Quando a música parar
Estamos cada vez mais próximos da década de 30 do século passado.
A democracia liberal, ou "burguesa" como à época era desdenhosamente apodada, estava nas lonas e contra ela experimentavam-se modelos de estado positivistas, anti-plutocráticos e igualitários, desconfiadíssimos do capital, que em nome do povo ou da pátria – entidades ontológicas e essenciais – repugnavam os mecanismos da democracia representativa. Eram, em suma, estados socialistas, fossem em versão bolchevique ou nacionalista, e receberam o entusiástico aplauso de não poucos grandes espíritos, de Aragon a Céline ou de Hemingway a Ezra Pound.
O que presenciamos hoje, na parte do mundo em que as democracias liberais são mais sólidas e antigas, é o crescimento de uma oposição radical a elas, que se vai metamorfoseando consoante o território em que aparecem. De Tsipras a Donald Trump, passando pelo “caso Orban”, por Le Pen, por Corbyn, pelo Podemos espanhol, pelo Kokoomus finlandês, pelo FPO austríaco, pelo PVV holandês, e mais uma miríade de organizações por essa Europa fora, o que se nos depara é uma nítida clivagem entre quem está por “isto” ou contra “isto”.
Dividir binariamente o espectro político entre quem defende os valores e as instituições vigentes da democracia liberal e quem os pretende reformular radicalmente – para eufemisticamente não dizer “derrubar” – parece mais operativo e clarificador do que recorrer à vetusta antinomia entre “esquerda” e “direita”, cada vez mais inócua quanto maior for a classe média. (Bem se sabe que quem recusa a dialéctica esquerda-direita é logo denunciado pela esquerda como sendo de direita, de modo que, antes do mais, existe uma incompatibilidade ideológica sem grande entendimento à vista.)
Em face dos resultados eleitorais de 4 de Outubro levantou-se a contumaz algaraviada de comentadores e opinadores, que são gente que diz tudo o que pensa e pensa pouco no que diz, motivada pelo facto de não ser responsável por qualquer decisão. Das aritméticas possíveis para interpretar tais resultados do 4 de Outubro, e muitas e desvairadas foram utilizadas até agora, a do Presidente da República, tal como foi expressa no seu discurso do dia 22, afigurar-se-á como a mais sensata e menos paroquial. (Refira-se, muito a seu favor, que em boa medida alinha com o teor genérico os escritos de Vasco Pulido Valente o qual, por ser clamorosamente céptico, costuma ter razão muitas vezes.)
É na verdade muito estranho querer introduzir na governação “disto” quem está contra “isto”, sobretudo se acumuladamente não atingiu sequer os 20% dos votos, nem assenta em mais do que 36 lugares no Parlamento. Que a democracia liberal seja assaz ampla e eclética para acomodar a sua própria refutação política é uma bonita coisa, que permita aos seus inimigos alcançarem o poder pelas vias que põe ao seu dispor será, ainda, simpático, mas já parece um pouco autofágico que dê mando aos que “defendem a revogação do Tratado de Lisboa, do Tratado Orçamental, da União Bancária e do Pacto de Estabilidade e Crescimento, assim como o desmantelamento da União Económica e Monetária e a saída de Portugal do Euro, para além da dissolução da NATO”, que segundo as últimas verificações são basilares a “isto”.
Como é costume em Portugal, pelo menos desde as invasões napoleónicas, tudo se resolverá de fora para dentro. No regresso da primeira romaria a Bruxelas a pedinchar financiamento para o almoço que desde há anos temos comido sem dinheiro para o pagar, a putativa coligação PS-BE-PCP ou vira “isto” de barriga para o ar, e então vai ser um ver-se-te-avias, ou verá esfumado o capital de esperança que os seus apoiantes puseram nela e fica tresloucada como os balões quando perdem ar de repente.
Entretanto só faltam 4 anos para o octogésimo aniversário de 1939.