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Delito de Opinião

Ler (27)

Fechado um livro, saímos dele mais intensos e às vezes até mais felizes

Pedro Correia, 13.10.23

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Os livros estão em movimento perpétuo. Como todos nós, afinal.

Os livros levam-nos onde nenhum meio de transporte nos conduz. Seja de barco, seja de comboio, seja de avião.

Nos livros viajamos no espaço e no tempo. Conhecemos novos mundos, rasgamos horizontes, galgamos fronteiras reais ou imaginárias, conhecemos uma infinidade de pessoas das mais diversas proveniências.

 

Os livros são os mais fiéis e pacientes companheiros de percurso: nunca nos deixam sós.

 

Com eles subimos um rio, nas profundezas do Congo, navegando com o capitão Charles Marlow. Perseguimos uma baleia a bordo de um navio comandado pelo obsessivo capitão Ahab. Fazemos a pescaria da nossa vida logo reduzida a quase nada, ombro a ombro com o velho Santiago ao largo de Cuba.

De manhã deambulamos pelas margens do vasto delta do Mississípi com Huckleberry Finn, à tarde tomamos chá num Verão londrino com Clarissa Dalloway e subimos o Chiado com João da Ega, ao pôr do sol jantamos na mansão de Jay Gatsby.

 

Página a página, testemunhamos a paixão desmedida que une Sarah Miles a Maurice Bendrix nos escombros de Londres durante a guerra. Caminhamos com Mersault sob um sol escaldante numa praia argelina ou sentimos o frio trespassar-nos a pele e os ossos no campo de concentração siberiano onde Ivan Denissovitch vegeta.

Com os livros viajamos em calhambeques de camponeses esfomeados como o que levou -- e levará até aos confins dos séculos graças à imortalidade da literatura -- a família de Tom Joad do Oklahoma para a Califórnia.

Seguimos o Malhadinhas pelas veredas sinuosas das serras beirãs.

Brincamos em Salvador como os capitães da areia, que chegam a homens sem nunca serem meninos.

Descemos com outro capitão, chamado Nemo, às profundezas submarinas.

Arrastamo-nos nas sórdidas vielas da Londres vitoriana com Oliver Twist. Ou nas faiscantes festas novaiorquinas onde Holly Golighly brilha para a eternidade.

Exercemos medicina, como Jivago. Ou a advocacia, como Atticus Finch. Ou o jornalismo, como Santiago Zavala, o Zavalita.

Ou fazemos do segredo a nossa profissão, imitando George Smiley.

 

Enquanto leio, chamo-me D' Artagnan e sou um galante capitão ao serviço da rainha. Cavalgo como Ivanhoe à conquista do coração de Lady Rowena. Transfiguro-me em Fabrizio Del Dongo, cruzando-me com Napoleão em Waterloo. E respondo pelo nome de Sandokan quando navego nos mares da Malásia.

Torno-me Winston Smith e vivo num sistema totalitário. Prendem-me e eu, Joseph K, não faço a menor ideia de qual será o motivo - ter-me-ão confundido com Raskolnikov?

 

Mas mesmo preso eis-me livre nos livros, Phileas Fogg percorrendo o globo em 80 dias, rumando ao planeta do Principezinho.

Matando como Tom Ripley, morrendo como Robert Jordan. Ou como o coronel Aureliano Buendía, recordando perante o pelotão de fuzilamento a tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.

Diletante como Dorian Gray. Solitário como Robinson Crusoe, solidário como Jean Valjean.

Apaixonado à primeira vista, às primeiras letras, por Margarida Dulmo.

 

Mario Vargas Llosa tem razão: fechado um livro, saímos dele «mais intensos, mais ricos, mais complexos, mais felizes, mais lúcidos», enquanto regressamos à «constrangida rotina da vida real».

Exactamente como me sinto agora. 

Leituras e Literatura

jpt, 04.08.23

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Desde há pouco que acompanho no Facebook o fervilhante grupo "Mostra o que estás a ler..." (43 mil membros, e em crescendo) e tem sido interessante. Porque vem ao contrário da ideia feita, e tão propalada, de que "já ninguém lê". Porque se vê uma heterogeneidade de gostos - na leitura de ficção, que outras áreas raramente são aludidas. E porque há imensas referências a autores portugueses, muitos dos quais desconheço. Vários destes são desvalorizados como literatura "lite", por gente que decerto tem consumos "lite" nas artes plásticas e, em especial, na música. Mas que não percebe a contradição tida nas poses literárias altaneiras, e até acintosas, que decide assumir. 

Outra matéria interessante naquele grupo é a frequência de afirmações ou remoques normativos sobre o que é "literatura", o "dever ser" do leitor, discussões que eu já não assistia há muito tempo. A este propósito lembro-me de uma sessão em Maputo sobre leituras e literatura, há cerca de uma década. O público era vasto, pejado de estudantes e jovens literatos. No debate final um dos jovens perguntou ao trio de palestrantes "o que se deve ler?". Estes, sábios, evitaram emitir um cânone e elaboraram sobre os rumos das apetências e maturidades individuais. Do fundo da sala pedi para intervir. E disse que isto é como a alimentação, um tipo deve comer de tudo, e insistir um pouco para se habituar a alguns alimentos que tenha estranhado. E deve variar o cardápio, não ficar agarrado a uma dieta estreita. Isto tudo sem manias de grandeza - e exemplifiquei esta abrangência virtuosa com o facto de eu adorar as singelas omeletes (simples, mistas de tomate e cebola, com queijo e/ou fiambre, de camarão) do célebre restaurante Piripiri. Ou seja, podia comer um prato excêntrico, rico, uma matapada moçambicana ou um rebuscado pitéu lusitano. Mas depois, mais dia menos dia, lá ia eu à omelete (e imperial...). Um dos palestrantes, ainda muito recente em Moçambique, um excepcional professor de Português e que acabara de publicar o seu primeiro romance, gostou do que ouviu. E fomos os dois jantar ao Piripiri. Omelete, claro...

Nada disto implica que não possamos "catalogar" e mesmo "desqualificar" o que comemos. Afixar os nossos gostos, anunciar uma bela receita, propagandear um bom restaurante. Ou avisar de um péssimo serviço ou jurar que "não como pezinhos de porco". Tal como com os livros. Mas é muito difícil, e espúrio, "definir" o que é bom. Por mais que os profissionais o queiram fazer e os amadores atrevidos também... Tem mesmo a ver com os rumos de cada um.

Ontem fui surpreendido por uma encomenda postal, remetida por uma querida amiga que há décadas vive no estrangeiro. Há meses faláramos ao telefone, também sobre bons "livros de viagens" - eu estava a reler o magnífico "Desmedida", o Brasil de Ruy Duarte de Carvalho e tinha sido ofertado com o esplêndido "Magdalena: Historias de Colombia" de Wade Davis. A esse propósito a minha amiga recordou alguns livros do "género" que tinha apreciado. E enviou-me estes "From the Holy Ground: a Journey in the Shadow of Byzantium", do britânico William Dalrymple, e "The Sign of the Cross: Travels in Catholic Europe", do irlandês Colm Tóibín. Acompanhados de um postal, fazendo votos de que "os livros não tenham envelhecido", pois lera-os já há bastante tempo (são de 1997 e 1995, respectivamente). Eu desconhecia os autores - fui pesquisar, constatando que são renomados (e muito premiados). 

É óbvio que nesta véspera das omnipresentes Jornadas Mundiais da Juventude em Lisboa, e ainda que ateu, não deixei de sorrir diante do "The Sign of the Cross" de Tóibín, anunciado como relato de 4 anos de viagens pelo catolicismo europeu... De imediato o encetei, para ver se me agradava. E na inicial página 2 apanho isto: "I was an altar boy there and I accompanied the priest with a patten as he gave out communion to the faithful. And thus I got to see everyone's tongue at close range. Some stuck it out with great force as though it was a leather strap; others were timid about sticking it out as though it was as intimate part of their body which they preferred to keep hiden. Some had broad flat tongues, the shape of a piece of sole or plaice; others had narrow, thick tongues. And each tongue had a different texture - small wrinkles and indentations filled the surface - and each person had a different colour tongue, pink, for example (some were pure pink), with eddies of brown and grey. Some people had trouble keeping their tongue stuck out, despite their best intentions, and would draw it back in, as though someone was going to commit some ofence against it, and the priest would stand and wait until it ventured out again. And I would stand there too, watching." (2-3).

E logo fiquei sem dúvidas. Este é mesmo o material literário de que eu gosto, a refeição que me saciará - mesmo que me venha a desiludir com o livro. Nem sei ter argumentos sobre isso: é o seu olhar e o seu ritmo, feitos odor. E o tacto, moldando, acariciando ou ferindo. E isto, o gosto, tem a ver com cada um de nós, o rumo próprio feito sensibilidade. No qual se devem ouvir os doutores, os da liberdade, que não querem impor "gostos". E abominar os "doutores" normativos.

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 01.02.23

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Hoje é O Dia Mundial da  Leitura em Voz Alta

«Esta data assinala-se este ano a 1 de Fevereiro. Este é dedicada não só à leitura, mas à arte e prática da leitura em voz alta. Milhões de histórias orais foram passando de geração em geração antes mesmo da invenção da escrita. Era a forma mais antiga de preservar o conhecimento, a percepção e a criatividade humanas.

Este dia ajuda-nos a trazer essa tradição de volta à leitura, promovendo a alfabetização.

A LitWorld é uma organização sem fins lucrativos que trabalha no campo da educação e alfabetização em particular. Em 2010, lançou o primeiro Dia Mundial da Leitura em Voz Alta . Agora tornou-se um movimento verdadeiramente global, com forte presença no Twitter.

A boa notícia é que o mundo está mais alfabetizado que nunca. A taxa global de alfabetização de jovens entre 15 e 24 anos aumentou de 87,2% em 2010 para 90,5% em 2019. Há uma curva ascendente semelhante para as taxas de alfabetização de adultos em todo o mundo.

Ainda existem, no entanto, diferenças significativas na alfabetização de país para país, com o Chade a registar uma taxa de alfabetização feminina de apenas 22% em 2016. Noutros países da África subsariana, como o Níger, o Mali e a República Centro-Africana, estava abaixo de 50% em 2018. O Dia Mundial da Leitura em Voz Alta é uma iniciativa que busca colmatar essas desigualdades.»

 

Gosto de ler histórias aos meus netos e eles gostam que eu lhes leia, porque "a Avó faz as vozes todas diferentes". Então não? Muitos personagens têm de ter vozes diferentes! Mas quando são muitos mesmo, perco-me e confundo as vozes, mas eles rectificam-me de imediato, e eu, com a minha maior lábia, respondo: "é para ver se estão mesmo com atenção".»

 

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Hoje é O Dia de Robinson Crusoe

«Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, foi publicado em 25 de Abril de 1719 e tornou-se imensamente popular quando foi lançado, além de ser uma grande obra de literatura. Não é surpresa que a popularidade deste romance tenha gerado este dia especial, acarinhado pelos amantes da literatura.

Robinson Crusoe foi inspirado numa personagem da vida real: um marinheiro escocês chamado Alexander Selkirk, que ficou preso numa ilha desabitada durante alguns anos e teve de sobreviver sozinho. Comia peixes, fruta e cabras selvagens até que um navio britânico passou e o resgatou em 1709. Quando Daniel Defoe ouviu a história, acabou por transpô-la para livro alterando vários pormenores. No romance, o marinheiro naufragado consegue sobreviver na ilha por 28 longos anos.

Esta obra imortal inspirou muitos outros livros e foi usada para criar vários filmes.»

 

Robinson Crusoe foi um dos primeiros livros que li. Um livro da Colecção Histórias que o meu irmão estava a coleccionar. Ele teria os seus seis anos, eu ia a caminho dos dez. Não tinha heroínas, histórias de amor, príncipes ou princesas, mas agarrou-me logo nas primeiras linhas:

"Nasci em 1632, na cidade de York, onde meu pai passara a

viver, depois de ter conseguido, com seus negócios, alguns
meios de fortuna. Tinha dois irmãos mais velhos do que eu.
Um, tenente-coronel, que faleceu na batalha de Dunquerque,
na luta contra os espanhóis. Quanto ao outro, nada sabia
do que lhe sucedera, coisa que nem meus pais podiam in-
formar-me, tanto o tempo que nos deixara.
Como não tinha o que fazer, porque não aprendera ofício
algum, dei de encher a cabeça com fantasias[...]"

Era um tipo como eu, dado a fantasiar, e sobreviveu graças à sua fantasiosa imaginação. Releio este livro e outros livros da mesma colecção muitas vezes. Trazem-me de volta aquele eu que eu gostei tanto de ser, nos livros que eu tanto gostei de ler.

  (Imagens Google)

A minha experiência com os audiolivros

Paulo Sousa, 14.10.22

Por recomendação de um amigo, deixei que se me abrisse a mente e anteontem experimentei o meu primeiro áudio livro.

À primeira busca tropecei imediatamente no clássico A Cidade e as Serras de Eça de Queirós. Já tinha ficado com ele debaixo de olho há algum tempo e em especial após este postal do Pedro Correia. Estava no topo da lista no Spotify e escolhi-o de imediato.

Os capítulos estão organizados em ficheiros separados sendo que os mais extensos estão distribuídos em três partes. A dicção é clara e bem perceptível. Enquanto tratava de outros afazeres, de pá e enxada na mão, fui ouvindo a história do Jacinto e do seu amigo e nosso narrador José Fernandes. Uma vez ou outra recuei uns segundos para não perder a sequência e quase que virei o livro ao longo do dia. Sobraram apenas dois capítulos, que ouvi ontem de manhã, num passeio de bicicleta até à Nazaré.

Por não estar a olhar para a evolução da recta temporal no écran, senti que estava a chegar ao final, mas acabei por ficar surpreendido quando ouvi a última frase. Se estivesse a ler materialmente, com o livro na mão, a antecipação do encerramento da obra seria muito mais notória e, por isso, menos surpreendente. Mas esta é uma diferença com a qual se pode viver.

Logo de seguida, quando chegava à Lagoa de Fanhais, quase como se de um novo capítulo se tratasse, lá arrancou o Singularidades de uma Rapariga Loura e ainda não tinha chegado ao Porto de Abrigo da Nazaré e já podia contabilizar mais uma obra deste romancista maior da nossa língua.

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No regresso, após um pastel de nata e um abatanado num bar dentro do areal (a praia estava enovoada e quase deserta) comecei a ouvir o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. A edição (o leitor) é brasileiro e bem menos profissional que a experiência proporcionada pela Neolivros das obras anteriores. Além de algumas gafes de dicção, em que o Rei Lear passou a ser Rei Liár, durante algumas passagens ouve-se um cão a ladrar ao fundo, e que não pertence à história. Uma vez ou outra ouve-se também o virar das páginas, o que até pode ser interessante. Apesar disso consegue-se acompanhar o desenrolar da acção.

Este meu amigo que me recomendou esta experiência, trabalha dentro de um espaço povoado com muitos ruídos, onde o ferro e madeira são matérias primas e por isso tem de andar muitas vezes com protectores auriculares. Debaixo deles está quase sempre a “ler” qualquer coisa. Pelo que soube, ele nunca apreciou muito o aroma das folhas encadernadas e teve uma vida académica abaixo das suas capacidades. Acho que tem uma qualquer forma de dislexia, nunca quis questionar directamente, e isso explicará parte do seu percurso. Quando nos encontramos, a conversa passa invariavelmente por grandes obras e grandes autores. Da última vez relatou-me várias passagens do Arquipélago Gulag de Soljenitsin e com isso convenceu-me a experimentar. Importa dizer que ele é fluente em inglês e quase tudo, ou tudo mesmo, do que lê, ou ouve, é nessa língua. As opções em língua portuguesa são menos extensas, mas mesmo assim passei a ser freguês.

Há vida para além do défice

jpt, 07.05.22

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Volta e meia surgem relatórios, estatísticas, ensaios sobre as "práticas culturais" dos portugueses - nesta era em que a "Educação para Cidadania" liceal impinge aos petizes o mito do "empreendedorismo" passou-se a chamar-lhes "consumo cultural". Nos cabeçalhos e nos rescaldos dessas apresentações surgem sempre quase escatológicos bramidos sobre a escassa leitura que os compatriotas praticam, que seguimos alheios aos livros. Logo vários apontam uma causa fundamental para tal "défice", o elevado preço dos livros... Pois julgo que "há vida para além do défice".
 
A semana passada fui até à capital e cruzei uma "Feira da Bagageira", realizada lá na minha freguesia. Há quem nelas queira recordar aquilo da velha Feira da Ladra, na qual vendi penduricalhos em 1980-1. Mas estas são cinzentas sequelas, sem o fervilhar até boémio e com pitadas de marginalidade daqueles tempos da Feira, na algazarra de amontoados de quase-tudo à disposição dos porta-moedas de aficionados, amadores, antiquários ou meros passeantes.
 
O que agora vi foram monótonos mostruários de um fim de era: vendedores modorrentos, encanecidos quase todos, e de ares entristecidos mostrando uns cabides de trapos de contrafacção, alguns fingindo-se "vintage" por usados que já surgem; várias resmas de LP's, esses que todos outrora acumularam e que julgam serem agora apetecíveis a uma (já extinta) febre "retro" de vinil; vasilhame variado e demais adjacentes, loiças que de típico só lhes sobra o piroso; alguns metais incógnitos - na excepção de um idoso que ainda apresentava uma fileira de velhas moedas (prenúncio de que um dia se venderão velhos cartões "multibanco" nestas feiras?). As bancas mais animadas, e nisso decerto que lucrativas, eram as dos eternos "comes e bebes", a bifana, a febra, presumo que o coirato, que esses não passam de moda, e felizmente, mais as sacrossantas "minis".
 
E no meio de tudo isto, bem visíveis pois quase banca sim, banca sim, lá estavam os caixotes de livros usados à venda. Pilhas e pilhas. Das edições populares desde os 1960s até agora mesmo. De usados mastigados até usados virginais, manuais decrépitos, banda desenhada popular, dicionários e enciclopédias agora inúteis, livros de bolso da Verbo, da RTP, do Público e tantos outros, ainda um ou outro sobrevivente do PREC - do Engels a Franco Nogueira -, cosmética e "cosmologia", tratados "ajuda-te a ti mesmo" e os de "auto-ajuda" mais recente, talvez mesmo o Dale Carnegie mas este não afianço, as "obras completas" de Júlio Dinis, Eça de Queirós, e as "incompletas" de Victor Hugo em especiosas edições de capa dura, cores berrantes e debruadas a doirado, que tão bem fica(va)m nas estantes quando estas ainda existiam, Hupert Reeves e Carl Sagan, histórias universais e locais. E continue quem quiser a dar exemplos que de tudo se poderá encontrar...
 
Tudo isto a 33 ou 50 cêntimos o livro. Alguns, repito, algo escafiados. Outros intocados, após décadas de distraídas prateleiras. Enfim, a gente não lê porque não nos apetece. E não nos chateiem por causa disso.

Penso rápido (98)

Pedro Correia, 26.11.20

Demasiadas pessoas passam um ano sem ler um livro, seja de que género for. Há gente que se gaba até de nunca ter aberto um livro desde os bancos escolares. Há indivíduos que nunca folheiam sequer uma revista, excepto nas salas de espera dos consultórios médicos. Muitos eleitores presumem andar informados e esclarecidos passando ao lado de conteúdos certificados pela deontologia jornalística: preferem imaginar o que se passa espreitando tuítes da trincheira mais próxima, vídeos acéfalos na Rede ou o primeiro boato que lhes é remetido através de compinchas no WhatsApp. 

Alguém que jamais trocaria o cirurgião pelo curandeiro, o hotel pela pensão manhosa ou o produto de qualidade pela quinquilharia do chinês prefere "informar-se" recorrendo às versões digitais da intriguista do prédio, do bisbilhoteiro do bairro ou do tasqueiro fala-barato.

Quando se fala na degradação da cidadania, não podemos culpar só os políticos. Há que começar a apontar o dedo a quem anda desinformado e ainda se orgulha disso.

Livro é para ler e não para ter

Pedro Correia, 22.07.20

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Parece que é, de momento, a professora mais conhecida do País. Chegou a ter 400 mil pessoas a segui-la em directo nas «lições de Português» da nova telescola e «passou a rivalizar nas audiências com a CMTV e o Programa da Cristina», como nos informa o Expresso, que lhe fez uma longa entrevista na edição do último sábado. Isa Gomes, docente do 1.º ciclo na Moita, não gosta da expressão «dar aulas e ensinar» e gostaria de «ir mais ao encontro daquilo que dizem os miúdos, os relatos orais, o que são suas próprias concepções», sem que a leitura e a escrita não estivessem «tão dependentes de um manual».

Eu nem sabia quem era, só agora a senhora me foi apresentada nesta entrevista. Admito que as lições de Português desta professora a quem criticam o «uso excessivo do "OK" no final das frases» sejam admiráveis. Nada admirável é, no entanto, a sua assumida falta de militância na leitura. Questiono-me até como pode uma docente do ensino básico ser apresentada como figura de referência quando, confrontada com a banal pergunta «O que anda a ler?», responde assim: «Não sou uma leitora. Nunca fui muito de ler livros, mas sempre adorei tê-los. (...) Estou a tentar ler os Contos de Cães e Maus Lobos, de Valter Hugo Mãe. Tenho de o terminar este Verão.»

 

Com exemplos destes, não admira que Portugal permaneça na cauda da Europa em matéria de hábitos de leitura: menos de um terço dos portugueses (32%) lê livros com regularidade, o que nos coloca muito atrás de Grécia (45%) e Espanha (47%), países que nos acompanham neste nada honroso pódio. Num continente onde o padrão médio de leitura se eleva a 60% - quase o dobro da cifra portuguesa.

Espero sinceramente que a professora agora célebre consiga terminar nos próximos dois meses o tal livrinho que anda a ler sem entusiasmo algum - e que consiga abrir outro até ao fim do ano.

Espero também que os alunos não sigam o exemplo dela. Um livro é para ler e não para ter.

Ler em tempo de pandemia

Pedro Correia, 26.05.20

Como quem me conhece sabe, há dias em que nem quero ouvir falar em política. Este é um deles. Apetece-me antes fazer-vos um desafio: partilhem connosco quais têm sido as vossas leituras desde que foi declarada a pandemia. E não me refiro às anedotas distribuídas por telemóvel nem às teses conspiranóicas que circulam nas redes à cata de novos cliques. Falo em leitura à moda clássica - a do "papel pintado", para recorrer à suave ironia pessoana.

Livros mesmo. Dos antigos, dos bons. Dos que resistem a todos os embates, superam todas as adversidades e contrariam qualquer certidão de óbito. Cem vezes declarados mortos, mil vezes renascidos geração após geração - inesgotáveis fontes de emoção, infindáveis transmissores de sabedoria. Borges confessava sentir orgulho não dos livros que havia escrito, mas dos livros que havia lido. Que livros poderão produzir o mesmo efeito em cada um de nós?

Da importância das lombadas

Pedro Correia, 14.04.20

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Vejo na Netflix uma série islandesa de que estou a gostar muito: Os Crimes de Valhalla. Numa cena do terceiro episódio, um investigador da polícia entra na casa deserta de uma mulher de classe média que foi assassinada. Uma das primeiras coisas que vê - e nós com ele - é uma estante cheia de livros ocupando quase por inteiro uma das paredes da sala. 

Para quem esteja atento, os cenários aparentemente irrelevantes nas séries de qualidade podem dizer-nos muito sobre as características de um país. Esta diz-nos, desde logo, que existem hábitos de leitura na Islândia muito superiores aos nossos. Em que série, filme ou telenovela veríamos "adereço" semelhante numa casa portuguesa de classe média? Façam o teste e verão. As estatísticas confirmam o que a experiência empírica nos sugere: mais de dois terços dos nossos compatriotas passa um ano inteiro sem ler um livro: 67%. Lideramos o triste pódio europeu nesta matéria, superando Grécia (54%) e Espanha (53%). Em proporção inversa ao que ocorre na Suécia (28%), Finlândia (35%) ou Reino Unido (37%).

 

Talvez para marcar o contraste com esta idiossincrasia nacional, por estes dias não faltam políticos, comentadores e simples bitaiteiros que persistem em prestar depoimentos televisivos recolhidos em casa, escolhendo lombadas de livros a servir-lhes de moldura. São tantos os casos que não pode tratar-se de mera coincidência: entre nós, o livro continua a servir de elemento acrescido de autoridade natural a quem produz opinião, o que não deixa de ser irónico numa sociedade onde a norma é não ler.

Não vou presumir sobre os genuínos hábitos de leitura das personalidades que, devido à pandemia, nos vão desvendando ínfimos recantos dos seus lares. Mas aproveito para deixar a sugestão aos meus amigos editores - Francisco José Viegas, Guilherme Valente, Hugo Xavier, Inês Pedrosa, Manuel S. Fonseca e Rui Couceiro, entre outros - para transformarem estas imagens que começam a tornar-se familiares entre nós numa vasta campanha publicitária de promoção da leitura. Com a chancela institucional do Ministério da Cultura e parte da choruda verba que não chegou a ser gasta no abortado TV Fest. Faz sentido, numa altura em que o sector vai de mal a pior: a venda de livros caiu 83%, com milhares de pessoas em lay-off ou sem trabalho.

Deixo aqui algumas sugestões de figuras que poderiam figurar nessa campanha de promoção do livro. Com certeza os visados aprovariam. 

 

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Um país onde se lê pouco e mal

Pedro Correia, 19.06.18

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Portugal é dos países da Europa onde menos se lê: só compramos, em média, 1,3 livros por ano. Estes péssimos índices, que não merecem qualquer tipo de censura social, ajudam a explicar por que motivo 45% dos alunos do 5.º ano de escolaridade são incapazes de identificar Portugal no mapa da Europa Ocidental - algo que se justifica pelo facto de o ensino, entre nós, estar cada vez mais desprovido de exigência, privilegiando-se o carácter "lúdico" da aprendizagem, que deve merecer a "adesão emocional" das crianças enquanto o esforço se ausenta das salas de aula.

Há tempos, num grupo de cerca de dezena e meia de pessoas da chamada classe média-alta reunidas em Lisboa, perguntei a cada uma delas se tinha comprado algum livro no ano anterior. Excepto num caso, as respostas foram todas negativas. A nossa chamada elite vive divorciada de leituras: é incapaz de comprar um romance ou um jornal, por exemplo. Sai de casa para abancar num restaurante, mesmo caro, mas nem lhe ocorre deslocar-se a um teatro ou um cinema, a um concerto ou a uma exposição.

 

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Em Novembro de 2013, fechou em Lisboa o cinema King. Foi durante anos o que mais frequentei. Lá vi alguns filmes inesquecíveis - vários de Pedro Almodóvar, por exemplo. Em diversas ocasiões não havia praticamente mais ninguém na sala: era fácil antever que acabaria por encerrar. Como encerrara o Londres, em Fevereiro desse ano - outro cinema da capital de que fui visitante assíduo. Nos últimos meses o seu estado de degradação tornara-se de tal modo evidente que não custava antecipar-lhe o fim.

Depois de fechado, muitos do que o votaram ao abandono lembraram-se de pôr a circular um abaixo-assinado entre os moradores da zona exigindo à câmara que não autorizasse a abertura de uma loja chinesa no seu lugar. Ainda me lembro do ar de espanto da senhora que me pôs o papel à frente, pedindo a minha assinatura, quando lhe respondi que me recuso a subscrever petições xenófobas. A loja abriu em 2014 e lá está, sempre cheia, no preciso local onde existia o antigo cinema, quase sempre vazio. Os mesmos que viraram as costas à sala de espectáculos passaram a acorrer ao estabelecimento comercial - incluindo ex-promotores do tal abaixo-assinado prontamente esquecido.

 

Somos assim: deixamos encerrar jornais, cinemas, livrarias. No momento em que fecham, logo surge o habitual coro de carpideiras lamentando o sucedido. Em regra, quem mais chora é quem menos contribui para evitar em tempo útil que o deserto cultural vá alastrando entre nós numa escalada galopante.

Quantos pais, incluindo na petulante Lisboa, nunca oferecem um livro aos filhos? Quantos já os levaram a visitar um monumento ou um museu? Quantos reagem com um resignado encolher de ombros à notícia de que um filho de dez anos é incapaz de apontar Portugal no mapa?

Que modelo de exigência estamos a proporcionar à geração que vai seguir-se?