Trapalhadas colossais
(créditos: Macau Daily Times)
A cidade foi sacudida nos últimos dias por um conjunto de notícias, inicialmente rumores, relacionadas com a Escola Portuguesa de Macau (EPM). Más notícias na forma e no conteúdo.
Após anos de passividade, inércia e de uma gestão temerosa e sem rasgos, e pese embora alguns “casos” relacionados com a vida da instituição, aparentemente havia tudo, e estavam reunidas as condições, para se conduzir uma transição suave para a “Nova Era”.
Seria legítimo esperar uma renovação atenta a nomeação de um novo responsável pelo Fundação da Escola Portuguesa de Macau (FEPM) e a chegada de um novo director com experiência e currículo adequados à função. Mas, como diz o povo, o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita.
Neste caso, as águas rebentaram demasiado cedo. E o parto arrasta-se destrambelhado com o novo rebento a levar palmadas na praça pública de parteiros e ajudantes sem se perceber, face à berraria do petiz, porque as dão.
A valente trapalhada que na semana finda deu à costa em todo o seu esplendor, com a "dispensa" de uma dezena de professores e uma técnica, começou com a inusitada escolha do presidente da FEPM, logo a seguir a ter sido “enfiado” no Conselho Consultivo da área consular de Macau.
Afastado, ao fim de mais de duas décadas, da rocha onde estava alapado desde 1995 na Associação dos Advogados, com um curto interregno de dois anos no início deste século, perdendo a posição de administrador-delegado de uma concessionária de jogo, com parceiros de negócio e clientes caídos em desgraça, logo alguém pensou ser necessário dar-lhe ocupação na pré-reforma que encetou à beira dos quase oitenta anos.
Obrigado a mais este serviço público, tratou de recrutar o novo director. Ao que transpirou, recomendado por um burocrata da 5 de Outubro que deixou sombra num dos piores governos de Portugal. Era o tal que enquanto ministro dizia não haver dinheiro para compensar os professores e, logo a seguir, indo apoiar o fedayin Pedro Nuno Santos na sua corrida ao estampanço, admitiu que a reivindicação, que sempre considerou ser “justa”, embora nada tivesse feito para lhe dar corpo, poderia ser satisfeita logo que a viu incluída na moção daquele à liderança do PS. Com a condição, óbvia, de que seria preciso o candidato socialista vencer as eleições legislativas de 10 de Março para se assistir a uma nova multiplicação dos pães.
Tirando esse facto, mais a dispensa em praça pública do anterior director, esquecendo-se que ao fazê-lo não se humilhava o dispensado, mas sim a própria EPM e quem o manteve em funções durante uma década, pensava-se que tudo iria acalmar com a preparação do próximo ano lectivo.
As primeiras declarações do novo director, com uma postura discreta, seguida algum tempo depois de uma entrevista bem conduzida à TDM, pese embora a ingenuidade de uma ou outra tirada e a assunção do discurso que lhe passaram adaptado à cartilha patriótica, fizeram-me pensar que melhor ou pior, com ou sem avental, estaria encontrado o rumo para se introduzirem as mudanças que tardavam.
Percepção cimentada quando me chegaram relatos comparando a postura do anterior director, que se fechava em copas no gabinete e não falava com ninguém, com a do actual, que circulava, cumprimentava os alunos, trocava impressões com as pessoas e ia tomando o pulso à escola.
Os episódios da semana finda mostram o quanto me enganei.
É evidente que as “opções de gestão” da nova direcção são perfeitamente legítimas. E toda a gente, alunos, pais, opinião pública em geral, sabia que, há muitos anos (esqueça-se o início trapalhão da EPM no mandato do último governador), as vistas curtas e os umbigos hipotecaram a existência de uma escola para o século XXI, com espaço, equipamentos modernos, potencial de crescimento, longe dos casinos, da poluição e confusão do centro da urbe. A EPM precisava de mudar. Para melhor, claro, e sem ser aos trambolhões.
Ao longo dos anos fui algumas vezes à EPM. Uma vez a convite dos Rotários, para falar aos alunos sobre a minha profissão. Uma outra a convite do Gilberto Lopes e da TDM para o defunto Contraponto. De todas as vezes disse o que entendia dever ser uma escola portuguesa na China. Não vejo hoje razão para pensar de maneira diferente: o que se está a passar deu-me razão e não posso assistir calado a esta desprestigiante tourada.
Depois de uma afirmação de portugalidade, que com os anos, a dependência económica e a subserviência se tornou cada vez mais tímida, havendo pelo meio uma estória pouco edificante com uma bandeira que foi despejada e realojada no canto de um gabinete, certo é que a EPM cumpriu a sua função com os professores que tinha, formou gente capaz, interessada, socialmente útil e que se afirmou fora de portas com excelentes resultados académicos e profissionais. Mérito que se deve tanto aos alunos como aos professores que os acompanharam e aos seus pais. Pelo menos aos que se interessam e participam no dia-a-dia dos filhos e que serão quase todos.
Porém, quando se tomam “decisões de gestão” pouco transparentes em relação a professores, mais do que estimados, queridos e respeitados pelos seus alunos, passados e actuais, e que cumpriram no passado, no presente, e queriam cumprir no futuro com a nova direcção, colocam-se muitas questões.
Três dos que saem são doutorados, dizem-me, com vasta experiência de ensino local, conhecimento da sua realidade e do meio social onde se inserem os seus alunos – que é diferente da de qualquer outro local do mundo onde há escolas portuguesas –, e cujo trabalho se revelou crucial para o sucesso da EPM, dando inúmeras provas de competência profissional, com qualificações e qualidades humanas, e entrega perfeitamente altruísta ao seu múnus. Aparecerem agora, a pouco tempo de merecidas reformas, enfiados num saco de dispensas sem critérios conhecidos – “opções gestionárias” não é nada sem que se perceba em que consistem e qual a razão que está subjacente às escolhas feitas – levanta sobrolhos e dúvidas que sem transparência e esclarecimento razoável só servem para preocupar pais, alunos, a comunidade em geral, e uma vez mais deixar mal a EPM e a minúscula comunidade portuguesa.
Depois das novelas da Casa de Portugal, dos atrasos nos subsídios, do queixume das rendas, da falta de apoios e das decisões inexplicáveis sobre festas populares, só nos faltava mesmo a EPM ser palco de lutas de perus e motivo de vergonha e achincalhamento para Portugal em Macau.
Todos perceberam que a alteração do modelo de gestão passou pela introdução de uma verdadeira liderança bicéfala, agora repartida entre o presidente da FEPM e o director. Este, com todos os seus méritos, caiu aqui de pára-quedas e foi rapidamente capturado por um pequeno grupo de marretas e avençados, pretensos conhecedores da terra e das suas especificidades, que, não obstante estar há muitos anos a perder protagonismo e poder, continua convencido que é o detentor das chaves dos segredos do Santo Graal.
O presidente da FEPM já sentiu necessidade de prestar declarações à TDM e perguntar o que pode a direcção do estabelecimento de ensino fazer se não puder seleccionar os docentes. E também referiu que não é com abaixo-assinados e barulho que se vai resolver o problema da escola. Adiantou ainda que deu esclarecimentos ao Ministério da Educação, cujo chefe de gabinete agradeceu, que a anterior direcção teria perdido a confiança da Direcção de Serviços de Educação e de Desenvolvimento e Juventude (DSEDJ), e que não há nenhum professor que venha por “alvedrio” do director.
A direcção da EPM pode, e deve, entre outras funções escolher professores competentes e que dêem garantias de bom desempenho em razão das suas qualidades profissionais e humanas. Deverá, contudo, fazê-lo com critério e transparência. Se tivesse havido não teríamos hoje o sururu que temos e ele não teria necessidade de sair em defesa do director da EPM.
Concordo que não seja com abaixo-assinados que se vão resolver os problemas da EPM. O presidente da FEPM aqui tem razão. Mas se há abaixo-assinados de antigos e actuais alunos e dos encarregados de educação em defesa de professores dispensados (não é por parte dos sindicatos que cá não existem, ou de outros professores, que se o fizerem vão para o olho da rua), é porque alguma coisa aconteceu.
Por outro lado, dar resposta e agradecer a recepção dos esclarecimentos prestados, como fez o chefe de gabinete do ministro da Educação, é uma regra de cortesia e boa educação. Como ele disse “até ver, está tudo bem”. Só que a resposta não significa adesão às justificações contidas nas respostas. O presidente da FEPM não está a falar para uma manada de serventuários e boçais numa qualquer assembleia geral.
A referência à perda de confiança da DSEDJ na anterior direcção é grave. A anterior direcção esteve lá durante uma década. Em termos escolares com bons resultados (dizem-no os rankings), pelo que o Governo de Macau terá de esclarecer este ponto. E também, se for verdade, por que razão não se agiu antes. Para bem de todos e para que a população possa confiar nos dirigentes da DSEDJ, certa que de futuro não se permitirá a manutenção em funções de quem não merece confiança, nem dá garantias de serviço público perante “um sem-número de situações que importa corrigir”. Quais? Que andaram a FEPM, o Ministério da Educação e a DSEDJ a fazer durante anos? A fechar os olhos? Estava tudo mal e agora vai ficar tudo bem? Que diz o Dr. Manuel Machado?
E quanto ao facto de nenhum professor, “destes que vêm”, e cito, vir por “alvedrio do director que diz: “eu vou mandar vir este porque é meu amigo"; não, não é isso”, fico muito satisfeito por saber que nenhum daqueles, ao contrário do que me afiançaram, chega por amiguismo, compadrio, concubinato ou outro tipo de relações. Trazer a amiga ou o namorado seria um caso de nepotismo. Vir por necessidade com a garantia de que “não tem competências inferiores” (mas têm mais, são melhores, dão garantias de continuidade?) é coisa bem diferente.
Seria bom esclarecer, em todo o caso, se as dispensas dos professores que saem não se devem a motivos disciplinares, quais são as razões que lhes estão subjacentes? Fastio? Birra? Inimizade com alguém da direcção ou da FEPM? Incompetência? Há relatórios sobre o seu trabalho? Foram-lhes dados a conhecer? Dizem-me que houve professores que andaram a assistir às aulas de outros. Muito bem. A que conclusões chegaram? Informaram os visados sobre os resultados dessas “avaliações”? Quantos foram objecto desse escrutínio? Se não se fez a todos, se for o caso, qual foi o critério?
Neste momento, com a falta de informação séria e credível sobre esta bagunça, o que sabemos é que foram “dispensados”, eufemismo de despedidos, cerca de uma dezena de professores, e mais uma psicóloga que há anos ali trabalhava, numa espécie de “dispensa colectiva” sem justa causa.
O director da EPM ficou agastado. Digo-o pelo tom usado com as questões que a imprensa lhe colocou. Só que tendo sido publicados anúncios a recrutar novos professores para os mesmos lugares, e acabando-se a contratar gente desconhecedora da realidade local, mal paga para o que lhes vai ser exigido, sujeitos a títulos blue card para aqui trabalharem, numa situação idêntica à de qualquer assalariado que chegue do Nepal ou do Paquistão, o que os colocará, pese embora as funções desempenhadas e a secular amizade luso-chinesa, numa posição humilhante, subserviente e dependente, permanentemente com uma espada de Dâmocles sobre as suas cabeças, limitar-se-ão a cumprir ordens sem fazerem perguntas sob pena de não lhes ser renovado o blue card no final do ano lectivo, integrando um rebanho de serviçais, à semelhança desses desgraçados das empresas de segurança que trabalham doze horas por dia sem direito a lamento.
Os factos e os esclarecimentos prestados, ou a falta destes, depois de termos sido informados de que alguns passaram, tal como o actual director da EPM, por Timor-Leste, o que não foi referido logo de início, sem subterfúgios, quando se falou em "experiência internacional", fazem-me temer que na escolha dos substitutos haja também critérios de combate ao isolamento. Essa será uma outra opção de gestão, tal como serem pessoas de confiança para o projecto educativo que se quer cimentar, embora isso não seja impeditivo de ser logo dito e assumido por quem escolhe. Aqui, pelo menos, não se correrá o risco de vir um magistrado jubilado para compor o parco pecúlio da sua reforma, tornando-o assalariado da EPM à socapa do Conselho Superior de Magistratura.
Apesar de tudo, espero que depois desta “entrada a pés juntos”, perfeitamente desastrada, em que o status quo se transformou num “status caos”, numa espécie de deslegitimação pelo procedimento, ao contrário do que Luhmann ensinara, tudo se possa compor e seja possível retomar a tranquilidade, colocando um ponto final na vergonha de andarem inspectores da DSEDJ a averiguar o que se está a passar na Escola Portuguesa, como se em causa estivesse uma rixa entre taberneiros.
Na EPM também não há o risco de acontecer o que sucedeu a outras instituições, transformadas em clube de amigos de direcções que se dedicam à distribuição de benesses e que não cumprem a sua função profissional, social e/ou cívica devido ao estado letárgico para que foram atiradas.
De igual modo, ninguém espera que a principal função da EPM passe a ser a organização de jornadas de convívio, excursões turísticas e visitas às exposições sobre a segurança nacional, até porque tem a concorrência de mais escolas e há uma que aí vem que pretende entrar no seu mercado.
Porém, não sejamos crentes ao ponto de acreditar que se correr mal logo se verá. Ninguém acredita que o presidente da associação de pais, dada a sua posição em relação ao presidente da FEPM, alguma vez venha dizer que não correu bem. E se nessa altura tiver a coragem de o fazer já será tarde. Porque o mal já estará feito. E nesse dia o presidente da FEPM dirá que nada teve a ver com o assunto porque as opções foram da Direcção da Escola.
O Dr. Acácio de Brito, que não tem culpa nenhuma da maldade que lhe fizeram, e é pessoa bem-educada, que se abasteça de uma boa dose de lavanda, alfazema e canela. Ele e o Dr. Alexandre Leitão, Cônsul-Geral de Portugal para Macau e Hong Kong. E que se rodeiem de algumas corujas. Discretas.
Chegaram a um local cujo clima chuvoso, quente e húmido, é propício ao aparecimento de lacraus. E de bufos, tipo cristãos-novos, ultimamente mais do tipo patriotas-novos, que deambulam e amesendam pelas imediações da EPM. Muitos. Alguns disfarçados de jornalistas, advogados, professores sem doutoramento (académico; possuem outros) e beatos. Quando menos se espera estamos rodeados deles. Sem aqueles apetrechos vai ser difícil mantê-los à distância enquanto por aqui andarem. E fazerem com tranquilidade o trabalho que a comunidade espera deles.