Dez anos sem o João
«A imortalidade é esse dom que os deuses depositam na memória dos amigos.»
Manuel Vicent
Já passaram dez anos. Cumprem-se hoje. Uma data dolorosa neste blogue, para todos quanto o conheceram. Para mim, sobretudo. O nosso João Carvalho despediu-se da vida, rumo à eternidade, a 14 de Janeiro de 2013.
Foi demasiado cedo, tinha apenas 60 anos. Com ele, apagou-se parte da força vital que tornou o DELITO DE OPINIÃO numa referência na blogosfera, onde centenas de pessoas já escreveram - gente anónima, gente célebre, gente das mais diversas tendências. Um blogue plural, participativo, atento aos outros, dialogante com os leitores, com um olhar crítico e mordaz sobre figuras e factos sem perder a elegância.
Muito à semelhança, no fundo, do que ele próprio era. Foi assim que o conheci, bem longe de Portugal: alegre, sociável, capaz de fazer amigos com imensa facilidade, desassombrado mas tolerante. Uma vez disse-lhe: «Não és engenheiro, mas sabes construir pontes.» Assim era, de facto, o João Manuel Machado de Castro Carvalho, um dos edificadores deste projecto que teima em permanecer, uma década depois de ele nos deixar de forma não inesperada mas prematura.
Nos primeiros quatro anos de existência do DELITO, deixou aqui centenas de textos. Com uma transbordante capacidade de contagiar os colegas e estabelecer diálogo com os leitores. Desde o momento inicial: era um dos pilares desta equipa que se foi renovando e transfigurando (e envelhecendo, conforme a inelutável lei da vida).
Devo-lhe muito. Era padrinho da minha filha, quase como um irmão. Costumo dizer que fazemos um grande amigo por cada década de existência. Sucedeu-me isso: as verdadeiras relações de amizade deixam um rasto que perdura da infância à velhice. Mas os desencontros da vida vão esmorecendo alguns laços. Com o João isso nunca aconteceu - e nem sequer a distância geográfica diminuiu a nossa calorosa e fraterna camaradagem. Desde aquela tarde em que ele me bateu à porta na pousada de Mong-Há, onde eu então vivia, e me convidou para «tomar um copo» com um amigo comum para nos conhecermos. Escrevíamos os três em jornais de Macau sem que, até àquele dia, nos tivéssemos encontrado pessoalmente.
Nasceu aí uma amizade de um quarto de século que havia de perdurar até ao dia em que ele nos disse "até sempre" e me despedi dele, a 15 de Janeiro de 2013, na comovente cerimónia fúnebre no Porto, sua cidade natal. Com a Igreja do Foco cheia de gente amiga, ainda incrédula com aquela partida tão precoce.
Tanto tempo depois, ainda por vezes me questiono o que diria o João deste ou daquele acontecimento. Ou, quando leio algum erro gramatical mais estapafúrdio, me interrogo como reagiria ele com um sentido pedagógico que cultivava como poucos. Foi um dos melhores copy-desks que conheci no meu longo trajecto profissional. Rigoroso como poucos a escrever - com os outros, sim, mas também com ele próprio.
Os textos aí estão, no nosso arquivo, testemunhos vivos de um percurso demasiado curto mas suficientemente rico para construir um precioso legado em sua memória. Não apenas na página principal do blogue: também nas caixas de comentários, onde nunca deixava um leitor sem resposta - quase sempre amável, por vezes contundente, sem nunca baixar o nível.
Pertencia a uma espécie rara: era um perfeccionista, abominava a vulgaridade, só se contentava com o melhor. No estilo, no grafismo, no respeito pelo idioma que é património de todos. E era imbatível no sentido de humor, atributo que o acompanhou até ao fim. Ainda detectei nele esse traço distintivo na última vez em que falámos, por telefone, três semanas antes da sua morte.
Como escrevi no próprio dia em que o perdemos, a um amigo nunca se diz adeus. Cá estou, no lugar do costume, a sublinhar o mesmo. Entre os ruídos do quotidiano, recolho-me uns minutos em sentida evocação da sua memória. Convicto, mais do que nunca, desta evidência: a amizade é um posto. O João faz falta, à família e aos amigos. O que é mau e bom ao mesmo tempo. Sinal inequívoco de uma vida que não decorreu em vão.