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Delito de Opinião

Desta vez serás tu, Rui Borges

Pedro Correia, 17.07.25

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Espero que a redacção do Expresso, daqui a cinco meses, eleja Rui Borges como Figura Nacional de 2025. Pela mesma lógica que a levou em Dezembro último a escolher Ruben Amorim só para não destacar Luís Montenegro. O primeiro venceu o campeonato nacional de futebol, repetindo uma proeza que já alcançara três anos antes. O segundo fez regressar o PSD ao Governo quase uma década depois. 

Pela mesma lógica de elevar a bola acima da política, Borges merece em 2025 muito mais do que Amorim há um ano. Os factos comprovam: conquistou o primeiro bicampeonato em 74 anos e a primeira dobradinha (Liga + Taça de Portugal) para o Sporting desde 2002. O antecessor, agora técnico do Manchester United, ficou em 15.º lugar no campeonato inglês e não conseguiu qualificar a equipa para nenhuma competição de âmbito europeu: o Expresso parece ter-lhe dado azar. «O magnetismo do líder sedutor e genuíno» andou ausente em parte incerta e o «gigante United» cumpriu a sua 12.ª temporada consecutiva sem vencer a Premier League. Nem parece gigante.

Sob este prisma, talvez Montenegro até agradeça ficar novamente excluído da escolha final do semanário que há um ano o ignorou: azar é coisa que o primeiro-ministro certamente dispensa. Mesmo tendo também vencido, à sua maneira, um bicampeonato: a AD, com ele ao leme, triunfou pelo segundo ano seguido numa eleição legislativa - desta vez com a «maioria maior» que o presidente do partido laranja pedira aos eleitores. Saindo das urnas, a 18 de Maio, com 31,8% (+ 1,7% do que em 10 de Março de 2024), 91 deputados (+ 11), 2 milhões de votos (+ 200 mil) e mais 9 pontos percentuais do que o segundo classificado (14 meses antes conseguira só +0,9).

Depois de Amorim, avança Borges. Antes assim. Viva o Sporting bicampeão!

Mania de meterem o Salazar em tudo

Pedro Correia, 28.05.25

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Pecado do jornalismo actual: lança-se para fora de pé, debita erros que passam despercebidos na mecânica das redacções. Ninguém vê, ninguém repara, ninguém corta, ninguém controla. Ninguém quer saber.

Às vezes o disparate surge totalmente a despropósito. Aconteceu domingo, no Público (p. 29), antevendo o duelo entre Sporting e Benfica da Taça de Portugal.

Em 1970, lê-se ali, «Simões, o capitão, recebeu o troféu das mãos de António de Oliveira Salazar, que iria morrer um mês e meio depois desta final».

Disparate. Salazar, inválido, estava fora do poder desde Setembro de 1968. Nunca foi, tanto quanto sei, a nenhuma final da Taça (mandava o Presidente da República, seu subalterno) e detestava futebol.

Enfim, tudo errado.

Sem a menor necessidade: já é mania de meterem o Salazar em tudo.

Ignorância? Desleixo? Incompetência? Talvez seja apenas azar, para rimar com Salazar. Logo num jornal que faz incessantes e sempre pertinentes prédicas contra a desinformação. 

«Às escuras» em pleno dia de sol

Crónica lusa do «grande apagão» ibérico de 28 de Abril

Pedro Correia, 30.04.25

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Vivemos na era das hipérboles: não custa perceber a popularidade de Donald Trump, o hiperbólico por excelência que estimula a proliferação de tantos epígonos. Até em Portugal já temos um Donaldinho. 

Sendo este o panorama, não admira que uma súbita falha de energia se converta de imediato em apagão. Faz sentido. Mas há logo quem cavalgue o aumentativo e parta à desfilada rumo ao reino da hipérbole. Daí a nada converte-se em apagão geral e não demora até que lhe chamem grande apagão

Dia inusitado, esse de anteontem. Em que uma quebra de fornecimento de energia eléctrica ocorrido em Espanha produziu consequências imediatas também em Portugal: o país só não ficou às escuras por ter ocorrido em pleno dia, por acaso um dos raros com sol neste 2025 tão chuvoso e nublado.

 

Eram 11.33 quando a coisa aconteceu. «Teve o efeito de um sismo», viria a declarar um idiota. Sem fazer ideia dos estragos que um abalo sísmico de forte intensidade pode produzir em Lisboa, onde ainda são visíveis cicatrizes do cataclismo de 1755.

Este será dos que desatam a aproveitar ocasiões como a de 28 de Abril para espalhar boatos, propagando as teses mais alarmistas: o pânico vende, como evidencia um populista canal de televisão, não por acaso o que serviu de berço ao Donaldinho tuga.

Apanhado de surpresa, como qualquer de nós, procurei a minha lanterna de pilhas, na gaveta do costume, e verifiquei que funcionava. Estava garantida iluminação mínima quando a noite caísse. Água, sem problema: tenho sempre quatro garrafões de cinco litros prontos para uma situação de emergência.

Saí à rua. Os semáforos apagados produziam sensação de caos rodoviário. Mas pude testemunhar o civismo da esmagadora maioria das pessoas, mesmo nos cruzamentos mais congestionados. À falta do velho polícia-sinaleiro, logo cidadãos responsáveis se ofereciam para orientar o trânsito.

Foi complicado, mas funcionou. Sem registo de acidentes.

 

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Admito que tenha havido crises de ansiedade. Sobretudo em pessoas que ficaram presas em elevadores ou nas carruagens do metro. E não faltou quem se interrogasse sobre o destino dos bens alimentares guardados no frigorífico. Preocupações menores, no quadro geral. Nenhum registo de colapso em hospitais, escolas, serviços de emergência. Congestionamento, houve os do trânsito - agravados pela greve da CP ocorrida nesse dia. E no aeroporto de Lisboa, devido à suspensão dos voos. 

Seis horas depois do apagão geral, nem o canal oficioso do alarmismo-mor conseguia legendas mais sugestivas do que estas: «Lojas e restaurantes encerraram»; «Centro comercial às escuras»; «Cafés sem multibanco»; «Autocarros lotados em Lisboa»«Faro: um voo cancelado»

Tal como nos dias iniciais da pandemia, houve quem corresse a mercearias e supermercados em busca de garrafas de água, latas de atum e rolos de papel higiénico. Tudo coisas que qualquer de nós deve ter sempre em casa, haja o que houver. Não é exclusivo português: em Espanha aconteceu o mesmo. Ou pior.

 

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Ansiedade extrema, só daqueles que se imaginam incapazes de viver num mundo analógico, escravizados pela tecnologia ao ponto de se tornarem analfabetos funcionais sem ferramenta digital. Personagens vivas dessa perturbante e premonitória novela chamada O Silêncio, de Don DeLillo.

Sensação acentuada quando os operadores desligaram o 5G para garantir serviços mínimos. Os difusores de boatos via WhatsApp tiveram de suspender a faina.

Afinal não precisei da minha lanterna a pilhas. Também as velhinhas velas de estearina que muitos compraram durante o dia ficaram por estrear. A partir das 18.30 a energia eléctrica foi regressando, os dados móveis reacenderam-se: às 20.30 caía a noite sem grande parte do País ficar às escuras.

O aumentativo daria lugar ao diminutivo. «Apagão com impacto pequeno na economia», assegurava ontem o Jornal de Negócios. Admitindo que possamos ter perdido apenas cerca de 0,1% do PIB trimestral.

Sinal inequívoco de normalidade: volta a falar-se imenso em futebol.

Tanto quanto se sabe, o grande apagão ter-se-á devido a uma sobrecarga do armazenamento de energias renováveis no país vizinho. Mas há inquéritos em curso, tanto em Espanha como em Portugal: só mesmo quem sabe poderá esclarecer. Não certamente os tudólogos que desataram a abrir a matraca em sessões contínuas sem fazerem a menor ideia do assunto.

 

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Manhã cedo, o Público saía ontem para as bancas em versão minguada, resumindo assim, em capa digna de filme expressionista alemão, o que acontecera na véspera: «O dia de um país desorientado e às escuras paralisado em muitos sectores, sem saber quando haveria finalmente luz e porque é que ela se foi.» Nem a menor alusão ao facto de ter havido um apagão ibérico que abrangeu até o sul de França. Estranho num jornal como este, habitualmente atento ao que se passa além-fronteiras.

«Como cidadã, ontem passei um dia difícil», desabafou já de noite uma comentadora residente na TV. Comovedora confissão.

 

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Mas o mais pungente quadro de «drama, tragédia e horror», ao estilo do saudoso Artur Albarran, surgiu em crónica dada à luz (sem ironia) no sisudo Observador.

«Pânico e histeria, ansiedade e caos» num país «sem ninguém ao volante». Foi neste tom calamitoso que um senhor cujo nome eu até agora desconhecia descreveu o dia 28 de Abril em Portugal. 

Apanhado no meio do trânsito sem poder escapar ao engarrafamento? Afectado pela suspensão do acesso à página digital da Autoridade Tributária? Vítima do cancelamento daquele solitário voo de Faro? Nada disso. O cavalheiro até reside «na tranquilidade dos montes, com electricidade própria, internet por satélite Starlink e TV por internet». As dores do mundo não o afligem.

Acontece que começou a receber maçadoras mensagens dando-lhe nota do grande apagão geral que o impediram de continuar a assistir, com plácida bonomia, ao Campeonato do Mundo de Snooker. Vai daí, encheu-se de brios solidários e descarregou a bílis apocalíptica em 12.995 caracteres. Até os montes tremeram.

Solidarizo-me com ele. Deve ser chato.

Isto é jornalismo: o outro lado do espelho, onde também espreitam raios de luz

Pedro Correia, 08.04.25

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Felizmente não vão faltando peças jornalísticas que nos compensam de tanta caça ao clique, tanto texto medíocre, tanto palavreado sem nexo, tanta irrelevância sob o pomposo e algo ridículo rótulo "comunicação social". 

Compensam, sim. Porque informam, esclarecem, enquadram, sensibilizam. Porque nos rasgam horizontes, suscitam empatia, demonstram que nenhum ser humano é uma ilha. Porque nos põem a pensar.

Porque têm a capacidade de nos elevar a uns palmos do chão. 

 

Foi o que senti no sábado, ao ver no Jornal da Noite da SIC uma reportagem intitulada "Em Nome do Pai, do Filho e da Índia". Centrada em quatro jovens sacerdotes indianos que vieram completar estudos teológicos em Portugal sem conhecerem do nosso país senão «Fátima, Cristiano Ronaldo e Vasco da Gama» e vivem no amplo espaço do Seminário dos Olivais, prestando serviço pastoral nas paróquias do Patriarcado de Lisboa. Falam-nos do choque cultural que sentiram, das hesitações que tiveram, do modo como superaram todos os obstáculos inspirados pela fé.

Admirável trabalho de equipa assinado por João Maldonado, Fernando Silva, Ricardo Piano e Nuno Gonçalves.

 

Senti o mesmo ao ler, no Observador, uma vibrante reportagem escrita por Carla Sofia Luz e fotografada por Pedro Martins e Rui Miguel Pedrosa.

O título diz-nos muito sobre o conteúdo: "A longa marcha de Carlos para recuperar a vida depois do AVC". Longe do habitual tom de lamúria que contamina em excesso o nosso jornalismo, é uma lição de vida. Centrada na quase-ressurreição de um programador cultural bem conhecido em Castelo Branco que esteve confrontado com o pior dos cenários mas pode hoje relatar-nos a sua história. Que só foi bem-sucedida graças a uma extraordinária rede de apoio que abrangeu família, amigos e cuidadores do Hospital Amato Lusitano.

 

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Jornalismo é isto: ver o outro lado do espelho, onde também espreitam raios de luz.

Reforcei esta convicção ao ler com a atenção devida o extenso trabalho assinado por Christiana Martins na revista do Expresso de 28 de Março - seleccionado, com todo o mérito, para capa dessa edição. Centrado em Isabel da Nóbrega, que durante quase vinte anos foi companheira e musa de José Saramago, ela própria escritora de mérito, tão evidente no seu original romance Viver Com os Outros.

Gosto de tudo, a começar no título da edição impressa: "Este amor deu um Nobel". Mostra-nos a luminosa face da escritora falecida em 2021, aos 96 anos, injustamente obscurecida durante décadas.

É mais que justo desvendá-la agora junto de quem nunca dela tinha ouvido falar. 

 

Elevação e sensibilidade: eis dois admiráveis condimentos das crónicas - verdadeiras crónicas, quase contos, não "colunas de opinião" - assinadas no Público por Carmen Garcia, enfermeira de profissão, especializada em geriatria. Ela tem a rara capacidade de relatar histórias com gente lá dentro. Gente verdadeira, de corpo e alma.

Histórias repassadas de encantamentos e frustrações narradas com genuíno sentimento de partilha. E muito bem escritas, como concluímos ao ler, por exemplo, "Quando é que deixou de ser Dia do Pai?" ou "A missa de sétimo dia do amor"

 

Alguns, mais apressados, dirão que estes exemplos pouco ou nada terão a ver uns com os outros. Mas têm. E devolvem-me o orgulho de ser jornalista - ofício tão vilipendiado, tão abastardado, tão incompreendido, mas que nunca foi tão necessário. E tão urgente.

Miguel Macedo

Pedro Correia, 14.03.25

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Foi injustiçado. Foi vítima de uma acusação infame que liquidou a sua carreira política. Foi alvo de uma investigação sem provas e de uma acusação irresponsável que o destruiu por dentro - e talvez lhe tenha deteriorado a saúde a um ponto que até ele mal pôde avaliar. Tinha sido secretário de Estado, deputado, líder parlamentar. Era um competente ministro da Administração Interna.

Talvez pudesse ter sido presidente do PSD - o seu partido de sempre. Nunca saberemos. Acusado de "prevaricação e tráfico de influências", abandonou de imediato funções públicas e remeteu-se à vida privada. Aconteceu em 2014. Se ocorresse uns anos depois, teria visto provavelmente o seu retrato exposto em obscenos cartazes de propaganda política chamando-lhe "corrupto" - alvo da demagogia mais rasteira para ajustar contas com o regime democrático.

Não se escondeu, não virou a cara, não optou pela litigância de má-fé para estender prazos rumo à prescrição.

Negou todas as acusações, comportando-se com irrepreensível dignidade.

 

Seis anos depois, ao ser ilibado na sede própria, o tribunal, a notícia não fez manchete: foi varrida para discretos rodapés. Os "justiceiros" da imprensa estavam de folga ou assobiaram para o lado nesse dia. 

Recebeu-a com alegria, mas também com amargura: a tardia sentença judicial absolveu-o de qualquer suspeita, mas a sua morte cívica fora decretada muito antes. Mesmo assim, ninguém lhe ouviu uma palavra de azedume. Nem lhe passou pela cabeça "processar o Estado" ou pôr-se aos gritos, declarando guerra ao Ministério Público. Deu, também com isto, um notável exemplo de contenção republicana. 

Ressurgiu há um ano, como discreto comentador político longe do chamado "horário nobre": o último foi exibido há escassos dias. Morreu ontem aos 65 anos, vítima de fulminante síncope cardíaca.

A sua voz apagou-se cedo de mais. Faz-nos falta como alerta contra os demagogos de turno que andam por aí sem freio nos dentes, mais assanhados que nunca. Agitando o espantalho da insegurança para apertarem o torniquete à liberdade. 

 

A minha respeitosa homenagem a Miguel Bento Martins da Costa de Macedo e Silva, que agora nos deixa, para dolorosa surpresa geral.

A Assembleia da República prestou-lhe merecido e justo tributo póstumo, como se impunha. É triste que só a morte sirva para convergirmos no essencial. Conscientes de que a democracia política é tão frágil como a vida humana: pode apagar-se com demasiada facilidade se não cuidarmos bem dela em cada dia que passa.

Síria, via Paulo Dentinho

jpt, 19.12.24

Sair da Estrada de Paulo Dentinho - Livro - WOOK

É Natal, alguns compram livros para ofertar. E é também época para se ir até às estantes em busca de livros que ainda não tenham sido lidos (talvez até ofertas recebidas...). Ou para reler um ou outro, por completo ou excertos que venham à cabeça, por uma razão ou outra. Aconteceu-me agora com este "Sair da Estrada" do Paulo Dentinho - livro sobre o qual deixei um postal quando o li. 

Certo, sou amigo do Paulo, vamo-nos vendo de quando em vez, normalmente refeições partilhadas em pequenos comités, dados ao escárnio e maldizer, nisso de remoermos "a questão que tenho comigo mesmo", este Portugal nossa pátria amada... E também - mais ritualmente - aos natais de cada ano, quando se junta um grupo mais alargado (e heterogéneo) de amigos e conhecidos com os quais nos cruzámos (ou não) em Moçambique, portugueses que lá vivemos e nos quais o país se entranhou, a cada um à sua maneira.

E foi lá que nos fizemos amigos - e um dos tijolos disso foi uma situação peculiar: eu já passei por algumas agruras, no meu "Sair da Estrada", que também o fui tendo. Mas nunca me acontecera, nem voltou a acontecer, estar sentado com um amigo (ele-mesmo, pois claro - então correspondente da RTP em Maputo) e virem-no ameaçar de morte: "Dentinho, aqueles ali estão a dizer que te vão matar!", os molwenes (miúdos de rua) mandados para dizer isso, e nós a levantarmo-nos da mesa para ir ver quem eram os esbirros no tal carro apontado... Isto foi uns meses antes de Carlos Cardoso ter sido assassinado, dois anos depois de Lima Félix ter sido morto, não era brincadeira. "Vai-te embora, Paulo, tens cá as filhas...", resmungava-se-lhe diante da sucessão de ameaças que recebia (aquilo dos telefonemas noite afora), e ele empertigado na sua missão de informar, renitente em sair dali: (e o problema é o Venâncio, clamam agora, um quarto de século depois e sempre para pior, os escritores alapados às benesses do partido-Estado e os visitantes de "esquerda", sorrio, cáustico...). 

Enfim, divago... Lembrei-me do Paulo e do seu livro quando ouvi Morais Sarmento lamentar a inexistência de reportagens da RTP sobre Moçambique, apesar de lá haver uma delegação. Sabendo do que fala, o ex-ministro referiu que ou o correspondente não produz ou - e é o mais provável - as suas peças não são incluídas nos telejornais, por critérios da direcção de informação lisboeta. E lembrei-me das discussões tidas com o Dentinho, naqueles finais de XX. Em Moçambique havia apenas duas estações, a pública TVM e a RTP-África, então inicial. Lisboa estava muito ufana por ter a estação, pensava-a emitindo como se cobrindo o território nacional: pouco interessava que um antropólogo andasse pelo país e dissesse que não era captada nas capitais de distrito nem ... em várias capitais provinciais. Mas em Maputo - no "cimento" - era vista. E as reportagens do Dentinho tinham ali impacto. E provocavam resmungos locais, dado o tom espectacular que tinham. Lembro-me de com ele protestar devido a isso, pois causavam algum mal-estar entre os nossos "anfitriões": um caso célebre foi uma reportagem dele sobre o antigo zoológico da Beira, cujas abandonadas jaulas tinham sido ocupadas pela população, que nelas residia. E em Maputo a burguesia nacional contestava essa "imagem" passada no telejornal, eu (e outros compatriotas) secundávamos num "para quê?, Paulo, o fundamental é construir uma boa relação!", cheios de pruridos diplomáticos. E ele a resmungar, defendendo-se - e tinha toda a razão!, uma razão deontológica, jornalística, um zoo habitado por homens é exemplar motivo de reportagem, denotativo, demonstrativo.... -, nisso também referindo que se não forçasse "a nota", a espectacularidade, em Lisboa, na RTP, nada lhe transmitiriam, desinteressados que estavam de Moçambique. E isto foi há um quarto de século, bem antes do extremo frenesim da notícia "lite" que tanto agora predomina.

 

Enfim, entre o lembrar-me disto do Paulo e o ir buscar o livro foi um ápice. O seu "Sair da Estrada" é uma espécie de making of - bem humorado, numa escrita que realça o seu amor pela profissão, e sem "engajamentos" apatetados - de grandes reportagens em 13 países (insisto, escrevi este texto qual recensão). E tem um capítulo (entre as páginas 105-145) imensamente actual, pois sobre as suas andanças na Síria (2012, 2016), durante as quais (também) entrevistou Bashar al-Assad. São páginas que não só elucidam um pouco do que agora vai acontecendo como comprovam o seu olhar arguto sobre as realidades nas quais trabalha: "Vou agora (2012) para a (...Síria) no pressuposto, quanto a mim errado, de estarmos perante o colapso do regime..." (105), "Chadi fala-nos do radicalismo sunita crescente e dessa quase impossibilidade de continuarem a viver lado a lado com eles, como fizeram durante séculos" (110), "os seus receios quanto à agenda rebelde, "eles não são sírios, vêm todos dos países em volta" (118), "na Síria, para os combatentes que se reclamam do Islão Sunita, a corrente maioritária no país, ter na presidência Bashar al-Assad é uma blasfémia. Não só por ele ser alauíta, um ramo do xiismo, corrente religiosa pela qual têm um enorme desprezo, mas também por ele representar um regime laico e igualitário. Repressivo e brutal também." (120),  "o liberalismo de Bashar assenta no modelo chinês. Nem pensar em pôr em causa o partido. E o capitalismo sírio é apenas para alguns "amigos"..." (140). 

Enfim, uma pequena amostra de como o Paulo "apanhou" a Síria. Tal como "apanhou" (até ao osso) Moçambique. E tantos outros locais. 

Ou seja, é Natal. Compre-se, oferte-se, leia-se o "Sair da Estrada" (Caminho, 2021).

Passam a ter vida ainda mais difícil e dura

Pedro Correia, 25.10.24

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No domínio dos eufemismos, que por estes dias inundam os canais de televisão a propósito da onda de vandalismo na cintura de Lisboa, nem sei quais devo destacar. Abundam as referências a «jovens» para designar com suavidade os supostos autores de danos à propriedade pública (quatro autocarros da Carris Metropolitana, diversos contentores do lixo, ecopontos, bancos de jardim e outros equipamentos urbanos) e à propriedade privada (largas dezenas de automóveis regados com jerrycans ou brindados com cocktails Molotov e vidros de residências estilhaçados, além da tentativa felizmente falhada de pôr a arder pelo menos um posto de venda de combustíveis). 

Meros «incidentes», banais «desacatos». Assim designados por benévolos repórteres, como se testemunhassem vulgares altercações de trânsito em hora de engarrafamento rodoviário. Outros, confundindo a árvore com a floresta, aludiam a «conflitos entre populares e polícia», como se esta dicotomia fizesse algum sentido num cenário destes. Houve até quem garantisse haver «revolta da população» na tentativa - obviamente falhada - de justificar os distúrbios que puseram vários concelhos a ferro e fogo durante noites consecutivas. Em locais tão diferentes como Carnaxide, Damaia, Alfragide, Santo António dos Cavaleiros, Queluz, Pontinha, Cacém, Rio de Mouro, Brandoa, Arrentela, Laranjeiro e até na pacata Trafaria.

 

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Mas elejo afinal o verbo arder. Numa insólita voz passiva.

Viaturas queimadas, incendiadas, destruídas pelo fogo posto, reduzidas a uma dantesca porção de ferros retorcidos? Nada disso: apenas «carros ardidos». Como se fosse combustão espontânea, fenómeno natural, talvez até consequência desse amor romântico que arde sem se ver, forma subtil de celebrar o quinto centenário de Camões.

 

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Um dos carros vandalizados era de uma humilde residente no chamado Bairro Novo, em Loures. Ainda em estado de choque, dizia ela à RTP: «Eu não sou culpada de nada, não sou culpada de nada. O meu carro era recente, comprei-o em Maio do ano passado.» Enquanto uma senhora idosa relatava o que lhe sucedera naquela noite de pavor: «Saí por uma porta para o quintal, saímos todos, pensávamos que o prédio ardia.» Aterrorizada pelos vândalos.

Sem querer, alguns jornalistas seguem a máxima do angelical Padre Américo: não há rapazes maus. Ardendo de compreensão por delinquentes que aplicam a política de terra queimada e mantêm sob sequestro os habitantes destes bairros desfavorecidos na periferia da capital. Gente que trabalha muito e ganha pouco. Gente que tem servido de pasto a indecorosos extremismos políticos. Gente que passa a ter a vida ainda mais difícil, mais insegura, mais carregada de incertezas.

Sem eufemismos de qualquer espécie.

Uns são jornalistas, outros fazem de conta

Pedro Correia, 12.10.24

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Maria João Avillez com Marcelo Rebelo de Sousa nos anos 80

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Maria João Avillez com Mário Soares nos anos 90

 

A presidente de uma coisa chamada "Comissão da Carteira Profissional de Jornalista" saiu da penumbra para encher o peito com uma absurda ameaça à luz do dia: diz-se disposta a denunciar Maria João Avillez ao Ministério Público por alegado crime de «usurpação de funções». Motivo: a jornalista terá entrevistado o primeiro-ministro na SIC sem possuir título profissional actualizado por aquela instância burocrática que carimba papéis no Palácio Foz.

Maria João Avillez faz parte, por mérito próprio, da história do jornalismo português das últimas décadas. Colaborou na RTP desde os 17 anos. Integrou já como profissional os primórdios da redacção do Expresso. Marcou presença no Público, Rádio Renascença, DN e Observador, entre outros títulos. É autora de obras fundamentais sobre protagonistas políticos do último meio século, como Francisco Sá Carneiro, Álvaro Cunhal e Mário Soares. Possui, portanto, imensa vantagem competitiva sobre quem agora diz querer denunciá-la: um extenso currículo que fala por si.

Tivesse a senhora da Carteira um décimo desse percurso jornalístico e certamente se sentiria realizada.

A propósito, sinto imensa curiosidade em saber se a ignota delatora se atreve igualmente a formalizar queixa junto do Ministério Público contra o ex-primeiro-ministro António Costa, suposto praticante do mesmo "crime". Como é público e notório, o indigitado presidente do Conselho Europeu tem «conduzido uma série de conversas» - muito publicitadas - no novo canal televisivo Now. A figuras como Marcelo Rebelo de Sousa, Mário Centeno, António Vitorino e Durão Barroso. Não sendo portador, tanto quanto se sabe, de carteira profissional de jornalista.

Dois pesos, duas medidas? O melhor será perguntar sem rodeios à presumível denunciante se também considera que Costa «usurpou funções». Ou, em alternativa, se reconhece ter perdido uma excelente oportunidade de permanecer na virtuosa obscuridade a que se confinava até agora.

Quinze palavras para dizer o quê?

Pedro Correia, 11.10.24

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Um título de jornal deve ser claro, conciso, compreensível.

Chamativo.

Sugestivo.

Dizer muito em poucas palavras.

Em todo o caso deve atrair, não repelir.

Esta é a regra, cada vez mais desvirtuada e pervertida. Não falta quem elabore e edite títulos com a intenção oposta: afugentar o leitor.

Precisam de exemplos concretos? Encontram um aqui em cima.

«Quantas mulheres já amou?»

Pedro Correia, 28.08.24

 

Fala-se muito na degradação do jornalismo, e com bons fundamentos, mas convém relativizar um pouco: em todas as profissões e em todas as gerações existe gente desqualificada.

Ernest Hemingway foi jornalista na juventude e costumava dizer que este era o ofício ideal para um escritor, desde que não fosse exercido durante demasiado tempo. Assim sucedeu com ele: após meia dúzia de anos como repórter local e internacional, e correspondente europeu de jornais norte-americanos, passou a dedicar-se à literatura a tempo inteiro. E viria a dar raras entrevistas como escritor por ter conhecido entretanto demasiados jornalistas incultos, impreparados, incompetentes. Para ele havia vários temas proibidos: a guerra, a religião, os livros que estava a escrever, as mulheres com quem esteve casado e tudo quanto se relacionava com a sua vida privada.

No livro Papa Hemingway - A Personal Memoir, em que recorda década e meia de sólida amizade com o autor de Por Quem os Sinos Dobram, A. E. Hotchner relata uma dessas entrevistas, que deixou o escritor ainda com pior impressão dos jornalistas. Aconteceu no Verão de 1956, quando se encontrava hospedado num hotel de Madrid: ao passar pela recepção foi abordado por um repórter de uma revista alemã que, acompanhado por um fotógrafo, insistiu em falar com ele durante alguns minutos para «evitar ser despedido».

Hemingway, que naquele dia estava muito bem disposto, conduziu-o ao bar do hotel, onde decorreu a entrevista. Bastaram as primeiras perguntas para perceber que aquele alemão nada sabia a respeito dele: «Esta é a sua primeira visita a Espanha?» (o Nobel da Literatura visitara pela primeira vez o país em 1921); «Já tinha visto touradas?» (não só tinha visto como já tinha escrito dois livros e vários contos em torno deste tema); «Fala espanhol?» (qualquer elementar conhecedor da obra dele saberia que sim); «Escreve tudo por si ou dita os seus romances?» (bastaria esta pergunta, em circunstâncias normais, para o romancista pôr termo à conversa).

Era evidente que aquela entrevista iria acabar mal. Até porque o alemão, esgotado há muito o limite de dez minutos que o entrevistado lhe impusera, insistia em fazer-lhe perguntas cada vez mais idiotas. Levando Hemingway a responder-lhe num registo cada vez mais sarcástico.

O jornalista ia apontando minuciosamente num bloco de notas, incapaz de perceber esse registo:

- Quantas mulheres já amou?

- Pretas ou brancas?

- Bem... Quantas de cada?

- Dezassete pretas, catorze brancas.

- Quais prefere?

- Brancas no Inverno, pretas no Verão.

- O que pensa da morte?

- É mais uma puta.

A conversa ficou por ali: terminou pior do que começara. De todas as perguntas, anotou Hotchner, só à última Hemingway respondeu a sério. Porque era precisamente aquilo que pensava sobre a morte.

Nada que interessasse ao tal amanuense do jornalismo, incapaz de fazer uma entrevista inteligente a um dos gigantes da literatura do século XX que teve o privilégio de conhecer pessoalmente, desperdiçando por completo essa oportunidade.

Há gente assim em qualquer época e em qualquer lugar.

Pensamento da semana

Pedro Correia, 21.07.24

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É, desde já, uma das fotografias do ano. Talvez até da década. Nem precisa de legenda: já deu a volta ao mundo.

Mas não é filha de pai incógnito: foi captada por Evan Vucci, conceituado repórter-norte-americano, há mais de 20 anos na Associated Press. Premiado com o Pulitzer.

É, no fundo, uma vitória do jornalismo. Naquele mesmo local da Pensilvânia, onde Donald Trump foi alvejado no dia 13, havia centenas de pessoas munidas de telemóvel, prontas a captar imagens a todo o momento. Algumas até talvez convencidas de que podiam assim praticar o proclamado "jornalismo de cidadania".

Mas a fotografia que se tornou emblemática e até icónica foi a de Vucci. Não há coincidências.

Duvidem quando vos disserem que "qualquer um pode ser jornalista". Pelo mais elementar dos motivos: isso não é verdade.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

Decifre se quiser

Pedro Correia, 03.07.24

Escrever bem, de acordo com a técnica jornalística, é adoptar a regra dos três C: de forma clara, concisa e compreensível.

O leitor não tem tempo nem paciência para voltar atrás porque não entendeu o significado daquilo que acabou de ler nem paga um jornal para decifrar charadas que lhe são servidas em forma de notícia.

Apesar disso, são cada vez mais frequentes as frases incompreensíveis na nossa imprensa - até em títulos. Frases codificadas, oriundas de um jargão tecnicista ou empresarial e polvilhadas de estrangeirismos que certos jornalistas pretendem à viva força incorporar no vocabulário comum. Esquecendo que devem ser eles a descodificar a mensagem e não o leitor a esforçar-se por tentar decifrar aquilo que se pretende comunicar.

 

 

Deparo todos os dias com frases em que prevalece o tom charadístico, numa espécie de caricatura involuntária do que não deve ser a escrita usada em jornalismo: opaca, inexpressiva, indecifrável.

Ao falar-se na crise do jornalismo contemporâneo omite-se com frequência este aspecto: a falta de capacidade para comunicar. Quando iniciei a actividade jornalística, na década de 80, os velhos tarimbeiros da redacção costumavam dizer aos novatos como eu: «Escreve de maneira a que possas ser entendido não pelo físico nuclear mas pela empregada doméstica.» Utilizando, desde logo, um vocabulário acessível a todos. Precisamente ao contrário daquilo em que que tantas vezes reparo agora. Como se o mais difícil fosse escrever de forma simples.

 

Às vezes dou por mim a pensar que fazem falta esses tarimbeiros nas redacções actuais - pessoas dotadas não com títulos académicos mas com o bom senso que deriva da sabedoria comum.

Muitos dos erros que costumo anotar seriam evitados pelo olhar atento e experiente de um bom editor. Mas como evitar a propagação do erro se quem tantas vezes o comete são profissionais do jornalismo investidos das funções de direcção ou editoria?

Voltarei a este assunto, raras vezes ou nunca debatido no espaço público. Para já, ficam 50 exemplos que fui colhendo da nossa imprensa:

 

 

"falta cada vez menos para o kick-off deste jogo"

"alternar entre o aceleramento, o giroscópio e os dois joysticks"

"a proposta tem vários regimes e vários períodos de phasing out"

"o processo devia ter sido muito mais friendly user para os utilizadores"

"um verdadeiro apreciador de cozido à portuguesa nunca recusa um convite para descobrir um novo spot com este 'prato do dia'."

"o event designer conta como gere a profissão"

"podia ser um storyboard"

"temos de buscar clusters de desenvolvimento"

"não se consegue compreender porque é que há este delay"

"as teorias de agenda-setting"

"criámos todo um sistema de back up"

 "downgrade sobre a dívida portuguesa"

 "o presidente fez o takeover"

"ele estaria a causar twitter storms constantemente"

"o mercado de credit default swaps atribui a Portugal uma possibilidade de default"

"case study na habitação"

"retalhistas omnichannel"

"hotel em Armação de Pêra é All inclusive"

"reestruturação de programas do daytime da SIC"

"se o governo quiser fazer um restyling, tudo bem"

"acessórios must have da estação"

"ficámos a saber o breakdown dos chumbos"

economic adviser do Governo"

"este país adora quick fixes"

"o que os debates speed-dating fizeram pela democracia portuguesa"

"seria um trabalho de accountabillity útil"

"os estúdios a olharem ao espelho num blacklot em Hollywood"

"os respectivos artwork e streaming

"Portugal tem de descer os salários em relação ao core da zona euro"

"o partido funciona por key words"

"livrarias queer migram para a Net"

"a última filosofia para superar crises conjugais é o coaching familiar"

"sou uma fashion victim"

"vai ser criada uma safe house em Lisboa"

"poderá utilizar o crowdfunding"

"o governo não pode ceder nos valores core"

"tentativa de criação de um catch-all party"

"Ucrânia e Polónia preparam-se para o seu close-up"

"as contas são o nosso bottom line"

"Bolsa alvo de ataque de short-selling"

"ao Chelsea sai quase sempre bem o papel de underdog"

"um daft punk em pose de artes marciais"

"receio de ficar fora do loop"

"após algumas semanas de avaliação em soft opening, X concluiu que deveria criar também um menu de balcão”

"ex-ministro recomenda a criação de um imposto one shot"

"o percurso foi feito para ser TV-friendly"

"o investidor segue uma estratégia passiva de buy-and-hold"

"a dialéctica entre believers e haters"

"o cinema teve outros provocadores e outros pranksters"

"há muito ganhou o gosto do gimmick"

"anunciada por uma espécie de cliffhanger"

"este projecto é um wake up call fenomenal"

"o back-to-basics está para ficar"

 

Decifre quem quiser. E quem puder.

A mãe dolorida e o circo mediático

Pedro Correia, 25.06.24

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Sempre considerei que o caso das gémeas convoca o pior do voyeurismo conjugado com o pior da inveja social.

Se alguém merece ser criticado não é seguramente a empresária Daniela Martins, mãe dolorida que tudo fez para proteger duas filhas em risco de vida, aceitando agora comparecer numa sessão de cinco horas em comissão parlamentar de inquérito num país que alguns dizem não ser dela. Mesmo sendo descendente de quatro avós portugueses. Nossa compatriota, portanto.

Esta senhora apedrejada no "tribunal da opinião pública" - o mais injusto dos tribunais - marcou presença no mesmo local onde já pontificou, como líder parlamentar, um antigo deputado acusado de assassinar há década e meia outra portuguesa residente no Brasil, permanecendo este crime impune até hoje.

Isto sim, devia suscitar escândalo nacional. Mas não suscita.

 

Apetece perguntar: enquanto Daniela Martins enfrentava deputados de várias cores ideológicas e respondia com dignidade ao acintoso André Ventura na Assembleia da República, onde estava o pai das gémeas? Sumiu-se, saiu de cena.

Onde estava o amigo "portuga" de São Paulo, filho do Presidente e suposto instigador da cunha hospitalar? Fora de palco, em silêncio completo, pecando por falta de comparência e desrespeito à Casa da Democracia.

De repente os homens eclipsam-se, só resta ela. Criticada até por ter cumprido o dever cívico de atravessar o Atlântico e submeter-se a um interrogatório em que não faltaram parlamentares quase aos gritos.

 

Vi, ouvi, reflecti. E concluo que só ela esteve bem nesta história ainda com vários ângulos por esclarecer.

Sem esquecer as meninas, que não têm culpa de padecerem de uma doença rara e grave. Expostas num circo mediático que as reduz a um rótulo depreciativo ("gémeas luso-brasileiras") pelos mesmos jornalistas que, quando dá jeito, enaltecem as supostas virtudes da "lusofonia" e aludem ao visionário universalismo de Camões. Renegam na prática tudo quanto proclamam com vibração hipócrita, soando a falso do princípio ao fim.

Ler (33)

Quando o jornalismo se torna literatura

Pedro Correia, 05.05.24

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Kim Kardashian: «lábios de embuste»

 

Já falei aqui sobre o meu crescente interesse pela literatura espanhola. Ao ponto de vários dos meus romances ou novelas favoritos dos últimos cem anos serem de autores do país vizinho. Estes, por exemplo: Tirano Banderas (Ramón de Valle-Inclán), Nada (Carmen Laforet), Os Mares do Sul (Manuel Vásquez Montalbán), Coração Tão Branco (Javier Marías), Instruções Para Salvar o Mundo (Rosa Montero), Pátria (Fernando Aramburu) e Os Teus Passos nas Escadas (Antonio Muñoz Molina).

Este interesse estende-se aos colunistas da imprensa. Pelo mais óbvio dos motivos: escreve-se muito bem nos jornais espanhóis. São peças de literatura as crónicas, as reportagens, até os editoriais. Abundam os escritores que recusam enclausurar-se em torres de marfim, molhando os pés e exercitando a pena em colunas quotidianas onde exibem a sua prosa inconfundível, marcada pelo "ruído da rua" (título da coluna de Raúl del Pozo no El Mundo). E não faltam jornalistas que em nada se distinguem dos melhores prosadores contemporâneos de língua castelhana: Pedro Cuartango, Lucía Méndez, Ignacio Camacho, Jorge Bustos, Manuel Jabois, Emilia Landaluce, José Peláez, Maite Rico, Daniel Gascón, Rebeca Argudo. Falei de alguns aqui, em 2017, quando o El Mundo deixou de distribuir edição impressa em Portugal - decisão felizmente revertida algum tempo depois.

O melhor colunista é aquele que não se limita a emitir opinião: consegue criar metáforas e expressões tão sugestivas que se incorporam na linguagem comum. Tivemos nós também um deles, o melhor de todos: Vasco Pulido Valente, que cunhou o termo geringonça, aplicado à solução política que António Costa encabeçou entre 2015 e 2019. Mas, de modo geral, quem escreve na imprensa portuguesa perde fatalmente na comparação com Espanha. Mesmo nos temas mais fúteis.

Acabo de ler, no ABC de ontem, uma crónica de Ángel Antonio Herrera sobre a "influenciadora" norte-americana Kim Kardashian - talvez uma das mulheres mais fotografadas do mundo. Descreve-a com aquela linguagem castiça que tanto aprecio entre os espanhóis dizendo que ela tem «lábios de embuste». Espantosa expressão, tão inesperada e sugestiva.

Eis um caso concreto em que o jornalismo se transforma em literatura, libertando-se do estéril lugar-comum. Quem gosta de ler agradece. E que não restem dúvidas: continuamos a ser muitos. 

Inaceitável símbolo de submissão

Pedro Correia, 16.04.24

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No Irão, milhões de mulheres - sobretudo jovens - protestam contra a camarilha de clérigos que as forçam a sair à rua de cabeça tapada com o véu islâmico, o hijabe. É-lhes negado algo irrestrito entre nós: passear de cabelo descoberto.

Há sempre alguém que diz não. Mas aquelas que o fazem arriscam severas medidas punitivas, incluindo chibatadas e prisão até dois meses, segundo prevê o código penal decretado pela teocracia de Teerão. Várias têm sido assassinadas pelos esbirros da famigerada Polícia da Moralidade. Foi o que aconteceu em Setembro de 2022 à malograda curda iraniana Jina Amin, distinguida a título póstumo com o Prémio Sakharov, do Parlamento Europeu.

Por tudo isto, chocou-me ver ontem uma jornalista portuguesa, ao serviço de um canal televisivo, deslocar-se à legação diplomática do Irão em Lisboa de hijabe no cabelo para entrevistar o embaixador. Presumo que lhe tenha sido ditada essa condição para chegar à fala com o representante daquele regime totalitário. Se assim foi, devia ter recusado de imediato. Em solidariedade com as vítimas da brutal repressão imposta por uma clique de velhos fanáticos que odeiam as mulheres. Torturam-nas, violam-nas, matam-nas. Como se não fossem gente. Como se não fossem ninguém.

Anda tudo trocado. Elas, que são obrigadas a usar aquilo, rebelam-se dignamente contra tal dogma. As de cá, livres como o vento, aceitam envergar aquele inaceitável símbolo de submissão sem que nada as force a isso. Nas mesmas televisões que já nos falam até à exaustão do 25 de Abril mas se esquecem sempre de assinalar quais são os países onde nenhum 25 de Abril chegou ainda.

Emissão em directo

Pedro Correia, 10.04.24

Um "repórter no terreno" irrompe na pantalha debitando não-notícias em catadupa. Fala sem dizer nada até a voz lhe claudicar. Segue-se um mono em estúdio comentando interminavelmente a não-notícia. Quando este acusa os primeiros indícios de esgotamento vocabular, minutos infindáveis mais tarde, avança outro "repórter no terreno" especializado em encher chouriços, na desesperada tentativa de sobressaltar os escassos telespectadores com outra não-notícia. A mesma depois comentada por dois monos e meio que se atropelam com frases despidas de qualquer ideia. Perde-se o fio à meada, mas ninguém quer saber porque torna-se mentalmente impossível acompanhar tanto palavreado a propósito de coisa nenhuma.

Assim vai seguindo a emissão em directo, hora a hora, até tudo recomeçar no minuto inicial do dia seguinte.

Arranca, arranca, arranca, arranca

Pedro Correia, 28.03.24

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Dois títulos da primeira página do caderno de economia do Expresso, de 15 de Março.

Este jornal ignora verbos comuns como iniciar e começar.

Só sabe "arrancar". Nada mais.

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O mesmo parece acontecer com a SIC, outro órgão do grupo Impresa. Eis duas notícias difundidas neste canal na passada segunda-feira. Os editores parecem desconhecer outros vocábulos: "arrancar" serve para tudo.

Sonharão por lá com amputações, mutilações, decapitações? Ignoro.

Sei, isso sim, que a compressão lexical galopa, cada vez mais veloz.

Ou arranca, para mantermos o registo monovocabular destes conspícuos títulos jornalísticos.