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Delito de Opinião

Quando cai a noite

Pedro Correia, 03.09.20

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A roda andava ali, a namorar-me há vários dias. Passava pela feira popular, junto à marina de Lagos, e aquelas luzes tocavam-me de nostalgia: serão após serão, aumentava a vontade de dar uma voltinha. Como um irresistível regresso aos carrosséis da infância.

 

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Por imediata associação de ideias, senti-me remetido ao Prater, em Viena - àquela roda gigante onde foi rodada uma cena crucial de um dos meus filmes favoritos: O Terceiro Homem, com Orson Welles e Joseph Cotten. Recordo a emoção de me sentar numa daquelas cabinas que figuram na história do cinema, com o célebre parque de diversões a diminuir de tamanho aos nossos olhos enquanto a roda ia girando com deliberada lentidão.

 

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Tal como aqui. Sem a magnífica partitura de Anton Karas em fundo, mas com uma visão soberba desta cidade algarvia que me acolhe como se estivesse em casa. Vista de vários ângulos. Desde logo o da marina, que ganha um encanto muito especial quando cai a noite.

 

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O ângulo inverso não é menos atraente. Com a ribeira pronta a desaguar no oceano, ali bem próximo, e a sensual urbe perseguindo-a nesta rota - orgulhosa dos seus pergaminhos históricos, consciente do fascínio que continua a exercer sobre os forasteiros. Mesmo em tempo de sustos pandémicos. 

Voltei a pôr os pés no chão com refrescante alegria. Nada de especial tinha acontecido, apenas isto: durante uns minutos, senti-me miúdo outra vez.

Tão boas praias aqui tão perto

Pedro Correia, 30.08.20

Algumas das mais belas praias do País encontram-se também entre as mais desconhecidas dos portugueses. Situam-se no Barlavento algarvio, entre Lagos e Sagres, e (salvo honrosas excepções) quase nunca ouvimos falar delas.

Basta reparar nos telediários: cada vez que algum alude ao Algarve, em geral e abstracto, só nos mostra imagens de Quarteira, Vilamoura ou Albufeira. É preciso ser muito ignorante para presumir que a nossa região mais meridional pode sentir-se representada por aquelas povoações.

 

Confesso-me cada vez mais rendido aos encantos desta zona costeira, que tenho percorrido com atenção e vagar nesta segunda quinzena de Agosto.

Aproveito para partilhar convosco alguns postais (fotos minhas) destas praias que merecem ser visitadas. Cada qual com o seu charme, cada qual com o seu encanto.

Se ainda não as conhecem, visitem-nas assim que puderem. Espero que gostem.

 

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Praia Dona Ana (Lagos)

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Praia de Porto de Mós (Lagos)

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Praia de Burgau (Vila do Bispo)

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Praia de Cabanas Velhas (Vila do Bispo)

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Praia da Salema (Vila do Bispo)

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Praia do Zavial (Vila do Bispo)

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Praia da Ingrina (Vila do Bispo)

De boca bem tapada

Pedro Correia, 28.08.20

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Passeio nas ruas de Lagos, onde me desloco pela segunda vez neste Verão. Mais gente por estes dias, mas confirma-se a tendência: muito menos turistas do que no ano passado. Tanto em terra como sobre as águas, fluviais ou marítimas.

Cruzo-me com um número crescente de pessoas, na rua, usando máscaras. Devem confundir o Algarve com a Madeira, onde - aí sim - as autoridades forçam a utilização permanente de máscara em todos os locais públicos ao ar livre, exceptuando (por enquanto) praias e piscinas.

 

Não falta, no entanto, quem utilize aquilo só como enfeite. Transportando-a na testa, no queixo, na orelha, no ombro, no pulso, no cotovelo, onde calha. Para andar assim, não será melhor ficar guardada?

No passeio público, junto à ribeira de Bensafrim, cruzo-me com um pai e dois filhos pequenos: vão todos de máscara encarnada, com o símbolo do Benfica. Sinto-me como espectador de um Carnaval antecipado.

 

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Bem à portuguesa, na hora de comer, formam-se filas. Todos acorrem à mesma hora aos mesmos locais. Largas dezenas de pessoas - sem manterem distância de segurança - amontoam-se, aguardando vez, à porta de estabelecimentos como a Casa do Prego e a Adega da Marina.

Chegam a esperar mais de uma hora por um lugar em espaços apinhados, onde a comida é de uma banalidade confrangedora, quando existem, ali bem perto, muitos restaurantes com melhor ementa e espaço disponível.

 

Nunca hei-de entender estes comportamentos. Mais risíveis só as pessoas que vou vendo, de toalha estendida no areal da Meia Praia, também de máscara posta: devem imaginar que a brisa marítima transporta o vírus.

Reparo num par de namorados caminhando de mão dada à beira-mar. Vão ambos mascarados, como se receassem contaminação mútua. Até o amor cede passo à disciplina sanitária, mesmo na idade em que a líbido comanda a vida.

Também se beijarão de máscara? Não me custa imaginar tal coisa. Em tempo de pandemia, todas as precauções são poucas.

 

O maior dilema ocorre na hora de comer. Creio ter chegado a hora de o Presidente da República fazer um apelo aos criativos da indústria portuguesa, incentivando-os a conceber uma máscara com fresta removível na zona labial para permitir a rápida ingestão de alimentos sem necessidade de retirar o famigerado adereço. Portugal registaria a patente e mostraria ao mundo como se faz.

Poderia chamar-se Máscara Marcelo, em merecida homenagem ao cidadão português que transporta aquilo há mais tempo e durante mais tempo. Foi, aliás, o primeiro a correr sagazmente para casa, encerrando-se durante duas semanas em voluntária quarentena doméstica, enquanto quase todos andávamos por aí, à vontadinha, expostos à codícia do Covid.

Ele é que a sabe toda, vou pensando entre dois mergulhos. A praia continua desafogada - sinal evidente de que o inquilino de Belém permanece longe daqui.

 

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Férias II

José Meireles Graça, 19.08.20

Ao chegar à praia, nem me sento. E, como há muitos anos, digo: vamos, minha senhora, que não estamos aqui para nos divertirmos.

A senhora em questão levanta-se e vamos os dois para a esquerda (salvo seja) até à ria de Alvor ou, para a direita, até à marina de Lagos.

No regresso, marcho directo para o restaurante, e dali para casa, onde há sombra e fresco e areias insidiosas não se enfiam por cavidades reservosas.

Um ponto prévio: tinha na ideia que a frase feita que uso era de um rei francês, talvez Francisco I, que a disse à noiva na noite de núpcias. Mas o Google, que já de tantas coisas que não queria saber me pôs ao corrente, não tem rasto, de modo que fico na dúvida se não terei sido eu próprio, numa outra encarnação, que a usei com uma princesa virgem, aterrorizada com a perspectiva de perder o que lhe ensinaram era um capital precioso.

Outro ponto: de frases feitas gosto muito, incluindo algumas de minha autoria, e tenho um rico catálogo para múltiplas situações. Nem aliás compreendo, e menos aceito, uma ou outra reacção irritada quando, pela milésima vez, emprego uma expressão que puí pelo uso, e consagrei pela minha adesão.

Na praia fica a multidão, e o gosto que faz em lá permanecer é um grande mistério. As crianças gostam do mar, das pocinhas, das construções na areia, dos gelados e das bolas de Berlim; os adolescentes de nadar, mergulhar, jogar a bola – alguns – e espiar as riquezas postas em evidência pela moda com o louvável propósito de assegurar a propagação da espécie. Agora, os adultos esparramados ao sol, ou encolhidos numa cadeira desconfortável a ler uma revista ou livro, estão ali a fazer o quê?

Trabalhar para o bronze é o que muitos dirão. Grande asneira: os dessorados povos do Norte ficam da cor do camarão da Quarteira; e nós outros, os que não sofrem de um lamentável défice de melanina, adquirimos um aspecto falsamente saudável, depois do cuidado prévio de untar dias a fio o corpo com unguentos repugnantes, de gente que trabalha ao ar livre, mas que desaparece um mês volvido. Por que raio gente cujo sonho é sentar-se diante de um computador, se fizer um trabalho braçal, ou num conselho de administração, se julgar que para isso tem conhecimentos (nos vários sentidos da palavra), pretende dar a impressão que anda a acarretar baldes de cimento nas obras, desafia a imaginação. Acresce que os povos que estão habituados a lidar com o sol, como os tuaregues, se embrulham prudentemente da cabeça aos pés, em parte porque não têm um SNS habilitado a lidar com cancros na pele.

Outros declararão que estão a descansar. Como? Descansar? Essa está muito boa: a revista vê-se num instante, e a seguir adormece-se; e o livro, que invariavelmente é um best-seller da moda, dá ao cabo de um capítulo um sono invencível. Dormir é muito bom, acordar com as pernas, ou a cabeça, a escaldar porque o sol já não está onde estava, e o raio do toldo é ainda mais exíguo do que o Orçamento para a cultura, segundo o que dele dizem os avençados do regime, nem por isso.

De resto, tirando as insolações e as esperas anormais em restaurantes, agora consideravelmente reduzidas, os únicos riscos que se correm, estatisticamente menosprezáveis, são ser picado por um peixe-aranha ou topar com o professor Marcelo, isto é, ver dois dias estragados ou uma semana.

Depois há os atletas que vão jogar qualquer coisa para a orla do mar, incomodando quem passeia; as caminhadas longas, chapinando ocasionalmente, não eram piores se as praias não tivessem a desagradável característica, que caminhos honestos não têm, de ser inclinadas; a água é fria no barlavento algarvio, salvo para quem precisar de uma cura de emagrecimento, boa no sotavento, onde não se aguenta o calor, e abominável na costa Oeste, onde não se aguenta nada.

Parte da culpa deste estado de coisas vem do séc. XIX, onde se inventou que os ares do mar e, pior, a própria imersão na água salgada, curavam uma série de maleitas, incluindo nas torturas banhos gelados, com os quais Ramalho Ortigão, por exemplo, massacrou a prole, à boleia das teorias de um médico francês com a cabeça cheia de teorias chanfradas, mas possivelmente não de caspa, cujo nome esqueci. Disso e do acesso das classes laboriosas ao direito às férias, que evidentemente tinham de ser as férias dos ricos, processo ainda em curso que o nosso Governo se tem afadigado a estancar pelo expediente de dar cabo da economia.

Já não verei as praias a ceder o passo a outros destinos para efeito de férias. E não estou certo do regresso das termas e dos seus rituais obsoletos, ainda que não se perceba por que razão a água salgada a entrar pelo nariz haja de ser melhor do que  a água doce, cheia de milagrosas propriedades, a entrar pela boca (ou até igualmente pelo nariz, se alguém ainda quiser ir a curas da rinite para Vizela e outros lugares atraentemente decadentes).

O bom das férias resulta, creio, do efeito conjugado de não trabalhar, mudar de ares e exibir o testemunho, a quem ficou a dar o corpo ao manifesto, de invejáveis experiências. Isso, uns pequenos segredos, consoante os destinos e as inclinações de cada qual, e o imenso suspiro de alívio no fim, como quando se tiram ao fim do dia os sapatos novos que magoavam os pés.

Para o ano cá estarei, provavelmente no mesmo sítio. Com a crise, é pouco provável que o celebrado poder local, que com pertinácia vem destruindo as cidades e aldeias costeiras com o propósito de requalificar, que é o verbo que os arquitectos usam quando querem entupir o horizonte com catedrais de mau gosto, tenha muitas oportunidades de engordar os cofres municipais com receitas oriundas de licenças de construção.