Ao chegar à praia, nem me sento. E, como há muitos anos, digo: vamos, minha senhora, que não estamos aqui para nos divertirmos.
A senhora em questão levanta-se e vamos os dois para a esquerda (salvo seja) até à ria de Alvor ou, para a direita, até à marina de Lagos.
No regresso, marcho directo para o restaurante, e dali para casa, onde há sombra e fresco e areias insidiosas não se enfiam por cavidades reservosas.
Um ponto prévio: tinha na ideia que a frase feita que uso era de um rei francês, talvez Francisco I, que a disse à noiva na noite de núpcias. Mas o Google, que já de tantas coisas que não queria saber me pôs ao corrente, não tem rasto, de modo que fico na dúvida se não terei sido eu próprio, numa outra encarnação, que a usei com uma princesa virgem, aterrorizada com a perspectiva de perder o que lhe ensinaram era um capital precioso.
Outro ponto: de frases feitas gosto muito, incluindo algumas de minha autoria, e tenho um rico catálogo para múltiplas situações. Nem aliás compreendo, e menos aceito, uma ou outra reacção irritada quando, pela milésima vez, emprego uma expressão que puí pelo uso, e consagrei pela minha adesão.
Na praia fica a multidão, e o gosto que faz em lá permanecer é um grande mistério. As crianças gostam do mar, das pocinhas, das construções na areia, dos gelados e das bolas de Berlim; os adolescentes de nadar, mergulhar, jogar a bola – alguns – e espiar as riquezas postas em evidência pela moda com o louvável propósito de assegurar a propagação da espécie. Agora, os adultos esparramados ao sol, ou encolhidos numa cadeira desconfortável a ler uma revista ou livro, estão ali a fazer o quê?
Trabalhar para o bronze é o que muitos dirão. Grande asneira: os dessorados povos do Norte ficam da cor do camarão da Quarteira; e nós outros, os que não sofrem de um lamentável défice de melanina, adquirimos um aspecto falsamente saudável, depois do cuidado prévio de untar dias a fio o corpo com unguentos repugnantes, de gente que trabalha ao ar livre, mas que desaparece um mês volvido. Por que raio gente cujo sonho é sentar-se diante de um computador, se fizer um trabalho braçal, ou num conselho de administração, se julgar que para isso tem conhecimentos (nos vários sentidos da palavra), pretende dar a impressão que anda a acarretar baldes de cimento nas obras, desafia a imaginação. Acresce que os povos que estão habituados a lidar com o sol, como os tuaregues, se embrulham prudentemente da cabeça aos pés, em parte porque não têm um SNS habilitado a lidar com cancros na pele.
Outros declararão que estão a descansar. Como? Descansar? Essa está muito boa: a revista vê-se num instante, e a seguir adormece-se; e o livro, que invariavelmente é um best-seller da moda, dá ao cabo de um capítulo um sono invencível. Dormir é muito bom, acordar com as pernas, ou a cabeça, a escaldar porque o sol já não está onde estava, e o raio do toldo é ainda mais exíguo do que o Orçamento para a cultura, segundo o que dele dizem os avençados do regime, nem por isso.
De resto, tirando as insolações e as esperas anormais em restaurantes, agora consideravelmente reduzidas, os únicos riscos que se correm, estatisticamente menosprezáveis, são ser picado por um peixe-aranha ou topar com o professor Marcelo, isto é, ver dois dias estragados ou uma semana.
Depois há os atletas que vão jogar qualquer coisa para a orla do mar, incomodando quem passeia; as caminhadas longas, chapinando ocasionalmente, não eram piores se as praias não tivessem a desagradável característica, que caminhos honestos não têm, de ser inclinadas; a água é fria no barlavento algarvio, salvo para quem precisar de uma cura de emagrecimento, boa no sotavento, onde não se aguenta o calor, e abominável na costa Oeste, onde não se aguenta nada.
Parte da culpa deste estado de coisas vem do séc. XIX, onde se inventou que os ares do mar e, pior, a própria imersão na água salgada, curavam uma série de maleitas, incluindo nas torturas banhos gelados, com os quais Ramalho Ortigão, por exemplo, massacrou a prole, à boleia das teorias de um médico francês com a cabeça cheia de teorias chanfradas, mas possivelmente não de caspa, cujo nome esqueci. Disso e do acesso das classes laboriosas ao direito às férias, que evidentemente tinham de ser as férias dos ricos, processo ainda em curso que o nosso Governo se tem afadigado a estancar pelo expediente de dar cabo da economia.
Já não verei as praias a ceder o passo a outros destinos para efeito de férias. E não estou certo do regresso das termas e dos seus rituais obsoletos, ainda que não se perceba por que razão a água salgada a entrar pelo nariz haja de ser melhor do que a água doce, cheia de milagrosas propriedades, a entrar pela boca (ou até igualmente pelo nariz, se alguém ainda quiser ir a curas da rinite para Vizela e outros lugares atraentemente decadentes).
O bom das férias resulta, creio, do efeito conjugado de não trabalhar, mudar de ares e exibir o testemunho, a quem ficou a dar o corpo ao manifesto, de invejáveis experiências. Isso, uns pequenos segredos, consoante os destinos e as inclinações de cada qual, e o imenso suspiro de alívio no fim, como quando se tiram ao fim do dia os sapatos novos que magoavam os pés.
Para o ano cá estarei, provavelmente no mesmo sítio. Com a crise, é pouco provável que o celebrado poder local, que com pertinácia vem destruindo as cidades e aldeias costeiras com o propósito de requalificar, que é o verbo que os arquitectos usam quando querem entupir o horizonte com catedrais de mau gosto, tenha muitas oportunidades de engordar os cofres municipais com receitas oriundas de licenças de construção.