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Delito de Opinião

Rumor Civil

jpt, 19.03.24

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Cada vez menos leio ficção ou poesia. E vou lendo estas colectâneas do passado, crónicas ou (é este o caso) textos de opinião - a quem o novo cânone chama também "crónicas". Descubro agora nas estantes este "Rumor Civil", uma colecção de textos de Nuno Brederode dos Santos (1944-2017), publicada pela Relógio d'Água em 1990. Com ele cheguei a privar, escasso convívio intermediado por amigo comum em já enubladas noites no "Procópio", onde ele era figura predominante. Eu ainda jovem, cabelo azeviche, talvez exageradamente radical pois pouco atreito àquele que já então considerava um apparatichk das letras, ele já bastante velho - mais novo do que eu sou agora... Brederode era um fazedor de opiniões, colunista afamado do "Expresso" quando isso era relevante, fervororo paladino socialista, e disso tinha o perfil e o teclado. Escrevia bem e era caústico, alinhado mas caústico, justiça lhe seja feita. E culto, nota-se na leveza - por vezes irónica, outras sarcástica, mas também sensível - com que deixava transparecer o percurso de leituras havidas.

Esta colecção abarca de 1985 a 1990, o primeiro quinquénio do "cavaquismo", e é nisso muito interessante, fazendo recordar o acinte de então. E se alguns textos envelheceram por "de ocasião" em demasia, outros são relevantes por demonstrarem o ambiente cultural (e de cultura política) daquela época, e que tanto persistiu e persiste. Por exemplo, foi de Brederode o abjecto elitismo do "socialismo" maçónico - tão continuado pelos adeptos PS até ao final do mandato de presidencial de Cavaco Silva, e que continuam a repetir em formato avatar, sem pudor e sem abdicarem da caraça "esquerda" - "foi fácil tirar o homem de boliqueime, mas agora não conseguem tirar boliqueime do homem" (121). E é até engraçado ver como em plenos finais dos 80s o reaccionarismo da "esquerda" encartada era tão impante que lhe aplaudiam um texto aviltando a CEE por regulamentar a criação avícola - hoje o homem seria lapidado como CHEGA pelo PAN, mas será conveniente recordar que aquela década foi a da disseminação europeia da sensibilidade política ecológica... mas que no "Portugal da CEE", à Lisboa que abominava "boliqueime" e lia o "Expresso", isso ainda não tinha chegado.

Mas não quero exagerar os remoques diante do livro. Pois ele é precioso não só no que denota como também no que explicita e recorda. Como quando Brederode aponta os que então queriam controlar o acesso às fotocopiadoras, por serem uma tecnologia estratégica... Parece-nos ridículo, agora, essas preocupações em finais dos anos 80s, dos descendentes dos tempos da "outra senhora", os antepassados do socialista José Magalhães, coisas de que nos esquecemos...

Mas mais interessante será recordar, em particular aos agora adeptos do PS, o que dizia em 1987 o socialista Brederode dos Santos no "Expresso". Tão interessante que deixo a longa citação: "Aquilo que, de 1985 [eleição de Cavaco Silva] para cá, mudou foi o modelo de relacionamento entre o poder político e o poder económico - que passou do piropo avulso e do apalpão furtivo a algo de qualitativamente diverso que nos ameaça com a mancebia incestuosa. (...)

Não foi a corrupção que nasceu: já havia. Não foi o compadrio incidental deste alto funcionário ou daquele político - já havia também. Foi a descoberta, por alguns dos grupos económicos que ganharam entretanto peso e dimensão, da lógica e da valia instrumental dos lobbies: é possível antecipar, inflectir, protelar ou impedir as decisões políticas por forma a melhor corresponder aos nossos interesses. Mais vale uma boa cumplicidade política do que um bom investimento. O jogo é legislativo, administrativo, contabilístico - mas nunca económico, que é do interesse geral. Por isso o lobby não é desenvolvimentista, mas apenas corruptor. Por isso o lobby não visa criar riqueza, mas apenas distribuir melhor em seu proveito aquela que já existe.  O lobby parasita o Estado e o património público, tal como o fazia o empresário afilhado da ditadura..." (114-115).

Para Brederode dos Santos a "esquerda" - entenda-se, principalmente o PS - era virtuosa e a "direita" vil, presa ao "populismo" de Cavaco. Que o PS estivesse incrustado na administração das participações (económicas) do Estado e, então, na governação do "boom" macaense não surge nesta colecção de textos, assim parecendo que irrelevante para o autor. Alguns anos depois deste textos, lá para 1995, deixei de comprar o "Espesso" como então se dizia, não mais acompanhei os ríspidos (vénia) textos do autor. E depois emigrei, deixei de seguir o seu percurso. Não sei assim se alguma vez ele veio a abandonar esta dicotomia, virtude vs vilania, se conseguiu "tirar boliqueime de dentro dele próprio", por assim dizer.

Mas sei uma coisa, os seus camaradas de partido e os seus sucessores na produção de opinião não o leram. Ou, vá lá, não acreditam nele.

Leituras

Pedro Correia, 16.03.24

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«Embora seja possível pensar tais pensamentos, do nada para o nada, a coisa não se resume a isso, há muito mais do que isso, mas que tudo o mais é esse? o céu azul, as árvores onde as folhas crescem? o verbo que era no princípio, como diz a Sagrada Escritura, que permite a uma pessoa compreender coisas profundas e coisas superficiais, que tudo o mais é esse? »

Jon Fosse, Manhã e Noite (2000), p. 14

Ed. Cavalo de Ferro, 2022 (2.ª ed). Tradução de Manuel Alberto Vieira

Leituras

Pedro Correia, 09.03.24

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«Se alguém disser que é mulher, mesmo que não tenha efectuado um processo de mudança de sexo, então deve, de acordo com os militantes trans, ser reconhecido como mulher. As mulheres que recusam aos homens trans agora mulheres o acesso às suas casas de banho, as presas que se queixam quando estes são encerrados com elas, considerando que podem ser agressores sexuais, as atletas cujos recordes são pulverizados por homens biológicos, todas estas mulheres seriam transfóbicas.»

Jean-François Braunstein, A Religião Woke (2022), p. 95

Ed. Guerra & Paz, 2023. Tradução de Ana Pinto Mendes. Colecção Os Livros Não se Rendem

Leituras

Pedro Correia, 22.02.24

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«"Liberdade" significa que as palavras, a expressão, não devem ser manietadas por nenhuma censura oficial imposta pelo governo, pela polícia, por um tribunal ou outro órgão intrometido validado pelo Estado. Nem devem ser restringidas por uma censura oficiosa exercida por meios de código de discurso e de "zonas de segurança" universitárias, ciberturbas de cruzados contra tudo quanto é ofensivo, ou fanáticos islâmicos que desatam a disparar contra os blasfemos. Nem devem ser sacrificadas pela autocensura cobarde de intelectuais sem espinha dorsal.»

Mike Hume, Direito a Ofender (2015), p. 34

Ed. Tinta da China, 2016. Tradução de Rita Almeida Simões

O Manifesto d'Os Lusíadas

jpt, 21.02.24

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Um belíssimo amigo, meu (bastante) mais-velho, morreu já há cerca de 15 anos. Mas vem-se mantendo presente nas nossas conversas, nas cíclicas alusões à sua verve, seu sarcasmo até ternurento, suas atitudes convocatórias... Agora, há meses, morreu a sua viúva. As filhas, cada uma em seu saudável rumo, desfazem a casa. E nisso dividem entre si a vasta biblioteca do casal, segundo os seus múltiplos interesses respectivos. Depois sou chamado, amigo mais-novo do saudoso pai, para "ir ver" "se há alguma coisa que te interesse...". Acorro até cerimonioso, mas sou admoestado num mui franco "leva tudo o que queiras". Saio ajoujado. E deliciado.
 
E enceto os sacos com este opúsculo, que desconhecia, O Manifesto d'"Os Lusíadas", a prelecção de Adriano Moreira quando recebeu o honoris causa na Universidade do Amazonas (Manaus), naquele 1972 centenário da publicação da epopeia de Camões. Vigorosas 50 páginas, demonstrativas do pujante intelecto de Moreira. E que a mim, leigo que sou em Camões, me despertam a curiosidade sobre as causas do efectivo silêncio nacional, estatal e não só, neste quinto centenário do nascimento do poeta. Ou seja, convocando-me a outras leituras sobre a sua obra e sobre a utilização que dele foi sendo feita em diferentes épocas históricas.
 
Mas, e o que é mais importante, reavivando-me a memória do seu antigo dono. Por isso, Coronel, aqui bebo um uísque consigo enquanto passeio entre livros.

Ler (31)

Os melhores livros do meu ano - III

Pedro Correia, 03.02.24

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Há os livros pequenos, os livros grandes e os livros gigantes. Os primeiros, por motivos que ignoro, vão-se tornando cada vez mais raros. Lamento, pois alguns dos mais deslumbrantes livros que li na adolescência eram de formato breve, prodígios de concisão, ainda mais admiráveis por não esbanjarem uma palavra. Obras que fixei para sempre, que transporto comigo na memória grata de leitor atento: A Metamorfose, de Kafka; A Peste, de Camus; O Velho e o Mar, de Hemingway; O Triunfo dos Porcos, de Orwell. Também de autores portugueses. Recordo, por exemplo, O Barão (Branquinho da Fonseca), O Anjo Ancorado (José Cardoso Pires), Casa na Duna (Carlos de Oliveira), Angústia para o Jantar (Luís de Sttau Monteiro), até O Que Diz Molero (Dinis Machado). Sem esquecer O Mandarim (Eça de Queiroz).

A partir de certa altura, quase todos os escritores abandonaram o formato curto e dedicaram-se em exclusivo à escrita mastodôntica, julgando-se émulos de Victor Hugo (Os Miseráveis), Herman Melville (Moby Dick) ou Marcel Proust (Em Busca do Tempo Perdido). Tenho junto a mim três desses romances de vasta dimensão, que exigem mergulho prolongado, disponibilidade total: Uma Casa para Mr. Biswas, de V. S. Naipaul (759 páginas), Rua Principal, de Sinclair Lewis (459 páginas) e Auto de Fé, de Elias Canetti (525 páginas).

Entre os calhamaços à minha espera, além dos que já mencionei aqui, incluem-se Breve História da Filosofia Moderna, de Roger Scruton (Guerra & Paz, 343 pp), Neoconservadorismo, de Irving Kristol (Quetzal, 482 pp) e Lenine, o Ditador, de Victor Sebestyen (Objectiva, 662 pp). Quase 1500 páginas, só nestes três.

Há-de chegar o tempo deles  Agora fica o registo dos dez melhores romances que li em 2023 - todos de autores estrangeiros. Alguns estavam há muito na minha lista de leituras prioritárias, foram sendo ultrapassados por motivos que já não recordo.

Ler é uma actividade sinuosa, com os seus rituais indecifráveis e sujeita a contingências de vária ordem. Pegamos com entusiasmo num livro que acaba de nos chegar às mãos enquanto vamos ignorando outros, que nos acompanham em resignado silêncio durante anos. Como se tivesse de ser mesmo assim, sem que saibamos explicar porquê.

 

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A ESTRADA, de Corman McCarthy (2006). Impressionante novela que nos transporta a um mundo apocalíptico, na sequência de uma devastação nuclear. A luta pela sobrevivência domina o quotidiano dos raros sobreviventes e toda a crença num futuro promissor foi reduzida a cinzas. O estilo de escrita adapta-se ao tema em comunhão perfeita: é uma das ficções literárias mais marcantes deste século XXI. Edição Relógio d' Água.

 

ANIQUILAÇÃO, de Michel Houellebecq (2022). Até que ponto o mundo que conhecíamos na próspera fortaleza europeia já morreu, restando-nos apenas a sombra de uma ilusão que ainda nos sugere estar vivo? Interrogação do polémico autor francês neste perturbante romance que nos fala de política, religião, família, corrupção moral, decrepitude e morte. Sempre com mais perguntas do que respostas. Edição Alfaguara.

 

GUERRA E PAZ, de Lev Tolstoi (1869). O clássico dos clássicos. Tolstoi rivaliza com historiadores ao descrever com espantosa minúcia o impacto das invasões napoleónicas na Rússia do início do século XIX. Alternando vívidos quadros bélicos com a ansiedade palaciana de uma aristocracia ameaçada pelo alucinante carisma de Bonaparte. E assim, várias décadas depois dos factos, revolucionou também a literatura. Edição Inquérito.

 

IMPÉRIO, de Gore Vidal (1987). Decalque anacrónico do romance oitocentista que nos envolve na atmosfera política e jornalística dos EUA no final do século XIX e da primeira década do século XX, durante os mandatos dos presidentes William McKinley e Theodore Roosevelt, com a sombra gigantesca de Lincoln a pairar com irresistível nostalgia. Um dos pontos culminantes da ficção norte-americana das últimas décadas. Edição Presença.

 

LUZ EM AGOSTO, de William Faulkner (1932). Nobel da Literatura em 1949, Faulkner legou-nos uma porção de admiráveis romances sobre o sul profundo dos EUA, terra seca e dilacerada por confliltos raciais, onde o fanatismo religioso era corrente, o rasto da civilização parecia longínquo e preconceitos de toda a espécie impunham uma lei não escrita, conduzindo com frequência à morte. Obra-prima absoluta. Edição Dom Quixote.

 

O HOMEM DO CASTELO ALTO, de Philip K. Dick (1962). Distopia regressiva, opus magnum de um dos principais autores da chamada literatura de antecipação. Aqui, por uma vez, reescrevendo o passado. Com base neste mote: e se as potências do Eixo tivessem vencido a II Guerra Mundial, com a Alemanha e o Japão a dividirem os despojos do planeta? Ainda dá muito que pensar, a tantos anos de distância. Edição Relógio d' Água.

 

O OLHAR MAIS AZUL, de Toni Morrison (1970). Romance de estreia da escritora que viria a ser galardoada em 1993 com o Prémio Nobel. Começou muito bem: é um poderoso libelo anti-racista. Sem chavões, sem usar a literatura para fazer contrabando de cartilhas políticas. A propósito de duas meninas negras, uma das quais sonha ter olhos azuis para ficar parecida com as estrelas de cinema há quase cem anos, nos EUA. Edição Presença.

 

PAISAGEM DE OUTONO, de Leonardo Padura (1998). Último título do "Quarteto de Havana": romances que funcionam em separado mas devem ser lidos em sequência. Literatura policial, sim, mas não só. A pretexto de um crime, investigado pelo detective (não privado) Mario Conde, Padura faz a autópsia da sociedade cubana, envolta numa atmosfera cinzenta e opressiva: a esperança rumou a parte incerta. Edição Porto Editora.

 

PARALELO 42, de John dos Passos (1930). Hemingway, que não era de elogio fácil, não hesitou em classificá-lo assim: «Sem dúvida, o maior romance escrito nos Estados Unidos nos últimos cem anos.» Merece o qualificativo: é um original mosaico da sociedade norte-americana nas duas décadas iniciais do século XX, centrado em cinco personagens, com as suas luzes e sombras. Em trepidante toada modernista. Edição Presença.

 

PROFESSOR UNRAT, de Heinrich Mann (1905). Originalíssimo romance, ousado para a época, em torno da degradação moral de um professor, eminente burguês de uma cidade alemã obcecado por uma cantora de cabaré. Personagens credíveis, diálogos mordazes, sátira social muito bem conseguida ao quotidiano do Império Alemão, já em fase crepuscular. Serviu de inspiração ao célebre filme O Anjo Azul (1930). Edição E-primatur.

Ler (30)

Os melhores livros do meu ano - II

Pedro Correia, 26.01.24

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No ano que passou, raros terão sido os dias em que não li algum livro durante pelo menos uns tantos minutos. Em qualquer lado, em qualquer ocasião.

Ao contrário do que tanta gente afirma, confessando-se incapaz de ler na cama, ou na praia, ou em transportes, ou ao sol, ou à sombra, eu não sou nada esquisito. Vou lendo onde calha, aproveitando o melhor que posso.

Haverá melhor maneira de desfrutar momentos livres do que mergulharmos nesses mundos alternativos que a escrita literária nos proporciona?

 

Dos livros que fui lendo, privilegiei a ficção. Para contrastar com as numerosas leituras de âmbito profissional que sou forçado a fazer.

Leio sobretudo à noite. Vinte minutos, meia hora. Se o livro for interessante, o relógio deixa de contar: sigo com ele noite adiante, várias vezes acompanha-me madrugada fora. Sou pouco dado a insónias, mas quando tenho alguma o responsável máximo é quase sempre um livro. Por ser demasiado interessante, por me prender em excesso, por não me apetecer parar ali.

Hei-de falar da escrita de ficção que me acompanhou em 2023 no próximo - e último - texto desta curta série. Li bastante mais autores estrangeiros do que portugueses. Tolstoi, Dostoievski, Conrad, Faulkner, Borges, Thomas Mann, John dos Passos, Doris Lessing, Gore Vidal, Milan Kundera (falecido a 11 de Julho). O norueguês Jon Fosse, recentemente galardoado com o Nobel. Algumas obras-primas.

Falarei delas para a semana. Hoje destaco cinco livros de autores portugueses de diversos géneros: crónica, biografia, ensaio político, ensaio literário. Todas recentes, todas dignas de atenção.

 

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BIBLIOTECA, de Pedro Mexia (2015). Criteriosa recolha de textos de um dos nossos melhores cronistas, que tem a vantagem acrescida de cultivar uma paixão genuína pelos livros. Em evidente contraste com certas eminências académicas, que usam o tema só para exibir erudição postiça. Aqui se confessam amores por obras de escritores diversos, vários dos quais fora de moda. Não é defeito: é virtude. Edição Tinta da China.

 

COMO PERDER UMA ELEIÇÃO, de Luís Paixão Martins (2023). Todos os políticos deviam ler este livro. Também útil para o cidadão comum que se interessa pela política e assume convictamente a sua condição de eleitor. Escrito por quem conhece bem os bastidores da política sem se deslumbrar com ela. Até por não ignorar que «todas as carreiras políticas terminam em fracasso», como Churchill alertou. Edição Zigurate.

 

O DEVER DE DESLUMBRAR, de Filipa Martins (2023). Natália Correia desvendada até onde foi possível nesta biografia escrita com elegância e sem esbanjar vénias à escritora que dividiu opiniões pela sua verve vulcânica. Figura entre os melhores títulos do género publicados em anos recentes, na linha das biografias de Alexandre O'Neill (por Maria Antónia Oliveira) e José Cardoso Pires (por Bruno Vieira Amaral). Edição Contraponto.

 

«O MAIS SACANA POSSÍVEL», de António Araújo (2022). A mítica revista Almanaque só teve 18 edições, de 1959 a 1961. Mas deixou um rasto que foi perdurando por ter sobressaltado algum imobilismo salazarista. Num registo não destituído de ironia, aqui se traça o percurso acidentado dessa publicação que reuniu uns tantos intelectuais boémios daquela irrepetível Lisboa - meio cosmopolita, meio provinciana. Edição Tinta da China.

 

TODOS OS LUGARES SÃO DE FALA, de Paulo Nogueira (2022). Um dos melhores ensaios publicados entre nós sobre a famigerada tentação de censurar obras de arte em nome de novas ideologias identitárias que pretendem reescrever a História, castrar a linguagem e no limite guilhotinar o pensamento. Felizmente há sempre alguém que diz não, como este jornalista brasileiro que viveu muitos anos em Portugal. Edição Guerra & Paz.

Ler (29)

Os melhores livros do meu ano - I

Pedro Correia, 19.01.24

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Um ano terminou, outro começa. Mas algo nunca se interrompe, cá por casa: o fluxo de leituras. Mesmo que os filmes sejam vistos em menos quantidade e até várias séries televisivas tenham ficado por consumir - com uma excepção que tenciono mencionar aqui dentro de dias, antes que a agitação política volte a dominar-nos o quotidiano. A leitura merece prioridade.

De qualquer modo, por motivos muito pessoais, em 2023 li menos do que gostaria. E bastante menos do que nos dois anos anteriores. Em 2020 e 2021, conforme dei nota aqui, li 200 livros completos - uma centena em cada ano, nesses tempos que propiciavam poucas saídas e quase nenhumas viagens devido à pandemia. O que constituiu um incentivo suplementar à leitura.

Em 2022, já com o vírus posto à distância, reduzi um pouco o caudal de livros em que mergulhei de fio a pavio durante esses doze meses: foram 88. Mais, apesar de tudo, do que os do ano recém-terminado: desta vez fiquei-me por 70. Quase seis por mês, em média, apesar de tudo. Num país em que 58,1% dos nossos compatriotas (alguns de vocês, presumo) ficaram totalmente em branco: nem um livro para amostra foram capazes de ler em 2022, último ano em que há estatísticas.

Estatísticas que nos envergonham. E que nos deixam atrás de vários países do chamado Terceiro Mundo.

 

Como em anos anteriores, faço agora um balanço das minhas leituras de 2023. Dividindo-o em três partes: os cinco melhores ensaios de autores estrangeiros (já hoje, aqui em baixo), os cinco melhores livros de autores portugueses, os dez melhores romances (todos estrangeiros, em tradução).

Breve apontamento dedicado a cada um. Por ordem alfabética: é a que prefiro.

 

Entretanto, olho para o que se amontoa à minha cabeceira. Livros de centenas de páginas, daqueles que nos absorvem durante semanas ou até meses, exigindo grande parte da nossa atenção, quase em exclusivo.

Eis alguns: Jerusalém, de Simon Sebag Montefiore (657 pp.), Rússia - Revolução e Guerra Civil 1917-1921, de Anthony Beevor (671 pp.), O Novo Czar - Ascensão e Reinado de Vladimir Putin, de Steven Lee Myers (670 pp.), Mao - A História Desconhecida, de Jung Chang (803 pp.), Liderança, de Henry Kissinger (559 pp, das quais já li cerca de metade), O Século de Sartre, de Bernard-Henry Lévy (712 pp.) e Entrevistas, de Jorge de Sena (483 pp.). Sem esquecer Escritores y Artistas Bajo el Comunismo, de Manuel Florentín (910 pp.), que mão amiga acaba de trazer-me de Madrid.

Só estes já são programa para um ano inteiro.

 

Verifico entretanto que vários títulos que constavam do meu plano de leituras para 2023 permaneceram em pousio: ainda não foi desta que lhes peguei. Anoto-os no parágrafo que vai seguir-se, como uma espécie de incentivo suplementar a mim próprio.

Uma Casa Para Mr. Biswas (V. S. Naipaul), Herzog - Um Homem do Nosso Tempo (Saul Bellow), A Piada Infinita (David Foster Wallace), Na Minha Morte (William Faulkner), O Templo da Aurora (Yukio Mishima), Sagarana (Guimarães Rosa), Os Sonâmbulos (Hermann Broch), Auto-de-Fé (Elias Canetti), A Consciência de Zeno (Italo Zvevo), Rua Principal (Sinclair Lewis), Este Lado do Paraiso (Scott Fitzgerald). 

Será desta que os abrirei?

Daqui a um ano, se não for antes, voltamos a conversar.

 

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A BIBLIOTECA DE ESTALINE, de Geoffrey Roberts (2022). Minuciosa investigação deste historiador irlandês ao que resta do vasto espólio bibliográfico do tirano soviético, leitor compulsivo. Estaline não se limitava a ler: fazia constantes anotações nas obras que tinha sempre à mão, tanto no Kremlin como na sua confortável mansão de campo. Lia poesia e conhecia grande parte dos clássicos da literatura. Edição Zigurate.

 

A RELIGIÃO WOKE, de Jean-François Braunstein (2022). Talvez o melhor livro publicado entre nós, até ao momento, sobre as novas censuras que alastram em meios académicos e jornalísticos em nome de boas causas que servem de pretexto para torpedear direitos e liberdades. Louvável liberdade de pensamento expressa nestas páginas: o historiador francês não hesita em navegar contra a corrente. Edição Guerra & Paz.

 

A VIDA POR ESCRITO, de Ruy Castro (2022). Jornalista de formação, este talentoso carioca nascido em Minas é hoje o melhor biógrafo do nosso idioma. Nesta sua mais recente obra enuncia as regras fundamentais da escrita que podem transformar cada biografia num sucesso literário. Com ele tem sido assim - daí ter tantos leitores, não apenas no Brasil mas também em Portugal. Edição Tinta da China.

 

DIREITO A OFENDER, de Mike Hume (2015). Excelente reflexão deste jornalista e colunista britânico sobre os limites cada vez mais rígidos à liberdade de expressão impostos pelo ar do tempo. Como tem sido tragicamente demonstrado em acontecimentos que fazem proliferar o medo: aconteceu com o massacre de Janeiro de 2015 na redacção do Charlie Hebdo, em Paris. Não augura nada de bom. Edição Tinta da China.

 

OH JERUSALÉM, de Dominique Lapierre e Larry Collins (1971). Ao contrário do que alguns supõem, os conflitos na Palestina não começaram em 1948, com a fundação de Israel. São muito anteriores, como demonstra esta obra já clássica. Investigação jornalística sobre aqueles dias do pós-Holocausto, quando a ONU deu luz verde ao nascimento do Estado que serviu de refúgio a um dos povos mais perseguidos da História. Edição Bertrand.

Leituras

Pedro Correia, 13.01.24

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«Talvez o maior legado da wokeness, das teorias críticas pós-modernas, seja que, na sua beligerância intolerante e na sua vitimização censória, elas atomizam e fragmentam cada vez mais a sociedade, minando ou inviabilizando consensos construtivos - por assim dizer, envenenando todos os poços, numa guerra de todos contra todos. A própria "interseccionalidade", em vez de articular e irmanar os idolatrados grupos sociais, redu-los todos a facções mutuamente hostis. Isso porque, para a ideologia de género, as identidades não são todas iguais - algumas são mais iguais do que outras (ou seja: melhores). Quanto mais perfomáticas, mais puro o pedigree.»

Paulo Nogueira, Todos os Lugares São de Fala, p. 167

Ed. Guerra & Paz, 2022. Colecção Livros Vermelhos

Leituras

Pedro Correia, 07.01.24

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«O ser humano se caracteriza, na verdade, por uma grande estupidez. Ele só descobre que um bem é fundamental quando deixa de possuí-lo.»

Rubem Fonseca, Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos (1988),  p. 203

Ed. Publicações Dom Quixote, 1990. Colecção Letras do Brasil, n.º 2

Leituras

Pedro Correia, 01.01.24

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«O tempo humano não anda em círculo, mas avança em linha recta. Por isso o homem não pode ser feliz: a felicidade é desejo de repetição.»

Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser (1984),  p. 318

Ed. Dom Quixote / Editores Reunidos, 1994. Tradução de Joana Varela. Colecção Narrativa Actual, n.º 2

Leituras

Pedro Correia, 31.12.23

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«A tradição bíblica mostra-nos que a felicidade do primeiro homem antes da queda consistia na ausência de trabalho, isto é, na ociosidade. O gosto da ociosidade permaneceu no homem depois da queda, mas a maldição divina continua a pesar sobre ele, não só porque é obrigado a ganhar o pão que come com o suor do rosto, mas ainda porque a sua natureza moral o impede de encontrar contentamento na indolência. Uma voz secreta nos insinua que é culposo entregarmo-nos à preguiça e, entretanto, se o homem pudesse encontrar um estado onde lhe fosse dado sentir que continua a ser útil e a cumprir o seu dever permanecendo inactivo, deparar-se-ia nele uma das condições da primitiva felicidade.»

Leão Tolstoi, Guerra e Paz (1869), volume II, p. 88

Ed. Inquérito, 1957 (3.ª ed) . Tradução de José Marinho

Leituras

Pedro Correia, 29.12.23

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«Não jurarei que qualquer deus exista. Só sei que é grosseiro viver sem deuses. Porque mais importante que os deuses existirem é acreditarmos neles. E mesmo que, existindo, nos ignorem, não sejamos nós a ignorar a sua autoridade primitiva que, nutrindo de segredos as florestas, os rios, os ventos, fez correr o sangue em nossas veias.»

Natália Correia, citada por Filipa Martins em O Dever de Deslumbrar, pp. 501/502

Ed. Contraponto, 2023

Leituras

Pedro Correia, 23.12.23

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«Nós vamos ser felizes! Ninguém o é, ou pelo menos eu nunca encontrei ninguém, mas nós vamos ser.»

Doris Lessing, O Quinto Filho (1988), p. 139

Ed. Círculo de Leitores, 1989. Tradução de Cristina Rodriguez