheres

Pedro Correia, 02.09.23

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Tanto se fala agora em literatura feminina. Ou em livros escritos por mulheres, mais secamente, numa tentativa - inexplicável para mim - de expurgar o adjectivo feminino da linguagem corrente, como se soasse a condescendência masculina.

Tenho a mania de elaborar listas. Num destes dias, pus-me a pensar quais terão sido os 50 melhores livros que já li escritos por mulheres - ou senhoras, para usar uma linguagem antiquada mas que era corrente durante as vidas de grande parte delas. 

Lembrei-me destas que aqui deixo, por ordem cronológica, partilhando-as convosco. Talvez possam evocar boas memórias das vossas próprias leituras. 

Uma evidência: quase todos estes livros são romances ou novelas. Abri raras excepções, que se justificam pela qualidade das obras: os volumes de contos de Katherine Mansfield e Alice Munro, e as memórias de Karen Blixen. Estas, aliás, podem ler-se como um romance. Não incluo poesia, nem história, nem ensaio.

Outra anotação: esta lista só abrange, de propósito, autoras estrangeiras. As portuguesas merecem menção especial, por diversos motivos. Constarão, portanto, de outra lista que divulgarei em breve.

 

Orgulho e Preconceito, Jane Austen (1813)

Jane Eyre, Charlotte Brontë (1847)

O Monte dos Vendavais, Emily Brontë (1847)

O Tesouro, Selma Lagerlöf (1904)

Numa Pensão Alemã, Katherine Mansfield (1911)

O Regresso do Soldado, Rebecca West (1918)

A Idade da Inocência, Edith Wharton (1920)

Mrs. Dalloway, Virginia Woolf (1925)

O Assassinato de Roger Ackroyd, Agatha Christie (1926)

Rumo ao Farol, Virginia Woolf (1927)

A Mãe, Pearl Buck (1934)

Um Crime no Expresso do Oriente, Agatha Christie (1934)

E Tudo o Vento Levou, Margaret Mitchell (1936)

África Minha, Karen Blixen (1937)

Rebecca, Daphne du Maurier (1938)

Convite Para a Morte, Agatha Christie (1939)

Coração, Solitário Caçador, Carson McCullers (1940)

Reflexos nuns Olhos de Oiro, Carson McCullers (1941)

Laura, Vera Caspery (1943)

Gigi, Colette (1944)

Nada, Carmen Laforet (1945)

O Desconhecido do Norte-Expresso, Patricia Highsmith (1950)

Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar (1951)

A Colina da Saudade, Han Suyin (1952)

O Preço do Sal / Carol, Patricia Highsmith (1952)

Preconceito Racial, Pearl Buck (1953)

Ciranda de Pedra, Lygia Fagundes Telles (1954)

O Talentoso Mr. Ripley, Patricia Highsmith (1955)

Mataram a Cotovia, Harper Lee (1960)

Primeira Memória, Ana María Matute (1960)

A Campânula de Vidro, Sylvia Plath (1963)

Vasto Mar de Sargaços, Jean Rhys (1966)

O Olhar Mais Azul, Toni Morrison (1970)

Malina, Ingeborg Bachmann (1971)

Ressurgir, Margaret Atwood (1972)

As Meninas, Lygia Fagundes Telles (1973)

O Conservador, Nadine Gordimer (1974)

A Casa dos Espíritos, Isabel Allende (1982)

O Amante, Marguerite Duras (1984)

Turista por Acidente, Anne Tyler (1985)

Corações de Pedra, Ruth Rendell (1986)

O Quinto Filho, Doris Lessing (1988)

O Deus das Pequenas Coisas, Arundhati Roy (1997)

Harry Potter e a Pedra Filosofal, J. K. Rowling (1997)

Pequenas Infâmias, Carmen Posadas (1998)

A Louca da Casa, Rosa Montero (2003)

Instruções para Salvar o Mundo, Rosa Montero (2008)      

Telex de Cuba, Rachel Kushner (2008)

Coonduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos, Olga Tokarczuk (2009)

Amada Vida, Alice Munro (2012)

Ler (25)

Inflação de inúteis pronomes pessoais e possessivos

Pedro Correia, 12.08.23

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O livro é muito bom, uma obra-prima. Pena a tradução: abundam nela alguns dos maiores defeitos que vou verificando, em grau crescente. Importando uma estrutura lexical que nada tem a ver com a nossa.

Em português, subentendemos grande parte dos pronomes pessoais e possessivos - ao contrário do que sucede na língua inglesa, onde estes elementos são continuamente sublinhados. Redundâncias, do nosso ponto de vista.

Para traduzir de modo competente não basta dominar o idioma de partida: há que conhecer tão bem ou melhor o idioma de chegada. Sem esquecer que uma obra estrangeira se torna portuguesa ao ser vertida para a nossa língua. Destina-se a leitores portugueses, que interpretam textos e raciocinam de acordo com as nossas regras gramaticais, não em função de códigos normativos alheios.

Este saudável princípio não imperou na página de abertura do magnífico romance Luz em Agosto, de William Faulkner. Pelo contrário: a norma inglesa é metida a martelo na lingua portuguesa - e saem, portanto, frases repletas de inúteis possessivos que fui assinalando na mancha gráfica. 

Ela «só estivera em Doane's Mill depois de o seu pai e a sua mãe terem morrido». Tinha «os seus pés nus estendidos no fundo da carruagem». Ela havia pedido «ao seu pai para parar a carruagem nos arrabaldes da cidade». E ficamos a saber que «não diria ao seu pai «porque é que preferia caminhar em vez de continuar a cavalgar». Infelizmente, quando tinha apenas 12 anos, «o seu pai e a sua mãe morreram no mesmo Verão». Saberemos ainda que «a sua mãe morreu primeiro» e quando isso aconteceu «o seu pai» teve uma conversa com ela.

Isto, repito, só na página inicial - aqui reproduzida. Profusão de apêndices que fazem o leitor tropeçar a todo o momento, cortando o ritmo da escrita tal como a entendemos segundo as regras há muito fixadas no nosso idioma.

 

Maior ainda é a inflação dos pronomes pessoais. Na página 56, há um recorde batido: lemos trinta vezes «ele/eles», quase sempre com a função de sujeito. Outra redundância, tão gritante como a anterior.

Gerando frases como estas: «Eles pensaram sem dúvida que ele partiria agora, e a igreja organizou uma colecta para ele partir e se estabelecer noutro lado qualquer. Mas em seguida ele recusou-se a abandonar a cidade. Eles contaram a Byron sobre a consternação, mais do que a afronta, que sentiram, quando souberam que ele comprara a pequena casa na rua secundária onde ele hoje vive e tem vivido desde então; e os anciãos organizaram mais um encontro porque eles disseram que lhe tinham dado o dinheiro para partir, e se ele o gastara noutra coisa qualquer, então ele aceitara o dinheiro com falsas intenções. Eles foram ter com ele e disseram-lhe isto.»

 

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Um festival de pronomes. Sem seguir uma regra essencial deste nosso idioma que não nasceu ontem: a do sujeito subentendido.

«Em português, ao contrário do que acontece noutras línguas, não há necessidade de explicitar o sujeito em todas as frases ou orações. Tal acontece porque o português é "uma língua de sujeito nulo, ou seja, uma língua na qual um sujeito pronominal pré-verbal não tem necessariamente realização fonética".» Palavras de Eduardo Paiva Raposo, na Gramática do Português (edição Fundação Gulbenkian).

Os tradutores deviam assimilar estas normas antes de porem mãos à obra. Sobretudo quando lhes cabe a missão fundamental de introduzir obras-primas da literatura mundial no valioso espólio da língua portuguesa.

Ler (24)

História sem teias de aranha e cheia de alusões a Portugal

Pedro Correia, 22.07.23

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Este é o género de livro que abre o apetite para o estudo da História. Escrito por Arturo Pérez-Reverte, que se distinguiu como grande jornalista e excelente repórter de guerra e é hoje um dos mais notáveis romancistas espanhóis. Um livro original: lembra factos históricos do país vizinho - desde muito antes de a actual Espanha se chamar assim - e desenrola-os como se colasse cromos numa caderneta. Comentando com frequência cada acontecimento ou cada episódio de modo sarcástico. Estabelecendo por vezes contrastes com o momento presente.

Faz-nos sorrir, faz-nos pensar.

Esta obra, Una Historia de España, é redigida em vários tons, conforme se sucedem os temas e as épocas - do melancólico ao agreste, do empolgante ao desencantado. Típico de quem ama intensamente o seu país, por mais pragas que lhe rogue. Eis um exemplo: «A Carlos III sucedeu o imbecil do seu filho, Carlos IV» (p. 111) Uma pátria é assim mesmo: como alguém da nossa família. Com quem nos alegramos, com quem nos zangamos, com quem nos reconciliamos. Alguém que nos toca sempre.

Título do primeiro texto: "Tierra de conejos". Eis os nove seguintes (seguem no original, para não se perder a expressiva verve castelhana): "Roma nos roba"; Rosa, rosae. Hablando latín"; "Roma se va al carajo"; "El puñal del godo"; "Y nos molieron a palos"; "Um niño pijo de Oriente"; "Moros y cristianos"; "Una frontera de quita y pon"; "Llegan más moros". O último, não por acaso, chama-se "Epílogo Triste, O No".

 

Falando do passado, fala-nos também do presente. Em diálogo permanente com o leitor: parece fácil, mas não é. Com um talento só ao alcance dos melhores escritores.

Alguns excertos - tradução minha - caracterizam a terra e as gentes: «A inveja, poderoso sentimento nacional» (p. 57); «A marca de Caim, que todo o espanhol transporta na sua memória genética» (p. 64); «Nisto de darmos tiros no próprio pé, aos espanhóis sempre nos parece pouco» (p. 87); «Napoleão deu-nos como presente envenenado a devolução do rei mais infame de que há memória» (p. 123); «A velha e turva Espanha, pródiga em rancores, nunca esquece os seus ajustes de contas» (p. 163); «Espanha seria um país estupendo se não estivesse cheia de espanhóis» (p. 181); «Ninguém se suicida historicamente com tão enternecedora naturalidade como um espanhol com uma arma na mão e uma opinião na língua» (p. 246).

 

Portugal é várias vezes mencionado: contei 15 referências. Destaco duas.

«Herdeiro de Portugal inteiro (sua mãe, a belíssima Isabel, era princesa de lá) após fulminar os discordantes na batalha de Alcântara, Filipe II cometeu, se me permitem esta opinião pessoal e intransmissível, um dos maiores erros históricos nesta secular balbúrdia em que tão mal vivemos: em vez de mudar a capital para Lisboa - antiga e senhorial - e dedicar-se a cantar fados contemplando o Atlântico e as possessões da América, que eram o esplêndido futuro (calculem o que somavam os impérios espanhol e português, juntos sob a mesma coroa), o nosso timorato monarca enclausurou-se no centro da Península, no seu mosteiro-residência do Escorial, gastando o dinheiro que vinha das possessões ultramarinas hispano-lusas, além dos impostos com que sangrava Castela.» (p. 74)

«Marginalizados, inundados de impostos, desatendidos nos seus direitos e pagando também o preço nas suas possessões ultramarinas acossadas pelos piratas inimigos de Espanha, com um império colonial próprio que em teoria lhes fornecia abundantes recursos, em 1640 os portugueses decidiram recuperar a independência após 60 anos sob domínio espanhol. Vão àquela parte, disseram. Assim proclamaram o rei João IV, antes duque de Bragança, dando início à guerra, longa de 28 anos, em que se acabou por capar o porco» (p. 94).

 

Li de um fôlego Una Historia de España na versão original. Ainda antes de haver tradução portuguesa. De imediato senti que gostaria imenso de ver obra semelhante produzida entre nós. Sobre a nossa História, tão desprezada e tão esquecida.

Poderia algum dos nossos prosadores mais consagrados descer do pedestal da verborreia lusa, espanejar teias de aranha e conseguir algo semelhante?

Havia um, mas infelizmente já cá não está: Vasco Pulido Valente. Seria um livro adequado à pena dele.

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O insuportável vácuo de C. L.

Pedro Correia, 01.07.23

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Como já revelei aqui, há uns tempos tive a ideia de elaborar uma lista das cem melhores obras da literatura universal de ficção, ano por ano, entre 1901 e 2000. Todo o século XX. Isto serviu-me de incentivo a ler ainda mais. E a fazer descobertas que não faria de outro modo. 

Tenho algumas décadas "fechadas" - se é que uma lista ambiciosa como esta poderá ser estabelecida em definitivo. Mas outras continuam por completar. Diria que me faltam uns vinte livros para pôr fim à empreitada. Problema: creio que nenhum deles tem menos de 500 páginas. 

 

À medida que fazemos descobertas na literatura, logo outras nos surgem pela frente. E cedemos à tentação de as desvendar. Isto explica, em larga medida, por que motivo uma lista tão ambiciosa como esta dificilmente será fechada. 

Assim me chegou às mãos A Paixão Segundo G. H., de Clarice Lispector - escritora que nunca me tinha seduzido. Mas dei uma oportunidade à obra: poderia estar ali o melhor romance publicado em 1964. Concorrendo com Uma Questão Pessoal (Kenzaburo Oe), Uma Noite em Lisboa (Erich Maria Remarque) ou até Herzog, um Homem do Nosso Tempo (Saul Bellow).

Nada como espreitar.

 

Pois espreitei. E o que li deixou-me estarrecido. Pelos piores motivos.

É um "romance" quase ilegível. Começa aliás com uma frase mutilada e acaba com outra também destituída de sentido após sofrer corte abrupto. Tudo centrado numa mulher sem nome (possível alter ego da autora) que, ociosa, deambula pelo vasto apartamento que denota meios de fortuna, supostamente no Rio de Janeiro.

Lá no fundo há um aposento onde há muito não entrava: é o quarto da criada, agora vazio. Inspecciona-o atentamente: está mais limpo do que supunha.

De súbito, encontra uma barata. E entala-a na porta do guarda-vestido, onde o bicho vai agonizando.

 

Isto ocorre na página 37 da edição portuguesa (Relógio d' Água, 2013). Mais de cem páginas depois, lá continua ela, no mesmo quarto.

Começa a delirar, vai-se espraiando em monólogos sem sentido. Tomando o leitor como suposto confidente. A partir de certa altura até me trata por tu. Um tu impreciso, impessoal. 

Debita frases ocas em catadupa. Seguem-se alguns exemplos:

«Amor é muito mais que amor: amor é antes do amor ainda: é planctum lutando, e a grande neutralidade viva lutando. Assim como a vida na barata presa pela cintura.» (p. 73)

«Esquenta-me com a tua adivinhação de mim, compreende-me porque eu não estou me compreendendo. Estou somente amando a barata. E é um amor infernal.» (p. 91)

«A tentação é comer direto na fonte. A tentação é comer direto na lei. E o castigo é não querer mais parar de comer, e comer-se a si próprio, que sou matéria igualmente comível.» (p. 101)

«A verdadeira tragédia está na inexorabilidade do seu inexpressivo, que é sua identidade nua.» (p. 111)

«Sabia que teria que comer a massa da barata, mas eu toda comer, e também o meu próprio medo comê-la. Só assim teria o que de repente me pareceu que seria o antipecado: comer a massa da barata é o antipecado, pecado seria a minha pureza fácil.» (p. 129)

Torneira aberta, jorrando conversa da chacha. Tudo por causa de uma malfadada barata. Que talvez até fosse um escaravelho, admite ela na pág. 92. 

 

Já basta de citações para se perceber o que padeci. 

Típico exemplar do chamado nouveau roman, então na berra. Romance sem trama, sem enredo, sem personagens, sem diálogo, sem substância. E sem o menor interesse. Só palavras pairando no vácuo. Felizmente o "novo" fez-se logo velho e fechou os olhos para sempre. 

Após ter feito sofrer muitos leitores.

 

Não é Kafka quem quer, mas quem pode. Para arrancar reminiscências das entranhas, muito melhor a madalena do Proust do que a nojenta barata da Lispector.

Adeus, para nunca mais.

Ler (22)

Da espantosa actualidade de Tolstoi

Pedro Correia, 17.06.23

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Como relatei aqui, tracei como uma das minhas metas de leitura para 2023 a visita, já tardia, a este monumento literário que é Guerra e Paz. Cumprindo, como patamar mínimo, um capítulo por dia: assim chega-se lá.

Pelo menos a meio já cheguei. A meio do romance, o que significa também a meio do segundo dos três volumes. Mais de 600 páginas ficaram para trás. Com 109 personagens até ao momento, se as contas não me falham. Entre elas, o próprio Napoleão Bonaparte - além do imperador russo, Alexandre.

Como também já assinalei aqui, é um romance que exige ser cartografado. Temos de ir elaborando um quadro com as figuras principais e secundárias, que vão entrando e saindo: só assim evitamos perder-nos no imenso emaranhado do enredo. 

 

Regresso ao tema só para assinalar um trecho que ontem li, na página 215 deste segundo volume, a propósito da brutal ofensiva napoleónica contra os russos em 1812. Mesmo à entrada do Livro Três (são quatro no total, com 15 partes). 

É o que passo a transcrever - com a devia vénia à memória do tradutor, o filósofo José Marinho:

«No dia 12 de Junho, os exércitos da Europa Ocidental atravessaram a fronteira e a guerra começou: quer dizer que se deu um acontecimento contrário à razão e a toda a natureza humana. Alguns milhões de homens cometeram uns contra os outros quantidade tão considerável de crimes, enganos e traições, roubos, pilhagens, incêndios e morticínios, como a história de todos os tribunais do mundo não comporta durante séculos; e, entretanto, as pessoas que cometiam esses crimes não os consideravam como tais.»

É espantoso, o poder sugestivo da grande literatura. Podemos ler estas linhas, escritas há 160 anos, como se retratassem a guerra que desde 24 de Fevereiro de 2022 dilacera a fronteira oriental da Europa. Com a diferença de que os russos, em vez de agredidos, são desta vez os agressores.

Num acontecimento contrário à razão, como Tolstoi tão justamente escreveu. 

 

O escritor chegou a pensar num título muito diferente para esta obra-prima: Tudo Está Bem Quando Acaba Bem era o que tinha em mente. Optou pela versão mais concisa e solene, sem pista alguma para o desfecho.

Da ficção para a realidade, anseio para que possa ser este o título de um futuro romance em torno da dramática guerra de libertação que os ucranianos hoje travam na sua própria terra. Tudo está bem quando acaba bem.

E que o fim demore menos do que o da Guerra e Paz

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Encontros e compras nesta Feira do Livro

Pedro Correia, 09.06.23

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Três incursões à Feira do Livro de Lisboa. A terceira, ontem, com direito a aguaceiro: é da praxe a chuva de quase-Verão, com vento a condizer, neste certame que tanto apaixona alfacinhas e visitantes de outras paragens.

Este ano mantêm-se os 340 pavilhões, agora em representação de 981 chancelas editoriais. Ampliou-se o espaço de comes e bebes. E é visível que muita gente não se limita a deambular pelo Parque Eduardo VII: abundam os sacos de compras. 

Abraço um dos meus editores (Rui Couceiro, da Contraponto). E também o João Severino, parceiro de há longos anos, desde os tempos de Macau: está no pavilhão da Âncora com o seu recentíssimo livro de memórias, Recordador Olex - acompanhado do João Paulo Diniz, figura histórica da rádio portuguesa, que pôs no ar a senha do 25 de Abril aos microfones da Rádio Renascença. Há quase meio século.

 

Reencontro o José Manuel Barroso, velho camarada das lides jornalísticas. Deparo com a Helena Sacadura Cabral felizmente muito afadigada a dar autógrafos: interrompo-a por uns segundos para lhe dar um beijinho, satisfeito por a ver em boa forma. Sinto também orgulho ao ver as minhas amigas Filipa Martins e Maria Inês Almeida sempre com sucesso junto dos leitores.

Cruzo-me com gente conhecida. Pacheco Pereira sobe e desce a alameda, nervosamente: lembra-me a Luísa do poema "Calçada de Carriche", de Gedeão. Tozé Brito conversa, descontraído, com quem o aborda: os anos não parecem passar por ele. Saúdo um sorridente Júlio Isidro: «Viva, Senhor Televisão!»

Cumprimento a Anabela Mota Ribeiro, com quem me cruzei há largos anos no histórico edifício do Diário de Notícias quando o jornal vivia um dos melhores períodos de sempre, em absoluto contraste com o actual.

 

E trago livros, claro. Entre outros, estes que aqui mostro (um deles foi-me oferecido): Tempestades de Aço, de Ernest Jünger; Liderança, de Henry Kissinger; O Dever de Deslumbrar (biografia de Natália Correia, escrita pela Filipa); Paralelo 42, de John dos Passos (pechincha do dia: apenas 8 euros num alfarrabista). 

Nas filas de autógrafos, ontem a maior era - de longe - a do José Milhazes. Elogiado, incentivado, acarinhado e fotografado por um vasto público. Fiquei satisfeito por o ver imerso nesta onda de popularidade, rubricando exemplares das suas obras no recinto do conglomerado Leya. Trago prova do que vi. E deixo testemunho de uma frase que ali escutei: «Slava Ukraini!»

Nada mais apropriado.

 

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Traduções com altos e baixos

Pedro Correia, 12.05.23

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Tenho mencionado várias vezes este assunto: a mania de atribuir diferentes títulos portugueses a obras de fama universal que há muito foram lançadas no nosso mercado e não cessam de regressar aos escaparates com novo embrulho.

Umas vezes é mera estratégia comercial: título alterado, para o leitor incauto, pressupõe obra diversa.

Outras vezes corresponde apenas à mania de "parecer diferente", mudando por mudar - quase sempre para pior.

Há ainda uma terceira hipótese, talvez a mais frequente: pura ignorância.

 

Há uns tempos, numa livraria em Lagos, vi estas duas edições emparelhadas - segundo a ordem alfabética, que prevalece nos postos de venda. As lombadas falam por si. À esquerda, a clássica tradução da obra-prima de Emily Brontë: O Monte dos Vendavais; à direita, o mesmo romance com título modificado. Para pior.

A Colina dos Vendavais: perde-se a toada de redondilha maior das sete sílabas poéticas do título original, modificando-a sem nenhum ganho de significado e óbvia perda de efeito estético.

É o que acontece quando se confia a tarefa a alguém incompetente.

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Emily Brontë tem pouca sorte com os tradutores portugueses. Já houve pior do que isto. No início da década de 70, as Publicações Europa-América lançaram este clássico de 1847 na sua popular colecção de livros de bolso com um título que não lembraria ao D. Fuas: O Monte dos Ventos Uivantes. Com cinco palavras, nove sílabas métricas e manifesta infidelidade não à letra mas ao espírito do texto original, aplicando-lhe uma lógica de google translate muito antes de esta ferramenta digital existir e quando nem a internet havia sido inventada.

Na década seguinte, a Dom Quixote deu à estampa outra versão portuguesa de Wuthering Heights com nova alteração de título: O Alto dos Vendavais. As traduções são mesmo assim: com altos e baixos.

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Há quem menorize estas subtilezas. Será certamente alguém com escassa ou nula sensibilidade literária. Cada língua tem a sua métrica e a sua música: se queremos traduzir bem, nunca podemos permanecer indiferentes a isto.

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Diferentes capas, diferentes títulos, o mesmo livro

Pedro Correia, 15.04.23

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O que levará um romance estrangeiro há décadas no mercado português com um título já consagrado a regressar não apenas com nova tradução mas também com novo título, como se fossem livros diferentes?

Pode tratar-se do radical abandono da metáfora, entretanto tornada expressão idiomática, a favor da tradução literal agora tão em voga - como aconteceu com O Triunfo dos Porcos, de George Orwell, popularizado sob esta designação na década de 70, quando foi um sucesso de vendas da editora Perspectivas e Realidades (com uma capa muito expressiva desenhada por Augusto Cid), e reaparecendo já este século, na Antígona, como anódina Quinta dos Animais.

Pode dever-se ao trabalho sobre um manuscrito diferente, como sucedeu com o clássico O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler (um dos melhores romances universais do século XX), que adoptou tal nome por decalque da versão francesa, ainda nos anos 40, e o manteve em 1979, sob a chancela Europa-América, reaparecendo em 2022 com título bem diverso - Eclipse do Sol - na editora Livros do Brasil, a partir do original alemão, que durante décadas andou desaparecido, em vez da livre tradução inglesa elaborada pelo próprio autor.

Entendo isto. Custa-me muito mais entender por que motivo O Templo da Aurora, de Yukio Mishima, regressa cerca de 40 anos após a versão original em português, agora intitulado O Templo da Alvorada, com chancela editorial Livros do Brasil. Aqui há mera troca de sinónimos numa palavra, mas basta para parecerem obras diferentes - e ambas coexistem, pois a anterior, com rótulo da Presença, mantém-se no circuito de livros usados.

Percebo que um tradutor queira imprimir o seu cunho pessoal no material literário que lhe chega às mãos. Percebo menos - excepto por mera estratégia comercial - que a aurora passe a alvorada só porque sim. Transmitindo ao leitor mais distraído a ilusão de tratar-se de algo diferente quando está perante a mesma obra, num eventual exercício de publicidade enganosa.

Será o caso, neste terceiro exemplo. E, se o for, parece mal.

Pensamento da semana

Pedro Correia, 26.03.23

Números que nos envergonham: 61% dos portugueses não leram um único livro em 2021. Envergonham ainda mais em comparação com os nossos parceiros europeus: no mesmo ano, houve 38% de espanhóis que nada leram e apenas 8% de franceses.

Quem não lê situa-se de imediato num patamar inferior, indigno de um legado cultural de milénios que nos serve de matriz: não esqueçamos que somos herdeiros e tributários da civilização do Livro.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana