Folhear exemplares antigos do Jornal do Fundão, em particular as notícias relacionadas com a actividade dos tribunais, é mergulhar num país com reminiscências camilianas ou aparentado com a ficção de Aquilino.
Destaco duas notícias datadas de há meio século, ambas impressas em 8 de Dezembro de 1963.
"Roubou a caixa de esmolas" era o título da primeira. Que passo a transcrever omitindo o apelido da pessoa em causa:
"Américo..., solteiro, de 20 anos de idade, residente em Silvares, foi julgado por ter furtado da caixa de esmolas das Alminhas, daquela freguesia, 86$80 [oitenta e seis escudos e oitenta centavos].
O réu, que era bem comportado, fez aquele furto por se encontrar embriagado. Prevendo a Lei o perdão para casos em que o valor do furto é inferior a 100$00, o Mtmo juiz perguntou ao queixoso se perdoava ao réu. Como todavia respondeu negativamente, o julgamento teve de prosseguir até final. Foi condenado em 15 dias de prisão a 30$ por dia e também a 30$ diários. Em virtude da sua menoridade, de se mostrar arrependido do mal que praticou e do seu bom comportamento, a pena foi-lhe suspensa por três anos se dentro de 20 dias entregar ao Pároco de Silvares aquela quantia de 86$80 e ainda os prejuízos que causou na caixa de esmolas."
Eis a segunda notícia, intitulada "E depois do fandango...":
"Foram julgados Joaquim Craveiro e Armando da Silva, jornaleiros, residentes no concelho de Penacova, por se encontrarem acusados de em 8 de Setembro findo, ao anoitecer, terem esperado na serra do Monte Leal, e depois ofendido corporalmente, João Pires, casado, agricultor, do concelho de Abrantes. Passou-se que naquele dia agredido e réus estiveram juntos com mais companheiros numa taberna de Monte Leal, tendo nessa altura o ofendido, já tocado pelo vinho, divertido os assistentes dançando o fandango. Ao anoitecer e quando se dirigia para o local onde trabalhava, o ofendido encontrou, em local ermo, os dois parceiros, tendo o Craveiro dito que tinha a mania de dançar o fandango. O João Pires respondeu-lhe e o Craveiro, que não gostou da resposta, passou a agredi-lo com um pau, só desistindo da agressão quando companheiros do ofendido acudiram aos seus gritos.
Não se provou que o réu Armando da Silva tivesse praticado qualquer agressão, pelo que foi absolvido. O réu Joaquim Craveiro foi condenado a 40 dias de prisão substituída por igual tempo de multa a 10$ diários e em 600$ de indemnização."
Hoje as notícias são muito diferentes. E a forma de as redigir também mudou. O que se dirá daqui a meio século daquilo que agora acontece e do modo como é descrito?
Imagem: Silvares em 1937, fotografia de Orlando Ribeiro (do arquivo fotográfico de Duarte Belo)