Comentariado anestesiador
Ultimamente tem calhado ouvir José Miguel Júdice. Durante muito tempo não foi pessoa cujas congeminações me despertassem grande atenção. Em tempos escreveu um texto sobre empreendedorismo (a palavra, detestável, nem sequer era corrente) que guardei algures porque era excelente, mas geralmente daquela lura saíam as mesmas banalidades que podia ejacular este ou aquele prócere do PSD, com mais ou menos cavaquismo embutido. Que o homem, indiscutivelmente brilhante, acertasse com frequência no cravo, não excluía que, basicamente, o seu discurso fosse o de um social-democrata europeísta, portador portanto de uma doutrina inconveniente para Portugal num caso e de uma abominação no outro, nos dois por razões que não vou agora discutir.
Sucede que aquando da maluqueira covidesca o homem fez aquilo de que quase toda a gente abdicou, cá e em quase toda a parte, que era exercitar um cepticismo militante em relação às medidas irracionais, contraditórias e contraproducentes com que os poderes públicos, aterrados por uma opinião pública atacada de pânico colectivo, e uma comunicação social acéfala, preguiçosa e seguidista, lidaram com o problema.
Passei, volta e meia, a ouvi-lo, e ontem calhou. O tema eram as eleições legislativas e os possíveis resultados e mudanças político-partidárias, e boa quantidade de latim foi despendida sobre a recente entrevista de Costa.
Não a vi (o palavreado costiano, na parte em que substantivamente diz alguma coisa sobre desenvolvimento, é um conjunto de crenças nos poderes demiúrgicos do Estado e de tolices cansadas, e na parte em que vende a banha da cobra da sua táctica política é um exercício de habilidade cínica – não vale a pena e ademais corre-se o risco de desaprender português) e Júdice explicou convincentemente as trapalhadas dos joguinhos de poder do PS, dos do PSD, dos da esquerda demente (que ele jamais qualificaria assim, mas eu não tenho uma educação esmerada), e dos de Marcelo. E ficamos a saber que há fortes probabilidades de o país vir a ser governado por uma coligação e que o mais provável é essa coligação ser a do PS/PSD, cavalo em que o Presidente rodilhão, ao que parece, aposta, sendo que o dito gosta mais de Rangel mas o que lhe convém é Rio porque o primeiro já queimou os barcos.
Tiro-lhe o meu chapéu: a análise é hábil, a explicação sobre motivações e intenções percuciente, e as conclusões convincentes. Não é absolutamente claro sobre o que vai suceder porque, experiente, sabe que todos os cálculos podem sair furados.
Isto diz. E também prevê uma reconfiguração tanto da esquerda como da direita, a primeira com o nascimento de um partido genuinamente verde e a segunda com uma época de transferências de personalidades que estão em alas dos partidos para outros mais homogéneos, o que tudo facilitará coligações – é mais fácil dialogar com líderes de outros partidos do que com chefes de facção ou inimigos dentro do próprio partido.
Ao Centrão o senador Barreto, pessoa de grande prestígio porque é um homem de esquerda a quem acontece dizer coisas sensatas que a direita com frequência aprecia, já havia dado a sua bênção em texto no Público de 30 de Outubro, transcrito no Sorumbático.
Peço porém desculpa para achar que todas, mas absolutamente todas, as masturbações mentais sobre o jogo político no momento presente (e disso vamos ter abundância, logo ao mudar de canal apareceu Marina Costa Lobo, conhecida politotóloga – não me enganei na grafia – que ainda ouvi declarar não ter partido, e que me fez fugir precipitadamente) que incluam, sem acompanhamento de trombetas do apocalipse, previsões sobre a probabilidade de um Centrão ou, pior, uma frente de esquerda, são antipedagógicas.
São antipedagógicas porque fazem passar a ideia de que política como de costume é o que nos convém e que, para lidar com os problemas que aí vêm, uma coligação entre gente que, como Rio, quer reformas de faz-de-conta-que-sei-o-que-estou-a-fazer, e outra que nem essas quer, ou um governo cambojano sob a égide do ferrabrás Pedro Nunes Santos, são caminhos que possamos encarar com tranquilidade.
A verdadeira razão pela qual estes pensadores se aventuram por estas adivinhações é que estes arranjos partidários e estes costumes são o ordinário em certa Europa de hoje, nomeadamente na Alemanha. E como tudo chega às nossas praias esta tendência também chegará.
Sucede que a Alemanha não tem a nossa dívida, e mesmo que partilhe connosco uma gestão socialista do país (refere-se pouco que, tal como nós, tem tido um crescimento débil numa União que não cessa de perder importância no mundo), tem contas públicas sãs, fruto do horror histórico à inflação, e uma excelente base industrial. Sobretudo, não tem, como nós, nenhum atraso atávico para recuperar. Também não consta que a Alemanha (ou a Itália ou a França, já agora) se tenham dado ao trabalho de promover a geração mais bem formada de sempre para o efeito de, via exportação dos mais jovens e ambiciosos, fortalecer outras economias, ou que tenham liquidado a sua grande indústria, ou cujas punções fiscais não deixem nada no bolso da classe média, ou mais meia-dúzia de ous.
Podemos andar a brincar à democracia fingindo que a geringonça que temos tido seria possível sem o chapéu acomodatício do BCE, que nos vem poupando à falência, e os milhões que a EU todos os anos despeja para o Estado investir um mínimo, porque o grosso é gasto a sustentar dependentes, enquanto o sector privado nem sonha em investir um cêntimo, que aliás não tem, sem apoio dos fundos?
Podemos – temos podido. Mas quem julga que as nuvens negras que há muito estão no horizonte nunca descarregarão um temporal, e por isso acha que podemos jogar à sueca ao relento, de jogadas marcelísticas entende, como o celebrado estadista, muito. Agora, de prudência, que evita os acidentes, é que nem por isso.
Em 1973 havia muita jogada de luta política (a de bastidores, que é a possível em ditadura), e logo também previsões e cenários. O que não houve, salvo por alguns maduros, foi a antecipação de que o teatro podia desabar porque havia um problema para resolver, que era a guerra colonial.
Temos agora um outro problema para resolver, que é o que fazer a um Estado que não podemos pagar porque o país não cresce, e que não cresce porque o Estado não o deixa crescer. O comentariado acha que esse problema se resolve com uma coligação Rio/Costa, ou Rangel/Costa ou Costa/Tininha/Jerónimo. Já eu entendo que, a não podermos ter um governo de regeneração, sempre será melhor que Costa, ou o azougado Pedro Nuno, deem com os burros na água sozinhos.