Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

O grotesco municipal

jpt, 19.09.24

kiss.jpg

Atentei ontem que diante da escola C+S da minha rua os serviços públicos, sob tutela do município, colocaram este sinal de trânsito dedicado aos petizes e seus "encarregados de educação", dizendo em língua estrangeira "Kiss and Ride". Em 2024, não em 1924 nos alvores da condução automobilística, quando tamanha excentricidade apelava aos anglicismos para a sinalética universal.

Actualmente os estrangeirismos espúrios, em particular os anglicismos, são uma praga, pandémica até, entre a ralé vigente. Mas que o Estado se dedique a isso é grotesco. E é uma miséria intelectual que a câmara municipal de Lisboa adopte esta via. É uma "road to nowhere", e digo-o assim para tentar fazer-me entender pelas mentes apoucadas apoiantes ou coligadas ao pobre Nuno Melo.

Mais uma voz a juntar-se a nós

Pedro Correia, 08.09.24

aaaaaaaa.jfif

 

Passo pela livraria Martins, em Lisboa, e capto esta imagem. Capas de oito livros de autores contemporâneos, com duas características comuns: todos são portugueses, todos escrevem sem recurso ao famigerado aborto ortográfico que transformou as regras anteriores no caos actual - que o digm os professores, incapazes de impor norma alguma num cenário de inúmeras "facultatividades", duplas grafias e supressão generalizada de consoantes, quer sejam supostamente mudas, quer sejam bem articuladas. Depois do cê de "contacto" ter ido às malvas, o de "corrupção" vai pelo mesmo caminho - como nos têm narrado Nuno Pacheco e Francisco Valada, entre outros resistentes da luta contra esta aberração.

Longe de serem os únicos, como a foto documenta. Afonso Cruz (A Boneca de Kokoschka), Carmen Garcia (Tudo o que Ouço é Coração), David Machado (Debaixo da Pele), Frederico Pedreira (Sonata Para Surdos), João Tordo (Biografia Involuntária dos Amantes), Lídia Jorge (O Dia dos Prodígios), Margarida Fonseca Santos (De Nome, Esperança) e Tiago Rebelo (O Tempo dos Amores Perfeitos) também resistem.

Oito. Mas podiam ser oitenta. Ou oitocentos. Podiam ser até antigos defensores assumidos do impropriamente chamado "acordo ortográfico", como o jornalista e ensaista brasileiro Sérgio Rodrigues, que numa excelente entrevista ao Expresso (conduzida por Christiana Martins) reconhece ter mudado de posição. Agora diz claramente, sem papas na língua: «O acordo ortográfico não fez nada ou muito pouco no sentido de nos aproximar. Acho até que teve alguns efeitos colaterais indesejados de nos afastar, por resistências a questões que o acordo tentou resolver e não foi muito hábil. (...) Fez mais mal do que bem, na verdade. E talvez não haja mesmo nada a fazer, a não ser cada um seguir o seu caminho.»

Felicito-o por exprimir hoje a convicção que muitos já tínhamos desde o primeiro dia. Mais uma voz a juntar-se a nós.

Sinónimos de dinheiro

Pedro Correia, 05.09.24

Creio que nenhuma outra palavra tem tantos sinónimos na língua portuguesa como dinheiro. Sinónimos cultos, populares, de jargão profissional, de regionalismos ou coloquialismos diversos. 

Deixo o desafio aos leitores. Para que escrevam aqui os primeiros cinco sinónimos que lhes ocorrerem. Pelo mesmo só cinco de cada vez, não para despejarem listas de vinte ou trinta palavras copiadas de dicionários digitais.

A lista virá depois. Feita por nós próprios.

Muda o regime, muda a ortografia

"Acordo ortográfico" produz legiões de analfabetos funcionais

Pedro Correia, 11.07.24

letras-para-titulos-scaled.jpg

 

Certos leitores que pretendem fazer ironia com as orthographias antigas da língua portuguesa -- às vezes referindo-se a autores que publicaram há pouco mais de cem anos -- estão, no fundo, a produzir argumentos contra o "acordo ortográfico" e não a favor. Ao contrário do que supunham.

É incompreensível que um inglês leia Walter Scott ou Oscar Wilde na grafia original, o mesmo sucedendo a um francês em relação a Balzac ou Zola, um espanhol em relação a Pérez Galdós e um norte-americano em relação a Mark Twain, enquanto as obras de um Camilo ou um Eça de Queiroz já foram impressas em quatro diferentes grafias do nosso idioma.

 

As sucessivas reformas da ortografia portuguesa são um péssimo exemplo de intromissão do poder político numa área que devia ser reservada à comunidade científica.

Cada mudança de regime produziu uma "reforma ortográfica" em Portugal. Para efeitos que nada tinham a ver com o amor à língua portuguesa, antes pelo contrário.

Cada "reforma" foi-nos afastando da raiz original da palavra, ao contrário do que sucedeu com a esmagadora maioria das línguas europeias -- como o inglês, o francês, o alemão e em certa medida o espanhol. A pior de todas essas reformas foi a de 1990 que separa famílias lexicais, produzindo aberrações como «os egiptólogos que trabalham no Egito [sic] são quase todos egípcios», «sofre de epilepsia, é epilético [sic]» ou «uma característica dos portugueses é terem forte caráter [sic]

 

Esta ruptura com a etimologia ocorre, convém sublinhar, num momento em que nunca foi tão generalizada a aprendizagem de línguas estrangeiras entre nós.

Assim, enquanto os políticos de turno pretendem impor a grafia "ator"[sic] à palavra actor, os portugueses continuarão a aprender "actor" em inglês, "acteur" em francês, "actor" em castelhano e "akteur" em alemão.

Não adianta deitar fora a etimologia pela porta: ela regressa sempre pela janela. Através de idiomas nunca sujeitos aos tratos de polé de "acordos ortográficos" destinados a produzir legiões de analfabetos funcionais.

Decifre se quiser

Pedro Correia, 03.07.24

Escrever bem, de acordo com a técnica jornalística, é adoptar a regra dos três C: de forma clara, concisa e compreensível.

O leitor não tem tempo nem paciência para voltar atrás porque não entendeu o significado daquilo que acabou de ler nem paga um jornal para decifrar charadas que lhe são servidas em forma de notícia.

Apesar disso, são cada vez mais frequentes as frases incompreensíveis na nossa imprensa - até em títulos. Frases codificadas, oriundas de um jargão tecnicista ou empresarial e polvilhadas de estrangeirismos que certos jornalistas pretendem à viva força incorporar no vocabulário comum. Esquecendo que devem ser eles a descodificar a mensagem e não o leitor a esforçar-se por tentar decifrar aquilo que se pretende comunicar.

 

 

Deparo todos os dias com frases em que prevalece o tom charadístico, numa espécie de caricatura involuntária do que não deve ser a escrita usada em jornalismo: opaca, inexpressiva, indecifrável.

Ao falar-se na crise do jornalismo contemporâneo omite-se com frequência este aspecto: a falta de capacidade para comunicar. Quando iniciei a actividade jornalística, na década de 80, os velhos tarimbeiros da redacção costumavam dizer aos novatos como eu: «Escreve de maneira a que possas ser entendido não pelo físico nuclear mas pela empregada doméstica.» Utilizando, desde logo, um vocabulário acessível a todos. Precisamente ao contrário daquilo em que que tantas vezes reparo agora. Como se o mais difícil fosse escrever de forma simples.

 

Às vezes dou por mim a pensar que fazem falta esses tarimbeiros nas redacções actuais - pessoas dotadas não com títulos académicos mas com o bom senso que deriva da sabedoria comum.

Muitos dos erros que costumo anotar seriam evitados pelo olhar atento e experiente de um bom editor. Mas como evitar a propagação do erro se quem tantas vezes o comete são profissionais do jornalismo investidos das funções de direcção ou editoria?

Voltarei a este assunto, raras vezes ou nunca debatido no espaço público. Para já, ficam 50 exemplos que fui colhendo da nossa imprensa:

 

 

"falta cada vez menos para o kick-off deste jogo"

"alternar entre o aceleramento, o giroscópio e os dois joysticks"

"a proposta tem vários regimes e vários períodos de phasing out"

"o processo devia ter sido muito mais friendly user para os utilizadores"

"um verdadeiro apreciador de cozido à portuguesa nunca recusa um convite para descobrir um novo spot com este 'prato do dia'."

"o event designer conta como gere a profissão"

"podia ser um storyboard"

"temos de buscar clusters de desenvolvimento"

"não se consegue compreender porque é que há este delay"

"as teorias de agenda-setting"

"criámos todo um sistema de back up"

 "downgrade sobre a dívida portuguesa"

 "o presidente fez o takeover"

"ele estaria a causar twitter storms constantemente"

"o mercado de credit default swaps atribui a Portugal uma possibilidade de default"

"case study na habitação"

"retalhistas omnichannel"

"hotel em Armação de Pêra é All inclusive"

"reestruturação de programas do daytime da SIC"

"se o governo quiser fazer um restyling, tudo bem"

"acessórios must have da estação"

"ficámos a saber o breakdown dos chumbos"

economic adviser do Governo"

"este país adora quick fixes"

"o que os debates speed-dating fizeram pela democracia portuguesa"

"seria um trabalho de accountabillity útil"

"os estúdios a olharem ao espelho num blacklot em Hollywood"

"os respectivos artwork e streaming

"Portugal tem de descer os salários em relação ao core da zona euro"

"o partido funciona por key words"

"livrarias queer migram para a Net"

"a última filosofia para superar crises conjugais é o coaching familiar"

"sou uma fashion victim"

"vai ser criada uma safe house em Lisboa"

"poderá utilizar o crowdfunding"

"o governo não pode ceder nos valores core"

"tentativa de criação de um catch-all party"

"Ucrânia e Polónia preparam-se para o seu close-up"

"as contas são o nosso bottom line"

"Bolsa alvo de ataque de short-selling"

"ao Chelsea sai quase sempre bem o papel de underdog"

"um daft punk em pose de artes marciais"

"receio de ficar fora do loop"

"após algumas semanas de avaliação em soft opening, X concluiu que deveria criar também um menu de balcão”

"ex-ministro recomenda a criação de um imposto one shot"

"o percurso foi feito para ser TV-friendly"

"o investidor segue uma estratégia passiva de buy-and-hold"

"a dialéctica entre believers e haters"

"o cinema teve outros provocadores e outros pranksters"

"há muito ganhou o gosto do gimmick"

"anunciada por uma espécie de cliffhanger"

"este projecto é um wake up call fenomenal"

"o back-to-basics está para ficar"

 

Decifre quem quiser. E quem puder.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 14.06.24

por-amor-a-lingua-e-a-literaturaOB47967-scaled.web

 

Livro nove: Por Amor à Língua e à Literatura, de Manuel Monteiro

Edição Objectiva, 2024

296 páginas

 

Este livro presta serviço público. Diz ao que vem e cumpre o prometido: é na verdade uma admirável declaração de amor à língua portuguesa, hoje tão maltratada no jornalismo, na escola, na academia, na publicidade e na linguagem de todos os dias. Com a contínua supressão de vocabulário, ameaçando de extinção milhares de palavras. Com a profusão sem freio de erros gramaticais e sintácticos - em jornais, revistas, livros, anúncios, folhetos de supermercado, rodapés de televisão e até no Diário da República. Com o famigerado aborto ortográfico, que aboliu a noção de norma num emaranhado de «duplas grafias» e «facultatividades» à mercê de uma nebulosa «pronúncia culta» que nega qualquer pressuposto científico.

Nesta versão revista e ampliada do livro Por Amor à Língua, publicado em 2018, Manuel Monteiro reforça o combate à banalização do erro e pugna contra a complacência perante tantos atentados ao nosso idioma. Emenda, corrige, esclarece. Nunca em tom de mestre-escola, mas com humor, vivacidade e a contagiante alegria de quem se declara sem rodeios apaixonado pela língua portuguesa.

Não é livro para arrumar em prateleiras destinadas a acumular pó, mas instrumento útil a quem faz do português ferramenta de trabalho e veículo privilegiado de comunicação, partilhado por quase 300 milhões de pessoas no mundo. Levanta o polegar perante «círculo vicioso» (correcto) e baixa-o em «ciclo vicioso». Esclarece que só «quando muito» faz sentido («quanto muito», que alguns papagueiam, é erro crasso). Dissipa a confusão entre «ter de» e «ter que» desta forma lapidar: «Nunca vi um "de" quando deveria estar um "que", ou seja, em caso de dúvida, opte sempre pelo "de", que, garanto-lhe, não errará. O erro é sempre ao contrário.»

Na linha do que já fizera em O Mundo Pelos Olhos da Língua (2022), este escritor e professor que foi revisor profissional enumera várias palavras usadas e abusadas nos contextos mais abstrusos. Como o famigerado verbo «colocar» que parece ter destronado o claro e conciso «pôr». Manuel Monteiro observa: «Coloca-se algo/alguém de lado/de parte/à margem, colocamo-nos na pele de outros, coloca-se a mão/o dedo/qualquer parte do corpo algures, coloca-se o carro na garagem, coloca-se o dinheiro no banco; progressivamente, tudo se coloca.» Até já leu esta frase num título da RTP, atribuída a um sindicalista da polícia: "Era o que faltava não podermos colocar baixa".»

Eis outros vocábulos que alastram como pulgas em dorso de cão vadio: abordagem, arrasar, empatia, inclusão, incontornável, tóxico, privilégio, literalmente, foco, evento, tolerância, fascista. E até filosofia, em expressões ridículas como «a filosofia de jogo do treinador», «a filosofia de vendas», «a filosofia de atendimento ao cliente». Assim «trivializamos e abandalhamos Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, Kant» e tantos outros.

Merece também aplauso a justa luta do autor contra a despudorada profusão do portinglês, que transforma a nossa língua numa espécie de pátio das traseiras do idioma de Donald Trump. 

«Jornalistas há que escrevem metade das crónicas em português (e que, quando escrevem a metade em português, escrevem a pensar em inglês, seja quanto aos significados, seja quanto à construção sintáctica (...), seja quanto ao decalque de expressões idiomáticas, como "no fim/final do dia" ou "pôr-se nos sapatos dos outros/calçar os sapatos dos outros", quando em português são "no fim de contas/afinal de contas" e "pôr-se no lugar do outro") e a outra metade em inglês, que até nos títulos despejam palavras inglesas quando para as quais há palavras portuguesas de uso corrente.» Lembrei-me logo do Camilo Lourenço com o seu chorrilho de títulos à amaricana: «One Sided Stories»; «Unfit and Unproper»; «Scratch my back, I'll scratch yours».

Amor à língua, sim. Também é fogo que arde sem se ver. Mas lê-se. E não deixa lugar a dúvidas.

 

  Sugestão 9 de 2016:

Entrevistas da Paris Review, (Tinta da China)

Sugestão 9 de 2017:

Ao Largo da Vida, de Rainer Maria Rilke (Ítaca)

Sugestão 9 de 2018:

Só Acontece aos Outros, de Maria Antónia Palla (Sibila)

Sugestão 9 de 2019:

La Llamada de la Tribu, de Mario Vargas Llosa (Alfaguara)

Sugestão 9 de 2020:

Estocolmo, de Sérgio Godinho (Quetzal)

Sugestão 9 de 2021:

Woke - Um Guia para a Justiça Social, de Titania McGrath (Guerra & Paz)

Sugestão 9 de 2022:

Carta à Geração que Vai Mudar Tudo, de Raphaël Glucksmann

Sugestão 9 de 2023:

A Vida por Escrito, de Ruy Castro (Tinta da China)

Blogue da Semana

Marta Spínola, 25.05.24

Estava pelo Campo Grande, há uma semana, quando vi um clarão azul, entre as árvores do jardim da zona. Não percebi logo, só quando abri as redes soube o que se tinha passado nos céus de Portugal nessa noite.

Alguns dias, muitos vídeos e posts depois, dei com o blogue Linguagista, de Helder Guégués, um blogue "sobre a língua: acertos, desacertos e problemas", onde me deparei com a definição de meteoro.

Aproveitei para navegar por outros posts onde o autor escrutina diariamente o uso da língua portuguesa desde 2011. Deixo como sugestão da semana, nunca é de mais conhecer a nossa língua.

As palavras também têm história

Pedro Correia, 23.04.24

junot.jpeg

Palácio Quintela, em Lisboa, onde Junot instalou o seu quartel-general em 1807

 

Muitas vezes não fazemos a menor ideia da origem de algumas das expressões coloquiais que usamos. Mas vale a pena investigar de onde vêm e como se foram generalizando.

Várias remontam ao tempo das invasões francesas, na primeira década do século XIX. Uma das mais frequentes relaciona-se com a chegada do general Jean-Andoche Junot a Lisboa, à frente do exército napoleónico, quando ainda se avistavam no horizonte as velas da frota que conduzia a família real portuguesa ao Rio de Janeiro, em 30 Novembro de 1807. Ficou, portanto, a ver navios.

Portugal acabou por ser devastado pelas tropas gaulesas, que aqui praticaram as maiores atrocidades. Mas Junot, indiferente às situações de penúria e de miséria provocadas pelos invasores também em Lisboa, instalou-se no Palácio Quintela, na Rua do Alecrim, com despudorada ostentação, vivendo à grande e à francesa.

Um dos generais que o acompanharam na invasão, Louis Henri Loison, tornou-se tristemente célebre pela ferocidade com que tratava os portugueses que tinham o azar de lhe surgir ao caminho. Por ter perdido o braço esquerdo numa batalha, logo recebeu a alcunha de Maneta. A partir daí, quando alguém se envolvia numa situação complicada ou perigosa, passou-se a dizer que iria pr'ò Maneta.

Derrotados na batalha do Vimeiro em Agosto de 1808, após o desembarque de forças britânicas em Portugal, Junot e as suas tropas retiraram-se para França após encherem navios de tudo quanto puderam na sequência de incontáveis actos de pilhagem em igrejas, palácios e bibliotecas - num dos maiores atentados desde sempre cometidos ao património nacional. Zarparam assim, de armas e bagagens.

 

Duzentos anos depois, os ecos das invasões francesas perduram no nosso vocabulário corrente. Porque também as palavras têm história.

Arranca, arranca, arranca, arranca

Pedro Correia, 28.03.24

arranca 2.jpg

arranca 1.jpg

Dois títulos da primeira página do caderno de economia do Expresso, de 15 de Março.

Este jornal ignora verbos comuns como iniciar e começar.

Só sabe "arrancar". Nada mais.

arranca 1.jpg

arranca 2.jpg

O mesmo parece acontecer com a SIC, outro órgão do grupo Impresa. Eis duas notícias difundidas neste canal na passada segunda-feira. Os editores parecem desconhecer outros vocábulos: "arrancar" serve para tudo.

Sonharão por lá com amputações, mutilações, decapitações? Ignoro.

Sei, isso sim, que a compressão lexical galopa, cada vez mais veloz.

Ou arranca, para mantermos o registo monovocabular destes conspícuos títulos jornalísticos.

O plural neutro

Cristina Torrão, 04.02.24

Venho fazer uma sondagem entre os nossos leitores/comentadores (este plural não é neutro, é só mesmo para leitores no masculino).

Imagine o leitor que está incluído num grupo de dez pessoas, por acaso, nove homens e uma mulher. E imagine que ninguém é casado. Eu estou perante o grupo e convido-vos para uma festa. Depois de aceitarem o convite, eu pergunto: «os vossos namorados também vêm?»

Gostaria agora que os leitores declarassem se se sentem confortáveis com a minha pergunta, ou preferiam que eu referisse igualmente as namoradas.

Quanto mais incompetente, melhor

Pedro Correia, 23.09.23

bolla.jpg

 

O intragável naco de prosa que aqui reproduzo foi ontem dado à estampa num dos principais diários portugueses, aliás com pergaminhos na defesa do nosso idioma, surgindo com a assinatura do próprio director dessa publicação. Alguém que, aparentemente, se mostra incapaz de distinguir entre Conselho e Concelho. Não digam que é um problema do teclado, ou do corrector digital, ou do revisor de textos - figura já quase inexistente nas redacções dos jornais que ainda restam. 

É ignorância mesmo. O que me leva a questionar, uma vez mais, que critérios de competência e qualificação são hoje adoptados pelos administradores dos órgãos de informação para porem à frente de títulos históricos da imprensa portuguesa indivíduos que ignoram a diferença entre ConselhoConcelho

Não se incomodem a inventar uma justificação politicamente correcta. A resposta verdadeira sei muito bem qual é.

Meninos?

jpt, 08.09.23

esteiros-soeiro-pereira-gomes-avante.jpg

Anteontem jantei no promontório que olha o Sado e avista o Tejo, num pequeno sítio que desconhecia, pois segunda-feira em vilória, mau dia para demandar casas de pasto. Ali uma espécie de absurdo a Sul do Tejo, pois alguém aprontou uma casa de "pastas", uma italianice. Coisa que nunca tem sentido, quanto mais naquele universo rico em saberes de açordas. Refeição partilhada com alguém que mal conheço, estávamos na terceira pessoa e assim ficámos. Fomos frugais: uma entrada de moelas fornecidas de molho com sabor enfarinhado, uma salada de tomate sensaborão com queijo branco, dito fresco. E depois um esparguete partilhado, que o cardápio apresenta em nome estrangeiro. Beberam-se umas imperiais, tudo isso o suficiente para se matar a fome do fim da jorna.
 
Mas o pior de tudo foi o empregado, um rapazola nas cercanias dos trinta anos, com os ademanes concentrados no vozear. Diante de mim e do parceiro de mesa, um quarentão, calva a despontar, passou aquelas duas ou três horas a tratar-nos por "meninos". À segunda imperial estava eu com vontade de lhe dar um par de tabefes, e não estava sozinho nisso. Sou liberal, que cada um faça com os genitais e os anais o que lhe apetece. Mas que vá ele trinar de "meninos" quem o sodomiza, "a falta que a tropa faz a estas gerações" escuto-me, nisso do desagrado com gente pateta que já não aprende a escala etária, aquilo da antiguidade. A mais-velha atrás do balcão estava simpática, como deve ser, presumi que ali algemada ao verme loquaz. Decerto que percebera o desadequado, pela forma como se veio despedir, apaziguadora.
 
Dois dias passaram. Hoje de novo tive a sorte de ser convidado a jantar. Com um amigo, não íntimo mas que se vem tornando próximo, ele recente sexagenário por direito próprio. Agora na capital, no velho CCA, diante do Santo António, uma esplanada de triste nome "Mula" mas com bom serviço e aprazíveis petiscos. Um jovem empregado muitíssimo eficiente e simpático - angolano, por cá há um ano... Perto do final, e depois do meu parceiro ter feito elegante alusão àquilo do meu cinzeiro já estar repleto, eu lançado no "pode-me trazer mais gelo, por favor", surge-nos a chefe de sala, uma simpática e muito bem apessoada brasileira, perguntando-nos "o que desejam os meninos?". Expludo! Para vera surpresa dela... "Não chame "meninos" aos homens", convoco-lhe... E enquanto o mariola do meu parceiro lhe vai dizendo "eu não me importo", defende-se ela argumentando "que aqui todos usam assim". Resmungo-lhe, ainda que procurando ser simpático (ela é, de facto, e repito-me, bem apessoada e estava gentil), que esta é uma moda recente, estúpida, até de desrespeito, isto de chamar "meninos" aos homens. Ri-se, riposta que ao chamar-lhe eu "senhora" a estou a fazer mais velha do que é. Rendo-me, concedo-lhe que "quando cá voltar a Senhora pode chamar-me menino" (ela é, não sei se já o disse, bastante bem apessoada), "mas diga lá aos seus colegas para evitarem isso".
 
Mas de onde virá esta moda, absolutamente patética, de chamar "meninos" aos clientes? Esta gente anda a brincar com quem?

Arrancar - não sabem dizer outra coisa

Pedro Correia, 15.08.23

Ortelpa-sisyphus.jpg

 

De repente, palavras claras, genuínas e consagradas da nossa bela língua portuguesa parecem ter desaparecido do mapa.

 

Já mencionei noutro lado o ominipresente colocar, que por influência brasileira mandou borda fora o mais simples e directo verbo pôr. Como se estivesse amaldiçoado.

Uma praga também denunciada pelo escritor e linguista Manuel Monteiro no seu livro O Mundo Pelos Olhos da Língua (Objectiva, 2022), aqui recomendado. Em que reproduz várias frases que se tornaram ridículas desde que esta absurda tendência foi sendo imposta:

- «Não colocar os pés, obrigado.»

- «Colocaram as nossas vidas em perigo.»

- «As pessoas que comem peixe grelhado e depois colocam dois litros de azeite.»

- «Secretário-geral da ONU apela a Putin para colocar fim à invasão.»

- «Presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia coloca água na fervura.»

Enfim, um modismo que redundou num monumental disparate. Sucedem-se as frases abstrusas com este verbo em regime de monopólio. Debitadas até por forças políticas que se proclamam antimonopolistas.

 

coloca.jpg

 

Outros verbos que parecem cada vez mais fora de uso são começar ou iniciar. Substituídos ambos pelo feio e ambíguo arrancar. Este, agora, serve para tudo.

Ainda ontem ouvi, num noticiário da SIC: «A equipa minhota somou 1-0 e arrancou o campeonato com três pontos.»

Dois erros nesta frase. O primeiro, a utilização do verbo somar numa vitória futebolística de um-a-zero. O segundo, mais grave: este descabelado abuso do arrancar (que, não esqueçamos, significa puxar, partir, fugir, sair, extrair, colher, extirpar, remover, desenraizar, guilhotinar) como sinónimo exclusivo de começar.

Será atracção pelo erre dobrado? 

Ignoro. Mas não tenho a menor dúvida em concluir que estamos perante mais um disparate generalizado.

Cada ignorante copia o outro - e o resultado é este.

Ler (25)

Inflação de inúteis pronomes pessoais e possessivos

Pedro Correia, 12.08.23

F3.jpg


O livro é muito bom, uma obra-prima. Pena a tradução: abundam nela alguns dos maiores defeitos que vou verificando, em grau crescente. Importando uma estrutura lexical que nada tem a ver com a nossa.

Em português, subentendemos grande parte dos pronomes pessoais e possessivos - ao contrário do que sucede na língua inglesa, onde estes elementos são continuamente sublinhados. Redundâncias, do nosso ponto de vista.

Para traduzir de modo competente não basta dominar o idioma de partida: há que conhecer tão bem ou melhor o idioma de chegada. Sem esquecer que uma obra estrangeira se torna portuguesa ao ser vertida para a nossa língua. Destina-se a leitores portugueses, que interpretam textos e raciocinam de acordo com as nossas regras gramaticais, não em função de códigos normativos alheios.

Este saudável princípio não imperou na página de abertura do magnífico romance Luz em Agosto, de William Faulkner. Pelo contrário: a norma inglesa é metida a martelo na lingua portuguesa - e saem, portanto, frases repletas de inúteis possessivos que fui assinalando na mancha gráfica. 

Ela «só estivera em Doane's Mill depois de o seu pai e a sua mãe terem morrido». Tinha «os seus pés nus estendidos no fundo da carruagem». Ela havia pedido «ao seu pai para parar a carruagem nos arrabaldes da cidade». E ficamos a saber que «não diria ao seu pai «porque é que preferia caminhar em vez de continuar a cavalgar». Infelizmente, quando tinha apenas 12 anos, «o seu pai e a sua mãe morreram no mesmo Verão». Saberemos ainda que «a sua mãe morreu primeiro» e quando isso aconteceu «o seu pai» teve uma conversa com ela.

Isto, repito, só na página inicial - aqui reproduzida. Profusão de apêndices que fazem o leitor tropeçar a todo o momento, cortando o ritmo da escrita tal como a entendemos segundo as regras há muito fixadas no nosso idioma.

 

Maior ainda é a inflação dos pronomes pessoais. Na página 56, há um recorde batido: lemos trinta vezes «ele/eles», quase sempre com a função de sujeito. Outra redundância, tão gritante como a anterior.

Gerando frases como estas: «Eles pensaram sem dúvida que ele partiria agora, e a igreja organizou uma colecta para ele partir e se estabelecer noutro lado qualquer. Mas em seguida ele recusou-se a abandonar a cidade. Eles contaram a Byron sobre a consternação, mais do que a afronta, que sentiram, quando souberam que ele comprara a pequena casa na rua secundária onde ele hoje vive e tem vivido desde então; e os anciãos organizaram mais um encontro porque eles disseram que lhe tinham dado o dinheiro para partir, e se ele o gastara noutra coisa qualquer, então ele aceitara o dinheiro com falsas intenções. Eles foram ter com ele e disseram-lhe isto.»

 

F1.jpg

 

Um festival de pronomes. Sem seguir uma regra essencial deste nosso idioma que não nasceu ontem: a do sujeito subentendido.

«Em português, ao contrário do que acontece noutras línguas, não há necessidade de explicitar o sujeito em todas as frases ou orações. Tal acontece porque o português é "uma língua de sujeito nulo, ou seja, uma língua na qual um sujeito pronominal pré-verbal não tem necessariamente realização fonética".» Palavras de Eduardo Paiva Raposo, na Gramática do Português (edição Fundação Gulbenkian).

Os tradutores deviam assimilar estas normas antes de porem mãos à obra. Sobretudo quando lhes cabe a missão fundamental de introduzir obras-primas da literatura mundial no valioso espólio da língua portuguesa.

"Novo paradigma", patati-patatá

Pedro Correia, 23.06.23

Esta semana semana passei uma tarde a ouvir umas quantas luminárias discorrer sobre questões de magna irrelevância perante um reduzido auditório. E de novo pensei como se fala cada vez pior: o vocabulário está infestado de estrangeirismos dispensáveis, modismos de todo o tipo, eufemismos que dão vontade de bater em retirada. Uma espécie de linguajar de gestor bancário cruzado com jargão de treinador de futebol contamina o nosso léxico comum. Complicando o que é simples. E tornando demasiadas frases quase incompreensíveis.

Temos o fatal "colocar" usado e abusado, com exclusão total do claro e eficaz verbo "pôr". Ou "arrancar", que parece ter destronado por completo o singelo "começar". Ou "distinto", na sua ambiguidade semântica, como obstinado substituto de "diferente". E por aqui me fico: a lista seria imensa.

Fui ouvindo penosamente aquele patati-patatá infestado de conteúdos, disruptivo, perfomativo, implementar, sustentabilidade. Por parte de quem se propunha colocar a questão, abrir janelas de oportunidade, deixar tudo em cima da mesa, analisar o estado da arte, entoar hossanas ao novo paradigma

De repente parecem todos perorar à maneira do professor Boaventura numa prelecção do Centro de Estudos Sociais, em Coimbra.

Saí de lá com esta convicção: qualquer dia desaprendo de falar.

Ler (20)

Traduções com altos e baixos

Pedro Correia, 12.05.23

lombadas.jpg

Tenho mencionado várias vezes este assunto: a mania de atribuir diferentes títulos portugueses a obras de fama universal que há muito foram lançadas no nosso mercado e não cessam de regressar aos escaparates com novo embrulho.

Umas vezes é mera estratégia comercial: título alterado, para o leitor incauto, pressupõe obra diversa.

Outras vezes corresponde apenas à mania de "parecer diferente", mudando por mudar - quase sempre para pior.

Há ainda uma terceira hipótese, talvez a mais frequente: pura ignorância.

 

Há uns tempos, numa livraria em Lagos, vi estas duas edições emparelhadas - segundo a ordem alfabética, que prevalece nos postos de venda. As lombadas falam por si. À esquerda, a clássica tradução da obra-prima de Emily Brontë: O Monte dos Vendavais; à direita, o mesmo romance com título modificado. Para pior.

A Colina dos Vendavais: perde-se a toada de redondilha maior das sete sílabas poéticas do título original, modificando-a sem nenhum ganho de significado e óbvia perda de efeito estético.

É o que acontece quando se confia a tarefa a alguém incompetente.

085.webp

Emily Brontë tem pouca sorte com os tradutores portugueses. Já houve pior do que isto. No início da década de 70, as Publicações Europa-América lançaram este clássico de 1847 na sua popular colecção de livros de bolso com um título que não lembraria ao D. Fuas: O Monte dos Ventos Uivantes. Com cinco palavras, nove sílabas métricas e manifesta infidelidade não à letra mas ao espírito do texto original, aplicando-lhe uma lógica de google translate muito antes de esta ferramenta digital existir e quando nem a internet havia sido inventada.

Na década seguinte, a Dom Quixote deu à estampa outra versão portuguesa de Wuthering Heights com nova alteração de título: O Alto dos Vendavais. As traduções são mesmo assim: com altos e baixos.

descarregar.jpg

Há quem menorize estas subtilezas. Será certamente alguém com escassa ou nula sensibilidade literária. Cada língua tem a sua métrica e a sua música: se queremos traduzir bem, nunca podemos permanecer indiferentes a isto.

A implacável purga de palavras

Pedro Correia, 03.03.23

palavras.jpeg

 

Fiquei a saber, lendo o excelente blogue de Maria do Rosário Pedreira, que alguma luminária com assento no Instituto Camões decidiu carimbar com o rótulo palavras mortas «todas aquelas que não tenham sido utilizadas nos últimos três anos»

Não imagino como os burocratas desse instituto irão averiguar tal coisa. Sei, isso sim, que o tal organismo existe para preservar e valorizar a língua portuguesa, não para emitir certidões de óbito às palavras do nosso idioma. Se tivesse competência para tal, aliás, o Instituto Camões começaria por decretar «mortas» centenas de palavras impressas na obra maior do poeta que lhe dá nome. Palavras como ditosa [pátria], ínclita [geração], infidas [gentes], benignidade [real], avena [agreste], valerosos [feitos], procelosa [tempestade], fermosas [Ninfas], terríbil [Albuquerque].

Nem é necessário recuar tanto no tempo. No próprio século XX, muitas páginas escritas por Aquilino Ribeiro, Vitorino Nemésio, Tomaz de Figueiredo, Agustina Bessa-Luís e outros escritores estarão pejadas de «palavras mortas» à luz do tal critério daqueles anónimos burocratas.

 

«A redução de vocabulário nos últimos anos tem sido dramática. Não apenas do vocabulário culto que, não há muito tempo, faria parte do dia-a-dia numa família medianamente instruída. Mas daquele que transportava uma tradição ancestral», alertou-nos Mário de Carvalho no seu luminoso manual de escrita intitulado Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão

Maria do Rosário Pedreira dá exemplos de vocábulos que, segundo o mesmo padrão, já podem ser considerados letra morta: flausina, mastragança, bazulaque, amásia, lambisgóia. Aguarda-as o tal carimbo? Se isso acontecer, outros irão merecer extrema unção a um ritmo cada vez mais acelerado, como a escritora antecipa aqui. E não apenas palavras: também expressões idiomáticas.

De purga em purga, de depuração em depuração - até toda a riqueza semântica do nosso idioma, alicerçada num lastro de muitos séculos, se dissolver no básico linguajar de cafres que já polui o quotidiano, começando pelo das televisões e dos jornais. Que geram títulos como estes, encontrados na imprensa de hoje: «O dark side do Porto, anos 90»; «Sítio abre cowork em Aveiro»; «Como escapar ao burnout?»; «Traficantes go fast condenados por associação criminosa»; «58% dos trabalhadores remotos sentem-se engaged.». 

Parecemos condenados, em grau crescente, a balbuciar e rabiscar broken english: talvez isto mereça medalha do Instituto Camões.

 

P. S. - Sugiro aos leitores que escrevam aqui palavras raras, de que gostem, evitando assim que lhes seja emitida certidão de óbito.