Este artigo de Helena Garrido é aterrador porque a autora não é geralmente tida como uma feroz esquerdista. Mas parece, senão vejamos: A propósito de uma máxima que que Ernâni Lopes enunciou em tempos, diz que
Trajetórias em excesso num sentido, conduzem depois a efeitos em sentido contrário. Para simplificar, o liberalismo iria a dar lugar a intervencionismo.
Que aos papas conservadores costumam suceder, mais tarde ou mais cedo, papas “progressistas”, e conservadores novamente, é um dado; e que os eleitorados podem oscilar, nas nossas cansadas e cínicas sociedades democráticas, entre dirigentes mais à esquerda e mais à direita, idem, se não for por mais nada porque as pessoas se fartam de ver as mesmas carantonhas a incumprir os eldorados que prometeram.
Cabe lembrar porém que não faltam exemplos de países governados durante décadas do mesmo lado do espectro, até ao dia em que circunstâncias da mais diversa índole (crises económicas, tendências demográficas, movimentos migratórios, entre uma miríade de outras) levam a uma mudança. A famosa social-democracia nórdica foi, em alguns países daquela área como em muitos outros, ultrapassada logo que o crescimento começou a diminuir, e a dívida a aumentar; do lado direito tivemos o salazarismo e marcelismo durante décadas aqui, ainda que sem democracia, e temos há décadas governos de esquerda mais ou menos carregada, com a possível excepção de Passos; nos EUA (com as devidas distâncias: tomáramos nós alguns presidentes ditos de esquerda) os ciclos, se existem, são muito curtos – Clinton, que era de esquerda, foi sucedido por Bush filho, que era de direita, a quem sucedeu Obama, um esquerdista de todo o tamanho, sucedido por Trump, que de esquerda é que não era, e agora a pomba Biden, que não deve saber bem o que é, o que significa que é de esquerda, no caso demento-folclórica.
Podia pôr aqui uma data de mapas comparativos, indo buscar exemplos para firmar o meu ponto. Abstenho-me por preguiça e porque acho dispensável essa manobra académica de abundar em desenhos para ilustrar os preconceitos, a ver se passam por ciência.
Portanto, de liberalismo que dá lugar a intervencionismo, estamos conversados, não porque necessariamente não possa às vezes ser assim noutros lugares, mas porque a nossa dita direita é com frequência de esquerda, o que significa que a alternância se tem dado entre bastante intervencionismo e muito. O que se explica por razões históricas, perfis sociais e outros factores, mas desaconselha estes voos comparativos com outras geografias.
Prosseguindo: … propostas que a nova administração norte-americana está a fazer, de recuperação da economia e do seu financiamento, e das posições que estão a ser assumidas pelo FMI, nomeadamente em matéria de impostos.
Não era de esperar outra coisa do ticket vencedor. E até se podem antecipar cenários para as futuras eleições: ou a economia americana, que tem ciclos como as outras, estará de saúde e Biden (mais provavelmente Kamala) reganha, se entretanto não tiver sido estrangulada a singular vitalidade dos EUA, ou o contrário. Por pudor, não esclareço qual é a minha verdadeira previsão.
Isto serve para ilustrar a tese do artigo? Não parece. E o que significam para nós estas americanices? Alguma coisa, indirectamente. Muito, se Biden conseguir infectar o resto do mundo com os seus disparates multinacionais. Que disparates são esses?
… a administração Biden colocou em cima da mesa uma proposta, que enviou a 135 países, e que aborda os dois pilares da negociação: a definição de uma taxa de imposto mínima global sobre os lucros das empresas de 21% e a criação de uma taxa sobre as vendas em cada território nacional de empresas que são fundamentalmente tecnológicas e que conseguem fugir aos impostos – uma batalha antiga entre os EUA e, por exemplo, a União Europeia, e que tem levado à opção de múltiplas taxas.
Um imposto global?! E como fica a concorrência fiscal entre países, que é a garantia de não ficar todo o mundo social-democrata e de haver pressão para os Estados não congelarem nas suas posições relativas de desenvolvimento, escolhendo versões diferentes de gestão dos impostos? E a China? E a Rússia? E, e, e? Esta história é uma velha batalha da UE dentro do “seu” território, que tem sempre perdido. Os EUA querem generalizá-la ao mundo. Boa sorte lá com isso.
Não será fácil, nomeadamente a taxa mínima global. Países como a Irlanda, a Holanda e o Luxemburgo têm vivido à custa desta falta de entendimento global e serão dos grandes afectados por esta medida de imposto mínimo.
Realmente, e não são os únicos – até mesmo dentro do EUA há estados com fiscalidades completamente diferentes e alguns muito atraentes para capitais de todo o mundo, incluindo suspeitos. E dizer que países como a Irlanda e os outros “têm vivido à custa etc.” é bem capaz de ser um passo maior do que a perna. Talvez a verdade seja o contrário: o terem fiscalidades atraentes é um sintoma de gestão pública inteligente, que mereceria ser copiada por quem lhes inveja a prosperidade. A escolha de impostos altíssimos é, se validada pelos eleitorados, legítima; e se consagrada por tratados um abuso anti-democrático.
As iniciativas de Biden estão a merecer o aplauso de economistas como Paul Krugman que no New York Times dá o exemplo da Irlanda para mostrar como a estratégia de reduzir impostos se tem revelado um fracasso enquanto meio para atrair empresas que geram emprego. E Joe Biden tem sido bastante assertivo, no sentido de defender o aumento de impostos. A falar do seu plano de infraestruturas, reporta o Político, disse: “Estou farto e cansado de ver pessoas comuns a serem espoliadas”.
Olha o bom do Krugman: ganhou um prémio Nobel e a partir daí só diz praticamente tolices (as taxas de desemprego irlandesas estão aqui, se bem que haja estudos sábios a demonstrar o ponto daquele guru como se os dirigentes irlandeses não soubessem o que lhes convém). Com frequência as mesmas que o nosso Bloco, pelo que I rest my case. Biden vai retirar incontáveis milhões da economia e voltar a despejá-los mas com gestão pública – é coisa lá deles, hão-de sobreviver e por estes lados, entretanto, a esquerda meneia a cabeça seborreica com aprovação.
A mudança de abordagem fez-se igualmente sentir no FMI que no seu Fiscal Monitor vem defender o aumento de impostos e até a criação de um imposto temporário a recair sobre os negócios que lucraram como a crise, como por exemplo as farmacêuticas ou algumas tecnológicas.
A gente conhece a tese e há dias Vítor Gaspar, o do brutal aumento de impostos, veio dizer não sei quê neste sentido. Primeiro, o FMI expectora tradicionalmente coisas contraditórias, dependendo de quem fala, mas convém ter presente quem é o maior sócio (mais de 16%, em 190 países, a esmagadora maioria tendo menos de 1%. O nosso Mário Centeno fala melifluamente por 0,44%). De modo que é natural agradar ao novo vizir, sem levar a sério muito deste discurso porque é apenas uma agência multinacional a dar palpites. De resto, o exemplo das farmacêuticas é particularmente infeliz: fizeram, ao contrário dos governos, um brilhante trabalho, razão pela qual devem ser penalizadas. Excelente sinal para o futuro.
Em Portugal o tema do aumento de impostos a incidir sobre os que ganharam, ou não perderam, com a pandemia, foi lançado pela economista Susana Peralta numa entrevista ao Jornal I. O debate centrou-se muito na expressão que usou “burguesia do teletrabalho”, mas o espírito da proposta parece ir ao encontro do que agora é proposto pelo FMI.
Li na altura e fiquei com a impressão que, se foi isso, é natural porque Susana é uma figura de esquerda. Mas intuí, mais do que li, que haveria ali alguma disfarçada reserva quanto à bondade das medidas covidescas: já que uma parte da população as aprova mas não sofreu qualquer diminuição de rendimento, que apoie quem foi prejudicado. O que não seria bem a mesma coisa. De resto, este ponto de vista já havia sido explicitamente defendido por Aguiar-Conraria, salvo erro em artigo no Expresso, a que não tenho acesso.
Os três parágrafos seguintes têm a ver com o agravamento das desigualdades, um tema caro a todas as pessoas de esquerda e praticamente irrelevante para mim. Explico:
O progresso económico assenta na desigualdade económica, do mesmo modo que não há corrente eléctrica sem tensão. Todavia, o Estado é preciso para, além das funções clássicas, garantir acesso a cuidados de saúde a todos, educação (o modo de fazer isto é também motivo de clivagem esquerda/direita, mas não curo disso agora) e outros bens públicos. A isto há que somar a ajuda aos desvalidos por razões de humanidade e dignidade, mesmo que com isso se penalize a economia: não é civilizada uma sociedade que convive com a miséria, numa espécie de darwinismo social. Isto não é porém a mesma coisa que combater a desigualdade per se. E quando se está a falar de aumento de impostos convém ter presente que sobem, mas dificilmente baixam porque entretanto se enraizaram clientelas dependentes que votam, e serviços de dívida que investimentos desastrados não pagam. Aliás, a exploração da inveja (um sentimento que, no discurso público, se ausentou oficialmente para parte incerta) também desempenha o seu papel. Deletério, mas com o qual é realisticamente necessário contar, o que é diferente de tomar a nuvem por Juno.
Helena conclui:
Porque no caso português, nos últimos anos, o discurso do combate aos excessos do liberalismo não passou disso, de palavras, enquanto fomos vendo degradar-se a educação e a saúde.
Quais excessos do liberalismo? O que temos tido, e há muito, é excessos de socialismo. Que Helena Garrido quer aprofundar, um direito dela.
E que eu não quero – um direito meu.