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Delito de Opinião

Um mentor de génios

João Pedro Pimenta, 03.01.20

A Foz velha, em tempos separada do Porto, de tal forma que ainda há lá quem diga "vou ao Porto" quando pretende ir ao centro da cidade, é em boa parte atravessada por uma rua estreita, empedrada e de traçado ligeiramente curvado, que liga a ainda mais estreita Rua da Cerca e a Esplanada do Castelo (de S. João Baptista da Foz) até à mais movimentada Diogo Botelho, continuando ainda do outro lado. Nela se podem ver mercearias tradicionais, restaurantes premiados mas de fachada discreta, uma via sacra, a antiga casa da câmara, dos tempos em que S. João da Foz era município, e a velha discoteca Dona Urraca/Pop, que recebeu gerações seguidas de movida. Essa velha artéria, em tempos chamada de Rua Central da Foz, é hoje a Rua do Padre Luís Cabral.

O padre Luis Gonzaga Cabral, nascido na Foz em 1866 e ordenado padre da Companhia de Jesus em 1897, depois de ter estudado filosofia em Espanha e teologia em França, tornar-se-ia professor no Colégio de Campolide (então dos jesuítas - hoje Campus da Universidade Nova de Lisboa) e seu reitor em 1903, numa altura em que a ordem fundada por Santo Inácio de Loyola era um dos alvos preferidos dos republicanos e da Carbonária. Exerceu essas funções precisamente quando um jovem aluno e o seu irmão mais novo, órfãos de mãe e deixados até então pelo pai em casa de tios de Lisboa depois da sua vinda de S. Tomé, ingressaram no colégio e lá permaneceram. O mais novo chamava-se António. O mais velho, que tomava conta do irmão, tinha como nome José Sobral de Almada Negreiros.

Como é sabido, Almada seria talvez o artista português mais genial e prolífico dos cem anos seguintes. E essa genialidade deu-se a descobrir em Campolide. Dotado para a escrita e para o desenho (mas também para o desporto, o que provavelmente lhe seria precioso para os anos vindouros de bailarino, e para a mecânica), com uma imaginação fértil e um espírito endiabrado, teve a felicidade de se encontrar numa instituição conhecida por apostar no talento dos seus instruendos. Reparando naquele imenso talento em bruto, os jesuítas e o seu director arranjaram-lhe um quarto/atelier para que pudesse desenvolver as suas pinturas e desenhos, permitindo-lhe aceder amiúde à biblioteca do colégio, chegando mesmo a dispensá-lo de aulas e de um conjunto de outras obrigações. A genialidade do jovem Almada Negreiros justificava-o. Certo dia, o director, presumivelmente Luís Cabral, apanhou-o em veloz corrida entre as salas do colégio e atirou-lhe a frase que se colaria a Almada a partir daí: "tenho 360 alunos e todos têm olhos na cara, porque é que só tu tens a cara nos olhos"? Resta saber se teria dito isto pelo talento impressionante do aluno ou pelos seus enormes olhos, a que era impossível ficar indiferente e que seriam sempre a sua imagem de marca, a par da sua assinatura.

Em 1910, com a implantação da república, os jesuítas seriam expulsos do país, não sem alguma dose de violência, e as suas instituições encerradas. Luís Cabral, que era então já Provincial da Companhia, teve de fugir apressadamente para Espanha, disfarçado de vendedor de máquinas de escrever. Ao contrário de outros não se instalou em La Guardia, mesmo em frente a Caminha, onde surgiria novo colégio dos jesuítas portugueses, mas seguiria para a Bélgica, onde continuou a dedicar-se ao ensino, até à Grande Guerra o expulsar de novo, desta feita para o Brasil.

Em 1916 começou a leccionar no Colégio António Vieira, em Salvador da Bahia, do qual se tornaria director em 1930. Em solo baiano, destacar-se-ia na fundação de várias instituições culturais. Mas teria novo papel decisivo na formação de alguns alunos.

Em Jorge Amado, Uma Biografia, obra escrita pela jornalista baiana Josélia Aguiar sobre a vida do conhecido escritor brasileiro, editada em Portugal há poucos meses, menciona-se logo a influência que "padre Cabral" teve em Amado, que frequentava o colégio. Aos dez anos, «obedecendo a um pedido do padre Cabral, para quem toda a classe devia preparar uma descrição do mar, colocou no papel a memória da praia verde do Pontal, nos arredores de Ilhéus, aquela em que brincava com a filha do canoeiro. Ao trazer os deveres corrigidos, o professor anunciou com ares de solenidade para todos escutarem:´"este vai ser escritor"». Noutro depoimento do próprio Jorge Amado, sobre o mesmo episódio, lemos o seguinte: "minha vocação literária foi despertada pelas aulas desse jesuíta, aplaudido orador sacro, grande estrela do colégio. A sociedade baiana vinha em peso ouvir seu sermão dominical”. Contou que “em determinado dia, em sala de aula, o mestre deu como atividade a escrita de um texto sobre o mar. O menino Jorge, em vez de tratar, como a maior parte dos seus colegas, dos “mares nunca dantes navegados” de Camões, preferiu escrever sobre o mar de Ilhéus, cidade da região cacaueira onde morou e da qual sentia saudades. O Padre Cabral levou os deveres para corrigir em sua cela. Na aula seguinte, entre risonho e solene, anunciou a existência de uma vocação autêntica de escritor naquela salade aula. Pediu que escutassem com atenção o que ia ler. Tinha certeza, afirmou, que o autor daquela página seria no futuro um escritor conhecido. Não regateou elogios".

Luís Gonzaga Cabral, o "padre Cabral", ficaria na Bahia o resto da sua vida, embora ainda tenha voltado a Portugal. Esteve sempre ligado ao ensino e à escrita e a tentar encontrar, como bom jesuíta que era, o melhor que os seus alunos tinham e o talento que poderiam desenvolver. É possível que outros se tenham destacado graças ao seu empenho. Do que não há dúvida é que tanto Almada Negreiros como Jorge Amado lhe deveram a descoberta das suas vocações e o empurrão necessário para se tornarem nos artistas que a cultura lusófona reconhece e celebra.

 

PS: outra coisa em comum nos dois artistas poderá ser a inspiração do alto Minho. Almada, como é sabido, casou com a vianense Sarah Affonso e passou férias e a lua de mel em Moledo, e Amado era visita da célebre pastelaria Manuel Natário, de viana do Castelo.

Gabriela, eu e ela

Ana Cláudia Vicente, 11.09.12
O remake - que ainda não espreitei, mas soube ter começado ontem - leva-me a crer que talvez devesse ter chamado a este fiapo de memória em segunda mão Eu, a minha Mãe, a Gabriela e a enfermeira-parteira Andreia, declarada admiradora dela. A presente opção, mais módica, venceu - andamos em tempo de poupança. À época da 50ª edição brasileira do romance de Jorge Amado - 1975, ano da chegada do meu irmão mais velho à existência - decidiu a Globo seriar em horário nobre a história de uma certa nordestina chegada ao litoral em mudança. Por cá, dois anos depois, reza a lenda ter sido tanta a cegueira que até o termo das sessões parlamentares regulava pela emissão daquela. Disto não estou segura. Mas sei que se cumprem neste mês trinta cinco anos sobre o dia em que a senhora mãe desta que vos escreve entrou num hospital, já perto da hora de jantar. Após a admissão, em avançado trabalho de me trazer ao convívio da restante humanidade, da parteira de serviço ouviu, incrédula, a pronta intimação:
 - Vá, vamos lá, então! Não podemos demorar! A 'Gabriela' está quase a começar!

 

[Foto: Sónia Sônia Braga, circa 1975, intérprete original das adaptações televisiva (TVGlobo; Durst/Avancini/Blota) e cinematográfica (Bruno Barreto) da Gabriela (1958) de Jorge Amado]

Um século de Jorge (muito) Amado

Ana Vidal, 10.08.12

No dia em que Jorge Amado faria cem anos, aqui fica, em jeito de homenagem, este terno testemunho da sua filha Paloma. A pintura é dela também, que à família nunca faltaram talentos. Filha de peixe - e de sereia - sabe nadar como ninguém.

Parabéns Paloma, Janaína, Cecília, Ricardo... e a todos os Amados e Ramos que (ainda) não conheço. Hoje é um dia muito importante para mim também, que cresci a descobrir o Brasil pelas mãos desse nosso Jorge tão Amado.

"Nada como a consciência de nacionalidade. Bund, em alemão, quer dizer "nacional". Daí que passando 6 dias inteirinhos em Berlim - maravilha!, voltarei um dia com certeza - me senti em casa. O que não me falta é bund... a! Nacionalidade! Brasilidade! Mestiçagem! Sou branquinha? Que nada! É so ver o exagero de bunda e nariz que tenho, este último da mulatice de meu avô João Amado. A avó Lalu a tinha xoxa... claro, era índia Pataxó. Nada contra, apenas não puxei a ela. E as curvas, donde vieram? Da italianiedade de mamãe. Quando papai a dizia mulata, ela contestava com toscanos e vênetos. E Otelo?, ele dizia em tom de pergunta, em meio a rizadas. Fui refletir sobre minha mestiçagem em Berlim. A bunda grande, minha nacionalidade de mestiça brasileira.

Hoje, trocando roupas da mala para voar para Bahia, comemorar amanhã, na nossa casa , os 100 anos de papai, encontro estas anotações que fiz no avião. Publico em homenagem àquele mestiço de cristão novo (judeu-árabe!), negro e índio, que foi o meu pai tão querido. O senhor Jorge Ahmad, como um dia me disse o adido cultural do Iraque: "ele é árabe e nós temos muito orgulho disso". Eu não diria tanto, melhor dizer Pedro Archanjo, que achava bonito mulher de bunda grande, meu pai. E viva 10 de agosto!"