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Delito de Opinião

O abismo depois do êxito, esse velho impostor

João Rendeiro

Pedro Correia, 23.05.22

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A trágica morte de João Rendeiro ilustra melhor do que mil sermões como é ilusório o clarão dos holofotes, que iluminam por instantes e logo se apagam, deixando a vedeta da véspera submersa na penumbra. À glória fácil sucede-se a queda sem remissão. Aconteceu com o banqueiro que teve parte da classe dirigente e da constelação jornalística a seus pés, quando ganhou fama de multiplicar os dividendos de ricos e poderosos. Triste ironia, terminar os seus dias tão longe desse mundo de seda e cetim, num país distante, entre os escorraçados da sociedade.

Os mais cínicos dirão que o lisboeta João Manuel Oliveira Rendeiro, nascido há 69 anos em família de classe média oriunda de Aveiro e agora encontrado sem vida numa cela sul-africana, por aparente enforcamento, teve o que merecia. Mas num país que se orgulha de haver abolido o tratamento prisional desumano, práticas de tortura em estabelecimentos estatais e a pena de morte, é imoral alguém congratular-se com o desaparecimento seja de quem for, sobretudo em circunstâncias destas. Trate-se de um milionário caído em desgraça ou do mais humilde varredor de ruas.

 

É verdade que Rendeiro, fundador e antigo homem forte do Banco Privado Português, promovido com a ajuda de muitas figuras mediáticas e habituado durante anos a gerir fortunas, criou um monstro financeiro que acabou por devorá-lo. Já era assim, em estrito rigor, quando as manchetes da imprensa mais complacente lhe colavam o rótulo de «banqueiro dos ricos».

Cometeu, sem dúvida, vários pecados capitais – incluindo o de acreditar no seu próprio mito. E era um foragido à justiça: fora condenado, em última instância, num dos processos criminais que lhe haviam sido instaurados. Neste caso, a cinco anos e oito meses de prisão efectiva por falsidade informática e falsidade de documentos

Escapou para a África do Sul, perante a chocante benevolência de um sistema judiciário que lhe concedia garantias sem lhe impor deveres, e só viria a ser localizado pelas autoridades policiais após uma célebre entrevista que assinalou o início das emissões da CNN portuguesa. Expondo a nossa investigação criminal ao ridículo.

Como outras opções que foi tomando, numa vida que dava um filme sem final feliz, também esta se revelou desastrosa. Dizia agir «em legítima defesa», recusando ser «bode expiatório do sistema financeiro nacional». Sem perceber que continuava a dar passos na direcção errada.

 

Poucas derrocadas pessoais terão sido tão abruptas. Dos supostos milhões que haveria amealhado nas Ilhas Virgens britânicas, enquanto gestor das ilusões alheias, à quase-indigência que nem lhe permitia pagar os serviços jurídicos da advogada sul-africana. Também sem assistência consular, como se fosse apátrida.

De algum modo, teve o destino que escolheu. Até em sentido literal, enquanto reverso do êxito, esse velho e astuto impostor. Como escreveu o poeta espanhol Juan Bonilla, «todo suicidio es un crimen pasional. / El suicida se sacrifica siempre / por un amor no correspondido.»

 

Texto publicado no semanário Novo.

Prisões

jpt, 13.05.22

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Leio no Facebook várias pessoas - e até "doutores", "altos quadros" como se dizia - lamentando o destino de Rendeiro mas alinhavando que o homem pagou assim os seus crimes. Que gente hedionda, uns com Cristo na boca e nas teclas, outros sem o tal Cristo. Mas todos demoníacos. Pois Rendeiro terá sido trapaceiro, fraudulento. E decerto que arrogante e descuidado - ao sabê-lo preso em Durban logo me perguntei, sem saber dos trâmites que se seguiriam, e até julgando que seriam rápidos, "o que é que passou na cabeça ao mariola para se arriscar a ser prisioneiro na África do Sul?". Enfim, um criminoso antipático, sem sequer pitada de romantização possível, daquela com que tantos outros são aspergidos. Agora considerar que é expiação um velho enforcar-se - porventura porque "não aguento mais!" ou, e espero bem que assim fosse, um apenas "que se foda!" - depois de seis meses de inferno concentracionário?
 
Entretanto e porque já me cheira ao choradinho de que lá nas Áfricas as prisões são horríveis - e, grosso modo, são-no - quais as "selvas" dos "selvagens" que antes se diziam, recordo os dados a estes deslizes da ignorância o que se passa na pérfida Albion: o (meu) grande Boris Becker, ídolo da juventude, está preso por uma falência fraudulenta, mais um desportista campeão arruinado. Encarcerado numa prisão de Londres, onde penou Oscar Wilde, e que segue em regime qual romance de Dickens.
 
Os prisioneiros são todos iguais: nenhum deles expia crimes suicidando-se. E nenhum deles merece prisões execráveis. Das quais os "doutores" (de Cristo ou sem Cristo) só se lembram quando há um preso "notável".

Defraudado e desapontado

Paulo Sousa, 13.12.21

As horas de transmissão da série televisiva Covid-19, vamos agora na temporada Ómicron, foram ontem de manhã seriamente abaladas.

O ex-banqueiro foragido à justiça João Rendeiro foi apanhado pela polícia sul-africana num resort de luxo.

A história tinha ingredientes de natureza diversa que lhe asseguravam espessura para estarmos perante um bom romance. Começando pela ascensão social e financeira da figura, até à sua fuga planeada com o rigor que se encontra apenas nos filmes mais realistas, passando claro pela implosão do seu banco, a revelação das suas burlas artísticas e sem faltarem as contradições entre a frieza do crime financeiro e a melosa paixão pelas três cadelas deixadas para trás a tomar conta da esposa. Tinha quase tudo para ser uma boa história. Claro que se dispensava bem o longo compasso de espera provocado pela sempre demorada e aborrecida justiça portuguesa, mas tudo o resto era muito bom.

Ficamos a saber que afinal, tal como nos filmes, a polícia consegue mesmo seguir o rasto dos pagamentos feitos com meios electrónicos. Se Rendeiro dedicasse algum tempo à filmografia de acção já saberia que devia ter outros cuidados e mais imaginação.

Num filme razoavelmente verosímil o ex-banqueiro agora fugitivo nunca teria sido apanhado sem primeiro obrigar a polícia sul-africana a uma perseguição automóvel pela baixa de Durban, com direito a carros destruídos às voltas pelos ares.

Mas para desmentir definitivamente a teoria da treta que afirma que a realidade ultrapassa a ficção, soubemos que a personagem principal da história foi apanhada de pijama e que se mostrou surpreendido.

Estes últimos detalhes revelam um deprimente desmazelo do romancista. O guião, que chegara a ser promissor, neste ponto já estava a caminho de ser arrastado para aquele cesto dos papéis no canto do écran. O que é que que podia ser mais infantil do que isto?

Mas para arrematar o afundanço, ainda faltava a cereja no topo do bolo. Então não é que o João de Portugal, viajante individual, logo depois de torrar uma boa maquia num programa de encriptação topo de gama, não resistiu em avaliar a sua experiência no Forest Manor Boutique Guesthouse?

Que saudades do Duarte e Companhia. Aquilo é que eram histórias bem apanhadas.

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