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Delito de Opinião

Leituras

Pedro Correia, 05.10.24

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«Em comunicação e na acção política, uma das armas mais fortes é o silêncio. O silêncio é um aliado da imprevisibilidade e juntos são extremamente difíceis de combater

Rui Calafate, Os 10 Mandamentos da Política, p. 47

Ed. Oficina do Livro, 2024

O fosso

Cristina Torrão, 03.10.24

Dois livros, alguns excertos.

O primeiro livro:

“As crianças do 25 de Abril foram expostas à pornografia antes de saberem como se faziam bebés (…). A despontarem para a vida, viviam numa espécie de terra de ninguém, pela qual não se encontravam responsáveis. Pairavam no vazio formado entre o culto da liberdade sem limites e a crença salazarista mantida pelas mães e avós de que Portugal era um país mais temente a Deus, de melhores costumes, um oásis de santidade perante um estrangeiro devasso”.

“Ainda apática, saída de um mundo desprovido de sexo, um mundo em que os genitais eram porcos, males necessários para se expelirem os detritos do corpo, ela espantava-se com os cartazes e os títulos sugestivos das películas em cena no Sá da Bandeira, um verdadeiro templo da arte pornográfica, enquanto esperava pelo autocarro”.

“Sentindo-se impotentes perante o fenómeno e na sua tentativa desesperada de a manter agarrada às antigas convenções, os pais empurravam-na para uma dualidade de comportamentos, criavam a cultura do fingimento: a nossa casa é uma coisa e o mundo lá fora é outra. Dentro de casa, é feio falar de sexo; lá fora, o sexo é exibido em todo o lado. No meio, ficava o vazio, a tal terra de ninguém, (…) o fosso, que se cavava cada vez mais fundo”.

 

E o segundo livro:

“Nada, nem a inteligência, nem os estudos, nem a beleza, contava tanto como a reputação sexual de uma rapariga, o mesmo é dizer o seu valor no mercado de casamentos, onde as mães, seguindo o exemplo das suas próprias mães, se armavam em guardiãs".

“Ao sábado, em fila, casavam as raparigas de véu branco, que davam à luz seis meses mais tarde uns rapagões considerados prematuros. Presas entre a liberdade de Bardot, o gozo dos rapazes a dizer que ser virgem era doentio, as recomendações dos pais e da Igreja, não tínhamos escolha".

“Os discursos e as instituições estavam atrasados em relação aos nossos desejos, mas o fosso entre o dizível da sociedade e o nosso indizível parecia-nos normal e irremediável".

 

O primeiro livro é de minha autoria: A Revolução da Verónica. Nunca me tinha acontecido sentir tão grande afinidade com um escritor, ou escritora. O mais interessante é que, quando comecei a ler o livro alheio, não o achei muito promissor.

Não comparo a qualidade da escrita. Aí, sinto-me como São João Baptista: não sou digna de lhe apertar as sandálias. Está em causa a comunhão de pensamentos, a complementação de ideias. E a escolha de palavras. Como “o fosso”. “Cada vez mais fundo”, num caso; “normal e irremediável”, no outro. Encaixam como duas peças de Lego.

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Nota: plágio de ideias (da minha parte, claro), está fora de questão. Comecei a ler Os Anos, de Annie Ernaux, pela primeira vez, há dias. Por seu lado, A Revolução da Verónica existia há muito tempo, na minha gaveta. Na verdade, tentei, sem sucesso, publicá-lo por ocasião do 40º aniversário da Revolução de Abril. Acabou por acontecer apenas dez anos mais tarde.

Leituras

Pedro Correia, 27.09.24

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«Os descendentes dos antigos europeus não têm de pedir desculpa pela escravatura aos descendentes de povos que já a praticavam antes de terem contactado com esses europeus. Todos os povos, num ou noutro momento da História, praticaram a escravatura, escravizando gente de outros povos. O que é específico não é a escravatura, é a sua abolição

João Pedro Marques, A Culpa do Homem Branco, p. 133

Ed. Guerra & Paz, 2024

Leituras

Pedro Correia, 22.09.24

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«O Estado, que nos isenta da responsabilidade, não nos pode libertar da dor, temos de ser nós a lidar com ela. Ela penetra até às profundezas dos nossos sonhos

Ernst Jünger, Tempestades de Aço (1920), p. 235

Ed. Guerra & Paz, 2023. Tradução de Maria José Segismundo dos Santos. Colecção Os livros NÃO se rendem

Leituras

Pedro Correia, 15.09.24

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«Aprendi, desde muito cedo, que a política é uma relação de forças. E que esta é a única linguagem que os homens do poder percebem. Pratiquei-a inclusivamente com amigos que exerciam o poder. Com um senão: eu experimentava o contrapoder mas sem aspiração a exercer o poder propriamente dito.»

Manuel Alegre, Memórias Minhas, p. 329

Ed. D. Quixote, 2024

Uma semana jubilosa

jpt, 25.08.24

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Por mais rusticidade, até altaneira em modo desprendido, que vá eu encenando sigo vaidoso, como tantos outros, a maioria desses, diga-se... E, pior ainda, mimalho. Como tal foi-me jubilosa esta semana que agora termina. Num tão assim que rara, mesmo. Narro-a para que não me reduzam a resmungão, dado ao azedume, amargurado pela vida, desatento às benesses que me recobrem.
 
Começou-me no texto do amigo Pedro Correia, o maior elogio - se explícito, másculo e público, ressalvo - que alguma vez recebi, louvando o meu "Torna-Viagem" em tais moldes que, como lhe disse, até me causou um frémito de estar já com "os pés para ... o forno", dados os laivos de eulogia que ali... temi. Nisso empurrou o livro. Este quase invisível (edição de autor, desconhecido, numa plataforma digital em impressão por encomenda). O amigo Pedro Morais, homem da banda desenhada, avisara-me de início, "editado assim se venderes 50 é livro de platina!". Eu esperava impingir 100, a utopia era 150... Mas agora, com este elogio chegou às 175 vendas! Digo-me, a mim-mesmo pois, se chegar às 200 encomendarei chamuças de diferentes origens para uma "prova cega".
 
Mas mais mimos me chegaram. A minha querida Ana, de que tanto gosto e me faz falta quando se ausenta, minha mana - "com a idade tornaste-te sentimental", há dias protestava outra amiga, telefonando de longe a combinar comigo os moldes de festa que aí vem, "sempre fui, agora não tenho é pejo de o mostrar", defendi-me -, a Ana, dizia, voltou após meses de Moçambique. Trazendo na carga - "só carreguei porque é para ti..." - uma bela oferta da também tão amiga Fátima: um grande frasco de achar de limão, confeccionado com os seculares saberes de Inhambane. Que mais pode querer um homem? "Mal arranje um portador envio-te um de achar de manga...", responde-me ela ao meu agradecimento! Matabicho de hoje? Malga de café, torrada barrada de achar...
 
Tudo isto orlo com um pouco de cultura, inesperado auto-mimo. Ando a ler os Voltaire - a reler, como se diz dos clássicos, avisou Calvino. E descubro, caído na estante atrás da fileira vigente, este "A Princesa da Babilónia", colecção de seis contos, que - a este sim - nunca lera. Comprado há vinte anos, diz lá. Muito melhor do que um livro novo é mesmo encontrar um esquecido.... E também recuperar um antigo, e nisso leio este "Vélazquez" (sic) com oito reproduções fac-simile em cores, editado em tempos bem recuados por Pierre Lafitte e Cie. Pois preparo-me, dado que ando há meses para ir à Gulbenkian ver o retrato do nosso rei Filipe III e não passa desta semana... "Não tens livros novos, aqueles da Taschen, e isso?, sobre o Velásquez?", mais as "Histórias de Arte" canónicas, carregados de ilustrações e de ensaios actuais?. Tenho, mas assim irei com o meu avô Flávio, que a este mono cá de casa, que resdescubro, comprou em 1911. Razão suficiente para me preparar deste modo, mimando-me com a ancestralidade.
 
Nisto cruzei o Tejo, rumo a almoço às portas de Almada, casa amiga sempre de boa mesa. Não sou grande admirador do comestível coelho, mas não me nego. Mas ontem, e já nestes meus 60 anos, deparo-me com o melhor coelho da minha vida - à mesa o autor reclama que o molho não ficou o espesso suficiente, adiantando razões que nem compreendo tamanha a voracidade com que mastigo. "Como se chama a receita?", pergunto, enquanto me sirvo de segunda pratada, "Coelho à sem nome", diz-me, ríspido, o talentoso artífice, que estou ali a conhecer...
 
Mas o maior dos mimos foi outro. "Pai, podes-me rever a tese?", pergunta a Carolina, e nisso estive eu, nestes dias, a reduzir-lhe as palavras - ajudando a adequá-la aos limites impostos -, a garimpar-lhe a (extensíssima) bibliografia, a comprovar-lhe a justeza sintáctica. Entregou-a na sexta-feira. Numa mescla metodológica difícil, associando Ciência Política com Economia (quantitativa, não a sociologia dita Economia Social). Debatendo as articulações entre investimento em energias renováveis, dívida externa e condicionamento político. Como estudo de caso esmiuçando o exemplo moçambicano. 22 anos, culminando o seu segundo mestrado, antes um na Nova, este agora na LSE. Deparo-me, sem espanto mas ainda assim com alguma surpresa, com um trabalho de grande robustez. E atrevendo-se a correr riscos intelectuais. Com competência e denodo. Pujança. Fica assim um pai babado, muito mimado. E como sempre a frisar: "quem sai aos seus não degenera". Pois a jovem puxou mesmo à Senhora sua mãe. Grande profissional, arguta intelectual.
 
E para esta semana já chega. Tanta coisa boa foi que fui celebrar, uma estroinice: almoçar um crepe no chinês dos Olivais. Com os que quiseram por lá passar...

No cais cinzento do destino original

Pedro Correia, 20.08.24

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Torna-Viagem, de José Pimentel Teixeira

Edição Bookmundo, 2024

368 páginas

 

Podia começar este texto de várias maneiras. Começo pela mais convencional: estamos perante uma recolha de postais datados de 2001 a 2023 e publicados nos blogues Ma-Schamba e Nenhures, alguns também no DELITO. 

Quase uma centena.

São crónicas que reflectem o percurso biográfico, existencial, do autor. José Pimentel Teixeira é antropólogo de formação, tendo exercido esta profissão em Moçambique, onde foi também adido cultural da embaixada portuguesa e professor universitário. Ali viveu entre 1997 e 2014.

Sem este percurso, não haveria livro. Sem ele, este rapaz lisboeta, «filho do senhor engenheiro Pimentel», criado no interclassista território urbano dos Olivais, o último bairro erigido na era de Salazar, teria sido outra pessoa. Talvez funcionário público com carácter vitalício, talvez mais solvente no plano financeiro, talvez mais apegado à rotina burguesa dos acomodados na vida.

Escolheu um rumo diferente - ou o destino terá escolhido por ele, uma vida inteira não basta para desvendarmos tais enigmas com certezas inabaláveis. Devoto desde a infância das aventuras de Corto Maltese, este será um elemento-chave para entendermos o que o levou a galgar fusos horários e lançar âncora à beira-Índico, na metade sul do globo. 

 

Aportou a Moçambique quando ali mal se despertara do pesadelo da guerra civil e do devastador "socialismo real" dos anos de chumbo da Frelimo, durante demasiado tempo servil ao dogma soviético com o seu cortejo de penúria e opressão.

O jovem antropólogo encontrou ali uma segunda pátria e tomou-se de amores por ela. Sem renegar a cidadania portuguesa nem os valores republicanos que bebeu no berço. Consciente de estar num país estrangeiro, sem embarcar em utopias lusófonas. Duplamente estrangeiro, num certo sentido, pois ali a cor da pele não é irrelevante: vários fragmentos de textos da sua lavra confirmam isso. «Esqueço-me ser minoria étnica», desabafa na p. 171.

Leitor voraz, José Teixeira sentiu urgência em passar a escrito o que ia experimentando naquele seu desterro voluntário, tão longe dos Olivais onde em miúdo se deliciava com as aventuras do D'Artagnan e do Corsário Negro.

Em Maputo, foi um dos pioneiros da blogosfera portuguesa. Imprimindo-lhe marca autoral inconfundível, compondo uma persona em larga medida inspirada noutro dos seus heróis da banda desenhada: o Capitão Haddock, genial criação de Hergé. Sujeito iracundo mas magnânimo, cultor do vernáculo, utente da palavra de ponta-e-mola, bebedor impenitente, irredutível na certeza de que a amizade é um posto, intranquilo por natureza, alguém que tão depressa está como não está.

Defensor convicto de causas perdidas, no fundo «as únicas por que vale a pena lutar».

 

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Esta persona tem traços expostos em profusão nas páginas de Torna-Viagem. Estamos perante um ateu assumido, muito preocupado com a erosão do tempo (confessava já sentir-se «velho» antes dos 40 anos), sportinguista militante mas capaz de se emocionar quando conheceu Mário Esteves Coluna, glória eterna do Benfica.

De esmerado estilo, com sintaxe inconfundível, tenaz opositor à mutilação de consoantes, contraditório sempre que lhe apetece - até na prosa semeada de arcaísmos e neologismos em proporções idênticas. Sabendo captar na escrita o tom da fala. Que também tem sexo e género e cor.

José Flávio Pimentel Teixeira - Zezé para os amigos íntimos, Zé para parceiros esporádicos, Flávio para antigos condiscípulos da faculdade, «doutor Teixeira» em ocasiões solenes, mais em Maputo (onde foi agraciado como comendador, segundo recorda numa divertida crónica) do que na terra natal. 

Tal como Camões e Fernão Mendes Pinto, entre tantos outros, um torna-viagem: cumpridas quase duas décadas em Moçambique, novo desterro voluntário, desta vez no retorno à «Pátria Amada» (como observa, com assinalável ironia). Após ter sido europeu em África, ei-lo agora com muito de africano em Lisboa, até ao nível do vocabulário que assume como património pessoal.

Corto Maltese fechando um círculo. Que pode voltar a abrir-se, nunca se sabe.

 

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Lago Niassa

 

Cerca de dois terços destes textos têm ambiência moçambicana: agrupam-se sob a epígrafe "A Oeste do Canal". Contagiados pela sua vibração vital, acompanhamos o autor de descoberta em descoberta. Eis a maior de todas: ainda é possível viver aventuras à moda antiga no plácido mundo contemporâneo.

Aventuras como a do nascimento da "nação arco-íris" naquela África do Sul de 1994, em que Nelson Mandela, de regresso ao convívio com os seus conterrâneos num estádio repleto de apoiantes, inicia o discurso em africânder, deixando evidente que o trilho a seguir era o da reconciliação nacional. José Teixeira estava lá, integrando a equipa de observadores credenciados para observar o processo eleitoral: não podia ter sido mais empolgante o seu baptismo de África.

Viajamos com ele às aldeias do Norte, tão esquecidas do poder central, tão abandonadas à sua sorte, sulcadas pela pobreza endémica. Deslumbramo-nos através da sua prosa com a beleza perene do Lago Niassa, dos areais de Pemba. Compartilhamos da sua parca refeição em Montepuez: «galinha macua no restaurante do João, tempos em que não havia electricidade daí que cervejas várias e quentes para ganhar embalo, esse para a árdua tarefa de roer o bicho.» (p. 17)

Angustiamo-nos, tal como ele, ao ver a Ilha de Moçambique, catalogada como património da UNESCO, ameaçar ruína. Enquanto aquele «pesado organismo pejado de funcionários políticos embrenhados nas suas agendas globais» nem consegue obter fundos para ali manter aberto o seu escritório.

 

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Ilha de Moçambique

 

Comecei este texto aludindo a Torna-Viagem como recolha de crónicas. Mas dou um passo adiante: é mais do que isso. Estamos em larga medida perante verdadeiros contos, dignos de figurar numa antologia do género em língua portuguesa.

Destaco alguns, sugestivos logo pelos títulos: «Nas cheias do Zambeze»; «Na aldeia»; «O camião»; «On the road»; «Um símio em calções»; «O apito»; «As cores na véspera do eclipse»; e o delicioso «Che Guevara na Feira Popular». Além dos admiráveis «Limpopo» e «As estradas do Niassa», inscritos na linhagem de um Ernest Hemingway. Ou «Na torre de anúncios», já retornado aos Olivais, na ressaca da aventura africana.

Entre os imperdíveis, «Autobiografia ideológica»: réplica sui generis a quem costuma acusá-lo de reaccionário. Também o tocante «O meu irmão». E, acima de todos, «Marjorie, o meu primeiro amor» - apaixonado hino em prosa à BD, forma de expressão artística que fascina crianças dos 7 aos 77 anos.

Alguns são comoventes. Como um dos mais breves, que singelamente o autor intitula «A despedida». Em Setembro de 2014 almoça pela última vez em Maputo com a filha pré-adolescente, Carolina, e um casal amigo. Citando o poeta Rui Knopfli, outro torna-viagem: «Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon / e olha-me, obliquamente, nos olhos: / "Não voltas mais?" Digo-lhe só que não.»

Resta-lhe, semanas decorridas, sentir-se «turista na própria cidade», no melancólico regresso a Lisboa. Confissão impressa na segunda parte da obra, intitulada "Ocaso Boreal".

 

Podia também fazer seus estes outros versos de Knopfli: «Cansados de tantas pátrias, de pátrias / rejeitados, na pátria indesejados, /silentes volvemos, vultos espectrais / no mar lento de negrume e escombros, / ao cais cinzento do destino original.»

Mas outro destino o aguarda: transformar em literatura a vasta experiência vivida. A primeira etapa acaba de cumprir-se aqui.

Leituras

Pedro Correia, 14.08.24

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«Conhecemos esta pedra apodíctica por debaixo dos nossos pés. Aquele dogmático Sol por cima das nossas cabeças. O mundo dos sonhos, a agonia do amor e a presciência da morte. É tudo o que conhecemos.»

Edward Abbey, O Gangue da Chave-Inglesa (1975), p. 477

Ed. Antígona, 2019. Tradução de José Miguel Silva

Leituras

Pedro Correia, 21.07.24

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«O povo sempre foi cornudo e continua cornudo: a diferença é que o fascismo pendurava só uma bandeira nos cornos do povo e a democracia permite que cada um pendure a sua, da cor que mais lhe agrada, nos seus próprios cornos... Não são apenas alguns homens que nascem cornudos, são também povos inteiros; cornudos por antiguidade, geração após geração.»

Leonardo Sciascia, O Dia da Coruja (1961), p. 56

Ed. Presença, 2024. Tradução de Filipe Guerra

No "Gambrinus" Conversando Sobre Livros

jpt, 18.07.24

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O dia fora péssimo, acometera-me uma irritação gigantesca - desnecessária de injusta que tanto a senti -, nisso um gigantesco pico de tensão, tamanho que  me ocorrera, ainda que militante anti-hipocondríaco seja, um "será isto um enfarte?". Mas bom amigo havia-me desafiado para ir petiscar jantar e não me neguei, num "navegar é preciso...", urge viver a vida, parca que esta seja, e sempre na crença de que o bom convívio é bálsamo.  E assim acorri ao "Gambrinus", o balcão lendário, no qual não aportava desde o covid, malvado.

Está o estabelecimento como sempre esteve, excelente! E nisso o que este - cada vez mais  frugal - cliente realça é a qualidade do serviço, a elegância sem mesuras, a atenção acolhedora, a boa educação para isso sumarizar. Cada vez mais rara na cidade, massificada e gentrificada, assim boçalizada. Fomos ambos parcimoniosos, ele bebendo cerveja de pressão mesclada, ali dita "mestiça" - "já não se pode dizer mulata, pá!", esclareceu-me, sábio [Adenda: de imediato recebo nota de um amigo, verdadeiro veterano e sábio: e diz-me ele, "não era nem mulata nem mestiça, era um "gambrinus"!!" Obrigado, Nuno, temos de lá ir "antes que a gente morra"]. E eu fiquei-me na clássica "loura", a qual também mudou de epíteto, é agora remediada como "branca", derivas até paradoxais da actual higiene semântica. Entretanto, ocorreram-nos umas importantes torradinhas debruadas a fino presunto, que por si só justificariam a visita. E cada um de nós enfrentou um trio de croquetes, esses ex-líbris da casa, deliciosos como sempre o foram, satisfazendo o agora também ao convocarem laivos de memórias de incursões no antanho, naqueles apetites juniores ali mesmo recompensados. Este decorrer exagerou-nos a gula, e por isso coroámos o repasto com um prego per capita, "meio-termo" como o deve ser, cuja definição apropriada me exigiria o socorro de um qualquer dicionário de adjectivos, dada a extrema compostura do que me foi apresentado.