![e410b0ad-b057-47d6-a0f8-684365bc1ac9.jpg]()
Eu sei que estamos a meio do ano, não é tempo para balanços. Mas por motivos vários não pude trazer antes o das minhas leituras de 2024. Referindo-me, em concreto, às melhores obras literárias, de vários géneros, que me passaram pelas mãos no ano passado.
Confirmo agora: li 85 livros completos, sem fazer oscilar muito a média da década. Em dose menos elevada do que em 2020 e 2021, quando li duzentos - uma centena em cada ano, nesses tempos que propiciavam poucas saídas e quase nenhumas viagens devido à pandemia. Mais próxima de 2022, ano do desejável e tão ansiado desconfinamento, quando me fiquei pelos 88. E claramente acima dos 71 lidos em 2023.
Deixo ali em baixo as doze obras que mais me empolgaram, por motivos diversos, em 2024. Anotando, de passagem, que certos títulos acumulados perto da minha cabeceira voltaram a ficar adiados: Herzog - Um Homem do Nosso Tempo (Saul Bellow), A Piada Infinita (David Foster Wallace), Na Minha Morte (William Faulkner), Os Sonâmbulos (Hermann Broch), Auto-de-Fé (Elias Canetti), A Consciência de Zeno (Italo Zvevo) e Rua Principal (Sinclair Lewis).
Isto só nos romances. Porque nos livros de História ou ensaio permanecem por ler vários outros. Estes, por exemplo: Jerusalém, de Simon Sebag Montefiore (657 pp.), Rússia - Revolução e Guerra Civil 1917-1921, de Anthony Beevor (671 pp.), O Novo Czar - Ascensão e Reinado de Vladimir Putin, de Steven Lee Myers (670 pp.), Mao - A História Desconhecida, de Jung Chang (803 pp.), O Século de Sartre, de Bernard-Henry Lévy (712 pp.) e Entrevistas, de Jorge de Sena (483 pp.).
Muitas páginas, pouco tempo. Que é o nosso bem mais precioso. Não se iludam: vamos tomando consciência disto a cada ano que passa.
Seguem breves apontamentos dedicados a cada um destes doze. Por ordem alfabética: é a que prefiro.
................................................................
A CASA DAS BELAS ADORMECIDAS, de Yasunari Kawabata (1961). Espantosa meditação sobre o sexo, a infância, a velhice, a vida e a morte nesta novela carregada de simbolismo sobre um homem de 67 anos que procura a juventude perdida frequentando uma estranha casa nocturna onde paga sonos sobressaltados partilhando o leito com jovens adormecidas. Prosa poética, escrita com perfeição quase inultrapassável nesta obra tingida de melancolia crepuscular. Decorre no Japão, em época imprecisa, mas podia situar-se noutro quadrante porque fala de fantasmas que rondam tantos de nós. Do Nobel de 1968. Tradução de Luís Pignatelli. Edição D. Quixote.
COMO ESCREVER, de Miguel Esteves Cardoso (2024). Abundam hoje os livros de "escrita criativa", assinados por gente com reduzida aptidão tanto para escrever como para ensinar. Um dos mais influentes e experientes cronistas portugueses, com suave intenção irónica, desmonta nas entrelinhas esses manuais que enxameiam as prateleiras. E diz-nos, muito a sério, como tudo deve começar. Terá sido assim com ele ao vencer pela primeira vez o fantasma da folha em branco. Passo a passo, sem ter medo. Edição Bertrand.
KAPUTT, de Curzio Malaparte (1944). Uma das obras mais pungentes, dolorosas e originais sobre a II Guerra Mundial, cujos ecos voltam a assombrar a Europa. Malaparte cria aqui um género literário que viria a chamar-se "novo jornalismo" - reunindo crónica, reportagem, testemunho directo e óbvia efabulação com tintas de realismo mágico. O horror da guerra sempre em pano de fundo. Escrita superior, mesmo em trechos quase insuportáveis. Edição Cavalo de Ferro, recuperando e actualizando tradução de Amândio César.
JORNADA PARA A NOITE, de Eugene O'Neill (1956). Está em lugar cimeiro entre os dramas teatrais do século XX. Centrado numa família cheia de cicatrizes: droga, alcoolismo, desamor. Mãe, pai e dois filhos encerrados numa mansão povoada de memórias funestas que vão surgindo à superfície. A acção decorre num "medonho dia em quatro actos e cinco quadros", na definição de Jorge de Sena, cuja tradução valoriza ainda mais esta obra-prima de O'Neill, Nobel da Literatura em 1936. O cunho autobiográfico da peça, escrita em 1941, era óbvio ao ponto de levar o dramaturgo a exigir que só viesse a público após a sua morte, em 1953. Com aplauso generalizado e ampliado pela adaptação ao cinema por Sidney Lumet, em 1962, com Katharine Hepburn e Jason Robards nos papéis do casal Tyrone. Edição Cotovia.
LOS SANTOS INOCENTES de Miguel Delibes (1981). Prémio Cervantes de 1993, Delibes (1920-2010) continua ignorado pelas editoras portuguesas. Omissão imperdoável. Uma das suas melhores obras é esta novela desenrolada na Castela rural do início dos anos 60, próxima da fronteira portuguesa - com os seus fantasmas, os seus atavismos, as suas obsessões. Todos os condimentos do drama clássico, linguagem depurada com mão de mestre. Deu filme homónimo, realizado por Mario Camus e premiado em Cannes. Edição Planeta (Barcelona).
MATADOURO CINCO, de Kurt Vonnegut (1969). Romance em cenário bélico percorrido pela frase-chave "é a vida". Sempre com pinceladas de humor sombrio no rasto do anti-herói, Billy Pilgrim, americano mobilizado para a II Guerra Mundial e feito prisioneiro dos alemães em Fevereiro de 1945. O autor cruza literatura de guerra com ficção científica, de modo criativo, e marca também presença no enredo - ele que testemunhou o massacre de Dresden em tempo real. O estilo, novidade quase absoluta para a época, não terá hoje o mesmo impacto. Mas ainda é obra marcante, também como reflexão sobre a vida. Tradução de Miguel Cardoso. Edição Alfaguara.
O GANGUE DA CHAVE-INGLESA, de Edward Abbey (1975). Originalíssimo romance norte-americano, com vários níveis de leitura - desde as típicas bravatas dignas de qualquer livro de aventuras, com toque juvenil, até um manifesto ecológico contra a falsa modernidade. Sem perder o fundo humanista nem deixar de ser um retrato genuíno da época em que surgiu, assinalada nos EUA pela contracultura e pelo pesadelo da guerra do Vietname que se arrastava sem fim à vista. Exemplar tradução de José Miguel Silva. Edição Antígona.
O OLHAR MAIS AZUL, de Toni Morrison (1970). Aqui testemunhamos a perda da inocência numa comunidade cheia de racismo e preconceitos diversos na chamada "América profunda" (Ohio), no início dos anos 40, quando o segregacionismo ali imperava e as memórias esclavagistas mal se tinham dissipado. Partindo dos olhares de três crianças negras - uma das quais é a menina que sonha ter olhos azuis, como as deslumbrantes actrizes que ela observa nas revistas. Comovente romance de estreia da escritora que receberia o Nobel em 1993. Tradução de Tânia Ganho. Edição Presença.
O OUVIDOR DO BRASIL, de Ruy Castro (2024). Conjunto de 99 crónicas originalmente publicadas na imprensa tendo como denominador comum um nome maior da música popular do século XX: Antônio Carlos Jobim (1927-1994). O melhor biógrafo brasileiro desvenda aqui segredos de Jobim com uma leveza de escrita que nunca deixa de ser profunda. Mergulhamos na paisagem artística e boémia do Rio de Janeiro e no inigualável mundo da bossa nova, precioso contributo do Brasil para o mundo. Edição Tinta da China.
SAGARANA, de João Guimarães Rosa (1946). Extraordinário livro de contos ambientados no sertão de Minas Gerais nas décadas iniciais do século XX. Guimarães Rosa regressa aqui ao mundo primordial e primitivo da sua infância, recriando-o com admirável talento literário. Já tomando balanço para Grande Sertão: Veredas, romance que viria a imortalizá-lo dez anos depois. São oito histórias redigidas com sábio ouvido para captar falares regionais, sugestivas metáforas e um vasto cortejo de neologismos, à semelhança do que Aquilino Ribeiro fazia na mesma altura em Portugal. Histórias povoadas de personagens castiças, confrontadas com a inclemência da natureza e rudes paixões humanas. "O Burrinho Pedrês", "O Duelo", "O Regresso do Marido Pródigo" e "A Hora e Vez de Augusto Matraga" são tão vibrantes hoje como quando foram escritas. Edição Nova Fronteira (Rio de Janeiro).
TEMPESTADES DE AÇO, de Ernst Jünger (1920). Talvez o melhor livro jamais escrito sobre a I Guerra Mundial, apesar da forte concorrência de autores como Ernest Hemingway e Erich Maria Remarque. Estamos envolvidos nas trincheiras, no lodo e na lama, nas longas esperas ansiosas, nos combates mais ferozes. Com fome, sede e frio. Chegamos a sentir repugnância pelo género humano e a duvidar de todas as crenças e todas as utopias. Entregues à missão primordial de sobreviver. Reportagem-romance ou romance-reportagem do grande prosador e pensador alemão? Os rótulos pouco importam. A ler ou reler com urgência. Tradução: Maria José Segismundo Santos. Edição Guerra & Paz.
TORNA-VIAGEM, de José Pimentel Teixeira (2024). Digressão literária, no tempo e no espaço, centrada na experiência deste antropólogo - um dos autores do DELITO DE OPINIÃO - como residente de longa duração em Moçambique, país que abraçou como segunda pátria. Espécie de Ulisses do avesso, agora no regresso melancólico ao torrão natal. Crónicas de torna-viagem, antigo termo de ressonância náutica criado a partir das odisseias dos portugueses pelo mundo. Algumas são, de facto, excelentes contos, justificando futura publicação autónoma com essa etiqueta. Edição Bookmundo.