Mattoso
Na morte de José Mattoso recuei para quando li o seu magnífico "Identificação de Um País", leitura escolar em disciplina de "Etnografia Portuguesa", em meados dos 1980s. Naquela época os professores tinham uma concepção messiânica da docência universitária - era essa, decerto, a razão de impingirem vários trabalhos para serem feitos durante as férias natalícias, assim concorrenciais à quadra (verdadeiramente) festiva. Nesse ano para essa disciplina (entre várias outras, sublinho) o trabalho poderia nem ser desmesurado, uma (espécie) de "recensão" sobre um livro que abordasse a diversidade portuguesa, um guia gastronómico, um roteiro de viagens, um catálogo mais abrangente de arte popular, etc. - seria um treino para os alunos olharem essa nossa diversidade, teoricamente a sua futura matéria-prima quando obtivessem a licença profissional.
Voluntarista insano decidi conjugar o trepidante ritmo festivo que se avizinhava com a leitura, atenta e produtiva, dos dois volumes da "Identificação de um País" de Mattoso, então celebrizado. O trabalho deveria ser entregue no primeiro dia de aulas. Claro que nesse dia estava eu ainda dactilografando o texto - naquela exaustiva metodologia de escrever e reescrever, amachucar páginas e deitá-los ao lixo, e depois passar a recortar algumas linhas já mais certeiras e colá-las junto a outras anteriores, esperando outras que viriam. De directa em directa. O professor da disciplina, Joaquim Pais de Brito - que depois viria a ser director do Museu de Etnologia durante longa época, e que eu ainda viria a encontrar em Moçambique - tinha a enorme fama e o imenso proveito de ser inflexível com os prazos de entrega dos trabalhos. (Tendo eu depois passado duas décadas a leccionar ainda hoje me pergunto para que serve essa inflexibilidade, típica em imensos professores...). Ou seja, nem fui à aula, a da entrega dos trabalhos, continuando a maratona para completar a tal "recensão", e após umas centenas de cigarros e inúmeros cafés lá o dactilografei, recortei, colei e... fotocopiei, já terminado. Mas ouvira ecos da furibunda reacção do docente aos incautos que haviam incorrido a implorar mais uns dias para o trabalhito... E julguei melhor não tentar entregar o trabalho, desistir da cadeira, fazê-la em ano subsequente, escolhendo rumos menos laboriosos. "Porquê?" perguntaram-me, "depois de tanta trabalheira!", insistiam. "Se o gajo me falar assim não respondo por mim..." ripostava eu.
Ou seja, formalmente ler o "Identificação de um País" foi-me, afinal, não só inútil mas também me lesou..., tivesse eu escrito sobre um qualquer "açordas do Minho ao Algarve". Mas foi das coisas mais importantes da minha vida, ali aos 21 anos a mergulhar no monumental tratado sobre o que é a história e sobre o que é escrever a História, um "paradigma da História democrática" botei eu então, pomposo de juvenil, aquilo de como as diferenças são constitutivas sem vir (como então quase sempre vinha) embrulhado na bacoca dialéctica marxizante, legitimada por rodapés (ou introduções) (pós-)hegelianas. Ninguém pode ter o "Identificação de um País" como livro de cabeceira. Mas imagina-se (sonha-se) diferente depois de o ter lido.
(Uns meses depois o Pais de Brito apanhou-me num corredor, "Então, homem, que lhe aconteceu? Desistiu?" e eu expliquei-me que me atrasara, aquilo da intensidade, densidade, magnitude, "maravilhosidade" do Mattoso... "Entregue lá isso. E depois no fim vá fazer um exame, que é para não parecer que fez em avaliação contínua". Que a tal inflexibilidade, afinal, era mais resmungona do que real...).
A partir daí fiquei sempre atento ao que o Historiador produzia. Muitos anos depois o meu amigo Paulo Dentinho, que havia conhecido em Moçambique, partiu para Timor-Leste como correspondente da RTP. Passado uns tempos fez uma reportagem, que me encantou: lá tinha ele ido para as montanhas, vasculhar os velhos esconderijos dos líderes da guerrilha, em busca dos arquivos. E nessas duras andanças acompanhado pelo já septuagenário Mattoso. Incrível! A reportagem (meros 6, 28 minutos) está aqui. Imperdível. Uma excêntrica memória de um gigante intelectual.