Cavaquistão revisitado
Cavaco publicou um artigo e o país político atentou.
Caso estranho: o actual presidente exprime-se, tanto oralmente como por escrito, muito melhor do que ele, mas ninguém lembra nada do que tenha dito, antes e enquanto presidente, nem ninguém, salvo jornalistas à cata de material para encher chouriços, lhe presta verdadeiramente atenção. Já a Cavaco, seja para lhe entoar hossanas seja para o execrar, o povo político e comentarial* liga.
A razão comezinha disto é que um malbarata a palavra puindo-a pelo uso excessivo; e o outro encarece-a pela raridade. Essa a diferença óbvia, que não a mais interessante: Cavaco tem uma ideia para o país, sobre os meios para a realizar, e sobre os próximos anos, enquanto Marcelo tem dezassete ideias diferentes, todas porém iguais na sua superficialidade e na sua irrelevância, para as próximas semanas ou, quando espreme as meninges no exercício daquela habilidade política que sempre lhe gabaram, para os próximos meses.
O artigo tem uma toada irónica. E se me tivessem perguntado se Cavaco poderia atrever-se a um tal voo retórico eu diria: o quê, Cavaco a ser irónico? Ora, isso é como meter uma pedra numa gaiola e esperar que ela comece a cantar. Mas não: a ideia base – Costa tem a mesma maioria absoluta que Cavaco teve e dela fará certamente igual bom uso – funcionou.
Cavaco lista as medidas que tomou, em acordo com o PS quando se tratava de fazer o que a Europa achava conveniente, e em desacordo (como, por exemplo, na abertura da televisão à iniciativa privada ou na reprivatização de empresas nacionalizadas) sempre que se tratou de enterrar o lado económico do PREC em aspectos para os quais os nossos futuros patrões europeus se estavam nas tintas.
Diz, e bem, que Portugal no seu consulado se aproximou relevantemente da média europeia, o que nunca mais voltou a suceder. E não diz o que faria agora para reverter a estagnação que é a marca de água dos governos socialistas porque não era esse o escopo do artigo, nem está na luta política como actor de relevo, antes como senador.
A receita que usou no seu tempo não estaria inteiramente esgotada (empandeirar o furúnculo da RTP e o cancro da TAP, bem como olhar de perto para as perdas colossais das empresas públicas de transportes, não seria má ideia, por exemplo) mas não produziria os mesmos resultados porque as circunstâncias do país são hoje muito diferentes. E pergunto-me se seria homem para pôr seriamente em causa o papel central do Estado na economia, reformá-lo no sentido desejável, isto é, aligeirando-o, confiar na capacidade do empresariado nacional, que nunca levou a sério, e pôr em surdina o respeito acéfalo que sempre dedicou a quanto prestigiado economista da sua área se alivia de tretas dirigistas sortidas.
Talvez não e talvez, em parte, sim. Não sabemos, e só saberíamos se, sendo a esperança média de vida de 150 anos, como deveria e um dia será, Cavaco regressasse à luta política para reconquistar o lugar executivo que já foi seu.
Não sabemos mas lembramo-nos que, como presidente, apoiou discretamente Sócrates quando este parecia um reformador; e Passos no bem sucedido processo de recuperação da massa insolvente. Além de torcer o mais que pôde o nariz à emergência de Costa, decerto por ver o que ali estava. Na guerrilha interna do PSD suspeita-se que não apreciava excessivamente Rio e que apoia com discrição o novo líder. Nada de concludente, portanto – Cavaco gosta de pairar acima das coisas porque se acha (e não falta quem igualmente ache, ele há gente com a admiração fácil) o predestinado que nunca foi, o estadista com obra de mérito que independeu das circunstâncias e o guru da economia que só os mais seguidistas dos seus pares reconhecem.
Destes há um que foi seu conselheiro e que deu há dias uma entrevista. Tenho ideia de que sempre que a ele me referi desde que há mais de dez anos comecei a beneficiar a comunidade com as opiniões que generosamente comunico nunca o fiz em termos exactamente elogiosos – não era, nem sou, europeísta, cavaquista, intervencionista, dirigista, nem, menos ainda, graças a Deus, economista.
Mas a entrevista é boa, muito boa. João César das Neves transformou-se num céptico e desencantado e, no correr dela, diz (transcrevo apenas algumas frases, mas quase tudo o resto também mereceria):
Na base disto está uma lógica de curto prazo e uma lógica baseada na descapitalização da economia. Já vinha de trás...
É um país que está parado, com outros a passar-nos à frente.
Outro aspeto até mais importante é as reformas necessárias nos vários setores, da Justiça à Saúde, passando pela Educação, onde fazer reformas significa partir loiça, significa incomodar os que estão.
...a tradição que vem de trás é uma tradição de não mexer nas coisas para não afrontar os interesses instalados.
Uma das explicações para esse atraso é a carga fiscal e regulamentar que pende sobre tudo quanto é atividade económica.
É uma visão de que o desenvolvimento é feito pelo Estado, é feito por estes políticos, por estas entidades públicas, que sabem tudo e sabem como vão fazer. E as empresas estão lá simplesmente para produzir o dinheiro necessário para eles fazerem as suas maravilhas. O PRR é um exemplo disso.
Se o senhor ministro soubesse não era ministro, era rico. A única razão por que é ministro é porque não sabe. Eu sou professor porque não sei, se soubesse estava a fazer e estava caladinho. Não é aos professores da universidade ou aos ministros que nós devemos pedir para fazer o desenvolvimento económico – quem faz o desenvolvimento económico é a economia!
O artigo do Professor Cavaco Silva diz duas coisas muito importantes neste momento político. Primeiro, que é o momento de fazer reformas estruturais – ele fez, no seu tempo – e segundo ponto: fazê-lo em diálogo.
É neste último ponto, e quase só aqui, que mora a minha discordância: César das Neves parece julgar que o PS de Costa sabe o que é necessário fazer e que só o facto de o anterior governo ser minoritário e dependente do apoio das demências à sua esquerda é que impediu políticas amigas do crescimento. Loucura: Basta ouvir Costa discretear sobre o futuro, com aquele cansado paleio das apostas na educação, e na formação, e na inovação, e na economia circular, e na descarbonização, e nos 14, ou 93, ou 118, vectores do PRR, para se perceber que naquela cabeça não mora, nem nunca morou, nenhuma ideia escorreita sobre o país, ocupada que está com a preocupação de satisfazer as clientelas que lhe têm garantido o sucesso eleitoral e sem nenhuma noção, ou sequer intuição, sobre como funciona a economia real. À pergunta sobre a razão pela qual Portugal tem vindo a ser ultrapassado por alguns países do antigo bloco Leste, que já lhe foi feita pelo menos por duas vezes, responde que a história explica – o que é ao mesmo tempo uma confissão de ignorância e de impotência.
É aqui que estamos: as vitórias da esquerda, em qualquer das suas declinações, são a derrota do país. Donde, a vitória deste só virá, se vier, com a derrota completa da esquerda – não vale a pena estar à coca de uma lura de onde se sabe que jamais sairão coelhos. Ademais, o campeão do diálogo está lá na ONU a expender banalidades, e Costa almeja de toda a evidência um lugar longe onde possa pôr a render as suas qualidades de inútil e treteiro, emulando o seu camarada Guterres.
*Antes que venha por aí um fiscal da língua informar-me que a palavra não existe, vou já dizendo que, se não existe, devia existir.