Há quem chame jornalismo a isto
«Joana Mortágua traz um cravo ao peito, traz até os lábios vermelhos como sinal de assinalar esta cor associada ao 25 de Abril.»
Hoje, às 10.59, num canal de televisão
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«Joana Mortágua traz um cravo ao peito, traz até os lábios vermelhos como sinal de assinalar esta cor associada ao 25 de Abril.»
Hoje, às 10.59, num canal de televisão
No domínio dos eufemismos, que por estes dias inundam os canais de televisão a propósito da onda de vandalismo na cintura de Lisboa, nem sei quais devo destacar. Abundam as referências a «jovens» para designar com suavidade os supostos autores de danos à propriedade pública (quatro autocarros da Carris Metropolitana, diversos contentores do lixo, ecopontos, bancos de jardim e outros equipamentos urbanos) e à propriedade privada (largas dezenas de automóveis regados com jerrycans ou brindados com cocktails Molotov e vidros de residências estilhaçados, além da tentativa felizmente falhada de pôr a arder pelo menos um posto de venda de combustíveis).
Meros «incidentes», banais «desacatos». Assim designados por benévolos repórteres, como se testemunhassem vulgares altercações de trânsito em hora de engarrafamento rodoviário. Outros, confundindo a árvore com a floresta, aludiam a «conflitos entre populares e polícia», como se esta dicotomia fizesse algum sentido num cenário destes. Houve até quem garantisse haver «revolta da população» na tentativa - obviamente falhada - de justificar os distúrbios que puseram vários concelhos a ferro e fogo durante noites consecutivas. Em locais tão diferentes como Carnaxide, Damaia, Alfragide, Santo António dos Cavaleiros, Queluz, Pontinha, Cacém, Rio de Mouro, Brandoa, Arrentela, Laranjeiro e até na pacata Trafaria.
Mas elejo afinal o verbo arder. Numa insólita voz passiva.
Viaturas queimadas, incendiadas, destruídas pelo fogo posto, reduzidas a uma dantesca porção de ferros retorcidos? Nada disso: apenas «carros ardidos». Como se fosse combustão espontânea, fenómeno natural, talvez até consequência desse amor romântico que arde sem se ver, forma subtil de celebrar o quinto centenário de Camões.
Um dos carros vandalizados era de uma humilde residente no chamado Bairro Novo, em Loures. Ainda em estado de choque, dizia ela à RTP: «Eu não sou culpada de nada, não sou culpada de nada. O meu carro era recente, comprei-o em Maio do ano passado.» Enquanto uma senhora idosa relatava o que lhe sucedera naquela noite de pavor: «Saí por uma porta para o quintal, saímos todos, pensávamos que o prédio ardia.» Aterrorizada pelos vândalos.
Sem querer, alguns jornalistas seguem a máxima do angelical Padre Américo: não há rapazes maus. Ardendo de compreensão por delinquentes que aplicam a política de terra queimada e mantêm sob sequestro os habitantes destes bairros desfavorecidos na periferia da capital. Gente que trabalha muito e ganha pouco. Gente que tem servido de pasto a indecorosos extremismos políticos. Gente que passa a ter a vida ainda mais difícil, mais insegura, mais carregada de incertezas.
Sem eufemismos de qualquer espécie.
Não dizer nada agora é notícia com enorme destaque. Capaz de ultrapassar qualquer outra.
Maria João Avillez com Marcelo Rebelo de Sousa nos anos 80
Maria João Avillez com Mário Soares nos anos 90
A presidente de uma coisa chamada "Comissão da Carteira Profissional de Jornalista" saiu da penumbra para encher o peito com uma absurda ameaça à luz do dia: diz-se disposta a denunciar Maria João Avillez ao Ministério Público por alegado crime de «usurpação de funções». Motivo: a jornalista terá entrevistado o primeiro-ministro na SIC sem possuir título profissional actualizado por aquela instância burocrática que carimba papéis no Palácio Foz.
Maria João Avillez faz parte, por mérito próprio, da história do jornalismo português das últimas décadas. Colaborou na RTP desde os 17 anos. Integrou já como profissional os primórdios da redacção do Expresso. Marcou presença no Público, Rádio Renascença, DN e Observador, entre outros títulos. É autora de obras fundamentais sobre protagonistas políticos do último meio século, como Francisco Sá Carneiro, Álvaro Cunhal e Mário Soares. Possui, portanto, imensa vantagem competitiva sobre quem agora diz querer denunciá-la: um extenso currículo que fala por si.
Tivesse a senhora da Carteira um décimo desse percurso jornalístico e certamente se sentiria realizada.
A propósito, sinto imensa curiosidade em saber se a ignota delatora se atreve igualmente a formalizar queixa junto do Ministério Público contra o ex-primeiro-ministro António Costa, suposto praticante do mesmo "crime". Como é público e notório, o indigitado presidente do Conselho Europeu tem «conduzido uma série de conversas» - muito publicitadas - no novo canal televisivo Now. A figuras como Marcelo Rebelo de Sousa, Mário Centeno, António Vitorino e Durão Barroso. Não sendo portador, tanto quanto se sabe, de carteira profissional de jornalista.
Dois pesos, duas medidas? O melhor será perguntar sem rodeios à presumível denunciante se também considera que Costa «usurpou funções». Ou, em alternativa, se reconhece ter perdido uma excelente oportunidade de permanecer na virtuosa obscuridade a que se confinava até agora.
Um título de jornal deve ser claro, conciso, compreensível.
Chamativo.
Sugestivo.
Dizer muito em poucas palavras.
Em todo o caso deve atrair, não repelir.
Esta é a regra, cada vez mais desvirtuada e pervertida. Não falta quem elabore e edite títulos com a intenção oposta: afugentar o leitor.
Precisam de exemplos concretos? Encontram um aqui em cima.
Fala-se muito na degradação do jornalismo, e com bons fundamentos, mas convém relativizar um pouco: em todas as profissões e em todas as gerações existe gente desqualificada.
Ernest Hemingway foi jornalista na juventude e costumava dizer que este era o ofício ideal para um escritor, desde que não fosse exercido durante demasiado tempo. Assim sucedeu com ele: após meia dúzia de anos como repórter local e internacional, e correspondente europeu de jornais norte-americanos, passou a dedicar-se à literatura a tempo inteiro. E viria a dar raras entrevistas como escritor por ter conhecido entretanto demasiados jornalistas incultos, impreparados, incompetentes. Para ele havia vários temas proibidos: a guerra, a religião, os livros que estava a escrever, as mulheres com quem esteve casado e tudo quanto se relacionava com a sua vida privada.
No livro Papa Hemingway - A Personal Memoir, em que recorda década e meia de sólida amizade com o autor de Por Quem os Sinos Dobram, A. E. Hotchner relata uma dessas entrevistas, que deixou o escritor ainda com pior impressão dos jornalistas. Aconteceu no Verão de 1956, quando se encontrava hospedado num hotel de Madrid: ao passar pela recepção foi abordado por um repórter de uma revista alemã que, acompanhado por um fotógrafo, insistiu em falar com ele durante alguns minutos para «evitar ser despedido».
Hemingway, que naquele dia estava muito bem disposto, conduziu-o ao bar do hotel, onde decorreu a entrevista. Bastaram as primeiras perguntas para perceber que aquele alemão nada sabia a respeito dele: «Esta é a sua primeira visita a Espanha?» (o Nobel da Literatura visitara pela primeira vez o país em 1921); «Já tinha visto touradas?» (não só tinha visto como já tinha escrito dois livros e vários contos em torno deste tema); «Fala espanhol?» (qualquer elementar conhecedor da obra dele saberia que sim); «Escreve tudo por si ou dita os seus romances?» (bastaria esta pergunta, em circunstâncias normais, para o romancista pôr termo à conversa).
Era evidente que aquela entrevista iria acabar mal. Até porque o alemão, esgotado há muito o limite de dez minutos que o entrevistado lhe impusera, insistia em fazer-lhe perguntas cada vez mais idiotas. Levando Hemingway a responder-lhe num registo cada vez mais sarcástico.
O jornalista ia apontando minuciosamente num bloco de notas, incapaz de perceber esse registo:
- Quantas mulheres já amou?
- Pretas ou brancas?
- Bem... Quantas de cada?
- Dezassete pretas, catorze brancas.
- Quais prefere?
- Brancas no Inverno, pretas no Verão.
- O que pensa da morte?
- É mais uma puta.
A conversa ficou por ali: terminou pior do que começara. De todas as perguntas, anotou Hotchner, só à última Hemingway respondeu a sério. Porque era precisamente aquilo que pensava sobre a morte.
Nada que interessasse ao tal amanuense do jornalismo, incapaz de fazer uma entrevista inteligente a um dos gigantes da literatura do século XX que teve o privilégio de conhecer pessoalmente, desperdiçando por completo essa oportunidade.
Há gente assim em qualquer época e em qualquer lugar.
É, desde já, uma das fotografias do ano. Talvez até da década. Nem precisa de legenda: já deu a volta ao mundo.
Mas não é filha de pai incógnito: foi captada por Evan Vucci, conceituado repórter-norte-americano, há mais de 20 anos na Associated Press. Premiado com o Pulitzer.
É, no fundo, uma vitória do jornalismo. Naquele mesmo local da Pensilvânia, onde Donald Trump foi alvejado no dia 13, havia centenas de pessoas munidas de telemóvel, prontas a captar imagens a todo o momento. Algumas até talvez convencidas de que podiam assim praticar o proclamado "jornalismo de cidadania".
Mas a fotografia que se tornou emblemática e até icónica foi a de Vucci. Não há coincidências.
Duvidem quando vos disserem que "qualquer um pode ser jornalista". Pelo mais elementar dos motivos: isso não é verdade.
Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana
Escrever bem, de acordo com a técnica jornalística, é adoptar a regra dos três C: de forma clara, concisa e compreensível.
O leitor não tem tempo nem paciência para voltar atrás porque não entendeu o significado daquilo que acabou de ler nem paga um jornal para decifrar charadas que lhe são servidas em forma de notícia.
Apesar disso, são cada vez mais frequentes as frases incompreensíveis na nossa imprensa - até em títulos. Frases codificadas, oriundas de um jargão tecnicista ou empresarial e polvilhadas de estrangeirismos que certos jornalistas pretendem à viva força incorporar no vocabulário comum. Esquecendo que devem ser eles a descodificar a mensagem e não o leitor a esforçar-se por tentar decifrar aquilo que se pretende comunicar.
Deparo todos os dias com frases em que prevalece o tom charadístico, numa espécie de caricatura involuntária do que não deve ser a escrita usada em jornalismo: opaca, inexpressiva, indecifrável.
Ao falar-se na crise do jornalismo contemporâneo omite-se com frequência este aspecto: a falta de capacidade para comunicar. Quando iniciei a actividade jornalística, na década de 80, os velhos tarimbeiros da redacção costumavam dizer aos novatos como eu: «Escreve de maneira a que possas ser entendido não pelo físico nuclear mas pela empregada doméstica.» Utilizando, desde logo, um vocabulário acessível a todos. Precisamente ao contrário daquilo em que que tantas vezes reparo agora. Como se o mais difícil fosse escrever de forma simples.
Às vezes dou por mim a pensar que fazem falta esses tarimbeiros nas redacções actuais - pessoas dotadas não com títulos académicos mas com o bom senso que deriva da sabedoria comum.
Muitos dos erros que costumo anotar seriam evitados pelo olhar atento e experiente de um bom editor. Mas como evitar a propagação do erro se quem tantas vezes o comete são profissionais do jornalismo investidos das funções de direcção ou editoria?
Voltarei a este assunto, raras vezes ou nunca debatido no espaço público. Para já, ficam 50 exemplos que fui colhendo da nossa imprensa:
"falta cada vez menos para o kick-off deste jogo"
"alternar entre o aceleramento, o giroscópio e os dois joysticks"
"a proposta tem vários regimes e vários períodos de phasing out"
"o processo devia ter sido muito mais friendly user para os utilizadores"
"um verdadeiro apreciador de cozido à portuguesa nunca recusa um convite para descobrir um novo spot com este 'prato do dia'."
"o event designer conta como gere a profissão"
"podia ser um storyboard"
"temos de buscar clusters de desenvolvimento"
"não se consegue compreender porque é que há este delay"
"as teorias de agenda-setting"
"criámos todo um sistema de back up"
"downgrade sobre a dívida portuguesa"
"o presidente fez o takeover"
"ele estaria a causar twitter storms constantemente"
"o mercado de credit default swaps atribui a Portugal uma possibilidade de default"
"case study na habitação"
"retalhistas omnichannel"
"hotel em Armação de Pêra é All inclusive"
"reestruturação de programas do daytime da SIC"
"se o governo quiser fazer um restyling, tudo bem"
"acessórios must have da estação"
"ficámos a saber o breakdown dos chumbos"
"é economic adviser do Governo"
"este país adora quick fixes"
"o que os debates speed-dating fizeram pela democracia portuguesa"
"seria um trabalho de accountabillity útil"
"os estúdios a olharem ao espelho num blacklot em Hollywood"
"os respectivos artwork e streaming"
"Portugal tem de descer os salários em relação ao core da zona euro"
"o partido funciona por key words"
"livrarias queer migram para a Net"
"a última filosofia para superar crises conjugais é o coaching familiar"
"sou uma fashion victim"
"vai ser criada uma safe house em Lisboa"
"poderá utilizar o crowdfunding"
"o governo não pode ceder nos valores core"
"tentativa de criação de um catch-all party"
"Ucrânia e Polónia preparam-se para o seu close-up"
"as contas são o nosso bottom line"
"Bolsa alvo de ataque de short-selling"
"ao Chelsea sai quase sempre bem o papel de underdog"
"um daft punk em pose de artes marciais"
"receio de ficar fora do loop"
"após algumas semanas de avaliação em soft opening, X concluiu que deveria criar também um menu de balcão”
"ex-ministro recomenda a criação de um imposto one shot"
"o percurso foi feito para ser TV-friendly"
"o investidor segue uma estratégia passiva de buy-and-hold"
"a dialéctica entre believers e haters"
"o cinema teve outros provocadores e outros pranksters"
"há muito ganhou o gosto do gimmick"
"anunciada por uma espécie de cliffhanger"
"este projecto é um wake up call fenomenal"
"o back-to-basics está para ficar"
Decifre quem quiser. E quem puder.
Sempre considerei que o caso das gémeas convoca o pior do voyeurismo conjugado com o pior da inveja social.
Se alguém merece ser criticado não é seguramente a empresária Daniela Martins, mãe dolorida que tudo fez para proteger duas filhas em risco de vida, aceitando agora comparecer numa sessão de cinco horas em comissão parlamentar de inquérito num país que alguns dizem não ser dela. Mesmo sendo descendente de quatro avós portugueses. Nossa compatriota, portanto.
Esta senhora apedrejada no "tribunal da opinião pública" - o mais injusto dos tribunais - marcou presença no mesmo local onde já pontificou, como líder parlamentar, um antigo deputado acusado de assassinar há década e meia outra portuguesa residente no Brasil, permanecendo este crime impune até hoje.
Isto sim, devia suscitar escândalo nacional. Mas não suscita.
Apetece perguntar: enquanto Daniela Martins enfrentava deputados de várias cores ideológicas e respondia com dignidade ao acintoso André Ventura na Assembleia da República, onde estava o pai das gémeas? Sumiu-se, saiu de cena.
Onde estava o amigo "portuga" de São Paulo, filho do Presidente e suposto instigador da cunha hospitalar? Fora de palco, em silêncio completo, pecando por falta de comparência e desrespeito à Casa da Democracia.
De repente os homens eclipsam-se, só resta ela. Criticada até por ter cumprido o dever cívico de atravessar o Atlântico e submeter-se a um interrogatório em que não faltaram parlamentares quase aos gritos.
Vi, ouvi, reflecti. E concluo que só ela esteve bem nesta história ainda com vários ângulos por esclarecer.
Sem esquecer as meninas, que não têm culpa de padecerem de uma doença rara e grave. Expostas num circo mediático que as reduz a um rótulo depreciativo ("gémeas luso-brasileiras") pelos mesmos jornalistas que, quando dá jeito, enaltecem as supostas virtudes da "lusofonia" e aludem ao visionário universalismo de Camões. Renegam na prática tudo quanto proclamam com vibração hipócrita, soando a falso do princípio ao fim.
Kim Kardashian: «lábios de embuste»
Já falei aqui sobre o meu crescente interesse pela literatura espanhola. Ao ponto de vários dos meus romances ou novelas favoritos dos últimos cem anos serem de autores do país vizinho. Estes, por exemplo: Tirano Banderas (Ramón de Valle-Inclán), Nada (Carmen Laforet), Os Mares do Sul (Manuel Vásquez Montalbán), Coração Tão Branco (Javier Marías), Instruções Para Salvar o Mundo (Rosa Montero), Pátria (Fernando Aramburu) e Os Teus Passos nas Escadas (Antonio Muñoz Molina).
Este interesse estende-se aos colunistas da imprensa. Pelo mais óbvio dos motivos: escreve-se muito bem nos jornais espanhóis. São peças de literatura as crónicas, as reportagens, até os editoriais. Abundam os escritores que recusam enclausurar-se em torres de marfim, molhando os pés e exercitando a pena em colunas quotidianas onde exibem a sua prosa inconfundível, marcada pelo "ruído da rua" (título da coluna de Raúl del Pozo no El Mundo). E não faltam jornalistas que em nada se distinguem dos melhores prosadores contemporâneos de língua castelhana: Pedro Cuartango, Lucía Méndez, Ignacio Camacho, Jorge Bustos, Manuel Jabois, Emilia Landaluce, José Peláez, Maite Rico, Daniel Gascón, Rebeca Argudo. Falei de alguns aqui, em 2017, quando o El Mundo deixou de distribuir edição impressa em Portugal - decisão felizmente revertida algum tempo depois.
O melhor colunista é aquele que não se limita a emitir opinião: consegue criar metáforas e expressões tão sugestivas que se incorporam na linguagem comum. Tivemos nós também um deles, o melhor de todos: Vasco Pulido Valente, que cunhou o termo geringonça, aplicado à solução política que António Costa encabeçou entre 2015 e 2019. Mas, de modo geral, quem escreve na imprensa portuguesa perde fatalmente na comparação com Espanha. Mesmo nos temas mais fúteis.
Acabo de ler, no ABC de ontem, uma crónica de Ángel Antonio Herrera sobre a "influenciadora" norte-americana Kim Kardashian - talvez uma das mulheres mais fotografadas do mundo. Descreve-a com aquela linguagem castiça que tanto aprecio entre os espanhóis dizendo que ela tem «lábios de embuste». Espantosa expressão, tão inesperada e sugestiva.
Eis um caso concreto em que o jornalismo se transforma em literatura, libertando-se do estéril lugar-comum. Quem gosta de ler agradece. E que não restem dúvidas: continuamos a ser muitos.
No Irão, milhões de mulheres - sobretudo jovens - protestam contra a camarilha de clérigos que as forçam a sair à rua de cabeça tapada com o véu islâmico, o hijabe. É-lhes negado algo irrestrito entre nós: passear de cabelo descoberto.
Há sempre alguém que diz não. Mas aquelas que o fazem arriscam severas medidas punitivas, incluindo chibatadas e prisão até dois meses, segundo prevê o código penal decretado pela teocracia de Teerão. Várias têm sido assassinadas pelos esbirros da famigerada Polícia da Moralidade. Foi o que aconteceu em Setembro de 2022 à malograda curda iraniana Jina Amin, distinguida a título póstumo com o Prémio Sakharov, do Parlamento Europeu.
Por tudo isto, chocou-me ver ontem uma jornalista portuguesa, ao serviço de um canal televisivo, deslocar-se à legação diplomática do Irão em Lisboa de hijabe no cabelo para entrevistar o embaixador. Presumo que lhe tenha sido ditada essa condição para chegar à fala com o representante daquele regime totalitário. Se assim foi, devia ter recusado de imediato. Em solidariedade com as vítimas da brutal repressão imposta por uma clique de velhos fanáticos que odeiam as mulheres. Torturam-nas, violam-nas, matam-nas. Como se não fossem gente. Como se não fossem ninguém.
Anda tudo trocado. Elas, que são obrigadas a usar aquilo, rebelam-se dignamente contra tal dogma. As de cá, livres como o vento, aceitam envergar aquele inaceitável símbolo de submissão sem que nada as force a isso. Nas mesmas televisões que já nos falam até à exaustão do 25 de Abril mas se esquecem sempre de assinalar quais são os países onde nenhum 25 de Abril chegou ainda.
Um "repórter no terreno" irrompe na pantalha debitando não-notícias em catadupa. Fala sem dizer nada até a voz lhe claudicar. Segue-se um mono em estúdio comentando interminavelmente a não-notícia. Quando este acusa os primeiros indícios de esgotamento vocabular, minutos infindáveis mais tarde, avança outro "repórter no terreno" especializado em encher chouriços, na desesperada tentativa de sobressaltar os escassos telespectadores com outra não-notícia. A mesma depois comentada por dois monos e meio que se atropelam com frases despidas de qualquer ideia. Perde-se o fio à meada, mas ninguém quer saber porque torna-se mentalmente impossível acompanhar tanto palavreado a propósito de coisa nenhuma.
Assim vai seguindo a emissão em directo, hora a hora, até tudo recomeçar no minuto inicial do dia seguinte.
Dois títulos da primeira página do caderno de economia do Expresso, de 15 de Março.
Este jornal ignora verbos comuns como iniciar e começar.
Só sabe "arrancar". Nada mais.
O mesmo parece acontecer com a SIC, outro órgão do grupo Impresa. Eis duas notícias difundidas neste canal na passada segunda-feira. Os editores parecem desconhecer outros vocábulos: "arrancar" serve para tudo.
Sonharão por lá com amputações, mutilações, decapitações? Ignoro.
Sei, isso sim, que a compressão lexical galopa, cada vez mais veloz.
Ou arranca, para mantermos o registo monovocabular destes conspícuos títulos jornalísticos.
Os jornalistas portugueses estão hoje em greve geral. A primeira em 42 anos. Isto é notícia, sem espécie de dúvida.
Há quem concorde, há quem discorde. Entre os que discordam, destacam-se aqueles que apontam para a escolha deste dia concreto, de óbvio vazio governativo. É sempre mais fácil - e muito menos eficaz - paralisar o trabalho em tempo de impasse, quando o Executivo ainda em funções já não manda nada e o que há-de vir ainda não está indigitado. Nem se sabe com estrito rigor qual será a sua cor política, a identidade dos seus futuros elementos ou a data da tomada de posse.
De qualquer modo, espero que a greve funcione como alerta para aqueles que lamentam a proliferação desenfreada de aldrabices nas redes e o enfraquecimento dos jornais e do jornalismo, mas não dão um avo para pagar aquilo que consomem de borla pelos dispositivos electrónicos. Condenando assim centenas de jornalistas à penúria e ao desemprego. E contribuindo, no limite, para o fim do jornalismo.
Podiam ajudar? Claro que sim. Numa espécie de militância cívica. Cada vez mais premente, cada vez mais inadiável.
Basta assinar um jornal ou uma revista informativa. Um só, entre tantos títulos disponíveis. Em papel ou digital. E recusar receber versões pirateadas desses títulos que abundam por aí, em clippings organizados - às vezes até oriundos de chancelas oficiais - que vão contribuindo para conduzir tantas empresas jornalísticas à falência. Começando pelas empresas de âmbito local ou regional.
Mais de metade do País vive hoje num deserto informativo, sem jornais ou rádios ali localizados. Dos 308 concelhos, 166 estão nessa lamentável situação.
O salário médio dos 5300 jornalistas oficialmente credenciados - 80% dos quais com formação superior - não ultrapassa 1225 euros mensais. Abundam jovens em início de carreira a receber menos do que o salário mínimo. Muitos profissionais veteranos e conceituados levam para casa menos de 1500 euros ao fim do mês.
Todos trabalham muito mais horas do que a lei estipula e do que as mais elementares normas de prevenção de saúde física e mental recomendam.
O trabalho dos jornalistas deve ser recompensado, o esforço financeiro dos investidores deve ter retorno.
Se cada um de nós subscrever um periódico à nossa escolha já faz muita diferença. Para melhor.
É o que faço. Sou incapaz de recomendar aos outros aquilo que não pratico.
Quando deixar de haver jornais, quando o jornalismo chegar ao fim, esses mesmos que em nada contribuem para a qualidade da informação, pagando-a, passarão a receber apenas memes idiotas, muitos vídeos com gatinhos e uma brutal enxurrada de lixo desinformativo através dos mesmos dispositivos electrónicos.
Então protestarão: vão querer de volta o rigor informativo.
Mas aí já será demasiado tarde.
Não há almoços grátis. E o que é barato sai caro. A qualidade paga-se. Ou desaparece de vez.
A campanha eleitoral termina hoje com bastante especulação, muito compreensível, sobre quem vencerá as legislativas. Mas uma coisa é certa: o jornalismo sai derrotado. Houve cedências crescentes e até chocantes ao infotainment - promíscua amálgama de informação com entertenimento, transformando as redacções em sociedades recreativas. Sobretudo na televisão.
Dúzias de jornalistas recriam-se como figurantes da política enquanto reality show. Procurando a notícia na rua, durante o dia, e encerrando-se à noite nos estúdios, investidos em comentadores do que haviam descrito horas antes - com o bitaite típico da conversa de café a roubar cada vez mais tempo, espaço e protagonismo à reportagem. Vários deles imitando velhos mestres-escola, distribuindo notas. Como pupilos do professor Marcelo, que inaugurou esta frívola modalidade de avaliação política há mais de 30 anos na TSF.
Confesso que abri a boca de espanto ao ver um deles, que sempre considerei um dos melhores repórteres portugueses, também reduzido agora à condição de avaliador numérico. Enquanto uma excelente repórter, que já cobriu guerras e outras calamidades em paragens longínquas, desperdiçava o talento com questionários aos líderes partidários mais próprios das revistas cor-de-rosa. Eis uma das perguntas: «Quando foi a última vez que escreveu uma carta de amor?»
Sim, o jornalismo sai derrotado desta campanha. Por culpa própria: anda há anos a esforçar-se muito para se tornar irrelevante. Assim não admira que Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos tenham recusado dar entrevistas ao Expresso, considerado o mais influente jornal português. Preferiram exibir-se perante a Cristina Ferreira nas manhãs da TVI ou marcar presença no programa humorístico do Ricardo Araújo Pereira nos serões da SIC. Faz sentido: se a cobertura jornalística adopta a lógica do reality show, siga-se o original em vez da cópia.
Pior ainda quando o modelo dos debates decalca o dos programas de bola, cheios de palpiteiros de cachecol clubístico, imitando claques de futebol. Sem o menor esforço de isenção, rigor, equidistância, frieza analítica, argumento racional: o que importa é exibir o emblema partidário.
O apogeu do ridículo talvez tenha sido esta nota 8 (em dez) atribuída quarta-feira por Ana Gomes na SIC-N ao candidato que entusiasticamente apoia enquanto aplicava ao candidato rival um metafórico pontapé nos fundilhos, brindando-o com implacável nota zero.
É salutar que as pessoas estejam cada vez mais distantes destes alegados espaços informativos que nada têm a ver com jornalismo. Estou com elas. Se as opções à escolha forem Ana Gomes e Cristina Ferreira, não hesito um segundo em votar nesta.
Expresso, 30 de Dezembro de 2021
Expresso, 28 de Janeiro de 2022
Vamos passar mais uma campanha eleitoral a ouvir falar de sondagens. De manhã à noite, de forma seguidista. Sem nunca haver uma perspectiva crítica destas pesquisas de opinião que induzem tanta gente em erro e espalham desinformação. Com base em amostras muito reduzidas e pouco representativas dos eleitores, talvez porque o dinheiro para as pagar não dê para mais.
Voltou a acontecer, na recente eleição para a Assembleia Regional dos Açores, no passado domingo. Quatro dias antes, a 31 de Janeiro, uma sondagem da Universidade Católica divulgada em parangonas por dois meios de informação estatais (RTP-Antena 1) e pelo jornal Público atribuía a vitória nos Açores ao PS, com 39%, seguindo-se a coligação liderada pelo PSD, com 36%.
Acertou? Nem por sombras. Tiro ao lado, uma vez mais - desta vez com desvio de 9 pontos percentuais nas duas principais forças políticas, invertendo a ordem em que ficaram. O PS perdeu, não ganhou: teve 36% - menos 3 pontos do que a sondagem indicara. E a coligação encabeçada pelo PSD não foi derrotada: subiu mais 6 pontos do que a Católica tinha previsto, alcançando 42%.
Um fracasso quase tão clamoroso como o da sondagem do ISCTE para o Expresso que em 28 de Janeiro de 2022, dois dias antes das legislativas que deram vitória a António Costa por maioria absoluta contra Rui Rio, vaticinavam "empate técnico" entre socialistas e sociais-democratas: 35% para as rosas, 33% para as laranjas.
Não aconteceu nada disto, como sabemos. O PS triunfou por quase 14 pontos percentuais de diferença: 41,4% contra 27,7%. Desmentindo em toda a linha o que ficara escrito não apenas na manchete do semanário publicada 48 horas antes do escrutínio, mas também outra, divulgada a 30 de Dezembro.
«Com a passagem dos anos de hipervalorização mediática dos estudos de opinião, fui ganhando a consciência de que sobre os mesmos não se exerce um módico de reflexão jornalística. Quer sobre o resultado produzido, quer sobre a metodologia e, em especial, sobre o questionário.» Palavras oportunas de Luís Paixão Martins no seu livro Como Mentem as Sondagens.
Por mais que estas coisas sucedam, iremos continuar a ouvir horas e horas e horas de peroração nas pantalhas sobre sondagens como se fossem modelos de rigor. Mesmo quando feitas por empresas que já falharam em toda a linha.
Qualquer semelhança entre isto e jornalismo é mera coincidência. Deviam difundi-las em reality shows, não em telejornais.
O bom jornalismo é assim: sabe contar uma história, consegue captar com sabedoria a atenção de quem lê, rejeita o sensacionalismo e a gritaria tipográfica.
Interessa-se pelas pessoas, mantém um olhar atento ao espaço circundante, ocupa-se mais da realidade concreta do que da verdade abstracta, tantas vezes ilusória.
Trata com amabilidade o cidadão comum a quem dá voz.
Trata com discreta cumplicidade o leitor que lhe concede uns minutos de atenção: é a melhor forma de estabelecer contacto.
Com amor à língua portuguesa, nosso traço de união.
Isto aprende-se em escolas. Mas aprende-se sobretudo na vida.
Jornalismo desligado da vida é jornalismo condenado ao fracasso. Ao contrário desta reportagem que li hoje, publicada no jornal digital lisboeta Mensagem. Intitula-se «Drogaria Laurinda: o adeus a uma das comerciantes mais antigas da Baixa».
Título apelativo, que não ilude: é chamariz para um relato digno de ser passado a escrito. Com vagar, pausadamente, saboreando a arte de narrar.
Parabéns ao jornal, parabéns à autora da reportagem, Eunice Lemos - que não conheço.
Apresentou-me a Dona Laurinda, testemunho vivo de uma Lisboa que já é passado mas ainda é presente, de uma Lisboa com identidade própria que vai resistindo em cada bairro. Também com pessoas transplantadas de outras paragens, como sucede com esta senhora de 88 anos, proprietária de uma velha drogaria prestes a trocar enfim o balcão da loja pelo recato doméstico. Mas sem esconder uma apreensão que nos enche de ternura: «Se fico em casa começo a andar como as outras da minha idade, tudo assim com a bengalinha na mão. Passam a vida sentadas a ver a televisão, ficam marrecas porque a coluna está fraca. Tenho tanto medo de ficar assim.»
Jornalismo com gente dentro: motivo para celebrar. É o que faço aqui.
A SIC fez esta estrondosa descoberta: 56% dos eleitores argentinos são de "extrema-direita". Eis uma demonstração prática de jornalismo preguiçoso - aquele que se apressa a pôr rótulos na política e varre contextos, circunstâncias e questões concretas para debaixo do tapete. Neste caso, vale a pena lembrar que a Argentina já foi um dos países mais ricos do globo: em 1912 tinha a nona economia mundial, à frente de países como Alemanha, França e Dinamarca.
Nos últimos anos os rótulos mais frequentes desta subespécie de jornalismo são "populista" e "extrema-direita". Sem nunca haver os respectivos contrapontos. O que define a diferença entre um populista e um não-populista, por exemplo.
Será não-populista o governo peronista que terminou funções com o país mergulhado em 143% de inflação anual, uma moeda que perdeu 99,2% do valor face ao dólar nos últimos 20 anos e quatro em cada dez argentinos em situação de pobreza nesta que já foi a mais próspera nação da América do Sul?
Se proliferam os extremistas de direita, onde andam os extremistas de esquerda, suas réplicas do campo oposto?
Faz sentido designar 56% dos eleitores como extremistas, seja qual for a ideologia política que estiver em causa?
O jornalismo preguiçoso não responde a nada disto. Nem esclarece como é que um ultraliberal, como o recém-empossado Presidente argentino, Javier Milei, pode ser catalogado de "extrema-direita" e até rotulado de fascista quando o fascismo proclama a existência de um Estado forte e este economista, pelo contrário, quer um Estado mínimo. Consciente - mal ou bem - de que na Argentina, nove bancarrotas depois, o aparelho estatal não faz parte da solução, mas do problema.
Hoje, mais que nunca, não há "direita". Há direitas. Meter no mesmo saco os herdeiros ideológicos do marechal Pétain e os herdeiros ideológicos do general De Gaulle, só para mencionar duas figuras históricas da direita conservadora, nacionalista e até reaccionária que se combateram entre si em França, é grave erro de análise. Tal como, por exemplo, meter Giorgia Meloni e Milei na mesma gaveta. A verdade é que Milei acaba de derrotar nas urnas os discípulos ideológicos de Juan Domingo Perón, esse sim um fascista clássico (e amigo de nazis).
Casos diferentes que devem ser analisados não como amálgama, antes como sintoma generalizado dum protesto difuso com aspectos comuns mas motivações tão diversas que escapam a rótulos simplistas. E têm igualmente erupções à "esquerda", como ocorreu em 2015 na Grécia, com a vitória eleitoral do Syriza.
A dicotomia partidos velhos versus partidos novos está hoje presente nos cenários eleitorais um pouco por toda a parte. Isto tem a ver com dinâmicas históricas e crises sociais: nenhuma etiqueta pronta-a-colar a explica.
A verdade é que os partidos e os próprios sistemas políticos, tal como as pessoas, também envelhecem.
Em Portugal, não por acaso, do vetusto PPD/PSD já emergiram três novas forças políticas na última década. Impulso de regeneração de um sistema que gera anticorpos: nuns casos resulta, noutros nem por isso. Resultou em proporções diferentes, e até ver, com a erupção do Chega e o nascimento da Iniciativa Liberal. Não resultou com a efémera Aliança do evanescente Santana Lopes.
Acontecerá o mesmo ao PS quando passar à oposição.
Há muitas incertezas no horizonte. Mas de uma coisa podemos ter a certeza desde já: o próximo ano político vai decorrer em ritmo muito acelerado. Pouco propício, portanto, àqueles políticos que adoram colher benefícios máximos da gestão do silêncio enquanto permanecem mergulhados em dúvidas dignas do príncipe Hamlet, convictos de que os jornais "amigos" não deixarão de desbravar caminho por eles com uma sucessão de não-notícias, capazes de transformar um grão de ervilha numa descomunal bola de neve.
Na não-notícia, como se infere, o não é palavra fundamental. "Beltrano de Tal não desmente que possa avançar para o cargo X, informação que nos foi transmitida por fontes próximas. Beltrano, ao que sabemos, não se tem revisto nas opções políticas de Fulano Y embora opte por não entrar em ruptura com o dito cujo. Os seus mais destacados apoiantes não excluem uma candidatura ao posto de comando embora não haja ainda a certeza de quando e onde e como isso possa suceder."
Fica aceso o rastilho.
O curso habitual destas não-notícias é aquele que todos sabemos: com três canais informativos a emitir durante 24 horas e à míngua de matéria para preencher antena nos intervalos dos desafios de futebol, qualquer pequeno ruído mediático, amplificado por incessantes ecos de hora a hora, ganha os contornos de uma Cavalgada das Valquírias. O grão de ervilha numa coluna matutina de jornal transforma-se na bola de neve a rolar em horário nobre das pantalhas nessa noite.
Este processo, que poderia colher frutos noutros tempos, torna-se inconsequente em anos de acelerado calendário político, como 2024 sem dúvida será. Um ano pouco propício às dúvidas hamletianas de gente sempre tolhida nas teias do seu próprio tacticismo. Quem quiser ir a jogo terá de assumir-se como tal, à esquerda e à direita, sem subterfúgios. Caso contrário, o xadrez político jogar-se-á com as peças que estão no tabuleiro.
As que não estão, estivessem.
Imagem: Laurence Olivier em Hamlet (1948)
Há uma grande revista informativa europeia que acompanho há décadas. Li-a durante a adolescência, nos anos decisivos da minha formação intelectual. Naquele Portugal pós-revolucionário, tinha uma característica ímpar: era de pendor liberal e não se envergonhava de o proclamar: pelo contrário, fazia-o com manifesto desassombro, com vocação para romper tabus. Por penas tão prestigiadas como as de Raymond Aron e Jean-François Revel, pensadores de excelência. Quando a moda eram os socialismos de todos os matizes que prestavam culto a Marx e epígonos menores.
L' Express surgiu, contra a corrente, num dos países mais jacobinos e centralistas da Europa Ocidental, que então encaravam o liberalismo como vírus maléfico importado do lado de lá do Atlântico, capaz de ferir o majestático Estado gaulês. Quando a França via crescer o Partido Comunista - que chegou a ser o segundo mais poderoso do continente a oeste da Cortina de Ferro - enquanto procurava salvar os últimos redutos do seu império colonial, na Indochina e na Argélia. Tinha os seus pensadores de referência - com destaque para Albert Camus, que também quebrara tabus, naquele início da década de 50, ao lançar O Homem Revoltado com a célebre frase de abertura: «O que é um rebelde? Um homem que diz não.»
Fundada em Maio de 1953, adoptou pouco depois o formato da Time norte-americana, marcando assim também uma diferença face ao clássico padrão da imprensa europeia em matéria de estilo. Assim a conheci naqueles anos ávidos em que se rasgam todas as janelas sobre o mundo, quando em minha casa a recebiamos por assinatura, tal como à Newsweek. Serviu não apenas para consolidar os meus conhecimentos da língua francesa mas também para a minha formação no domínio das ideias. Ler Aron e Revel naqueles anos bastava para alargar horizontes.
1954: Servan-Schreiber e François Giroud com François Mauriac, Nobel da Literatura
Quando falo dos meus heróis do jornalismo, jamais esquecerei a dupla que durante cerca de três décadas vertebrou L'Express: Jean Jacques Servan-Schreiber (JJSS) e Françoise Giroud. Criaram uma revista arrojada, moderna, interveniente e livre. Que fazia da reportagem um dos seus pilares e da qualidade de escrita um lema. Que foi pioneira na infografia e cultivava o cartoon político com a mestria do traço de Sempré e Tim. Uma publicação assumidamente europeísta, anticolonialista e antitotalitária onde escreveram várias das penas mais prestigiadas de França e que jamais deixou de questionar o poder - incluindo o poder do general De Gaulle, herói nacional que resgatara a honra manchada do país nos dias de fogo e cinzas da II Guerra Mundial.
L'Express manteve-se como marco de referência na imprensa europeia. Enfrentou com sucesso todas as crises - políticas, geracionais, económicas, tecnológicas. Sobreviveu a cisões - que deram origem às rivais Le Nouvel Observateur (fractura pela esquerda) e Le Point (fractura pela direita)- e à partida dos fundadores, sabendo renovar-se. Continua a ser um produto de excelência, fiel ao lema de JJSS: «Devemos dizer a verdade tal como a vemos.» Ou na versão mais requintada de Camus: «O gosto pela verdade não impede tomar partido.»
Durante uns tempos, por motivos diversos, distanciei-me dela. Mas reencontro-a agora, como quem recupera um amor antigo, nesta magnífica edição especial destinada a celebrar o 70.º aniversário. Guardo-a desde já como objecto de colecção: serei sempre grato a tudo quanto L' Express me ensinou.