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Delito de Opinião

Martim Moniz*

José Meireles Graça, 27.12.24

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As fotografias da operação policial no Martim Moniz, partilhadas até ao enjoo, chocam.

Isto fez com que rapidamente se começassem a desenhar três campos: um que defende a operação policial naqueles termos, outro que pendura ao pescoço da iniciativa acusações de racismo e pulsões securitárias interesseiras do governo para secar o terreno natural do Chega, e o último, escassamente povoado, que entende que este género de operações é necessário, tem precedentes e é desejável que se repita, mas não nestes termos.

Por partes:

Há racismo? Os bairros e zonas que se distinguem pela criminalidade (assaltos, incluindo à mão armada, gangues, consumo e tráfico de droga, distúrbios sortidos, etc.) são invariavelmente pobres, desde logo porque aí residem imigrantes que estão na base da pirâmide dos salários e das profissões. Estes imigrantes são com frequência negros ou indostânicos e, na inexistência de estatísticas fiáveis porque, entre outras razões, há um interdito a fazer registos de crimes que considerem a etnia, cada qual alimenta o seu preconceito da maneira que melhor lhe apraza.

O crime de racismo é um desses modernos, importado dos EUA onde o problema existiu nas leis e nos costumes, e sobrevive agora no formato de fonds de commerce da esquerda para se confortar na sua imaginária superioridade moral e angariar clientelas eleitorais.

Seria bom que a legislação fosse clara e distinguisse as opiniões racistas (que, por abomináveis que sejam, são legítimas porque não se legisla o pensamento) das práticas racistas: uma coisa é achar que os seres com cor de pele ou formato dos olhos diferentes são tendencialmente inferiores e outra tratá-los como se tivessem menos direitos do que os restantes cidadãos. O legislador, ao não ser claro na distinção, abre a porta a que o berreiro da opinião pública infecte os tribunais e outros departamentos do Estado, que aplicam a lei com tanto menos certezas quanto mais elas são dúbias.

Um bom exemplo desta confusão mental é o crime de incitamento ao ódio e à violência (art.º 240.º do CPP), que é tratado em termos de tal modo amplos que atropelam o direito à livre expressão da opinião.

(A propósito, odeio comunistas por terem sido portadores das crenças mais destrutivas e mortíferas do séc. XX e ainda hoje defenderem os mesmos princípios que, ainda que recobertos com uma patine de actualização, quando levados à prática produzem os mesmos resultados. Em meu abono, tive e tenho amigos comunistas, por o ódio em abstracto a doutrinas e organizações deletérias não ter necessariamente que se traduzir em rejeições pessoais. E se não fosse o caso? Ai credo, que vinham aí os raios e coriscos daquele artigo).

E então, há racismo ou não há racismo? Tenho boas notícias: Não interessa. Porque a lei, que é cega e portanto não tem que tomar conhecimento das características físicas das vítimas, ocupa-se das agressões, violências, discriminações, danos e abusos praticados contra cidadãos. Se são pretos, mulatos, muçulmanos, brancos, ciganos ou Irmãos do Sagrado Coração de Maria, irreleva – ou deveria irrelevar.

Mesmo assim, estou convencido de que, se houvesse estatísticas fiáveis, se descobriria que certos tipos de crimes são mais prevalentes numas etnias que noutras. Mas que isso tem a ver com factores culturais e históricos, incluindo religiosos, e condições sociais, e nada com raças (conceito, aliás, de si discutível mas que me dá jeito utilizar neste contexto).

Por exemplo: A violência doméstica (outro crime da moda) é um adquirido nas comunidades muçulmanas, decorrente desde logo do estatuto de inferioridade da mulher; o casamento forçado de menores tem lugar, por exemplo, creio que frequentemente, nas ciganas; e a excisão genital feminina, uma violência sem nome, é vulgar em certas comunidades com essa tradição.

Parece que há uma iniciativa para uma “grande” manifestação no próximo dia 11, às 15H00, no Martim Moniz (hum, estou a ver que haverá um surto de absentismo no trabalho por parte dos visitantes e uma grande ausência dos residentes porque estão a trabalhar) sob o lema:

NÃO DEIXES QUE TE ENCOSTEM À PAREDE, MARCHA. CONTRA O RACISMO, CONTRA A XENOFOBIA, CONTRA O PRECONCEITO.

Folclore esquerdista? Claro. Racismo não houve, não apenas porque os brancos não foram discriminados positivamente (pelo contrário: os dois detidos são brancos) mas também porque estava presente pelo menos um magistrado do MP, segundo os jornais, decerto para garantir a legalidade dos procedimentos; a xenofobia é o outro nome da prudência, não apenas porque resolver os problemas dos deserdados do mundo, e portanto acolhê-los a todos sem critério, é uma receita para o desastre porque a identidade nacional, os costumes e as leis, podem começar e provavelmente já estão a ser esgarçados, o que, inevitavelmente, é o ninho de onde nascerão confrontos que é melhor evitar; e de preconceito estamos conversados, que cada um tem os seus e o direito de os ter.

Dizem vozes credíveis que rusgas deste tipo já houve avonde, e sempre em bairros ou lugares problemáticos mas sem manifestações das demências protestárias wokistas; que os moldes da sua aplicação não diferiram desta; e que tais rusgas tiveram lugar sob governos de esquerda sem que se levantassem 21 virtuosas personalidades em estado de grande ansiedade com o “ataque ao Estado Social e de Direito”.

E então, se é assim por que razão o terceiro grupo de que falava no segundo parágrafo me integra?

Um ponto prévio: É líquido que parte da comoção gerada por este caso tem a ver com o governo do dia e a existência do Chega, e portanto insere-se no escarcéu antigovernamental decorrente do facto de nem Montenegro nem o seu governo serem suficientemente esquerdistas.

Porém: fotografias chocantes como esta nunca tinha visto nenhuma, e comigo a esmagadora maioria das pessoas; o que se passa em Lisboa tem grande importância apenas para os locais, que se julgam o centro do país enquanto o resto dos habitantes julga que Portugal é o centro do mundo; não conheço bem Lisboa, e muito menos os bairros onde é melhor não ir à noite; e rusgas deste tipo acontecem vulgarmente lá fora, que se toma pela medida das coisas boas.

Boa esta não é: obrigar cidadãos a estar virados para a parede, com as mãos nela encostadas enquanto esperam uma revista, é uma humilhação que não apenas traduz uma intolerável relação de inferioridade para com as autoridades como desprezo pela dignidade da pessoa.

A segurança dos cidadãos (desde logo dos habitantes dos lugares problemáticos) é um valor essencial. Daí decorre que a compressão temporária de alguns direitos, como o da livre circulação, o da inviolabilidade do domicílio ou a privacidade dos pertences individualmente transportados, será necessária em nome daquela segurança, que não pode eficazmente ser realizada sem recurso, por exemplo, a rusgas.

Rusgas dentro da medida do necessário, que não inclui humilhações. Não acredito que os mesmos resultados não possam ser alcançados com um mínimo de respeito; e o entender-se o contrário é uma rampa deslizante para que abusos das polícias se transformem, na prática, no ordinário da missa.

Estava lá pelo menos um magistrado. Deve ter-se deixado convencer de que tinha de ser assim e com certeza há regulamentos aprovados que o permitem.

Não deviam. E muitos dos justiceiros meus amigos, que veem com simpatia estas partes gagas, decerto mudariam de opinião se, passando naquela rua àquela hora, fossem tratados como crianças malcomportadas.

* Publicado no Observador

Um escândalo

Pedro Correia, 21.11.24

Dez anos depois, após um sem-fim de manobras dilatórias, ainda não há data para o julgamento de José Sócrates e 21 outros arguidos na chamada Operação Marquês. Entretanto, dezenas de supostos crimes já prescreveram. E o antigo primeiro-ministro lá vai recorrendo a todos os expedientes que os alçapões legais lhe facultam, evitando comparecer em tribunal para ser julgado.

São factos que falam por si.

Que isto não provoque uma vaga de indignação colectiva diz tudo sobre a "brandura dos nossos costumes" - expressão que, não por acaso, tem como autor António de Oliveira Salazar.

Incentivos aos "desacatos"

jpt, 29.10.24

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Se durante a passada semana a Grande Lisboa esteve dedicada aos "desacatos" - essa censória inovação semântica, a querer evitar os termos adequados, como "motim" ou "tumulto" o seriam -, eu estive orientado para outros assuntos, até porque por cá a conversa foi isto do "então aqui nos Olivais não se passa nada? Isto já não é o que era...", semi-jococo lamento do tempo que passa, a vida que escorre.

Mas mesmo assim ainda deu para me espantar com esta notícia. A fazer lembrar, claro, o cromo - verdadeiro meme - das (não tão velhas assim) licenças de uso de acendedores e isqueiros, anacrónico proteccionismo da fosforeira nacional, com certeza...

Mas é um sorriso triste. Sim, os demagogos do CHEGA querem ser acendedores, incendiários. Sim, as práticas de polícias - ou até mesmo a cultura policial dominante - poderão ser criticáveis, desde que analisáveis. Mas os verdadeiros incendiários são estes juristas, juizes e quejandos. Os códigos não permitem prender preventivamente os deliquentes que praticam este tipo de crimes? Remetem-nos para casa, à espera das calendas gregas, que será quando os tribunais os atenderão. Mas não lhes coloquem estas risíveis sanções, insultuosas para nós-vulgo. Incendiários? Provocadores? São os juízes, apatetados. E os legisladores, distraídos, inertes.

A ferro e fogo.

Luís Menezes Leitão, 23.10.24

O Estado tem duas funções fundamentais: assegurar a Justiça e a Segurança. Portugal está a falhar clamorosamente nessas duas funções.

Em relação à Justiça, a mesma está completamente bloqueada, assistindo-se agora ao triste espectáculo de o julgamento do processo mais fundamental do regime ter o seu início mais de dez anos depois dos factos, com o principal arguido com a doença de Alzheimer e com o Tribunal a ouvir depoimentos gravados de testemunhas mortas há anos. Alguém há-de explicar como é que se exerce o contraditório, essencial a qualquer defesa, nestas condições. Em qualquer caso, a Justiça fica completamente descredibilizada.

Como se isso não bastasse, os subúrbios de Lisboa estão a ferro e fogo, com revoltas, distúrbios, autocarros incendiados, e ataques a pessoas e bens, sem que a polícia se mostre minimamente capaz de restaurar a ordem pública. Os cidadãos sentem-se por isso ameaçados, enquanto o discurso oficial continua a proclamar que Portugal é dos países mais seguros do mundo.

A população paga impostos para ver os seus direitos assegurados e poder dormir descansada. Se Portugal não consegue assegurar as duas funções fundamentais do Estado, está a transformar-se num Estado falhado. Exigem-se explicações urgentes das autoridades sobre o que se está a passar no nosso país.

O Manifesto dos 50*

José Meireles Graça, 26.06.24

Pena que o Manifesto não diga alguma coisa sobre o perfil das personalidades que o assinam: alguns nomes não reconheço, e fico com a impressão de haver uma esmagadora maioria do centrão político, e dentro deste do PS. Todavia, também lá estão Francisco Rodrigues dos Santos e Diogo Feio, por exemplo, assim como António Barreto, o conhecido magistrado da opinião que nem por ser, ou se dizer, de esquerda, pode ser suspeito de defender corruptos. 50 era ao princípio, que agora há outros tantos, entre eles Garcia Pereira, que podendo ser acusado de muitas coisas nenhuma é falta de seriedade ou independência.

O texto é prolixo, incluindo patacoadas discursivas (“intervenções de carácter estrutural” ou “múltiplos desafios da actualidade”, por exemplo), e decerto tem partes que não subscreveria, como a relativa à “participação activa de grande parte da comunicação social na quebra do segredo de justiça” (quem quebra o segredo é quem o detém, não quem o noticia), ou a recorrente referência ao “Povo” sem substanciação (o Povo em abstracto não é  mesma coisa que o povo em concreto, e porque este último tem, em todas as sociedades e também na nossa, pulsões justicialistas, falar em nome dele sem mais é tomar a parte pelo todo e deixar de lado a trabalheira da persuasão e argumentação).

Porém, não inventa um problema para defender interesses escusos, mesmo que eles existam: enuncia-o.

E o problema é que, como bem diz o texto,

Se a morosidade, designadamente na jurisdição administrativa e tributária e na investigação criminal, é o fenómeno mais persistente - e inadmissível numa sociedade democrática, uma vez que na prática acaba por pôr em causa a própria realização da justiça -, existem muitas outras falhas que em nada são compatíveis com o Estado de Direito Democrático, nem com a eficiente gestão dos avultados recursos públicos a ela afetos (que comparam bem com outros países europeus), nem com o respeito pelos direitos e interesses dos destinatários do sistema de justiça, que não é menos importante para eles do que o sistema de ensino ou o sistema de saúde para os respetivos utentes.

O Manifesto enumera as medidas que entende serem necessárias, mas não é, nem seria de esperar que fosse, muito detalhado. No dia em que parte delas forem densificadas (peço desculpa pela palavra, mas logo que o assunto envolva juristas sinto-me autorizado a abundar no palavreado pedante) direi o que me pareça. No essencial, tudo gira em volta de uma circunstância e três perguntas:

1. A circunstância: O Estado (quer dizer, os seus agentes e representantes) está presente em todas as esquinas da vida, incluindo económica, desde 1986 dispondo de abundantes fundos que políticos e agências governamentais distribuem sob o chapéu de generosos fins de propagandeado interesse público. Só por milagre é que num país como o nosso, em que o favor e a cunha são apenas as faces mais visíveis de um fundo atávico de dependência dos favores do Orçamento, é que é possível imaginar que a corrupção (a alegada e a real) que existe é apenas a que chega às notícias. Uma casa onde se vejam três ratos não tem apenas três, tem dúzias. E é por o eleitorado saber que é assim que está disponível para comprar o discurso do “eles” (isto é, os políticos) serem uma cambada de ladrões.

2. O Ministério Público abusa ou não abusa dos seus poderes?

3. Se abusa, as medidas que os coarctem são ou não são pior emenda que o soneto, isto é, podem ou não traduzir-se na impunidade dos detentores do Poder?

4. Por que motivo há um desequilíbrio evidente entre esquerda e direita na censura ao MP, a segunda encontrando razões, por vezes através de vozes respeitadas e geralmente sensatas, que compreendem e desculpam os desmandos?

Por partes:

Uma solução óbvia para diminuir os casos de corrupção seria diminuir o peso e os poderes do Estado: ninguém corrompe para obter o subsídio que não existe, a licença ou o alvará que não é precisa, a colocação num lugar público que não depende de decisões arbitrárias, e um longo etc. Mas essas são escolhas políticas, que cabem na respectiva luta, a que chamamos democracia. E esta não é o regime em que o Povo escolha bem por ser depositário de alguma lucidez que decorra da soma das inépcias individuais, é aquele em que o eleitorado – e só ele – detém legitimidade para delegar o exercício do Poder e revogar ou a não a delegação periodicamente. A União Europeia criou o instrumento deletério das transferências de fundos e raros são os que os veem com maus olhos; e as nossas sucessivas escolhas têm sido versões diferentes da social-democracia. É com isso que se tem de viver e imaginar que há um grupo profissional que garante a lisura de processos e a seriedade dos desempenhos dos eleitos só seria possível se as pessoas desse grupo nascessem com um halo na cabeça, por fora, e raios divinos de imarcescível sabedoria, por dentro.

E então, há ou não há abusos? A ideia de que os políticos são, salvo prova em contrário, generalizadamente corruptos, não só não é verdadeira  como se se aceitar o princípio, que o Ministério Público tem vindo a demonstrar ser o que o norteia partes dele, de que é melhor vigiar todos para apanhar os que se desviem do seu múnus, do que estamos a falar é de um Estado policial, sem que o dito Ministério (ou uma fatia encarnada nos magistrado xis, ípsilon e zê, cujos nomes o mais das vezes nem chegamos a conhecer) se tenha dado ao incómodo prévio de fazer uma revolução com aquele propósito. E se os abusos por parte de quem tem como missão ser titular da acção penal mas começa por desrespeitar as leis cuja ofensa tem por missão perseguir estreitar-se-á o leque dos que estejam dispostos a fazer uma carreira política quando possam ter outra.

Os magistrados do Ministério Público são pessoas como as outras, sujeitas às mesmas paixões e insuficiências. O que justifica a independência dos juízes (que, esses sim, são verdadeiros magistrados) não é serem perfeitos, é ela ser necessária para as sentenças não virem inquinadas por relações de força das partes, mesmo que uma delas seja o Estado, e em todo o caso poderem, via recurso, ser revistas.

As decisões dos agentes do MP têm, em alguns casos, de ser convalidadas pelo juiz de instrução. Mas ainda recentemente um edil esteve preso sem ser ouvido, muito para lá dos dois dias limite, sem que tenha sido afinal pronunciado por coisa alguma. Fosse apenas um caso e seria demais. Mas são inúmeros e se há um bem que tem decorrido desta saga é o de perguntarmos a nós mesmos (quem pergunta – somos poucos): se é assim que se tratam os poderosos, o que não se fará com os pobres diabos que ninguém conhece? Algumas estatísticas aterradoras, em matéria em que a opacidade é a norma, são referidas, por exemplo, neste artigo de Garcia Pereira.

Que o Ministério Público tem interferido decisivamente no processo democrático provocando eleições e influenciando-lhes presuntivamente o resultado só seria aceitável se estivéssemos a falar de acusações consistentes e urgência nos procedimentos. Não é o que tem acontecido: a ideia de que Costa poderia perfeitamente ter mantido o lugar sob o manto negro de uma suspeita assumida publicamente pela PGR pode até fazer sentido à luz do oportunismo, que se lhe atribui provavelmente com razão, de aproveitar a acusação para se pôr ao fresco para outros voos. Mas, objectivamente, a suspeita feriu-o, naquela maré, mortalmente, e após tanto tempo volvido não há qualquer resultado palpável, acusação, indiciação, desistência, o que seja – uma intolerável manifestação de autarcia, insolência e descaso. Aceitar como estando na ordem natural das coisas que, por todos os cidadãos serem iguais perante a lei, o MP não tenha nestes casos especiais deveres reforçados de diligência, é o mesmo que dizer que os ronceirismos de uma burocracia iluminada se sobrepõem a quaisquer outros valores.

As soluções aventadas implicam a clarificação de um equívoco: autonomia do MP não é a mesma coisa que autonomia de cada um dos magistrados. Porque, se fosse (e, aparentemente, tem sido) poderes majestáticos e institucionais seriam depositados ao acaso nas mãos de funcionários que na prática não respondem pelas consequências dos seus actos, sendo que estes implicam decisões sobre prisões (ignoro, e não preciso de saber, se técnica e pudicamente estas devem ser designadas por “detenções”, e a completa falta de respeito pelo respectivo prazo legal, em matéria sensível como a da liberdade física, é a medida da naturalidade com que já se está numa rampa deslizante), investigações desnecessariamente intrusivas, fugas de informação que nunca dão lugar a apurar-se quem as praticou, e todo um espectáculo deprimente de um vendaval de suspeitas, demolição de reputações e investigações intermináveis – que acabam em nada como se os milhões que os contribuintes gastam a perseguir gambozinos não devessem obrigatoriamente implicar informação pública sobre desempenho, em vez da litania de lamentos em que todos se queixam de tudo sem que ninguém seja responsável por nada.

Alguém deve, tem de, responder; se o topo da hierarquia não tem poderes deveria tê-los; se o exercício de tais poderes faz correr o risco de abusos internos deveria haver mecanismos para, sem riscos sérios, o magistrado decaído nas suas iniciativas e decisões os denunciar; e se a personalidade concreta de um PGR com poderes, e responsabilidades, reforçados, pode originar a suspeita de poder ser mais uma afloração do situacionismo e da acomodação com o estado das coisas na gestão da coisa pública, a resposta haverá de estar no processo de selecção: deve haver quem pareça ter perfil para resistir ao exame de uma maioria qualificada da AR, do PR e da opinião pública e a quem, no fim do mandato, se possa pendurar ao peito uma medalha, ou pelo contrário enfeitar de alcatrão e penas.

Resta explicar de onde vem esta tolerância para com o Estado dentro do Estado em que o MP se transformou, por parte de pessoas que não apreciam o Estado de Direito menos do que eu.

Vem desde logo da constatação de que a maioria das investigações, ou suspeitas, incide sobre socialistas. E como a estagnação do país e a degradação dos serviços públicos resultam das políticas socialistas, que Sócrates, Costa, e uma extensa entourage de personagens menores, encarnam, tudo parece pouco para remeter esta quadrilha para os cafundós da história. Acresce que a comoção da esquerda nunca teria lugar se quem está em exposição na vitrine dos horrores fossem políticos de direita.

Apoiar o Manifesto quando estão lá assinaturas de pessoas que, se os palpos-de-aranha fossem de outras tribos, nomeadamente do PSD, brilhariam pela ausência, e que verdadeiramente o que querem é tratar o Estado como se fosse uma coutada de arranjos? Credo, dizem não poucos dos meus correligionários no melhor lado do espectro.

E vem também do desejo de não deixar o terreno do dedo em riste da indignação, em exclusivo, para o justiceiro Ventura, que tem no combate à corrupção e na defesa da autoridade policial dois fonds de commerce rendosos.

Mas isto é um equívoco da parte de alguns dos outros selvagens da minha tribo. E para se o perceber refiro apenas um caso:

Há dias a CNN divulgou escutas no processo Influencer em que Costa aparece a ligar a João Galamba ordenando a demissão, por raciocínios de índole politiqueira, da presidente executiva da TAP, depois da polémica indemnização de 500 mil euros à ex-administradora Alexandra Reis.

Surpresa? Não. Com os costumes portugueses é impossível que o Governo não interfira na gestão das empresas públicas: se é ele que escolhe os dirigentes é também possível demiti-los, seja por razões de baixa política, como no caso, seja por outras.

É crime? Não, não é, a menos que se queira criminalizar comportamentos políticos lesivos do interesse público. Caso em que não apenas periodicamente se trancafiariam ministros de pastas sensíveis (ou presidentes de câmara, por exemplo) como os deveres de fiscalização do Governo seriam divididos entre o Parlamento e o Ministério Público, cuja missão seria escutar todos os políticos com responsabilidades executivas.

E como a definição do que seja o interesse público é, ela própria, passível de discussões, teríamos a judicialização da política, em tais termos que se poderia falar de um regime como o iraniano, com a diferença de os clérigos serem magistrados e não lerem todos, nem interpretarem do mesmo modo, o Alcorão.

Chega, e não é do partido que estou a falar.

* Publicado no Observador

Quem nunca...?

João Sousa, 17.06.24

«O antigo chefe de gabinete de António Costa, Vítor Escária, que tinha 75.800 euros em “dinheiro vivo” numa estante, disse ao procurador Rosário Teixeira (que liderou as buscas da Operação Influencer à residência oficial do primeiro-ministro) que não se lembrava de ali ter aquele dinheiro." - Observador, 17/06/2024.


Quem nunca encontrou, ao virar as almofadas do sofá ou quando esvazia a mochila, uns trocos há muito esquecidos?

Reflexão do dia

Pedro Correia, 23.05.24

«O eixo do bem, digamos assim, que se reuniu em torno do manifesto dos 50 e pretende reformas legislativas que mudem o Ministério Público, representa a mais acabada vitória de Sócrates sobre a justiça e os seus agentes, sobretudo magistrados e polícias. (...) A velha máxima de Sócrates, partir a espinha ao Ministério Público, é apadrinhada por um vasto conjunto de notáveis. (...) Sócrates está agora acompanhado por gente que não quer uma mudança positiva, um aperfeiçoamento do Ministério Público. Trata-se, isso sim, de gente que se colocou ao serviço de uma velha ofensiva contra o poder judicial, que se materializa em três frentes: a submissão das magistraturas ao poder político através de mudanças de composição nos conselhos superiores; a perversão da investigação criminal através do controlo hierárquico sobre a abertura de inquéritos e realização de diligências; a drástica diminuição da possibilidade de ver sentenças da primeira instância materializadas em considerações definitivas. O que eles querem é claro: uma alteração radical do equilíbrio e da arquitectura de poderes fixados na Constituição de 1976 e em algumas revisões posteriores. Sócrates ganhou e por goleada.»

Eduardo Dâmaso, na Sábado

O Manifesto

José Meireles Graça, 04.05.24

O Manifesto por uma reforma da Justiça é assinado por 50 personalidades conhecidas. A maior parte, suspeito, assina-o por más razões, isto é, por um instinto gregário de defesa do aquário em que sempre se moveram, o dos poderes grandes e pequenos, do Estado intrometido hiper-regulador e paternalista, das empresas públicas e das protegidas, das portas giratórias, da dança das cadeiras e j’en passe – tudo isso é sabido.

Dizia uma amiga no Facebook: “Não sei se será sentido de humor mas não acho muita graça que 50 pessoas com responsabilidades na condução dos negócios políticos deste país venham agora queixar-se do estado em que está a Justiça, a propósito do Ministério Público ter metido água quanto a uma acusação ao Primeiro Ministro”.

(Nota lateral: O MP não “meteu água”, continua a meter porque desde o famigerado comunicado da senhora PGR de Novembro do ano passado em que esta viola com serena inconsciência o segredo de Justiça o tal PM não foi citado para nada, nem ouvido. Como se fosse natural desencadear um terramoto com a declaração, o tribunal vir declarar que afinal o terramoto era apenas um ventinho porque o epicentro estava na Lua, mas mesmo assim as vítimas do pânico não poderem sossegar nem prosseguir com as suas vidas).

Aquilo disse a minha amiga, que é de uma esquerda desalinhada, os reformados no meu café dizem muito pior: políticos é tudo farinha do mesmo saco, quem está lá é para se encher, onde há fumo há fogo.

Outros amigos mais da minha criação, que navegam no mar da superioridade intelectual ancorada à direita, rejubilam: é preciso expor os malefícios que o estatismo e os seus principais patronos (o PSD e o PS, este mais porque faz muito tempo que vive amarrado à manjedoura e é mais radical e inepto) causam à economia, e relacionar isso com a impostagem predatória e a falta de crescimento.

Quem está na berlinda da exposição à execração pública é o PS porque é sobretudo com ele (e só podia ser, salvo na Madeira e nas autarquias) que há casos e casinhos. Daí que as oposições tendam a transformar este conjunto de coisas numa guerra de maus contra os bons, os primeiros devendo ser desapossados dos seus lugares pelos segundos, que têm providencialmente um par de asas nas costas.

O campeão desta estratégia é fatalmente o Chega, que já veio tachar o Manifesto como "uma vergonha para o povo português". “Quem estiver lá fora não vai ver outra coisa senão os políticos a legislarem em seu próprio benefício", disse com virtuosa indignação.

É provável que tenha razão na análise da reacção popular, que isso lhe traga benefícios e que quem queira reformar a Justiça tropece na incompreensão e nos processos de intenção.

Porém, que dois governos, um nacional e outro regional, já tenham caído por acusações do MP que não se aguentam em tribunal (e são, até, ridicularizadas, como no caso Influencer), a coroar um longo percurso de incompetência e abusos sortidos, excede em muito os limites do tolerável; e que o poder político tenha acordado do longo sono que permitiu que se chegasse a este estado de coisas, e só agora por precisamente ter as barbas de molho, é um caso claro de Deus a escrever direito por linhas tortas.

Dir-se-á que o dinheiro vivo encontrado num gabinete de um adjunto já era suficiente para Costa ser frito em lume brando e que, sem buscas, jamais se teria descoberto a provável moscambilha. Pois sim. Mas também aí, até agora, provou-se nada, nem se provará nunca uma conexão ilícita com o antigo PM. A palpites e suspeitas todos têm direito, incluindo os reformados acima referidos, eu e os restantes eleitores. Mas não os magistrados do Ministério Público, a menos que o Direito Criminal, de que deveriam ser especialistas, devesse ser retrogradado até aos tempos do senhor Marquês de Pombal ou mais para trás.

Quando André Ventura fala, a este propósito, do povo, não é do povo que está a falar, mas da populaça; não há nenhuma categoria de cidadãos que esteja exornada de qualidades de pureza de propósitos e processos que cruelmente falham a outras categorias, e isto também vale para magistrados; os poderes públicos equilibram-se para evitar abusos e não há equilíbrio se um deles está pulverizado numa multidão de pequenos títeres ungidos de uma missão salvífica que um deus desconhecido lhes atribuiu, completa com a garantia da impunidade e irresponsabilidade que, num Estado de Direito, pertence e tem de pertencer a quem julga, mas não a quem acusa; e democracia representativa não é a mesma coisa que democracia directa, o que significa que nem sempre a popularidade é o melhor dos critérios.

Finalmente, a pergunta retórica que todos fazem nestes entretantos, isto é, por que razão os que mandam haveriam de estar acima, face à lei, dos mandados, só pode ter uma resposta: não estão nem têm de estar. Mas a forma como são tratados é o espelho da forma como se tratam os que ninguém conhece, e que por isso não são defendidos por manifestos de personalidades nem por ninguém, salvo por advogados se tiverem recursos para lhes pagar.

E esse espelho é o da casa dos terrores. Quando chegarmos, se chegarmos, à fase das reformas, hei-de discordar de muita coisa, e o caminho comporta o perigo de substituir um desequilíbrio por outro na balança de poderes. Mas hoje por hoje este Manifesto, que é na realidade um libelo, também o assinaria. Apesar das companhias.

Só agora descobriu

Pedro Correia, 12.04.24

António Costa descobre só agora que a justiça é lenta em Portugal.

Extraordinária descoberta.

Como se não tivesse sido primeiro-ministro durante mais de oito anos, entre 2015 e 2024.

Como se não tivesse sido ele próprio ministro da Justiça durante quase três anos, de 1999 a 2002.

Como se não tivesse sido um dos responsáveis da legislação existente no âmbito penal e processual penal.

Como se tivesse desembarcado de Marte há um par de semanas.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e Portugal

jpt, 26.03.24

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Aqui remeto para o artigo do renomado advogado Francisco Teixeira da Mota sobre a recente sentença do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Na qual, mais uma vez, condenou o Estado português (e a sua Justiça) pela sua manutenção ilegal - frise-se, ilegal - das condenações por difamação. Tudo isto a propósito do caso que opôs Pedro Arroja (que escreve, sulfúrico diga-se, no Portugal Contemporâneo) a Paulo Rangel, o qual contra aquele intentara uma acção que colhera êxito nos tribunais portugueses. Abre hoje uma nova legislatura e é tempo de se exigir uma alteração na lei portuguesa, que aniquile esta vetusta jurisprudência.

Aproveito para recordar o que já aqui narrei: também eu fui alvo de um (para mim surpreendente) processo por difamação. Tendo-me insurgido contra uma inaceitável candidatura socialista ao Tribunal Constitucional, expliquei-me das razões para tal ira. Assunto ao qual voltei. Utilizando alguns argumentos (para além da experiência havida com esse estadista) que são perfilhados por influentes socialistas - como, por exemplo, o actual ministro da Cultura, Adão e Silva, como frisei aqui.

O candidato, depois de derrotado na Assembleia da República, colocou-me um processo. Uma muito ponderada procuradora aconselhou-me a evitar a ida a tribunal. Como aqui expliquei, desprovido de recursos financeiros para cooptar um apoio jurídico, que seria de longa duração, e desprovido de coragem moral para anos de choques em tribunal com um prócere do socialismo português, transformei a ira em úlcera e aceitei pagar uma quantia (200 euros) ao Instituto Português de Oncologia para encerrar a patética sanha do ex-governante. Espero, agora,  muito sinceramente, que todos os colegas daquela - muito  respeitável - procuradora leiam esta sentença. E que esta ilegal (repito) reclamação de "difamação", usada por socratistas e outros, seja expurgada da trapalhada jurídica portuguesa.

Justiça*

José Meireles Graça, 01.03.24

Neste artigo refere-se o “representante sindical” do Ministério Público, que se aliviou, como acontece frequentemente, de opiniões. Da Associação Sindical dos Juízes Portugueses vieram declarações em sentido diferente, num curioso dissídio.

Cabe aqui um ponto prévio: os juízes são órgãos de soberania e as suas decisões são inerentemente soberanas, cabendo-lhes aplicar nos tribunais às pretensões das partes ou aos réus as leis que um dos outros poderes elabora. “Um dos” em tese, porque na prática o Executivo também legisla, teoricamente por delegação da AR, para não falar da legislação importada da UE à sombra dos tratados. O quarto poder serve sobretudo para cortar fitas e exercer uma magistratura de influência – um rei constitucional a prazo certo.

A defesa que têm a parte decaída, os réus ou o MP é o recurso – para outros tribunais.  Isto é, no osso, parte importante do Estado de Direito, e uma das suas pedras de toque é a independência e irresponsabilidade dos juízes. Sem ela os fracos não poderiam ter esperança na defesa contra os fortes, os cidadãos contra o Estado e os inocentes contra a justiça popular.

Entre nós a outra magistratura dentro do sistema judicial, a do MP, goza igualmente de prerrogativas semelhantes, embora com limitações – numa salganhada jurídica que já teve contornos diferentes dos actuais.

Isto significa que uns e outros administram a Justiça em nome do povo. Este é que é o patrão abstracto porque cada magistrado deve apenas obediência à sua consciência jurídica na interpretação das leis que deve aplicar aos factos concretos que tem de investigar ou julgar.

Fazer greve contra o patrão povo não é admissível; e sindicatos alheios a greves são um oxímoro. Daí que a Associação de Juizes nunca se deveria designar como “sindical” e muito menos deveria ser sequer admitida a existência de um Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, pelo menos não havendo dependência hierárquica de outros poderes no âmbito da condução dos processos.

Um magistrado sindicalista tem, na minha opinião, um entendimento deficiente do seu papel. E não vejo que a função se enobreça com esta banalização.

Este o ponto prévio. Quanto à notícia, vejamos o que diz Adão Carvalho:

“Temos de compreender que as funções que os tribunais e o Ministério Público exercem têm interferência, claro, na sociedade.

Claro que têm, mas há interferências e interferências: Quando estamos a falar de crimes duvidosos na sua existência, na sua prova ou na sua qualificação, convém, no mínimo, ponderar as consequências, se estas forem potencialmente a queda de Governos ou outros órgãos eleitos. Não no sentido de criar estatutos de imunidade, mas antes o de garantir que as investigações se revestem do secretismo possível e não causam mais males do que os que pretendem exorcizar. Exemplo: Era necessário no comunicado da senhora PGR o parágrafo assassino sobre a investigação a Costa? Não era e quem entende que sim ou faz parte da multidão que acha que todos os políticos são ladrões, salvo prova em contrário, ou deixa-se cegar pela aversão a Costa, que se diz ter sido o pior PM da democracia (um evidente exagero se nos lembramos de Vasco Gonçalves, Maria de Lurdes Pintasilgo, Guterres e Sócrates).

Era necessário o circo montado na Madeira, objecto da entrevista de Adáo Carvalho? Não era, se acolhêssemos a possibilidade de as investigações se arrastarem até ao dia das eleições, para não as influenciar. Em que medida não se sabe, nem interessa: A majestade da Justiça não é a mesma coisa que a majestade dos magistrados do MP, e a indiferença destes perante essa coisa corriqueira de eleições só pode merecer a qualificação de arrogante.

“Existir uma investigação criminal não implica que alguém se demita de um cargo político. Basta existir uma denúncia. Se for uma denúncia, com a identificação de uma pessoa concreta como suspeita, essa investigação tem de ocorrer sempre”.

Implica sim. Não é concebível que um PM, ou até um presidente de Câmara, se mantenham em funções sob o manto da acusação, ou suspeita convalidada pelo MP, da prática de crimes. A ideia de que um responsável político eleito não vê a sua dignidade e autoridade diminuídas enquanto espera pelo desenlace do caso é, para dizer o mínimo, extraordinária.

Cansa o mantra da “investigação que tem de ocorrer sempre”. Não tem. Porque, se tivesse, o MP não teria mãos a medir. Não conheço nem tenho de conhecer os cantos da casa, um edifício aliás razoavelmente opaco. Mas é evidente, se a lógica não for uma batata, que as denúncias têm de ter um mínimo de consistência, ou as investigações terem um carácter sumaríssimo. De resto, a quantidade de diligências conduzidas dilatada e penosamente que desembocam em processos que estacam no Juiz de Instrução, ou desabam em sede de julgamento, indicia não um excesso de trabalho mas um excesso de formalismo, para não lhe chamar incompetência.

“Não vou negar, é estranho haver uma divergência tão grande. Não é normal e significa que algo não está bem e alguém não fez uma valoração adequada”.

A Relação dirá quem, com o seu típico vagar. Entretanto, pontapeando a Constituição, estiveram presas três pessoas 21 dias. O MP, dizem as notícias, insistiu na libertação por achar o tempo excessivo e a explicação mora, parece, na imensa complexidade do processo e numa greve às horas extraordinárias (!) dos funcionários judiciais. Faltou esclarecer, e aliás ninguém perguntou, por que motivo era necessária a prisão: o que havia a apreender já estava apreendido e não é plausível que qualquer dos indiciados fugisse se citado a comparecer para prestar declarações.

Que fique claro: A privação da liberdade é uma pena (não me cansem com a distinção entre detenção e prisão) que o MP aplica com tanta liberalidade que a banalizou; por ser uma pena é que a Constituição se ocupa do assunto com tal clareza que, ao contrário do habitual, não se encontram constitucionalistas para dizer que não está lá o que lá está; que o espectáculo em torno das diligências e das detenções agrade porventura à opinião pública nada tem a ver com justiça, e tudo com a cedência às pulsões justicialistas da multidão; e os dois dias de que fala a Constituição poderiam ser três, mas não vinte e um. Mas, sendo dois, são 48 horas e não mais.

“O juiz que autoriza uma busca, ou que acompanha o processo não é aquele que vai fazer o interrogatório”. Neste caso, o juiz que estiver de turno é que ficará responsável pelo interrogatório e, para o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, deveria aproveitar-se “o conhecimento que um juiz tem do processo”. “Não é uma questão de alteração legislativa, só de organização interna.”

Dito de outro modo: Afunilar o número de juízes que intervêm no processo poderia acelerar a decisão. Poderia. E também poderia atrasá-la se o juiz estiver impedido, para não falar do risco de o conhecimento e intervenção no processo já ter solidificado uma convicção.

O resto do artigo, que vale a pena ler, lista alguns outros casos de abusos e cita declarações mansas de advogados.

Mansas porquê? Porque estes têm o natural receio de, criticando acerbamente as magistraturas, prejudicarem os seus actuais ou futuros clientes. A respectiva Ordem poderia e deveria dizer alguma coisa sobre este resvalar para a judicialização da política e menoscabo das leis e direitos dos suspeitos, mas existe, parece, para inexistir. No Observador apareceu há dias um bom texto sobre este assunto, de um advogado, ainda que redigido na linguagem hermética da seita.

Da política é como quem diz. Porque ainda que os reformados no meu café rejubilem e entendam que o melhor até era trancafiá-los todos e deitar a chave fora, a boa pergunta é o que pode acontecer a quem não tem nem importância social nem visibilidade nem dinheiro nem bons advogados, quando assim se trata quem tem essas coisas todas.

Há um problema. Que não vou resolver porque em o identificando e fazendo boas perguntas sem lhes dar resposta tenho ilustres companhias, como António Barreto, que o faz, e bem, há muitos anos, tolerado pela esquerda porque lhe pertence e apreciado pela direita porque não parece.

Resposta, portanto, não a dou porque não sei. A solução óbvia, que é acabar não com a autonomia do MP mas sim com a dos respectivos magistrados, poderia acarretar a impunidade de todo o político corrupto, mormente se fosse do Centrão.

Não sei mas não acredito que venham sugestões particularmente úteis de magistrados, que pertencem a uma (ou melhor, duas) corporações e reflectem naturalmente uma visão que tem de ser redutora; nem é excessivamente de comprar o ponto de vista dos advogados, que são uma corporação de certo modo simétrica das outras; nem de jornalistas especializados, que nunca vão além das banalidades que se expelem nas cerimónias do aparelho judicial e nas declarações de figuras de relevo; nem de políticos, a menos que daquela lura saísse alguma ideia redentora que sem enfraquecer o combate à criminalidade, mormente deles próprios, acabasse com o escândalo dos atropelos à lei e comportamentos de elefante em loja de louças por parte de quem tem como missão, justamente, defendê-la.

Um exemplo, um só, de disparate que vai lentamente passando para a opinião pública: diz-se que o sistema é excessivamente garantístico, donde é preciso diminuir a quantidade de recursos, por estes arrastarem interminavelmente os processos. O que os atrasa é muito menos a quantidade de recursos e muito mais o tempo que leva a decidi-los. E não é preciso ler muitas sentenças para concluir que estas são frequentemente prolixas, arrevesadas, redundantes e pretensiosas. A linguagem jurídica, por ter de ser rigorosa, não tem de ser necessariamente acessível ao leigo; mas isso não é a mesma coisa que produzir extensos, e intragáveis, relambórios.

Que venha então quem julgue saber como fazer, e fale, e escreva. Há quem, independente de quaisquer interesses, tenha opiniões, e sólidas mesmo se discutíveis, como Nuno Garoupa. E ainda que a habitação, e o SNS, e as pensões, e o mais de que se faz a aflição das pessoas, ocupe a quase totalidade das preocupações de modernização, o sistema de Justiça será reformado porque os poderes são separados mas um conforma os outros – os magistrados não legislam. Conviria que fosse com os olhos bem abertos.

Entretanto que se acabe com prisões abusivas, se for preciso através de mecanismos automáticos de libertação no caso de ultrapassagem de prazos. Como exemplos não têm faltado de intromissões desnecessárias do poder judicial no desenrolar do processo político, seria talvez oportuno que o legislador lembrasse que a lei, mormente a Constituição, é para cumprir – se não for de uma maneira, de outra.

* Publicado no Observador

Não tem emenda

Legislativas 2024 (8)

Pedro Correia, 16.02.24

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Rui Rio estava sabiamente remetido ao silêncio há largos meses. Lembrou-se agora de falar: não para criticar o PS mas para propor um "pacto" entre o PSD e o PS. Em plena campanha eleitoral para as eleições legislativas de Março, quando o PSD estabeleceu como prioridade total desalojar o PS do poder que ocupa há mais de oito anos. Parece uma rábula do Ricardo Araújo Pereira.

Continua como antes: nada beneficiou com o retiro sabático. Não tem emenda.

Nó cego

José Meireles Graça, 30.01.24

Costa, diz-se, aproveitou, para se pôr ao fresco, a boleia oferecida pelo comunicado da PGR que informava ir ser investigado no âmbito de um processo criminal.

Queria disponibilidade para “ir para a Europa”; o futuro próximo da economia está carregado de nuvens ominosas, outro que se amanhasse; está cansado, a vida política esgota.

Peço desculpa para não comprar nada disto: o tal lugar na Europa é tudo menos garantido, a menos que haja acordos debaixo da mesa que ignoramos; o futuro próximo, por causa das guerras e suas disrupções, mais a debilidade das economias dos países destinatários das nossas exportações, não é realmente entusiasmante, mas se há coisa em que Costa é mestre é no mecanismo de alijar responsabilidades – desculpar-se e sacudir a água do capote é, do catálogo dos seus números de prestidigitação, o que faz melhor, e as crises lá fora vêm a calhar para este efeito; está cansado coisa nenhuma, tem apenas 62 anos e não há disso o mais leve indício.

De modo que o mago foi apanhado de surpresa e esta desarmou momentaneamente o seu inato calculismo, levando-o a dar um passo em falso, do qual já deve estar arrependido.

Seja como for, o país só terá talvez perdido alguma coisa se, no caso de o PS ganhar as eleições, Pedro Nuno lhe suceder. Porque este prócere do PS, pelo passado e pelo conjunto de tolices sobre economia e Estado que lhe atulham a cabeça voluntariosa, poderá deixar ainda pior marca.

Isto porém é o menos. O mais é que, sem o comunicado da PGR e o seu famoso parágrafo assassino, não estaríamos em campanha eleitoral (tecnicamente só a partir de 25 de Fevereiro mas isso são frescuras – a campanha já começou). A Procuradora-Geral não tinha de adivinhar que Costa se demitiria mas tinha de saber que iria causar um abalo político, não pela prática de quaisquer crimes ou sequer indícios da grande probabilidade de eles terem ocorrido com culpa do PM, mas pelo facto de haver uma investigação que o envolvia indirectamente. As investigações ganham pelo secretismo – não se fazem na praça pública. E se era impossível que dos processos correlatos nada transpirasse para a opinião pública, uma coisa são hipóteses e zunzuns, que moem, e outra é um claro apontar de dedo por parte de quem tem como missão exercer a acção penal e defender a legalidade.

A referência à investigação a Costa podia assim, e devia, ter sido omitida. E a razão por que não o foi não é difícil de imaginar: o MP é, para a maior ou uma parte grande da opinião pública, ineficaz. Esta manifestação de coragem e independência vem a calhar, e aqueceu decerto os corações de muitos dos senhores magistrados. E a senhora Procuradora-Geral deve ter-se apavorado com a perspectiva de ter remetido ao STJ, para investigação, um processo que envolve o PM, e dito nada, o que no futuro podia vir a ser interpretado como uma atitude de protecção. Engano dela: em lugares de topo há momentos em que, decida-se o que se decidir, haverá sempre lugar a críticas acerbas.

Aconteceu. E ainda aturdidos somos surpreendidos com a notícia de que um pequeno exército de 270 inspectores da PJ, 6 magistrados do DCIAP com outros tantos assessores mais dois juízes invadiram por via aérea a risonha ilha da Madeira para o efeito de fazer uma razia nos poderes locais, não duvido nada que há muito e tradicionalmente acomodados numa rede clientelar de amigos e negócios obscuros.

Desde aí, há uma semana, vai um corrupio de comentários, debates apaixonados e satisfação mal disfarçada do lado esquerdo do espectro político, que murmura: é para aprenderem, corruptos não são só os do PS. E do Chega, que esfrega as mãos: estes políticos dos dois partidos do arco são tudo farinha do mesmo saco.

Ficamos a saber, entre muitas outras coisas, que o regime local é parlamentar, ao contrário do da República, que é semipresidencialista, e portanto os poderes do PR são menos extensos nas ilhas. Esta anomalia (que fere, ao contrário do que dizem leis e juristas de vária pinta, a unidade do Estado) não parece perturbar ninguém. Coisa fantástica: as autarquias locais têm de ter, e têm, um regime próprio; mas as regionais embrulham-se no manto de instituições para-estaduais, coroadas, no caso dos Parlamentos locais, com poderes que o nacional não tem. Por mim, confesso: ignorava que vivia num Estado para-federal e suspeito que esta evolução teve mão do politicamente falecido Jardim, de um lado; e de continentais cobardes, do outro.

A formação acelerada no conhecimento dos nossos arranjos constitucionais é uma vantagem colateral desta crise. Mas é a única, infelizmente. Porque a mesma Procuradoria que espoletou eleições no país com um caso de polícia inquina-as agora com outro – o da Madeira tem importância, e consequências, para as eleições nacionais.

Justiceiramente os casos são simétricos: PS de um lado e PSD do outro.

Disse acima que a senhora Procuradora-Geral não avaliou adequadamente as consequências do seu mau passo. E quanto a este novo abalo sísmico, pergunto: Estas diligências não podiam esperar cinco semanas, até à realização das eleições? Tinham de ser agora?

Não tinham, é evidente. E foram, salvo explicação melhor ou mais arguta, porque a majestade da Justiça, que se realiza, ao contrário do que parece acreditar o Ministério Público, com julgamentos e sentenças judiciais, não inclui as necessidades de investigações policiais, que não devem afectar, se isso puder ser evitado, o normal desenvolvimento do processo político em aspectos críticos. Isto não seria a mesma coisa que garantir imunidade a detentores de cargos; seria um juízo de oportunidade que a senhora PGR podia e devia ter feito, se para isso tem poderes. Se não tem, deveria tê-los.

Entender-se o contrário é negar o equilíbrio dos poderes. Se um deles se arroga o direito de destratar na prática o processo pelo qual os representantes dos outros são escolhidos é porque lhes é superior. Mas não é. E como o MP não legisla, e a independência dos juízes é uma inerência dos Estados de Direito mas a dos magistrados do MP não, corre-se o risco de o legislador ter a tentação de criar no futuro mecanismos de dependência do Executivo. Seria pior a emenda que o soneto.

Esta arrogância, finalmente, não podia deixar de manifestar-se nas prisões preventivas, que são já um ex-libris do abuso: prende-se para investigar com sossego e, no caso de os juízes de instrução não o coonestarem, sempre o preso já fica com uns dias de encarceramento, que é para aprender, mesmo que a acusação não seja consistente, ou seja mas não haja riscos atendíveis que justifiquem a prisão.

Neste momento um preso já vai com sete dias, sem um estremecer de escândalo ou sequer um franzir de sobrolho.

A opinião pública, porém, acha isto bem, e a publicada não anda longe. A justiça popular, que é sempre virulenta, mormente contra os poderosos, não é justiça. E a independência deveria servir para não ter de prestar vassalagem ao desejo da populaça de humilhação dos acusados.

E então o comentariado e a comunidade jurídica, que dizem? Pouco: ou sofrem do mesmo viés da opinião pública ou dela têm medo e das magistraturas também. A liberdade, a de opinião e as outras, sempre teve poucos amigos.

Tique de classe, nada socialista

Pedro Correia, 26.01.24

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O sossego da pacata Ericeira foi perturbado ao fim da tarde de ontem. José Sócrates desceu do primeiro andar à porta da casa de empréstimo onde há vários anos vive amesendado e dispôs-se a responder às perguntas dos repórteres que ali se encontravam. Queriam obter uma reacção do antigo primeiro-ministro à decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de levá-lo a julgamento por três crimes de corrupção, 12 crimes de branqueamento de capitais e seis crimes de fraude fiscal. Vitória clara do Ministério Público, derrota sem paliativos do juiz Ivo Rosa.

O "animal feroz", fiel à sua imagem de marca, não ocultava a irritação. Quando um jornalista lhe fez uma pergunta usando o vocativo "você", reagiu de imediato: «Não diga você! Trate-me por senhor.» O jovem assim fez. Daí a momentos, Sócrates dirigiu-se a ele tratando-o por "você", já esquecido da regra que ditara pouco antes. A cortesia de linguagem, na versão socrática, funciona em sentido único.

Arrogância e soberba, denotando tique de classe. Mitómano imaginando-se membro de casta superior. No ancien régime comportar-se-ia como senhor feudal, impondo direito de pernada aos súbditos mais tementes.

Nada menos socialista. Mas também é verdade que o "senhor Sócrates" rasgou o cartão de militante do PS. Cortou o mal pela raiz: agora já ninguém lhe chama camarada.

Os segredos no telemóvel*

José Meireles Graça, 17.07.23

Quem acompanha, mesmo que distraidamente, a política americana, fica varado com a facilidade com que, por divergências políticas, se recorre aos tribunais, cujos juízes decidem alegremente pendências com base em maravalhas jurídicas, depois objecto, ou não, de recurso. Há muitos juízes que são eleitos, e outros, federais, nomeados pelo Presidente, desde que aprovados pelo Senado, além de vários regimes estaduais diferentes quanto à forma de escolher juízes. No ministério público a baralhada é igual – há eleitos e nomeados.

Isto ajuda a que a sociedade viva obcecada com questões jurídicas, as instituições penais sejam bárbaras, e os procuradores com frequência demagogos. E como a gravidade das penas é muitas vezes negociada entre a acusação e a defesa, ambas baseadas na probabilidade de sucesso das acusações, está composto o quadro da justiça criminal americana.

Os comentadores, se raivosamente alinhados de um lado ou outro da barricada, reclamam com facilidade a prisão de opositores em caso de suspeitas; e vemos, para gáudio de quem o odeia, que até mesmo um ex-presidente já está a sofrer tratos de polé, a ponto de se considerar como grande privilégio o não comparecer algemado em tribunal.

O sistema tem porém coisas boas, mas este artigo não é sobre isso, que de toda a maneira são lá coisas de gringos.

A América é o país líder do mundo livre; já veio duas vezes, no século passado, pôr ordem na Europa; e criou a aliança de defesa inicialmente contra a URSS, que sempre sustentou muito mais do que os restantes aliados. Esta aliança, a existência de um inimigo comum e de bombas atómicas dos dois lados, garantiram a paz aqui neste continente depois da II Guerra Mundial (há a lenda, propagandeada por europeístas frenéticos, de que foi a CEE e a UE – uma crença interesseira). E agora que se anda à batatada no extremo oriental, e se adivinha que a China poderá vir a ser, neste século, o inimigo da maneira ocidental de estar no mundo, é nos EUA que se confia para descalçar essas duas botas.

Por outro lado, algumas instituições americanas, entre as quais a liberdade económica e a de opinião (hoje crescentemente condicionada pelo movimento woke), foram a seu tempo pioneiras e continuam admiráveis; e a diversidade dos Estados, a facilidade com que a opinião pública evolui, a criatividade, o tamanho e o Poder, fazem com que de lá venham as modas – de pensamento e as outras.

É por isso que andamos de jeans e alguns (gente de gostos duvidosos, que abunda) bebem cola, começamos a estar obcecados com assuntos como o racismo e a igualdade de “género”, lhes lemos as publicações e ouvimos (quem ouve) as estrelas rock e tomamos partido entre uma desgraça como Trump e uma nulidade como Biden, para não falar daquelas personalidades apaixonantes que são o iluminado pateta Zuckerberg, o espalha-brasas Musk e cem outras luminárias.

Pois bem: Convinha perceber que importar sementes para as lançar a terra e clima diferentes é operação arriscada. E se uma pessoa na posse das suas faculdades lê esta notícia não pode deixar de achar que esta gente ou é burra ou enlouqueceu. Os juízes são independentes por inerência de função em regimes democráticos, nos quais tem de haver separação dos poderes. E os magistrados do MP são-no também, ainda que quanto a estes a mesma necessidade não exista e o arranjo encontrado, se dá garantias de independência em relação ao Governo do dia, não a dá quanto aos direitos dos cidadãos, e dentro destes os políticos.

Corja de ladrões, dirá destes últimos a opinião pública, essa grande rameira, que todavia não hesita em eleger partidos atolados em casos e casinhos. Sucede porém que, se a lógica não for uma batata, nos magistrados do MP se encontram as mesmas clivagens políticas que no resto da sociedade; e que confiar unicamente na consciência jurídica daqueles magistrados, num contexto em que uma investigação, se pública, queima uma reputação, e onde não há qualquer sanção para acusações que não se deduzem ou, deduzindo-se, não dão origem a condenações por aquelas estarem coxas por insuficiência de prova ou atropelos do Direito, parece, e é, um desequilíbrio sério.

Os juízes têm as decisões de instâncias superiores que lhes podem ridicularizar (na linguagem cifrada da seita) as sentenças, as inspecções, o Conselho Superior da Magistratura, eventualmente a opinião pública e o desprestígio que resulta de disparates, e a certeza de que lá onde não há a independência que os protege também não há, nem pode haver, sociedades democráticas. Os magistrados do M.P. têm o quê, ao certo? Eficiência não deve ser porque há processos que se arrastam anos sem fim, investigações espectaculares que resultam em nada, e uma discrição abusiva que consiste na publicidade a actos lesivos da honra e consideração das pessoas sem que se saiba quem foi ao certo o magistrado responsável pelos abusos e pelas argoladas, nem de que forma a sua carreira foi, se foi, prejudicada pelo asneirol.

É isto que querem os partidos? Que o MP vá meter o nariz na intromissão do Governo na gestão da TAP? Que se pronuncie sobre as insuficiências e enviesamentos do Relatório da Comissão? Que investigue a parte gaga da classificação de documentos como secretos?

De outro modo: Querem que o partido que ganhou as eleições, e a AR, sejam escrutinados por magistrados que não respondem perante ninguém, não se sabe sequer quem são, e não pagam nenhum preço, ao contrário dos políticos, por erros, atropelos e intolerável lentidão?

Esta notícia já seria suficiente para pôr os cabelos em pé de quem tem consciência da essencialidade dos partidos para a democracia, dos perigos da promiscuidade de funções e das paixões que se disfarçam em amor da legalidade.

Sucede que há dias a PJ mobilizou cerca de 100 inspectores e “peritos” (não, não pode ser verdade que sejam necessárias 100 pessoas pagas pelo erário público para realizar o trabalho de 2 ou três) para irem a casa de um ex-dirigente partidário procurar não se sabe bem o quê, ao que parece porque este autorizou uma prática discutível mas vulgar, e que consiste em assistentes dos grupos partidários trabalharem em casa (ou nas sedes partidárias) em vez de no edifício da AR.

Não tenho uma indevida simpatia pelas ideias da personagem, mormente as sobre Justiça, assunto em que, ao contrário de outros dirigentes, não hesita em dizer o que lhe vai na alma. Mas que sem indícios consistentes de apropriação ilícita pessoal de fundos públicos uma pessoa veja o domicílio invadido e tudo espiolhado, incluindo o pormenor grotesco da confiscação do telemóvel, releva pura e simplesmente de abuso de poder.

A populaça gosta, não duvido, a facção inimiga dentro do partido também, e os outros partidos nem se fala.

Triste gente. Que estão abrir uma porta americana que devia estar fechada. A justiça popular tem o defeito de não ser justiça. Já a Justiça, ela, deve ser exercida com imparcialidade em nome do Povo, não em nome da opinião pública, da publicada e das paixões.

*Publicado no Observador

Um país de más práticas consistentes

Sérgio de Almeida Correia, 15.07.23

aaaaa.jpeg(foto daqui)

Vi e ouvi a entrevista dada por Rui Rio a Clara de Sousa no Jornal da Noite da SIC

Devo dizer que nunca tive particular simpatia pelo estilo do personagem, em especial, porque o seu discurso e a sua postura casaram sempre muito mal com algumas das escolhas que patrocinou e promoveu enquanto presidente do PSD, revelando uma tremenda falta de coerência que rapidamente o desacreditou e contribuiu para degradar ainda mais o lodaçal da política nacional.

Mas importa agora também dizer que Rui Rio tem razão quando se queixa do modo de actuação da PJ e do MP, quando se queixa deste modelo de investigação-espectáculo em que os nossos órgãos de política e investigação criminal se especializaram de há uns anos a esta parte com o patrocínio de uma certa comunicação social que adora, e só está bem, exactamente a chafurdar nesse mesmo lodaçal e num jornalismo feito de casos, de intrigalhada e de meias-verdades que se alimenta da ignorância, da boçalidade e da mediocridade instaladas.

E também tem razão quando refere que foi cometido um crime de violação do segredo de justiça, mais um, digo eu, dos muitos que têm sido cometidos sem que se acabe de vez com um segredo de justiça que só serve esse mesmo jornalismo e um justicialismo de labregos promovidos que tanto tem contribuído para ajudar a acelerar a degradação da democracia, contribuindo para o achincalhamento da actividade política e das instituições políticas e judiciais.

Assistindo-lhe igualmente razão quando pergunta porquê que esta operação só afecta o PSD e porquê que só abrange o período em que ele foi dirigente entre 2018 e 2021. 

E Rio volta, ainda, a ter razão quando diz que "isto não é um país que se apresente", embora todos os portugueses saibam que já não é país que se apresente em relação ao que estamos a falar, e também em relação às práticas dos partidos, à selecção das elites políticas, à ética política e de governo há muitas décadas.  

Dito isto, vamos então olhar para a indignação de Rui Rio quanto aos argumentos que apresenta quanto ao que está em causa no processo que conduziu às buscas. E em relação a esta, Rui Rio espalhou-se ao comprido.

Não é aceitável para ninguém de bom senso e com um mínimo de preocupação com o abandalhamento da vida política a que temos assistido, com a chegada de tanto (sim, são muitos, demasiados) corrupto aos partidos, às bancadas do parlamento, às autarquias, aos governos, ouvir Rui Rio dizer sobre o que está verdadeiramente em causa – desvio de dinheiros públicos para financiar à revelia do estipulado na lei os partidos políticos – que tudo isto é "ridículo" porque "isto de que estamos a falar é uma prática transversal aos partidos desde sempre" e que "nos anos 80 já era assim".

E aqui Rio esteve muito mal, revelando bem a essência dos políticos que têm dirigido Portugal nos últimos, pelo menos, 40 anos. Porque não só não serve de argumento o facto de ser uma prática transversal, como é deveras grave, a serem verdadeiras as suspeitas que se use dinheiro do Estado, como refere o Expresso, para pagar a pelo menos 11 funcionários do partido, "sendo que um deles até já se tinha reformado"!

Porque se era assim, não devia ser.

E é nisto, nestas pequenas-grandes coisas, que se revela a bandalheira em que se tornou a vida política nacional, transformada no lodaçal de que há pouco falava.

Porque sendo Rio um homem sério, e eu não duvido que o seja, como muitos mais que estiveram à frente dos partidos também o serão, não se compreende que tendo tido a possibilidade de corrigir práticas de discutível legalidade, para não dizer manifestamente ilegais e inaceitáveis em qualquer Estado de direito, numa república que se preze e numa democracia que funcione com decência, que não tomasse a iniciativa de colocar um travão nessa bandalheira, nessa promiscuidade de funções e de dinheiros em que se perdem os partidos. Então lá porque é prática os outros roubarem ou serem corruptos também temos de ser como eles? E temos de ficar calados, aproveitando uma situação ilegal para também enriquecermos ou pouparmos uns cobres?

Infelizmente, a condescendência e a tolerância com as más práticas consistentes (e não apenas na política), o silêncio, a falta de iniciativa sobre estas matérias, no sentido de aumentar verdadeiramente a transparência e evitar que esta se transforme num mero cumprimento de formalidades sem sentido para fazer de conta que é tudo sério, a falta de vontade para  trazer mais seriedade à actividade política, de dignificá-la naquilo que verdadeiramente importa, tem constituído comportamento aceite e transversal a todos os partidos.

Não é por isso de estranhar que alguns peçam descaradamente dinheiro no exercício de funções políticas, que sendo membros dos governos da República arranjem todas as moscambilhas e mais algumas para ganharem dinheiro por debaixo da mesa, outros para despacharem ou atrasarem processos, trocarem favores, tornarem-se dirigentes desportivos, empreiteiros de sucesso, empresários ou ex-régulos de diferentes tabancas que são condecorados em Belém e apresentados como exemplos nacionais até que se perceba que andaram a vida toda a roubar o Estado, as empresas e os portugueses, ou que deixaram que se roubasse e nada fizeram porque isso era normal, porque sempre foi assim.

Se as leis estão mal, a começar pelas do segredo de justiça e do financiamento partidário, mudem-nas; se tudo o que existe é hipócrita e sem sentido tenham a coragem de dizê-lo. Tomem a iniciativa, façam quando têm possibilidade de fazer. Sejam coerentes, e deixem de se comportar como pantomineiros fala-baratos que depois se queixam como virgens ofendidas do que viram fazer e deixar que se fizesse quando o lodaçal lhes entra pela casa adentro.

 

P.S. Alguém sabe se João Gomes Cravinho ainda é ministro? Há coisas que não são do foro da justiça, são do foro da ética e da decência, caso o primeiro-ministro ande distraído com a nova época da bola.

O réu insolente

José Meireles Graça, 04.04.23

Achei a notícia curiosa e, armado de paciência e coragem, fui ler o acórdão. Ainda é pior do que o que é costume: prolixo, redundante, aqui e além com redacção descuidada (incluindo o irritante hábito de, ocasionalmente, atirar vírgulas ao ar e deixá-las ficar onde caem) e, sobretudo, interminável.

Tão interminável que não li até ao fim, ainda que a história não seja particularmente complicada. Como se diz na peça, que resume adequadamente o assunto:

O homem foi detido em 18 de março de 2019, juntamente com o pai, por alegadamente terem obrigado dois indivíduos a trabalhar durante 11 anos seguidos sem nunca lhes terem pago e a viver em condições precárias de alojamento e higiene, tendo ficado sujeito à medida de coação de prisão domiciliária.

Mais tarde, foi pronunciado e julgado pela prática de dois crimes de escravidão, dois crimes de tráfico de pessoas e um crime de abuso de confiança, tendo sido absolvido de todos os crimes por acórdão datado de 19 de dezembro de 2019, data em que foi revogada a medida de coação e restituído à liberdade.

Esteve preso em casa durante mais de 9 meses (salvo umas ausências autorizadas a certas horas do dia para tratar de um rebanho de ovelhas) e, como foi absolvido das acusações, veio pedir uma indemnização ao Estado. O acórdão condena o Estado (ainda que em valor inferior ao pedido) em pouco mais de 126 Euros por dia de prisão, fora os danos apurados, estes de resto segundo critérios demasiado exigentes – os tribunais portugueses distinguem-se por atribuir indemnizações miseráveis.

Há várias coisas curiosas neste processo, desde logo por que razão se mantêm duas pessoas confinadas à espera do julgamento de um caso que não requereria mais de umas duas semanas a apreciar, e mesmo isso por causa da necessidade de ouvir as testemunhas – o assunto só é complicado porque o fazem ser e porque o funcionamento dos tribunais, em vez de ser regulado segundo os ensinamentos da especialidade de organização e métodos, o é segundo o palpite desastrado e ignorante do legislador, funcionários, magistrados e advogados, tudo com o pano de fundo da tradição – é assim porque sempre assim foi.

Mas há mais.  Esta sentença revoga outra, da primeira instância, que não apenas não dava um cêntimo ao inocentado como o condenava a pagar um xis por litigância de má-fé. Fantástico: um tipo que esteve preso durante nove meses não tem direito a nada e ainda deve pagar uma multa porque – pasme-se – reclamou e na acção exagerou numas coisinhas.

A argumentação do Ministério Público é deliciosa. Nas palavras do magistrado:

De facto, como se pode pretender que sejam tomadas decisões livres, quer na perspectiva da aplicação das medidas de coacção, quer na perspectiva da decisão final do julgamento, quando uma decisão absolutória, sem mais, poderá acarretar a responsabilidade civil do Estado e o eventual direito de regresso sobre os Magistrados?

O magistrado do MP acha que nas medidas de coacção não pode em princípio haver erros porque os magistrados estão exornados de uma clarividência divina mas, se os houver, a vítima, depois de se defender da acusação em tribunal, tem de provar que não cometeu os crimes pelos quais foi absolvido, e isto não segundo o princípio in dubio pro reu mas um inovador que seria, devidamente traduzido em Latim, o Ministério Público não tem de provar as acusações – os réus é que têm, para o efeito de serem compensados por erros ou abusos, de fazer a prova negativa que, como se sabe e o magistrado aparentemente ignora, é frequentemente muito difícil. E é claro que a invocação do direito de regresso por parte do Estado é um despropósito: Há muitos casos desses? Não? É pena, se houvesse talvez o Ministério Público pensasse um bocadinho melhor antes de propor trancafiar pessoas. E é claro que os magistrados judiciais não podem ser objecto do exercício do direito de regresso porque isso feriria a independência e irresponsabilidade do poder judicial – estatuto que o Ministério Público pode imaginar que tem mas é opinião, para dizer o mínimo, muitíssimo discutível.

Duas notas finais:

Sabemos quem foi o relator do acórdão absolutório da Relação de Coimbra porque essa informação consta no site. Mas não sabemos quem foi o juiz que absolveu dos crimes, nem quem recorreu dessa decisão, nem quem convalidou a prisão domiciliária (o termo exacto não é “convalidar”, creio, mas como se deve perceber frescuras jurídicas não são a minha especialidade), nem quem decidiu que não havia direito a indemnização. Conviria talvez que todos percebessem que a majestade da Justiça não é a majestade dos juízes, e menos ainda a dos magistrados do Ministério Público, pelo que seria boa ideia identificá-los. Era o que mais faltava se administrando a Justiça em nome do Povo nem sequer precisássemos de saber quem são.

A Justiça é o maior falhanço do regime, opinião pacífica em artigos de opinião, em particular os de António Barreto, que com duas fundas rugas de ansiedade cavadas na fronte aflita costuma fazer descrições exactas e as perguntas certas, às quais infelizmente não se dá ao excessivo trabalho de arriscar respostas. E é claro que temos direito tradicional a discursos dos mais altos magistrados queixando-se de falta de meios e do excesso de direitos da defesa, enquanto o mais alto da Nação se alivia de agudas profundidades significando nada. Porém, a razão da falta de meios nos tribunais administrativos e fiscais está identificada – não interessa ao Estado (isto é, no caso a AT e o Governo) que as pendências sejam julgadas em tempo útil; e o “excesso” de direitos não seria um grande óbice se os incidentes e os recursos fossem resolvidos e decididos celeremente.

A justiça dos patrícios

Paulo Sousa, 24.02.23

Segundo o Expresso, o julgamento do ex-primeiro-ministro está paralisado devido a uma falha do atual Governo.

Entretanto, em 2024 alguns dos crimes de que é acusado, irão prescreve.

Estou certo que os mais convictos apoiantes do poder socialista justificarão esta falha como resultado da incompetência que já assistimos em tantos outros casos, e não a um propósito deliberado.

Eu acho que os socialistas no poder são muito incompetentes mas, antes disso, têm também um forte sentido gregário de protecção mútua. Por isso, atrevo-me a afirmar que se António Costa não dissesse o que disse quando visitou Sócrates na prisão (que ele era um lutador naquilo que acreditava ser a sua verdade – a frase politicamente mais mortífera da última década), agora não lhe poderia fazer “o jeito” de o poupar a um julgamento.

Pelo caminho António Costa já o acusou de “aldrabar” o PS. Para o partido que tomou o poder em Portugal, essas afirmações serão o julgamento que conta. E que a justiça dos plebeus não se atreva meter o bedelho onde não é chamada.


Foto: DR

A propósito de justiça e sorte

Pedro Correia, 01.12.22

Há dois conceitos que evito associar às minhas reflexões ocasionais sobre o fenómeno desportivo - e o futebol em particular.

O primeiro é o conceito de justiça. Escuto e leio muitas análises aos jogos ancoradas neste conceito - «se houvesse justiça, a equipa X teria ganho»; «a vitória da equipa Y foi justa».

Ora, salvo no que se refere a procedimentos disciplinares, a justiça não é para aqui chamada. Um desafio de futebol não é uma audiência de tribunal. Aqui o importante é vencer - por uma margem muito dilatada, de preferência, mas se for pela diferença mínima também serve. Que se vença até por «meio golo», como na velha boutade das conversas de café.

 

 

Ao pretendermos explicar tudo em futebol recorrendo ao conceito de justiça, acabamos por não explicar nada. Porque aquilo a que por comodidade chamamos injustiça é uma espécie de lei não escrita imanente a todo o jogo. Uma das mais brilhantes proezas técnicas da carreira em campo de Cristiano Ronaldo foi aquilo a que se chama um golo limpo, "injustamente" anulado pelo árbitro por alegada deslocação de Nani numa vitória da selecção portuguesa contra a Espanha.

Eu estava lá - e vi. Nunca hei-de esquecer aquele golo, reproduzido aqui mais acima.

 

É inútil insistir no contrário: não existe uma justiça poética nos estádios que resgata os verdadeiros campeões, projectando-os da relva dos estádios para esse simulacro de Campos Elíseos a que se convencionou chamar verdade desportiva. Penso nisto todas as vezes que me lembro de um dos jogadores mais celebrados da história do futebol. Diego Maradona, ele mesmo. Um dos seus golos mais famosos - e decisivos - foi marcado com a mão, à margem das leis do jogo. Passou à eternidade não como infractor, mas como lenda viva.

Onde mora a justiça em tudo isto?

 

 

O segundo conceito é o de sorte.

Diz-se que Fulano é um sujeito com sorte ou que Beltrano, figura estimável, padece no entanto do facto confirmado por todas as evidências de não ser acompanhado por essa cobiçada deusa a que chamamos Sorte. E ninguém quer figuras tocadas pelo estigma do azar na sua equipa do coração.

A sorte conquista-se, constrói-se. Dá muito trabalho. Prefiro sempre usar a palavra mérito em vez da palavra sorte. E volto a Cristiano Ronaldo: desde cedo, ainda na escola desportiva de Alvalade, onde se formou para o futebol e para a vida, o campeão madeirense prolongava as sessões de treino, continuando a exercitar-se mesmo após a partida dos colegas. Aperfeiçoou e desenvolveu da melhor maneira as suas aptidões naturais. Ultrapassou a fronteira que separa os jeitosos (que é quanto basta quase sempre em Portugal) daqueles que têm verdadeiro talento.

A sorte ajuda? Pois ajuda. Mas não explica nada. Quando Cristiano, com um remate bem colocado, cheio de força, faz tremer o poste da baliza adversária, os analistas que adoram cultivar o lugar-comum dirão: «Teve azar.» Ele será o primeiro, no entanto, a reconhecer que esteve quase mas terá de esforçar-se ainda um pouco mais para a bola entrar na próxima vez. Que poderá ser já no minuto seguinte.

 

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Foto de Robert Capa no Dia D (Normandia, 6 de Junho de 1944)

 

Experimentem usar mérito ou competência no lugar da palavra sorte.

Não é uma simples questão semântica: há toda uma filosofia de vida subjacente às palavras que escolhemos.

Cristiano Ronaldo está para o futebol como Robert Capa estava para as reportagens de guerra. Merecidamente distinguido em vida com o título de melhor repórter fotográfico da sua geração, Capa costumava dizer: «Se a foto não estava suficientemente boa é porque não estavas suficientemente perto.»

A sorte é isto. E constrói-se a todo o tempo por aqueles que beneficiam dela.