Protestar contra o Governo cantando a Grândola é uma originalíssima forma de manifestação política que tem merecido até admiração internacional. Como admitiu o primeiro-ministro na Assembleia da República, "de todas as formas que uma sessão possa ser interrompida, esta parece-me a de mais bom gosto". Passos Coelho, que é barítono, reagia com fair play à versão mais afinada da senha da Revolução dos Cravos que temos escutado ao longo destes dias - mérito de Carlos Mendes e do cantigueiro Samuel, entre outros cantores que compareceram naquele dia na galeria do Parlamento.
Sei de cor a letra da Grândola e de muitas outras canções de José Afonso - e garanto que sou capaz de cantá-las sem desafinar. Até por isso, tenho-me espantado de ver tanta gente eleger como forma de protesto este tema enquanto ignora os versos e desfigura a música até ao limiar da caricatura, como os telediários têm registado.
Mais surpreendido ainda fiquei ao tomar conhecimento, pela reportagem do Público, da fraca adesão que teve ontem - dia do 26º aniversário da morte do autor de Menino do Bairro Negro - a romagem ao cemitério de Setúbal, onde o cantor está sepultado numa campa humilde. Sem pedra tumular, como era seu desejo.
A obra de José Afonso, cujo talento ultrapassava fronteiras partidárias, trincheiras ideológicas e barreiras geracionais, merece ser assinalada como inestimável património musical português. Aqui fica a minha singela homenagem ao talento de um músico prematuramente desaparecido, com um dos seus temas de que mais gosto.
"No lago do Breu, / Sem luzes no céu nem bom Deus / Que venha abrasar os ateus, / No lago do Breu. // No lago do Breu, / A noite não vem sem sinais / Que fazem tremer os mortais, / No lago do Breu."
Regresso a casa e leio que em Portugal grassa uma onda ideológica, a do "grandolismo". A juventude universitária, prenha de hormonas esfuziantes (e catapultada por uma bem sucedida pateada ao ministro Miguel Relvas, a qual tem levado a reacções adversas exageradíssimas, que encontram um quasi-criminoso atentado no mero apupar de um ministro até que este desista de botar e se cale, um excesso de pruridos que me parece um bocado patético), alia-se à meia-idade universitária, esta no afã da reorgasmização da vidinha. E o amplexo assim constituído anda por aí a "grandolar" ministros e (presumo) afins.
José Afonso foi um enorme músico-compositor, o maior da sua geração, a qual marcou e nisso alimentou nomes queridos como o magnífico Adriano Correia de Oliveira, Sérgio Godinho e Fausto, estes que felizmente continuam connosco e como tal não precisam de adjectivos. Um pouco como Pedro Ayres de Magalhães (num registo menos heróico) na geração seguinte. Militante, radical, se estivesse vivo muito provavelmente concordaria com este ressurgimento reutilizador da sua "Grândola".
Mas ela, em boa medida, já não lhe pertence, como sempre acontece aos símbolos. Pertence a quem a utiliza, cada um à sua maneira, e nisso avaliado pela forma como o faz. A "Grândola" ficou como símbolo do 25 de Abril. Polissémico, como qualquer símbolo. Mas centrado no advento da liberdade, diz, pensa e acima de tudo sente, o discurso higiénico português. Esse que, bem na tradição colonialista da "esquerda", do "centro" e da "direita" portuguesa, esquece que ela é também (fundamentalmente?) o símbolo da paz, do fim do nacionalismo bacoco, serôdio, anacrónico, que se traduzia em práticas político-administrativas-económicas brutais e numa guerra violentíssima, prolongada, injusta. E ... inútil.
Assim sendo este "grandolismo", que o indignismo bloquista descobre e agita, não vem apenas retomar a usurpação do sentimento democrático. Subliminarmente (?) armando-se das polaridades de 1974, isso do "nós, democratas, que cantamos" vs "vocês, fascistas, que vão mudos", essa velha vontade monopolista (latifundiária) do pensar democraticamente (a qual que em outros tempos indignistas encheu o país de dísticos e pinturas intitulando de "fascistas" homens como António Barreto, Pezarat Correia ou Franco Charais, como exemplos hoje surpreendentes, mas que convém lembrar para entender o terrorismo intelectual de quem assim ia. E vai.).
Na verdade este actual "grandolismo", agit-prop que quer associar o poder político actual à memória do pré-25 de Abril, promove (e disso se alimenta) o esbatimento das características estruturais políticas, repressivas e sociais desse período, para as poder imputar ao hoje. Essas características coloniais, como refiro, mas também as especificamente internas. É um espantalho, um instrumento de desconhecimento desse passado, como tal da actualidade, naquele constituída, daquele tão diversa. O festivo, até erótico, "grandolismo" é um desejado instrumento de desconhecimento, friso.
Por isso mesmo, e por exemplo, um ícone como "Os Vampiros" - tão adequado a uma crítica cantada ao momento actual (concorde-se ou não com a crítica intentada) - não surge. Pois não é a crítica que se pretende, apenas a invectiva (bipolarizadora). E nisso se torna doloroso assistir à promoção disto por quem tem como função profissional investigar (aka, criticar) e ensinar (aka, criticar). Nessa pantomina a fazer-me lembrar Zeca Afonso, cantando magnificamente um obscuro poeta: