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Delito de Opinião

Do princípio ao fim (7).

Luís Menezes Leitão, 29.09.16

"Jemand mußte Josef K. verleumdet haben, denn ohne daß er etwas Böses getan hätte, wurde er eines Morgens verhaftet" (Alguém devia ter difamado Josef K. porque, sem que ele tivesse feito nada de mal, foi preso numa manhã). É assim que se inicia o livro de Franz Kafka, Der Prozeß (O processo), escrito por volta de 1915, mas apenas publicado cerca de 10 anos depois. Este início retrata bem uma das angústias que atravessou todo o séc. XX: o medo da prisão em resultado da denúncia alheia. Esta prisão poderia ser efectuada pela Gestapo, pelo KGB, pela Stasi, pela polícia do apartheid ou até pela PIDE portuguesa. E por isso este início do livro é dolorosamente familiar em qualquer país. Curiosamente, no entanto, nenhuma destas polícias existia quando o livro foi escrito.

Mas o núcleo do livro é precisamente o que acontece depois da prisão: o processo. O processo é labiríntico e envolve Josef K. como uma teia de onde ele nunca se consegue livrar. Entra pela primeira vez num mundo de iniciados. O advogado explica-lhe como ir adiando o processo, mas que não conseguirá resolvê-lo. O juiz também terá contacto com o processo, mas não o decide. E Josef K. desespera para ter acesso ao processo, sem nunca conseguir.

 A maior simbologia que já foi feita sobre o acesso à justiça está num capítulo onde se conta uma parábola, capítulo que aliás tinha sido previamente publicado autonomamente como conto: Vor dem Gesetz (Perante a lei) aqui reproduzido em filme. Nesse capítulo conta-se a história de um homem que se aproxima de uma porta que dá acesso à lei. No entanto, a porta é guardada por um porteiro que não o deixa entrar. O homem aguarda ano após ano sem que o porteiro o deixe alguma vez entrar. Até que, por fim, envelhecido e moribundo, o homem desiste. Mas pergunta porque, durante tantos anos, foi ele o único a esperar à porta, sem que mais ninguém tentasse entrar. A resposta do porteiro é arrasadora: Esta porta estava aqui apenas para ti e, agora que desististe, vou fechá-la e mais ninguém entrará.

E a crueldade da justiça surge no capítulo final, com a execução de Josef K., às mãos de dois desconhecidos. Ele bem pergunta onde está o juiz que ele nunca tinha visto ou o alto tribunal que nunca alcançara. Mas agora tudo é inútil. Josef K. é executado, limitando-se a murmurar "Como um cão!", como se a vergonha devesse sobreviver-lhe ("Wie ein Hund!" sagte er, es war, als sollte die Scham ihn überleben). E de facto também aqui a vergonha do processo nunca é individual, espalha-se por todos os familiares e amigos e sobrevive até à morte do visado.

 

É curioso que uma obra-prima destas só tenha sobrevivido porque o amigo de Kafka, Max Brod, se recusou a destruir os papéis do autor, ao contrário do que tinha sido o desejo deste. Talvez Kafka pensasse que o mundo não estivesse preparado para uma descrição tão crua do sistema de justiça. Um ideal altamente nobre, com uma aplicação prática que pode ser extremamente perversa.

Do princípio ao fim (1)

Pedro Correia, 23.09.16

No futebol existe uma frase feita, daquelas em que o desporto-rei é fértil: isto não é como começa, mas como acaba.

Na literatura, pelo contrário, o melhor raras vezes fica guardado para o fim. Começar um romance ou um conto com as palavras certas, que exprimam de forma adequada a ideia que o autor tem em vista, é o único caminho possível. Porque não existe uma segunda oportunidade para ter uma primeira impressão.

É um desafio que se coloca a qualquer forma de expressão literária. Ernest Hemingway, mestre da ficção curta, legou-nos o mais belo e pungente microconto que conheço. Tem apenas seis palavras: “For sale: baby shoes never worn.” Que podemos traduzir assim (permitam-me o atrevimento): “Para venda: sapatos de bebé. Por estrear.”

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Ao longo dos anos, senti-me fascinado por diversos parágrafos de abertura de textos literários famosos. Vários desses parágrafos virão aqui, estou certo disso, seleccionados por colegas de blogue numa série colectiva que hoje começa no DELITO DE OPINIÃO. E que pretende contribuir para despertar ou sedimentar a paixão dos nossos leitores pela arte literária.

A série intitula-se Do princípio ao fim porque não destaca apenas começos de novelas ou romances: destina-se a realçar também as frases finais que elegermos entre as mais inesquecíveis.

Também irei por aí. Mas hoje fico-me por um dos mais arrebatadores inícios que guardo na memória de infatigável leitor. Simples e complexo, literal e metafórico, sugestivo como poucos. Ao ponto de nunca mais o ter esquecido.

São as palavras que nos apresentam Gregor Samsa, inscrevendo-o desde logo na galeria de personagens da literatura universal. Redigidas há mais de cem anos por um taciturno judeu da Boémia que escrevia em alemão: "Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fand er sich in seinem Bett zu einem ungeheueren Ungeziefer verwandelt."

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Assim entramos no universo de Franz Kafka – tão particular, tão universal, tão denso, tão límpido, tão tortuoso, tão sedutor. São as primeiras linhas da sua novela A Metamorfose (1915), erupção do irracional num mundo sujeito aos inexplicáveis caprichos do acaso, onde as sombras vão ganhando terreno no eterno combate contra a luz.

Recordo o fascínio que senti ao mergulhar pela primeira vez na prosa inconfundível do malogrado escritor de Praga, tão cedo vitimado pela tuberculose num mundo que mal despontava dos horrores da guerra. E jamais esqueci aquelas palavras que me iniciaram no imaginário kafkiano. Não por acaso, Kafka é um dos raros escritores que viu o nome convertido em adjectivo.

 

Reencontro A Metamorfose, em edição recente, e de novo a magia desta prosa me devolve à emoção antiga.

"Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gregor Samsa deu por si em cima da cama, transformado num insecto monstruoso." (Recorro à tradução de João Barrento na versão portuguesa da editora Ulisseia, com data de 2011).

É preciso começar bem. Porque o todo está contido na parte. E porque existe uma diferença substancial entre a literatura que mal nos arranha a superfície e a que pode mudar-nos para sempre.

Eis-me a largar tudo para seguir o rasto do homem-insecto nos dédalos da eternidade fixada na palavra impressa. Como se fosse a primeira vez, como se fosse a única, como se fosse a última.

Os checos, Kafka e o Século XX

José António Abreu, 31.05.12

Há poucos anos, pouco tempo antes da sua morte, o grande germanista e estudioso de Kafka, Eduard Goldstücker, descreveu-me como ele e outros fiéis comunistas em Praga foram cercados em Dezembro de 1951 no início de uma nova onda de «processos de Moscovo» estalinistas. Quando ele pediu para saber por que razão tinha sido preso, a resposta veio com um sorriso irónico: «Isso é o que você vai ter de nos dizer.»

John Banville, Imagens de Praga. Edições Asa (2005), tradução de Teresa Casal.

 

O século XX não foi fácil para os checos e para os seus «primos» eslovacos. Antes da Primeira Guerra Mundial, o país nem sequer existia. Depois, a Checoslováquia entrou no que Kundera chamou, de modo quiçá um tudo-nada forçado, «tripla repetição do número vinte». Ganha a independência em 1918, perdeu-a em 1938, quando os líderes dos países vencedores da Guerra se assustaram com as ameaças de Hitler. Em 1948, o país aceitou o comunismo para vinte anos depois perceber que não estava autorizado a introduzir-lhe mudanças – muito menos a abandoná-lo. O poder imposto pelos tanques soviéticos instalou-se em força em 1969 e apenas caiu em 1989. Três vezes vinte. Pelo meio, ainda existem os dez anos que vão de 1938 a 1948. Os anos da ocupação nazi, da perseguição aos judeus, do Reichsprotektor Reinhard Heydrich, uma figura que me fascina tanto como o proverbial olhar do réptil e a que talvez ainda volte – mas aconselho desde já a leitura de HHhH, de Laurent Binet, que a Sextante publicou há pouco mais de um ano. As contas são fáceis de fazer: os checos passaram três quartos do século em guerra ou numa paz regida pelo medo. Medo do próprio governo, medo de governos vizinhos, medo de proferirem uma palavra imprudente ou mal interpretada. Talvez nós, portugueses, devêssemos pensar nisto quanto justificamos pechas nacionais com os quarenta e oito anos de Salazar.

 

Mas não é minha intenção comparar ditaduras nem estados de alma colectivos. Prefiro centrar-me no génio de Kafka. Permitam-me só mais algumas datas: Kafka morreu em 1924 mas O Processo, escrito cerca de dez anos antes, foi publicado pela primeira vez apenas em 1925. Kafka era judeu e falante de alemão, o que, já na época de início da Primeira Grande Guerra, não constituía combinação fácil. Mas Hitler e Estaline, os campos de concentração e o gulag, a Gestapo e o KGB (e a Státní Bezpečnost, a polícia secreta checa dos tempos comunistas), tudo ainda fazia parte do futuro. Porém, Kafka adivinhava. Ainda que se diga que ele achava os seus enredos mais divertidos do que assustadores ou proféticos, o universo de Kafka é o universo do totalitarismo e, mais especificamente, do totalitarismo moderno. Tão moderno, de facto, que, talvez ironicamente para quem abominava a nascente psicanálise (Kafka apreciava a loucura e detestava que se pretendesse curá-la), é, acima de tudo, um totalitarismo psicológico. Kundera outra vez, em Os Testamentos Traídos (Edições ASA, 1994, tradução de Miguel Serras Pereira): «Se lermos assim O Processo, ficaremos, desde o início, intrigados com a estranha reacção de K. à acusação: sem nada ter feito de mal (ou sem saber o que de mal fez), K. começa logo a comportar-se como se fosse culpado. Tornaram-no culpado. Culpabilizaram-no.» E Kundera mostra como K. segue o processo psicológico típico de alguém que sente estar a agir como culpado sem o ser. Um processo interior, por contraponto ao outro, exterior, que dá nome ao livro, e que tem cinco estádios: Luta vã pela dignidade perdida, Prova de força, Socialização do processo, Autocrítica, Identificação da vítima com o seu carrasco. Na literatura, antes de Kafka, um inocente podia ceder e confessar crimes que não cometera, podia ser formalmente culpado mas, perante si mesmo, mantinha-se inocente. Em Kafka, a culpa é imposta do exterior e é aceite. K., a personagem de O Processo, irá (no estádio 4, o da autocrítica) examinar a sua vida à procura do momento em que se tornou culpado. Já não duvida que o é. Num regime totalitário, o acusador não precisa de conhecer a culpa do acusado antecipadamente. Precisa de, em conjunto com o acusado, a descobrir (releiam, por favor, o excerto de Banville sobre a réplica do interrogador comunista em 1951) pois sabe que toda a gente é culpada de alguma coisa – quanto mais não seja, de um pensamento. E, se até a própria culpa pode vir a ser aceite como real, quão fácil é aceitar a culpa alheia? O poder num regime totalitário vive de pessoas que aceitam a culpa alheia. Se foi preso, alguma coisa terá feito. Reacção apenas humana; reacção decididamente kafkiana. O corolário, como se viu (como Kafka viu), é se fui preso, alguma coisa terei feito. (Em 1984, de Orwell – a quintessência do livro sobre totalitarismo, mas convenhamos que o inglês já assistira a muito no quarto de século que decorrera desde a morte de Kafka – há uma personagem que aceita prisão e castigo e ainda se recrimina por, alegadamente, ter criticado o Grande Irmão enquanto dormia.)

 

Em Portugal, dizemos frequentemente que, ao ler-se Eça, pode ver-se o país actual. É verdade. Os bons escritores são intemporais – e globais. Mas, ainda assim, Eça descreveu a época em que viveu. Kafka descreveu os cinquenta anos que se seguiram à sua morte. E esperemos que não outros tantos, no nosso futuro.