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Delito de Opinião

O fim do sonho em seis segundos

Pedro Correia, 22.11.23

Sessenta anos depois, o mistério permanece. Quem foi o cérebro do assassínio de John Fitzgerald Kennedy? O 35.º presidente dos Estados Unidos terá sido vítima de um psicopata de 24 anos, munido de uma espingarda de 12 dólares que o alvejou com três tiros certeiros ao fim da manhã de 22 de Novembro de 1963 em Dallas, pondo fim em seis fatídicos segundos ao sonho americano?

Poucos acreditam hoje nesta versão do atirador solitário, tanto mais que o suposto homicida, Lee Harvey Oswald, viria por sua vez a ser assassinado, dois dias após a morte de Kennedy, na própria sede da polícia de Dallas por um indivíduo ligado à Mafia, chamado Jack Ruby.

A verdade é que nasceu aí a chamada “maldição Kennedy”, que viria a fazer outras vítimas. Três delas mulheres de algum modo ligadas ao jovem presidente que permaneceu apenas 1037 dias na Casa Branca.

 

A primeira foi amante de Kennedy entre 1961 e 1963. Chamava-se Mary Pinchot Meyer: era uma das mulheres mais deslumbrantes de Washington naquela época. Segundo os registos da Casa Branca, entrou 13 vezes no edifício naqueles dois anos –  a última visita ao presidente ocorreu escassos dias ante do crime de Dallas. O seu fim foi igualmente trágico: em Outubro de 1964, quando passeava junto a um canal em Georgetown, foi alvejada com dois tiros – um na cabeça, outro no coração. O assassino nunca foi capturado.

Outra tragédia envolveu uma jornalista da estação televisiva ABC, que gozou de uma fugaz celebridade. Lisa Howard tinha 37 anos em 1963, quando funcionou como intermediária entre Kennedy e Fidel Castro. Deslocou-se várias vezes a Havana, nesse ano, e tornou-se íntima dos dois dirigentes, formalmente inimigos. A morte de Kennedy inviabilizou a aproximação a Cuba. Lisa não tardou a ser despedida da ABC. A 4 de Julho de 1965, ingeriu uma dose fatal de barbitúricos.

Outra celebridade televisiva da época era Dorothy Kilgallen, única jornalista que conseguiu entrevistar Jack Ruby na prisão e se preparava para contar a história dele num livro. Também ela apareceu morta, no seu apartamento, a 8 de Novembro de 1965. Os capítulos do manuscrito sobre Ruby nunca foram encontrados.

 

Uma das mortes mais misteriosas de pessoas ligadas a John Kennedy ocorreu escassos dez dias após o assassínio do presidente. A 2 de Dezembro de 1963, Grant Stockdale, grande amigo de Kennedy, caiu de uma janela do seu gabinete, situado no 13º andar de um prédio de escritorios em Miami. Não deixou bilhete de suicídio.

Stockdale, corretor da Bolsa e antigo embaixador norte-americano na Irlanda, andaria com problemas financeiros e a notícia do assassínio de Kennedy ter-lhe-á agravado uma depressão. Mas não faltou quem especulasse que alguém o empurrara da janela para calar segredos ligados ao trágico fim do presidente. Meses antes, quando velejavam em Palm Beach, Kennedy perguntara-lhe: “Achas que vou ser assassinado?” A pergunta – premonitória – ficou a pairar para sempre na memória perturbada de Grant Stockdale.

“Teria Oswald agido sozinho?”, questionava a capa da Life, na edição de 25 de Novembro de 1966. Poucos acreditam hoje nisso. E a maldição Kennedy permanece.

 

Texto reeditado

 

 

Imagens:

1. John Kennedy  

2. Mary Pinchot Meyer

3. Grant Stockdale com Kennedy

4. Lisa Howard com Fidel Castro

Ler (17)

O prazer da descoberta de revistas antigas

Pedro Correia, 28.01.23

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De novo confesso a minha paixão por frequentar alfarrabistas. Não apenas para adquirir livros antigos (como os três volumes da Guerra e Paz, em estado impecável, na edição portuguesa de 1957 com tradução do filósofo José Marinho), mas também revistas. Volta e meia, num dos meus alfarrabistas preferidos, abasteço-me de exemplares antigos da Paris Match, que ainda se publica. 

Já tinha falado disso aqui, há mais de dois anos, estávamos ainda aprisionados pela pandemia. Regressei lá recentemente, trouxe mais umas quantas. E deixo-me absorver por estes restos de uma colecção particular, agora desfeita certamente por decisão dos herdeiros.

Como se mergulhasse noutros tempos, contemporâneos ou anteriores ao dia em que nasci, e testemunhasse quase em directo acontecimentos entretanto transportados para enciclopédias e manuais de História. 

 

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«Isabel e Filipe reunidos em Lisboa», proclama um dos títulos. É o da edição n.º 412, de 2 de Março de 1957. Sobre a Rainha britânica, há pouco falecida, e o seu marido, o Duque de Edimburgo, que morreu quase centenário em Maio de 2021. Então eram ainda jovens, tinham décadas de vida à sua frente. 

Com três enviados especiais, a Paris Match faz uma cobertura exaustiva em 12 páginas da visita da monarca a Portugal, onde reencontrou o marido, que andara em missão oficial à volta do globo. Após 125 dias de separação, «uma nova lua-de-mel» começou em Lisboa, assinalaram os repórteres. Com excelentes fotografias em destaque, nunca funcionando como tapa-buracos de textos. 

 

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Somos, assim, testemunhas da História.

O primeiro sorriso de Isabel, desembarcada no Tejo, para o marido. Ao lado, o Presidente Craveiro Lopes (Lopez, lia-se na legenda).

O desfile pela capital, no mesmo coche real que transportara o seu bisavô Eduardo VII em 1903, na anterior visita de um monarca britânico.

A passagem pelo Rossio, cheio de mirones «até nas árvores», como assinalava a revista, com um mar de gente a gritar «Isabel!». Num país onde as manifestações populares estavam proibidas.

As imagens do faustoso esplendor na tribuna presidencial do Teatro de São Carlos, com Salazar - rara aparição em eventos públicos - num discreto segundo plano.

Uma extraordinária fotografia do jovem casal numa apoteótica recepção no Porto, cidade que a Rainha quis expressamente conhecer, em visita à margem do protocolo de Estado. 

 

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Portugal surge em foco noutra revista. A n.º 618, de 11 de Fevereiro de 1961. Dedicada em grande parte ao assalto ao Santa Maria, então emblema máximo dos nossos navios dedicados ao turismo de luxo.

Paris Match foi o primeiro grande título da imprensa internacional a embarcar no paquete com centenas de passageiros à mercê de um grupo armado luso-espanhol de opositores de Salazar e Franco. Os repórteres chegaram da forma mais insólita: de pára-quedas. Um deles, falhando o salto devido ao vento, passou longos momentos de angústia no mar, rodeado de tubarões.

Era o fotojornalismo no apogeu, muito antes da tecnologia digital e dos actuais meios de transmissão de imagens e texto.

Mergulho com assombro neste trabalho que valeu à Match reputação mundial. Com fotos exclusivas dos passageiros (incluindo muitas crianças), dos tripulantes portugueses e dos assaltantes, com destaque para o comandante dos "corsários": Henrique Galvão (a quem a revista chama Enrique Galvao), ex-salazarista convicto convertido à causa da democracia e apostado no derrube violento de Salazar.

 

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Tantas outras histórias estas revistas continuam a narrar-nos, várias décadas após terem sido impressas.

A edição n.º 749, de 17 de Agosto de 1963, informava que a vivenda californiana de Marilyn Monroe, ali falecida um ano antes numa noite em que não conseguiu suportar a solidão, acabara de ser vendida. Um letreiro, colocado no exterior do portão, confirmava com linguagem expedita de negociante americano: «Vendida - mas temos outras». Ignorava-se a identidade do novo proprietário, mas a Match desvendava um segredo: Joe di Maggio, o segundo dos três maridos da malograda actriz, mandava depor rosas no seu túmulo três vezes por semana.

Na edição n.º 625, de 1 de Abril de 1961, com a deslumbrante actriz belga Catherine Spaak na capa, deparo com este título: «Gable júnior repõe na viúva um sorriso de mamã.» Nascia o filho póstumo de Clark Gable, quatro meses após o súbito desaparecimento do intérprete de E Tudo o Vento Levou. A vida imitando a ficção, em toada de melodrama: o eterno galã das matinés sempre alimentara o sonho de ser pai. Aconteceu, mas já cá não estava para conhecer o bebé.

 

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Regresso à edição n.º 749: o destaque vai para o Presidente norte-americano. De semblante sombrio, nada sorridente. O casal John e Jacqueline acabava de perder Patrick: o filho recém-nascido sucumbira ao fim de dois dias, naquele funesto Agosto, vítima de graves problemas respiratórios. 

Um instantâneo revelava-nos um Kennedy destroçado, ao fundo de um elevador que o conduzia ao quinto andar do hospital onde iria velar o filho que mal chegara a viver. «Como o Presidente foi apenas um pai dorido», proclama o título. 

A revista desfia pormenores. Jackie transportada de helicóptero para o hospital quando se encontrava na casa de praia e logo submetida a uma cesariana, o marido interrompendo uma audiência na Casa Branca com membros do Comité Contra os Ensaios Nuclares e voando para Boston. Depois, horas de angústia perante a incubadora: o recém-nascido nem tinha força para chorar. Foi o próprio John a dar a desoladora notícia à mulher, ainda a recuperar do parto prematuro.

Tragédia no sonho americano. Como se antecipasse um luto de muito maior impacto, prestes a chegar, três meses depois. Com Kennnedy ceifado por balas traiçoeiras em Dallas que lhe roubaram a vida e abalaram o mundo.

Fragmentos de História. Que nos elucidam, comovem e deslumbram em simultâneo. 

O guarda-chuva de Chamberlain

Pedro Correia, 06.11.19

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As primárias do Partido Democrata norte-americano, em 1960, foram extremamente concorridas. Entre os candidatos, destacavam-se John Fitzgerald Kennedy – representante da elite da Nova Inglaterra, sofisticada e liberal – e Lyndon Baines Johnson, um texano até à medula, representante da chamada "América profunda", com raízes rurais e esclavagistas.
Estava em causa a escolha do nome que iria apresentar-se contra um candidato forte: o republicano Richard Nixon, vice-presidente do inquilino cessante da Casa Branca, Dwight David Eisenhower.
Kennedy e Johnson, cada qual apostado na vitória, esgrimiram argumentos e trocaram ríspidas acusações durante esta animada campanha interna, que culminou na convenção de Los Angeles em Julho de 1960. A dado momento, Johnson – que era o líder dos democratas no Senado – atacou John Kennedy em termos pessoais, não poupando sequer o pai do seu rival, o milionário Joseph Patrick Kennedy, que quando foi embaixador dos Estados Unidos em Londres, entre 1938 e 1940, revelou alguma simpatia pela Alemanha nazi.
«O meu pai nunca andou a segurar no guarda-chuva de Chamberlain», disparou Johnson, aludindo ao primeiro-ministro que capitulou perante Hitler em Munique. O que revela bem até que ponto o debate aqueceu nessa convenção do tudo-ou-nada.
 

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Kennedy conquistou a nomeação democrata – com 806 votos dos delegados, contra 409 recolhidos por Johnson e 287 distribuídos por vários outros concorrentes, entre os quais Adlai Stevenson, Hubert Humphrey e Stuart Symington. E logo o primeiro gesto público que assumiu, aliás incompreendido à época por vários colaboradores, foi estender a mão ao seu principal rival no interior do partido, convidando-o a ser o candidato à vice-presidência.

Uma aposta que valeu a pena. Em Novembro desse ano, a dupla John Fitzgerald Kennedy-Lyndon Baines Johnson bateu os republicanos por margem muito escassa: cerca de 110 mil votos. Sem a junção dos dois nomes complementares, concluem hoje os historiadores sem sombra de dúvida, a derrota dos democratas teria sido inevitável.

Apeteceu-me fazer esta digressão histórica para assinalar o contraste entre dois modos muito diferentes de estar na política: o que Kennedy revelou em 1960, superando até agravos pessoais, e o de políticos contemporâneos, nomeadamente em Portugal, que preferem subtrair em vez de somar. Como se o verdadeiro adversário estivesse intramuros e não no exterior. E como se não precisassem de cada militante nos combates eleitorais. Vivem obcecados com o guarda-chuva de Chamberlain, que nunca protegeu ninguém contra intempéries políticas.

O mito Kennedy.

Luís Menezes Leitão, 22.11.18

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O Pedro lembra abaixo a efeméride de hoje passarem 55 anos sobre o assassinato de John F. Kennedy que criou um enorme mito na política americana. Aqueles que morrem jovens normalmente atingem o estatuto de heróis, uma vez que todos têm tendência para assumir que iriam deixar grandes realizações neste mundo e que só a morte prematura os impediu de fazer aquilo a que estavam destinados. Kennedy, vítima de um brutal assassinato dramaticamente relatado nos media, com um enterro de estado transmitido a todo o país, em que os americanos viram uma jovem viúva de 30 anos destroçada e um filho de três anos a fazer a continência, atingiu precisamente esse estatuto.

O problema é que devido a esse mito, nunca foram escrutinadas as enormes fragilidades da presidência de Kennedy. Começou logo com a sua ligação à Mafia, via Sam Giancana, de quem se diz que organizou uma verdadeira chapelada eleitoral nos estados decisivos, permitindo a derrota de Nixon. Prosseguiu com o ataque a Cuba na Baía dos Porcos, um fracasso total, e depois com a tentativa de assassinar Fidel Castro, através do recrutamento de uma sua amante. O resultado foi Castro ter aceitado colocar mísseis dirigidos aos Estados Unidos em Cuba, o que quase colocou o mundo à beira de uma guerra nuclear, apenas resolvida com uma negociação secreta por troca com os mísseis na Turquia, mas que Kennedy nunca quis assumir. Tal contribuiu para a queda de Kruschev, substituído por Brezhnev, cujo radicalismo fez adiar por décadas o fim da guerra fria. Os seus apoiantes garantem que Kennedy era um pacifista e iria retirar as tropas americanas do Vietname, mas não ele nunca deu qualquer sinal nesse sentido.

Em relação ao assassinato de Kennedy, para mim é manifesto que Oswald não agiu sozinho e não faltam candidatos a mandantes, desde a Máfia (que nunca perdoou o facto de Kennedy não lhe ter retribuído o apoio na campanha eleitoral) aos cubanos (devido aos sucessivos ataques a Cuba) e aos soviéticos (furiosos com a forma como a resolução da crise dos mísseis foi anunciada publicamente). Se tivesse que apostar, apostaria em que o mandante foi Fidel Castro. Oswald tinha ligações a Cuba, o que me leva a crer que, se Kennedy falhou na tentativa de matar Fidel Castro, Castro não falhou no objectivo de assassinar Kennedy. A tentativa da administração Johnson de apresentar o crime como um acto isolado tem a explicação de que a divulgação do verdadeiro mandante levaria necessariamente a uma guerra nuclear, o que se quis prevenir depois da crise dos mísseis. A razão de Estado muitas vezes suplanta o sentimento.

O fim do sonho em seis segundos

Pedro Correia, 22.11.18

 

Cinquenta e cinco anos depois, o mistério permanece. Quem foi o cérebro do assassínio de John Fitzgerald Kennedy? O 35º presidente dos Estados Unidos terá sido vítima de um psicopata de 24 anos, munido de uma espingarda de 12 dólares que o alvejou com três tiros certeiros ao fim da manhã de 22 de Novembro de 1963 em Dallas, pondo fim em seis fatídicos segundos ao sonho americano?

Poucos acreditam hoje nesta versão do atirador solitário, tanto mais que o suposto homicida, Lee Harvey Oswald, viria por sua vez a ser assassinado, dois dias após a morte de Kennedy, na própria sede da polícia de Dallas por um indivíduo ligado à Mafia, chamado Jack Ruby.

A verdade é que nasceu aí a chamada “maldição Kennedy”, que viria a fazer outras vítimas. Três delas mulheres de algum modo ligadas ao jovem presidente que permaneceu apenas 1037 dias na Casa Branca.

 

 

A primeira foi amante de Kennedy entre 1961 e 1963. Chamava-se Mary Pinchot Meyer: era uma das mulheres mais deslumbrantes de Washington naquela época. Segundo os registos da Casa Branca, entrou 13 vezes no edifício naqueles dois anos –  a última visita ao presidente ocorreu escassos dias ante do crime de Dallas. O seu fim foi igualmente trágico: em Outubro de 1964, quando passeava junto a um canal em Georgetown, foi alvejada com dois tiros – um na cabeça, outro no coração. O assassino nunca foi capturado.

Outra tragédia envolveu uma jornalista da estação televisiva ABC, que gozou de uma fugaz celebridade. Lisa Howard tinha 37 anos em 1963, quando funcionou como intermediária entre Kennedy e Fidel Castro. Deslocou-se várias vezes a Havana, nesse ano, e tornou-se íntima dos dois dirigentes, formalmente inimigos. A morte de Kennedy inviabilizou a aproximação a Cuba. Lisa não tardou a ser despedida da ABC. A 4 de Julho de 1965, ingeriu uma dose fatal de barbitúricos.

Outra celebridade televisiva da época era Dorothy Kilgallen, única jornalista que conseguiu entrevistar Jack Ruby na prisão e se preparava para contar a história dele num livro. Também ela apareceu morta, no seu apartamento, a 8 de Novembro de 1965. Os capítulos do manuscrito sobre Ruby nunca foram encontrados.

 

Uma das mortes mais misteriosas de pessoas ligadas a John Kennedy ocorreu escassos dez dias após o assassínio do presidente. A 2 de Dezembro de 1963, Grant Stockdale, grande amigo de Kennedy, caiu de uma janela do seu gabinete, situado no 13º andar de um prédio de escritorios em Miami. Não deixou bilhete de suicídio.

Stockdale, corretor da Bolsa e antigo embaixador norte-americano na Irlanda, andaria com problemas financeiros e a notícia do assassínio de Kennedy ter-lhe-á agravado uma depressão. Mas não faltou quem especulasse que alguém o empurrara da janela para calar segredos ligados ao trágico fim do presidente. Meses antes, quando velejavam em Palm Beach, Kennedy perguntara-lhe: “Achas que vou ser assassinado?” A pergunta – premonitória – ficou a pairar para sempre na memória perturbada de Grant Stockdale.

“Teria Oswald agido sozinho?”, questionava a capa da Life, na edição de 25 de Novembro de 1966. Poucos acreditam hoje nisso. E a maldição Kennedy permanece.

 

Texto reeditado

 

 

Imagens:

1. John Kennedy  

2. Mary Pinchot Meyer

3. Grant Stockdale com Kennedy

4. Lisa Howard com Fidel Castro

A glória póstuma do assassino

Pedro Correia, 05.06.18

 

Há um nome de um assassino que nunca me sairá da memória: Sirhan Bishara Sirhan. Foi o indivíduo que matou traiçoeiramente Robert Kennedy, irmão do malogrado presidente, na cozinha de um hotel em Los Angeles, quando o ex-procurador-geral dos EUA, com apenas 42 anos, acabava de ganhar a decisiva primária da Califórnia pelo Partido Democrata, o que o colocava em excelente posição para concorrer à Casa Branca.

Corria o mês de Junho de 1968 - faz hoje 50 anos. Eu era um miúdo mas já acompanhava com todo o interesse as imagens dos telejornais e Robert Kennedy foi o primeiro dos meus heróis. Fixei para sempre o rosto escuro e triste daquele indivíduo natural da Palestina que, ao premir o gatilho, matou também para sempre os sonhos de milhões de norte-americanos. Escapou por um triz a ser executado, após ter sido condenado à morte, pois a pena capital acabou entretanto por ser abolida no estado da Califórnia, e ainda hoje está detido. Um destino bem diferente do de Lee Harvey Oswald, o assassino de John Fitzgerald Kennedy a 22 de Novembro de 1963 e por sua vez assassinado dois dias mais tarde, em Dallas, por um tal Jack Ruby, figura do bas fond. Este último foi o primeiro homicídio transmitido em directo pela televisão – para os EUA e para o mundo todo. Algo impensável em 14 de Abril de 1865, quando John Wilkes Booth assassinou o presidente Abraham Lincoln enquanto este assistia a uma representação teatral em Washington.

Tenho pensado muitas vezes neste primeiro magnicídio que vi noticiado. Pensei nele, por exemplo, a propósito do massacre na Noruega ocorrido em Agosto de 2011. O que assassinos deste calibre procuram, sob um pretexto político, religioso ou outro qualquer, é um grau máximo de notoriedade – se possível à escala universal. A repetição até à náusea do seu nome, nos mais diversos órgãos de informação, constitui uma homenagem involuntária à barbaridade do acto que praticou. O seu nome banaliza-se, ganhando uma espécie de estatuto de imortalidade. Foi assim com Booth, foi assim com Oswald.

 

 

É por isto que me revejo por inteiro nestas linhas que Jorge Almeida Fernandes escreveu há sete anos no Público. «Em Julho de 356 a.C um anódino Eróstrato incendiou o Templo de Artemisa, em Éfeso, de que se dizia ser uma das “sete maravilhas do mundo”. Assumiu que o fizera como desesperado meio de alcançar a glória. O sacrilégio foi condenado com a morte. Como póstuma punição, os magistrados proibiram os efésios de jamais citarem o seu nome, que foi também apagado de todos os documentos. Mas um historiador de outra cidade nomeou-o, outros o repetiram e Eróstrato entrou na História. Ninguém conhece o nome do arquitecto que desenhou o templo de Éfeso. Tal como Eróstrato, B. está a ganhar.»

B. é o assassino norueguês. Sempre me recusei a escrever e até a fixar o seu nome. Como certamente sucedeu com Almeida Fernandes, indignou-me vê-lo a toda a hora impresso e difundido pelos órgãos de informação. Como se de um filantropo ou um benemérito se tratasse. Como se fosse uma figura familiar, muito lá de casa. Como, no fundo, fosse um de nós.

Não é um de nós. Nenhum assassino merece integrar-se no nosso reduto íntimo. Por mim, nenhum jornalista deveria atribuir-lhe o estatuto de Eróstrato do nosso tempo. Retemos na memória o nome de demasiados assassinos, o que constitui uma espécie de caução póstuma aos seus actos criminosos. Entristece-me saber que jamais apagarei da memória o nome de Sirhan Bishara Sirhan – o primeiro homicida de que ouvi falar quando percebi, menino ainda, que o Mal é capaz de triunfar sobre o Bem e assombrar-nos para sempre. Como um lado lunar dos contos de fadas. Na vida, ao contrário do que sucedia nos filmes e séries da nossa infância, nenhum final feliz está garantido.

 

Texto reeditado e adaptado, no dia do 50.º aniversário do assassínio de Robert Kennedy

Não é Kennedy quem quer.

Luís Menezes Leitão, 11.02.18

Um dos factos que mais marcaram a ascensão de John F. Kennedy a presidente dos Estados Unidos foi a sua defesa intransigente da independência da Argélia. Num discurso de 2 de Julho de 1957, o jovem senador do Massachussets defendeu perante o senado que a atitude dos Estados Unidos perante a questão da Argélia se caracterizava pelo abandono dos princípios da independência e do anticolonialismo, que não se podia justificar nem por amabilidades diplomáticas, nem por subtilezas jurídicas, nem mesmo por considerações estratégicas. Os Estados Unidos, que tinham nascido de uma revolução política, deveriam ganhar o respeito e a amizade dos líderes nacionalistas.

 

A mesma consideração deveria aplicar-se a Portugal, que obteve a independência contra o domínio espanhol, e por isso não deveria deixar de se mostrar solidário com a situação da Catalunha, onde políticos se encontram presos pelas suas convicções e onde um parlamento democrático está impedido de eleger como presidente do governo o líder que escolheu. António Costa tinha possibilidade de marcar alguns pontos nesta questão, mas preferiu as amabilidades diplomáticas e as considerações estratégicas aos princípios. Está visto que não é Kennedy quem quer.

Blogue da semana

Pedro Correia, 12.11.17

A poucos dias da passagem do 54.º aniversário do assassínio de John Kennedy, recomendo a leitura deste blogue norte-americano que reúne textos e documentos sobre aquele magnicídio que mudou a América e chocou o mundo. JFK Lancer não esconde ao que vem: os seus autores estão convictos de que houve uma conspiração para matar Kennedy e que o crime nunca foi devidamente investigado. Convicção reforçada pela recente decisão do Presidente Trump de tornar públicos 3.100 documentos que tinham permanecido secretos até agora.

Recomendável, portanto, aos apaixonados de História e a todos os amantes das teorias da conspiração. Aqui fica, como nosso blogue da semana.

 

Leitura complementar:

O fim do sonho em seis segundos

Claro, conciso e compreensível

A última manhã de John Kennedy

No centenário de John F. Kennedy

O esquecimento e a desmemória

Pedro Correia, 29.05.17

Caroline with her father, President John F. Kennedy

 

Em quatro dos cinco jornais diários generalistas de âmbito nacional que ainda se publicam em papel entre nós, não há hoje uma linha sobre o centenário de John Fitzgerald Kennedy, nascido a 29 de Maio de 1917.

Se o 35.º Presidente dos EUA tivesse sido futebolista, certamente não faltaria espaço para a efeméride num país onde dois canais de televisão supostamente especializados em "notícias" ocupam mais tempo a palrar sobre as tricas do futebol do que sobre qualquer outro tema.

Gastam-se demasiadas palavras a propósito da crise do jornalismo contemporâneo enquanto faltam exemplos concretos que configurem a tradução prática dessa crise - que é de modelo editorial, acima de tudo.

Pois aqui está um. Que devia envergonhar estes jornais que cultivam o esquecimento e se comportam como se a desmemória fosse uma virtude.

No centenário de John F. Kennedy

Pedro Correia, 23.05.17

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«Ele adorava ser Presidente.»

Arthur Schlesinger

 

A autoconfiança é um atributo fundamental num político. John Kenneth Galbraith notou certa vez que nunca tinha conhecido um homem tão confiante em si próprio como John Fitzgerald Kennedy – o que serve para explicar grande parte do sucesso do 35.º Presidente dos EUA, nascido a 29 de Maio de 1917, faz dentro de poucos dias um século.

Na fascinante obra The Best and the Brightest, dedicada aos bastidores da presidência Kennedy, David Halberstam mostra-nos outra característica do inquilino da Casa Branca que viria a ser assassinado em Dallas: ele era exactamente como parecia. Ao contrário de outros políticos, que fazem tudo para parecer o que não são, Kennedy tinha uma autenticidade que empolgava os adeptos e desarmava os adversários. Isto ajuda a explicar a sua inédita popularidade: atingiu uma extraordinária taxa de aprovação -- 83% -- e à data da sua morte, segundo a Gallup, era aplaudido por 70% dos americanos.

Galbraith e Halberstam falam com conhecimento directo: ambos conheceram pessoalmente Kennedy e privaram com ele.

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Há um episódio da disputadíssima campanha eleitoral de 1960 que ilustra bem tudo isto: a certa altura alguém pergunta a Kennedy se não se sente exausto. A resposta, negativa, veio num sorriso. Mas o então senador do Massachusetts que se candidatava à Casa Branca pelo Partido Democrata acrescentou ter a certeza de que o seu antagonista republicano, Richard Nixon, se encontrava à beira da exaustão (o que mais tarde se provaria ser verdade). E como é que Kennedy sabia isto? O futuro presidente esclareceu o seu interlocutor: «Sei bem quem sou e não tenho de me preocupar em adaptar-me ou transformar-me. Tudo quanto tenho que fazer, em cada etapa da campanha, é mostrar-me tal como sou. Mas Nixon não sabe bem quem é. Portanto, cada vez que faz um discurso tem de decidir que face dele próprio irá mostrar, o que deve ser extenuante.»

Assim foi. Enquanto na campanha de 1960 Nixon se esforçava sempre por aparentar o que não era, Kennedy jamais fazia um esforço nesse sentido: a imagem que projectava dizia muito do que ele era de facto, o que lhe dava uma vantagem sobre o principal rival. Isto é um traço de carácter que deve ser valorizado num político.

 

Oriundo de uma família milionária de Boston, herói da II Guerra Mundial, congressista e depois senador pelo Massachusetts, galardoado em 1957 com o Prémio Pulitzer pelo seu livro Retratos de Coragem e o mais jovem Presidente eleito desde sempre pelo Partido Democrata, em Novembro de 1960, Kennedy tinha uma sólida cultura e um dos mais fascinantes percursos biográficos de que há memória entre os inquilinos da Casa Branca.

Filho do embaixador americano em Londres, Joseph Patrick Kennedy, tinha 22 anos quando assistiu à declaração de guerra britânica à Alemanha, na manhã de 3 de Setembro de 1939, na galeria dos visitantes da Câmara dos Comuns. Um episódio que nunca mais esqueceu.

 

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 Com Willy Brandt e Adenauer em Berlim (Junho de 1963)

 

A frase que mais contribuiu para imortalizar John Fitzgerald Kennedy no decurso dos 1037 dias do seu mandato na Casa Branca não foi pronunciada em inglês, mas em alemão. Ao declarar-se cidadão de Berlim no local mais emblemático da Guerra Fria, por onde passava a última fronteira do mundo livre. Ninguém imaginava, nesse dia 26 de Junho de 1963, que o seu mandato terminaria menos de cinco meses depois, ao fim de uma manhã de sol outonal no Texas.

Muita gente ignora que essa frase não constava da versão original do seu discurso. Foi o próprio Kennedy que decidiu pronunciá-la enquanto a viatura que o conduzia nas avenidas de Berlim era saudada por multidões entusiásticas vitoriando o seu nome. Fora-lhe sugerida pelo principal conselheiro do presidente -- o seu irmão Robert Kennedy, na altura procurador-geral dos EUA.

«Há dois mil anos a afirmação mais orgulhosa era Civis romanus sum. Hoje, no mundo da liberdade, a afirmação mais orgulhosa é Ich bin ein Berliner», declarou o líder norte-americano nas imediações do Muro da Vergonha erigido apenas dois anos antes pelos soviéticos na cidade dividida.

 

A génese desta frase ilustra bem a forma de trabalhar de Kennedy, um homem que gostava de funcionar em equipa e absorvia com rara intuição as melhores sugestões da sua competentíssima equipa de conselheiros. Três deles, curiosamente, oriundos das fileiras do Partido Republicano -- o secretário da Defesa, Robert McNamara, o secretário do Tesouro, C. Douglas Dillon, e o conselheiro da Segurança Nacional, McGeorge Bundy. O facto de serem simpatizantes do partido rival -- e um deles, Dillon, ter chegado a integrar a anterior administração Eisenhower e a contribuir com 26 mil dólares para a campanha presidencial de Nixon -- não os impediu de atingir o primeiro plano no Executivo democrata, prova evidente do rasgo político de Kennedy.

Ao ser convidado para liderar o Pentágono, McNamara reagiu com surpresa, dizendo que não tinha experiência governativa. «Também não há escola para presidentes. Aprenderemos juntos», respondeu-lhe o inquilino da Casa Branca.

 

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Precursor em vários domínios, estava vinte anos à frente da maioria dos políticos seus contemporâneos.

Foi ele que pela primeira vez compreendeu a importância da televisão -- ao ponto de se ter inscrito em 1959 num curso da CBS destinado a dominar as técnicas televisivas.

Foi também o primeiro presidente a conceder conferências de imprensa regulares na Casa Branca e a responder em directo aos repórteres da TV.

Deu um toque majestático à presidência com os banquetes de Estado aos visitantes, inspirado na recepção de que foi alvo no Palácio de Buckingham em Junho de 1961.

Baptizou o avião presidencial -- um Boeing 707 -- com o nome Air Force One, «para que descesse dos céus como símbolo do próprio poder presidencial».

Transformou os assessores da Casa Branca em decisores políticos, instituindo o cargo de conselheiro da Segurança Nacional, mais importante do que muitos postos no Governo.

 

A ida de Kennedy a Berlim naqueles escaldantes dias de Guerra Fria revelou muita coragem. Coragem política e até coragem física: basta lembrar que a actual capital alemã era então um minúsculo enclave no império comunista, armado até aos dentes. Também por esse atributo ele é lembrado. E ainda pelo desassombro intelectual, de que deu inúmeras provas. É aliás muito interessante verificar como várias frases que proferiu em discursos entraram na linguagem comum, tornando-se deste modo património universal.

Eis algumas:

«Não perguntem ao vosso país o que poderá fazer por vós, perguntem a vós próprios o que podereis fazer pelo vosso país.»

«Se uma sociedade livre não consegue ajudar os seus inúmeros pobres, não conseguirá salvar os seus raros ricos.»

«Nunca negociemos por medo -- mas nunca tenhamos medo de negociar.»

«A vitória tem muitos pais, mas a derrota é órfã.»

«A corrida ao armamento deve ser extinta antes que nos extinga a nós.»

«Apoiamos qualquer amigo e enfrentamos qualquer inimigo para assegurar a sobrevivência e o êxito da liberdade.»

«Não procuremos a resposta republicana ou a resposta democrata, mas a resposta certa.»

«Decidimos ir à Lua nesta década não porque seja fácil mas porque é difícil.»

 

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 Na campanha presidencial de 1960

 

Outra virtude: onde outros viam problemas, ele via oportunidades.

Ao conquistar a nomeação democrata no Verão de 1960 após uma fracturante campanha interna – com 806 votos dos delegados, contra 409 recolhidos por Lyndon Johnson e 287 distribuídos por outros concorrentes - logo o seu primeiro passo, aliás incompreendido à época por vários colaboradores, foi estender a mão ao principal rival no interior do partido, convidando-o a ser o candidato à vice-presidência. Uma aposta que valeu a pena. Em Novembro desse ano, a dupla Kennedy-Johnson bateu os republicanos por margem muito escassa: cerca de 110 mil votos. Sem a junção dos dois nomes complementares, concluem hoje os historiadores, a derrota dos democratas teria sido inevitável.

 

«Ele adorava ser presidente», lembrava o historiador Arthur Schlesinger, que também integrou  a administração Kennedy, como biógrafo oficial, apontando desta forma um dos ingredientes do sucesso deste mandato: um político que não goste do que faz está condenado a fracassar.

Hoje olhamos para a presidência Kennedy e parece-nos «um período quase idílico» de paz e prosperidade, como acentua outro dos seus biógrafos. É sempre assim: só a passagem do tempo presta verdadeira justiça aos políticos, separando os estadistas dos restantes. Kennedy foi um estadista: isso é o que importa celebrar neste centenário.

A última manhã de John Kennedy

Pedro Correia, 22.11.14

 

Imagens que permaneceram inéditas durantes longos anos. Imagens que ainda hoje comovem e impressionam. As da última manhã de vida de John Fitzgerald Kennedy, 35º presidente dos Estados Unidos, assassinado numa sexta-feira, faz hoje 51 anos. Ao pequeno-almoço em Fox Worth, perante duas mil pessoas, ofereceram-lhe um típico chapéu texano que ele prometeu usar na segunda-feira seguinte, na Casa Branca.

Nunca viria a cumprir a promessa. Tudo porque a chuva matutina em Dallas deu lugar a um radiante sol de Outono. Foi quanto bastou para que a capota do Lincoln Continental, a limusina do presidente, fosse recolhida e o veículo rodasse descapotável pelas ruas da cidade.

"Um caloroso acolhimento ao presidente. Não houve perigo de qualquer espécie. E não há vestígio de reacções adversas à visita presidencial. Foi um grande espectáculo: Dallas não voltará a ver outro durante muito tempo", declarou o jornalista que relatava a emissão televisiva em directo no momento em que a caravana presidencial fazia a curva em cotovelo na Praça Dealey, virando à esquerda para entrar na Elm Street.

A última curva na vida de Kennedy. Segundos depois das palavras insolitamente proféticas do jornalista, um tiro disparado de uma janela do terceiro andar de um armazém de livros escolares desfez a caixa craniana do homem mais poderoso do planeta, mudando a história dos EUA.

Um golpe do acaso conduziu ao fatídico desfecho, pressionando o dedo que o assassino já tinha no gatilho. E tudo poderia ter sido bem diferente: bastaria que a chuva tivesse continuado a cair em Dallas durante mais um par de horas.

Claro, conciso e compreensível

Pedro Correia, 22.11.13

 

Tantas teorias já li até hoje sobre jornalismo. E nenhuma delas consegue deslustrar a mais clássica de todas: o jornalista deve escrever de forma clara, concisa e compreensível sobre acontecimentos a que assistiu ou que foram presenciados por testemunhas idóneas. Tudo o resto são variações a esta regra de bronze da profissão que tem sido exemplarmente aplicada por várias gerações de jornalistas.

Lembrei-me disto há dias, ao saber da morte de Tom Wicker, o enviado especial do New York Times a Dallas para cobrir a visita que o presidente John Kennedy ali fez a 22 de Novembro de 1963. Previa-se um serviço de rotina: multidão entusiástica nas ruas e palavras inspiradoras do inquilino da Casa Branca, que já pensava na campanha para a reeleição. Mas um jornalista nunca deve encarar nenhum serviço como rotina: a qualquer momento, em qualquer lugar, a História irrompe em letras de ouro ou letras de sangue. Compete-lhe estar no seu posto, como escritor do primeiro rascunho das enciclopédias e dos compêndios do futuro. Tão perto quanto possível do acontecimento, como ensinou Robert Capa, o mais célebre fotojornalista de todos os tempos. "Se a fotografia não ficou boa foi porque não estavas suficientemente próximo", sublinhava.

Tom Wicker estava no lugar certo, a bordo de um autocarro que integrava a caravana presidencial, quando dois dos três tiros disparados pela carabina de Lee Oswald mataram Kennedy, por volta das 12.30 desse fatídico dia. E o despacho que pouco depois enviou para o New York Times, a partir de uma cabina telefónica do aeroporto de Dallas, destacou-se como uma pequena obra-prima de rigor e concisão.

 

Eis as primeiras linhas:

"O Presidente Kennedy foi hoje alvejado e assassinado por um homicida. Morreu devido a uma lesão no cérebro causada pela bala de uma espingarda contra ele disparada enquanto percorria o centro de Dallas em caravana automóvel. O vice-presidente Lyndon Baines Johnson, que seguia no terceiro carro atrás de Kennedy, foi investido como 36º Presidente dos EUA 99 minutos após a morte do antecessor."

 

Nada de floreados, nada de torrente emocional, nenhuma concessão ao sentimentalismo. O jornalista encheu o seu relato de informação -- os substantivos não cediam espaço aos adjectivos nesta prosa clara e tensa, como o disparo de uma objectiva fotográfica. Isto apesar de naquele dia Wicker não ter visto partir apenas o presidente: perdeu também alguém que lhe era muito próximo e com quem conviveu diariamente durante três anos -- primeiro como repórter da campanha democrata de 1960, depois como correspondente credenciado na Casa Branca.

Esta peça jornalística viria a ser estudada em cursos da especialidade, contribuindo para a fama de um repórter que tinha como ambição máxima continuar a escrever notícias. E assim foi até se aposentar, em 1991. Faleceu agora, aos 85 anos. Com a convicção, há muito reforçada, de ter sido observador em primeira mão de um momento irrepetível -- e de se ter mostrado à altura dele enquanto cronista do imediato. Jornalismo é isto.

 

Publicado originalmente no DELITO DE OPINIÃO a 22 de Dezembro de 2011

O fim do sonho em seis segundos

Pedro Correia, 22.11.13

 

Meio século depois, o mistério permanece. Quem foi o cérebro do assassínio de John Fitzgerald Kennedy? O 35º presidente dos Estados Unidos terá sido vítima de um psicopata de 24 anos, munido de uma espingarda de 12 dólares que o alvejou com dois tiros certeiros ao fim da manhã de 22 de Novembro de 1963 em Dallas, pondo fim em seis fatídicos segundos ao sonho americano?

Poucos acreditam hoje nesta versão do atirador solitário, tanto mais que o suposto homicida, Lee Harvey Oswald, viria por sua vez a ser assassinado, dois dias após a morte de Kennedy, na própria sede da polícia de Dallas por um indivíduo ligado à Mafia, chamado Jack Ruby.

A verdade é que nasceu aí a chamada “maldição Kennedy”, que viria a fazer outras vítimas. Três delas mulheres de algum modo ligadas ao jovem presidente que permaneceu apenas 1037 dias na Casa Branca.

 

A primeira foi amante de Kennedy entre 1961 e 1963. Chamava-se Mary Pinchot Meyer: era uma das mulheres mais deslumbrantes de Washington naquela época. Segundo os registos da Casa Branca, entrou 13 vezes no edifício naqueles dois anos – a última visita ao presidente ocorreu escassos dias ante do crime de Dallas. O seu fim foi igualmente trágico: em Outubro de 1964, quando passeava junto a um canal em Georgetown, foi alvejada com dois tiros – um na cabeça, outro no coração. O assassino nunca foi capturado.

Outra tragédia envolveu uma jornalista da estação televisiva ABC, que gozou de uma fugaz celebridade. Lisa Howard tinha 37 anos em 1963, quando funcionou como intermediária entre Kennedy e Fidel Castro. Deslocou-se várias vezes a Havana, nesse ano, e tornou-se íntima dos dois dirigentes, formalmente inimigos. A morte de Kennedy inviabilizou a aproximação a Cuba. Lisa não tardou a ser despedida da ABC. A 4 de Julho de 1965, ingeriu uma dose fatal de barbitúricos.

Outra celebridade televisiva da época era Dorothy Kilgallen, única jornalista que conseguiu entrevistar Jack Ruby na prisão e se preparava para contar a história dele num livro. Também ela apareceu morta, no seu apartamento, a 8 de Novembro de 1965. Os capítulos do manuscrito sobre Ruby nunca foram encontrados.

 

Uma das mortes mais misteriosas de pessoas ligadas a John Kennedy ocorreu escassos dez dias após o assassínio do presidente. A 2 de Dezembro de 1963, Grant Stockdale, grande amigo de Kennedy, caiu de uma janela do seu gabinete, situado no 13º andar de um prédio de escritorios em Miami. Não deixou bilhete de suicídio.

Stockdale, corretor da Bolsa e antigo embaixador norte-americano na Irlanda, andaria com problemas financeiros e a notícia do assassínio de Kennedy ter-lhe-á agravado uma depressão. Mas não faltou quem especulasse que alguém o empurrara da janela para calar segredos ligados ao trágico fim do presidente. Meses antes, quando velejavam em Palm Beach, Kennedy perguntara-lhe: “Achas que vou ser assassinado?” A pergunta – premonitória – ficou a pairar para sempre na memória perturbada de Grant Stockdale.

“Teria Oswald agido sozinho?”, questionava a capa da Life, na edição de 25 de Novembro de 1966. Muitos recusam ainda hoje acreditar nisso. E a maldição Kennedy permanece.

 

 

Imagens:

1. John Kennedy

2. Mary Pinchot Meyer

3. Grant Stockdale com Kennedy

4. Lisa Howard com Fidel Castro

Leituras

Pedro Correia, 17.08.13

 

«Les positions sur l'avenir de l'Angola sont en revanche nettement divergentes. Kennedy souhaite [en Mai de 1961] que le général fasse pression sur Salazar afin que le Portugal se désengage en Afrique. De Gaulle refuse: toute intervention de cette sorte risquerait, à ses yeux, de déboucher sur du désordre au Portugal, voire l'établissement d'un régime communiste. De nouveau le dialogue de sourds recommence.»

Eric Roussel, De Gaulle II. 1946-1970, pp. 270-271

Ed. Perrin, Paris, 2006

O filme que nunca existiu

Pedro Correia, 05.10.12

Nem o segundo homem mais poderoso do planeta impôs a sua vontade à Mafia nos estúdios de Hollywood. A história aconteceu em 1962, quando Robert Kennedy – irmão do presidente John F. Kennedy e procurador-geral dos EUA – quis levar ao cinema o seu livro The Enemy Within, lançado dois anos antes, em que relatou o combate que empreendeu no Senado contra o crime organizado e a forma como a Mafia se infiltrava na sociedade americana.
Robert contactou o produtor Jerry Wald, um dos nomes mais influentes nos estúdios cinematográficos, responsável por grandes sucessos de bilheteira como Paixões em Fúria (1948) e Até à Eternidade (1953). Entusiasmado com o projecto, a 2 de Julho Wald informou-o que conseguira o melhor argumentista para o filme: Budd Schulberg, galardoado em 1955 com o Óscar pelo argumento de Há Lodo no Cais. Schulberg lera The Enemy Within e ficara com a noção de que “algo no âmago da sociedade americana começava a apodrecer”: o cinema era sem dúvida o melhor veículo dessa denúncia.
Paul Newman chegou a ser sondado para o papel de Robert Kennedy no filme. Mas, 11 dias após ter contactado o procurador-geral, Wald morreu subitamente, aos 49 anos, na sua casa de Beverly Hills. E Robert Kennedy nunca conseguiu levar por diante o seu projecto. As pressões da Mafia sobre os estúdios cinematográficos eram enormes, revela David Talbot no livro Irmãos – A História Oculta dos Anos Kennedy.
Schulberg ainda tentou assumir a produção, obtendo para o efeito o acordo da 20th Century Fox. Mas os responsáveis deste estúdio “receberam ameaças de morte”, revela Talbot, um jornalista de investigação. Newman também se desinteressou do projecto: The Enemy Within abortou quase à nascença.
“Shulberg era um príncipe de Hollywood, filho do gigante do cinema B. P. Schulberg. Bobby Kennedy era o segundo homem mais poderoso do país. Mas os dois juntos não conseguiram que se fizesse o filme devido à oposição descarada do crime organizado. Foi uma espantosa lição sobre os mecanismos obscuros do poder americano”, conclui o autor.

Já passou meio século. Mas esta história ainda dá que pensar.

 

EUA: a hora dos católicos

Pedro Correia, 05.09.12

 

Pela primeira vez na História bissecular dos Estados Unidos, não há nenhum protestante branco entre os candidatos à presidência e à vice-presidência, o que constitui um significativo sinal dos tempos. No campo republicano, o candidato à Casa Branca, Mitt Romney, professa a religião mórmone. O seu braço direito, como candidato à vice-presidência, é Paul Ryan, um católico assumido - tal como Joe Biden, recandidato ao lugar de vice-presidente pelo Partido Democrata.

Mas o recuo dos protestantes na vida pública norte-americana tem muitos outros sinais visíveis. O democrata que preside ao Senado, Harry Reid, é mórmone. A Câmara dos Representantes tem um presidente republicano: John Boehner, católico. E entre os nove membros do Supremo Tribunal federal há seis católicos e três judeus. Algo sem precedentes nos EUA.

Resta nas hostes protestantes o próprio Presidente Barack Obama, que cresceu sem educação religiosa e se baptizou já adulto, em 1988, aos 27 anos. Mas por ser afro-americano também ele foge ao padrão clássico. Estamos muito longe dos tempos em que John F. Kennedy - primeiro e até agora único presidente católico dos EUA - teve de proclamar solenemente, num discurso marcante, que jamais se deixaria influenciar pelas opiniões de bispos ou até do Papa. E mesmo ele escolheu para vice-presidente o senador Lyndon Johnson, um protestante oriundo do sul do país.

A verdade é que o mapa sociológico norte-americano está a mudar rapidamente. Os protestantes não ultrapassam hoje 51% da população, a nível nacional, enquanto os católicos são já cerca de 25%, o que corresponde a quase 70 milhões de fiéis - a quarta maior comunidade nacional católica a nível mundial, após o Brasil, o México e as Filipinas. Mas assumem o primeiro lugar enquanto confissão religiosa autónoma, uma vez que as diversas igrejas protestantes estão muito fragmentadas. E em estados como Rhode Island e a Pensilvânia ultrapassam 50% da população.

"Acredito numa América onde a separação entre a Igreja e o Estado seja absoluta. Acredito numa América que não seja oficialmente católica, protestante ou judaica - onde nenhum membro da administração pública solicite ou aceite instruções do Papa, do Conselho Nacional das Igrejas ou de qualquer outra fonte eclesiástica", declarou o então jovem candidato Kennnedy nessa memorável alocução, proferida a 12 de Setembro de 1960, a menos de dois meses de derrotar Richard Nixon na corrida à Casa Branca.

Se fosse hoje, tenho a certeza, não precisaria de fazer esse discurso. Joe Biden que o diga. E Paul Ryan também.

 

Imagem: John F. Kennedy, o primeiro presidente católico dos EUA, em visita à Irlanda (Junho de 1963)

Quase de certeza talvez

José Navarro de Andrade, 26.03.12

 

 

Kennedy quis inteirar-se da cadeia de consequências que o aguardava durante a crise dos mísseis de Cuba em outubro de 1962. Terá então perguntado ao seu estado-maior:

- O que acontecerá se atacarmos a base soviética em Cuba?

- Eles vão ripostar atacando uma base nossa num país terceiro, provavelmente na Turquia.

- E a seguir o que fazemos?

- É a escalada. Temos que atacar uma base deles dentro da União Soviética.

- E eles?

- Responderão com um ataque ao território dos EUA com mísseis intercontinentais.

- E depois?

- Depois, esperemos que haja o bom senso de parar.

Bem avisado, Kennedy, como se sabe, preferiu ficar na dúvida sobre o que aconteceria se não disparasse mísseis contra Cuba, do que ter dúvidas acerca do que iria suceder quando os mísseis estivessem no ar em direcção aos EUA. Chama-se a isto um dilema.

Estava agora a ver na televisão uns senhores, fatalmente economistas, cheios de explicações. Presumo que pararam para pensar, porque só têm ideias paradas. Parar como? O quê? Ou será que ainda não se percebeu que isto é como andar de bicicleta, quem pára, cai. Ou então só vê problemas (limpos, bem desenhados, já com a resposta no ovo) em vez de dilemas (insatisfatórios, conspurcados, obrigando a escolher o mal menor).

Era uma vez...

Helena Sacadura Cabral, 06.02.12
 
"Era Uma vez um Segredo" é o título de um livro que está a causar algum furor nos EUA. A sua autora, Mimi Afford, de 69 anos, afirma ter sido amante de John F. Kennedy, durante 18 meses, e garante ter perdido a virgindade com o então presidente dos EUA."

O que terá levado a pré septuagenária Mimi, em idade para ter juízo, a presentear-nos com tal segredo?!

Claro, conciso e compreensível

Pedro Correia, 22.12.11

 

 

Tantas teorias já li até hoje sobre jornalismo. E nenhuma delas consegue deslustrar a mais clássica de todas: o jornalista deve escrever de forma clara, concisa e compreensível sobre acontecimentos a que assistiu ou que foram presenciados por testemunhas idóneas. Tudo o resto são variações a esta regra de bronze da profissão que tem sido exemplarmente aplicada por várias gerações de jornalistas.

Lembrei-me disto há dias, ao saber da morte de Tom Wicker, o enviado especial do New York Times a Dallas para cobrir a visita que o presidente John Kennedy ali fez a 22 de Novembro de 1963. Previa-se um serviço de rotina: multidão entusiástica nas ruas e palavras inspiradoras do inquilino da Casa Branca, que já pensava na campanha para a reeleição. Mas um jornalista nunca deve encarar nenhum serviço como rotina: a qualquer momento, em qualquer lugar, a História irrompe em letras de ouro ou letras de sangue. Compete-lhe estar no seu posto, como escritor do primeiro rascunho das enciclopédias e dos compêndios do futuro. Tão perto quanto possível do acontecimento, como ensinou Robert Capa, o mais célebre fotojornalista de todos os tempos. "Se a fotografia não ficou boa é porque não estavas suficientemente próximo", sublinhava.

Tom Wicker estava no lugar certo, a bordo de um autocarro que integrava a caravana presidencial, quando os três tiros disparados pela carabina de Lee Oswald mataram Kennedy, por volta das 12.30 desse fatídico dia. E o despacho que pouco depois enviou para o New York Times, a partir de uma cabina telefónica do aeroporto de Dallas, destacou-se como uma pequena obra-prima de rigor e concisão.

Eis as primeiras linhas:

"O Presidente Kennedy foi hoje alvejado e assassinado por um homicida. Morreu devido a uma lesão no cérebro causada pela bala da espingarda disparada contra ele enquanto percorria o centro de Dallas em caravana automóvel. O vice-presidente Lyndon Baines Johnson, que seguia no terceiro carro atrás de Kennedy, foi investido como 36º Presidente dos EUA 99 minutos após a morte do antecessor."

Nada de floreados, nada de torrente emocional, nenhuma concessão ao sentimentalismo. O jornalista encheu o seu relato de informação -- os substantivos não cediam espaço aos adjectivos nesta prosa clara e tensa, como o disparo de uma objectiva fotográfica. Isto apesar de naquele dia Wicker não ter visto partir apenas o presidente: perdeu também alguém que lhe era muito próximo e com quem conviveu diariamente durante três anos -- primeiro como repórter da campanha democrata de 1960, depois como correspondente credenciado na Casa Branca.

Esta peça jornalística viria a ser estudada em cursos da especialidade, contribuindo para a fama de um repórter que tinha como ambição máxima continuar a escrever notícias. E assim foi até se aposentar, em 1991. Faleceu agora, aos 85 anos. Com a convicção, há muito reforçada, de ter sido observador em primeira mão de um momento irrepetível -- e de se ter mostrado à altura dele enquanto cronista do imediato. Jornalismo é isto.

Ando a ler uma fascinante digressão pela vida política de Kennedy (11)

Pedro Correia, 06.12.11

 

"UM PERÍODO QUASE IDÍLICO" DE PAZ E PROSPERIDADE

 

A frase que mais contribuiu para imortalizar John Fitzgerald Kennedy no decurso dos mil dias do seu mandato na Casa Branca não foi pronunciada em inglês, mas em alemão. Ao declarar-se cidadão de Berlim no local mais emblemático da Guerra Fria, por onde passava a última fronteira do mundo livre, o 35º presidente dos Estados Unidos atingia um patamar inédito de popularidade. Ninguém imaginava, nesse dia 26 de Junho de 1963, que o seu mandato terminaria menos de cinco meses depois, ao fim de uma manhã de sol outonal em Dallas.

Muita gente ignora que essa frase não constava da versão original do seu discurso. Foi o próprio Kennedy que decidiu pronunciá-la enquanto a viatura que o conduzia nas avenidas de Berlim era saudada por multidões entusiásticas vitoriando o seu nome. Fora-lhe sugerida pelo principal conselheiro do presidente -- o seu irmão Robert Kennedy, na altura procurador-geral dos EUA.

"Há dois mil anos a afirmação mais orgulhosa era Civis Romanus suma. Hoje, no mundo da liberdade, a afirmação mais orgulhosa é Ich bin ein Berliner", declarou o líder norte-americano nas imediações do Muro da Vergonha erigido apenas dois anos antes pelos soviéticos na cidade dividida.

A génese desta frase ilustra bem a forma de trabalhar de Kennedy, um homem que gostava de funcionar em equipa e absorvia com rara intuição as melhores sugestões da sua competentíssima equipa de conselheiros. Três deles, curiosamente, oriundos das fileiras do Partido Republicano -- o secretário da Defesa, Robert McNamara, o secretário do Tesouro, C. Douglas Dillon, e o conselheiro da Segurança Nacional, McGeorge Bundy. O facto de serem simpatizantes do partido rival -- e um deles, Dillon, ter chegado a integrar a anterior administração Eisenhower e a contribuir com 26 mil dólares para a campanha presidencial de Richard Nixon -- não os impediu de atingir o primeiro plano no Executivo democrata, prova evidente do rasgo político de Kennedy. Ao ser convidado para liderar o Pentágono, McNamara reagiu com surpresa, dizendo que não tinha experiência governativa. "Também não há escola para presidentes. Aprenderemos juntos", respondeu-lhe o inquilino da Casa Branca.

 

A Liderança segundo John F. Kennedy, um livro do jornalista e colunista John A. Barnes, conduz-nos aos bastidores da vida política do mais popular presidente dos EUA no século XX que atingiu uma extraordinária taxa de aprovação -- 83% -- e à data da sua morte, segundo a Gallup, era aplaudido por 70% dos americanos.

Oriundo de uma família milionária de Boston, herói da II Guerra Mundial, congressista e depois senador pelo Massachusetts, galardoado com o Prémio Pulitzer pelo seu livro Retratos de Coragem (com uma tardia mas notável tradução portuguesa a cargo do nosso José Gomes André) e o mais jovem presidente eleito desde sempre pelo Partido Democrata, em Novembro de 1960, Kennedy tinha uma sólida cultura e um dos mais fascinantes percursos biográficos de que há memória entre os inquilinos da Casa Branca. Filho do embaixador americano em Londres, Joseph Patrick Kennedy, tinha 22 anos quando assistiu à declaração de guerra britânica à Alemanha, na manhã de 3 de Setembro de 1939, na galeria dos visitantes da Câmara dos Comuns. Um episódio que nunca mais esqueceu.

Barnes deixa bem claro nesta obra, imprescindível para todos quantos se interessam pelo processo de formação das decisões políticas: Kennedy foi um precursor em vários domínios. Estava 20 anos à frente da maioria dos políticos do seu tempo. Foi ele que pela primeira vez compreendeu a importância da televisão -- ao ponto de se ter inscrito em 1959 num curso da CBS destinado a dominar as técnicas televisivas. Foi também o primeiro presidente a conceder conferências de imprensa regulares na Casa Branca e a responder em directo aos repórteres da TV. Deu um toque majestático à presidência com os banquetes de Estado aos visitantes, inspirado na recepção de que foi alvo no Palácio de Buckingham em Junho de 1961. Baptizou o avião presidencial -- um Boeing 707 -- com o nome Air Force One, "para que descesse dos céus como símbolo do próprio poder presidencial". Transformou os assessores da Casa Branca em decisores políticos, instituindo o cargo de conselheiro da Segurança Nacional, mais importante do que muitos postos no Governo.

Onde outros viam problemas, ele via oportunidades. "Ele adorava ser presidente", lembrou o historiador Arthur Schlesinger, que também integrou  a administração Kennedy, como biógrafo oficial, apontando desta forma um dos ingredientes do sucesso deste mandato.

 

Ficaram para a história muitas frases que Kennedy proferiu nos seus discursos. Eis algumas: "Não perguntem ao vosso país o que poderá fazer por vós, perguntem a vós próprios o que podereis fazer pelo vosso país"; "Se uma sociedade livre não consegue ajudar os seus inúmeros pobres não conseguirá salvar os seus raros ricos"; "Nunca negociemos por medo -- mas nunca tenhamos medo de negociar"; "A vitória tem muitos pais, mas a derrota é órfã"; "Decidimos ir à Lua nesta década não porque seja fácil mas porque é difícil"; "A corrida ao armamento deve ser extinta antes que nos extinga a nós"; "Apoiamos qualquer amigo e enfrentamos qualquer inimigo para assegurar a sobrevivência e o êxito da liberdade"; "Não procuremos a resposta republicana ou a resposta democrata, mas a resposta certa".

Hoje olhamos para a presidência Kennedy e parece-nos, como acentua Barnes, "um período quase idílico" de paz e prosperidade. É sempre assim: só a passagem do tempo presta verdadeira justiça aos políticos, separando os estadistas dos restantes. Kennedy foi um estadista: já ninguém duvida disso.

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Nota final: não falta quem se queixe dos preços dos livros. Depende. Comprei este há poucas semanas, na Livraria Barata -- uma das mais prestigiadas de Lisboa. Estava num recanto destinado a títulos considerados "fundo de armazém". Custou-me apenas quatro euros. É fundamental saber procurar.

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John A. Barnes, A Liderança segundo John F. Kennedy. Tradução de Paulo Tiago Bento. Casa das Letras (2008). 278 páginas.

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E agora passo a bola -- ou melhor, passo o livro -- ao Rui Rocha.