Há uns meses, pouco depois da inauguração de uma cervejaria de uma conhecida cadeia nacional, com as 21:30 a baterem e na sequência de um jantar ocorrido na semana anterior nesse mesmo local com um grupo de amigos alargado, quisemos repetir a dose na semana seguinte, embora fôssemos somente quatro. Assim que entrámos o empregado olhou para o relógio e a primeira coisa que nos transmitiu foi que não podiam dar-nos de jantar porque a cozinha fechava às 22:00. Um amigo comentou com a sua habitual bonomia e perspicácia que o tipo devia ser o delegado sindical, pelo que imediatamente saímos e fomos jantar à porta do lado. Dias volvidos, os jornais relatavam uma zaragata com o cozinheiro, com facas pelo ar, os empregados em debandada pela rua fora e a polícia a entrar por ali. História semelhante aconteceu-me em Faro, numa sexta-feira, há uns anos, mas aí tivemos melhor sorte do que um grupo de espanhóis que chegou depois de nós. Estávamos em Junho, numa capital de distrito dedicada ao turismo. Não tardou para que chegasse a crise e nessa altura começaram a fechar ainda mais cedo, ao mesmo tempo que se queixavam da governança. Alguns fecharam de vez.
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Lembrei-me disto porque ontem me atrasei a arrumar a papelada e a mandar as habituais mensagens para casa e quando saí do hotel já passava das 23h. Vi duas ou três portas abertas e acabei por entrar numa que me pareceu mais movimentada e acolhedora, exibindo numa pequena mesa um menu com fotografias, o que me facilitava a vida. Duas simpáticas camareiras desfizeram-se numa cantilena de boas-vindas incompreensível para os meus ouvidos, encaminhando-me para uma das salas do estabelecimento decorada com umas lanternas iguais às da fachada. Receoso, perguntei em inglês e gesticulando se me davam de jantar. É claro, estamos cá para isso, foi a resposta. O que quer beber? Já passava da meia-noite e meia, petiscados que estavam uns banais camarões e vegetais de tempura, e despachadas duas Kyrin, quando me lembrei da fotografia do crème brûlée que vira na ementa e quis encerrar a solitária refeição. À saída reparei que a hora de encerramento da cozinha era às 23.30 mas ainda entrou mais um casal quando recebia o troco. Enfim, diferenças.
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Infalivelmente, às seis da matina, tocaram o despertador e o telemóvel, que por aquelas bandas não há serviço de despertar na recepção. Pelo que, ainda mal refeito da chinfrineira das cigarras durante toda a noite, que nem o ar condicionado do quarto abafava, e de tal forma que cheguei a pensar serem pássaros noctívagos ou com as horas trocadas, a muito custo levantei-me. O jet lag ficará para outra altura. Havia que me pôr ao caminho. Primeiro o comboio até Numazu, depois a mudança de linha até Gotemba, onde pela primeira vez, depois de várias tentativas, consegui vislumbrar em toda a sua plenitude os 3776 metros do Fuji-san, desde 2013 declarado património mundial. Sem nuvens, mas também sem neve para grande desconsolo. Só um farrapo sobrava na vertente sul.
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Há muito que sonhava em fazer esta viagem. Quando em 1976, o título mundial de Fórmula 1 se discutiu na lendária pista de Fuji, num duelo em péssimas condições atmosféricas entre Nikki Lauda e James Hunt, que viria a dar o título ao segundo depois de uma corrida em que acabou em 3.º lugar, jurara a mim mesmo ir um dia ir a Fuji, num dia grande. E esse dia surgiu quando vi o calendário do campeonato japonês de Super GT. Havia a alternativa de ir a Suzuka, no final do mês, mas a perspectiva de poder acompanhar em Fuji o actual líder do campeonato não me permitiu pensar duas vezes. Com o segundo lugar obtido na corrida de Buriram (Tailândia) só havia uma hipótese: é para Fuji e é já.
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Depois de recolhido o meu passe junto ao West Gate do Fuji Speedway, e de uma volta rápida pela parte principal do circuito, junto à bancada principal, onde estão expostas as novidades, se vende de tudo e há animação e sessões de autógrafos das novas estrelas, as meninas ao serviço das marcas, vestidas (ou despidas) a rigor, e que têm direito a atenção própria, fui à procura do meu "anfitrião", a quem devo a generosidade de, tendo sabido da minha deslocação e interesse no Super GT se prontificou de imediato a dar-me preciosas indicações e a tratar do mais importante: a minha liberdade de circulação e visão integral do evento. Pelo caminho reparei na quantidade de famílias completas – avós, pais e filhos, alguns ainda nos carrinhos de bebé – que se iam instalando, desde muito cedo, montando tendas e cadeiras, preparando os canhões fotográficos, num espectáculo como há muito não via, habituado que estava ao desolador deserto das pistas portuguesas. Quando em Maio passado soube que na prova que aqui se disputara tinham estado mais de 90 mil espectadores, ou seja, mais 40 mil do que na prova idêntica em SPA Francorchamps (Bélgica), perdi as poucas dúvidas que ainda poderia ter sobre a grandeza do Super GT. Como então alguém escreveu, “é Super GT por alguma razão”!
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Convém dizer que o campeonato de Super GT, criado inicialmente em 1994 com o nome de All-Japan GT Championship, viu as suas regras técnicas serem unificadas com as do DTM em 2014. Actualmente, os seus carros da categoria 500 são mais rápidos do que os do campeonato alemão, pelo que será aceitável dizer-se que é o mais competitivo campeonato de carros de GT (Grand Touring) do mundo. Com duas classes, uma de 500 e outra de 300, para se perceber o grau de competitividade bastará verificar que é normal haver mais de uma dezena de carros a fazerem tempos por volta dentro do mesmo segundo, isto é, com diferenças de milésimos. Este sábado, na classe GT 500, houve dez carros a rodarem com diferenças por volta inferiores a um segundo, e na classe GT 300 foram 13. Basicamente, os GT são carros de grande potência, capazes de rodarem a alta velocidade em longas distâncias, razão pela qual há corridas de 300, 500 e 1000 KM, com dois ou três pilotos por carro e muito movimento nas boxes. Estão lá todos os maiores construtores japoneses (Lexus, Toyota, Honda, Nissan e Subaru), mais alguns europeus (Mercedes, BMW, Porsche, Audi, Lamborghini, Lotus e Ferrari), entre equipas de fábrica, oficiais, semi-oficiais e privados. As equipas são todas profissionais, a tecnologia é a mais desenvolvida que se possa imaginar, com directores de equipa e patrões que foram antigos pilotos de Fórmula 1, de carros de turismo e de protótipos, encontrando-se por vezes na mesma equipa duas gerações da mesma família. Nomes como Nakajima, Suzuki (Yutaka e Aguri), Kondo, Hoshino ou Noda são habituais nestas andanças. E ao contrário do que se possa pensar, o Super GT não tem só participantes japoneses. Neste momento também correm regularmente italianos – Quintarelli e Caldarelli -, alemães – Jorg Muller, Michael Krumm, Christian Mamerow –, ingleses – Rossiter e Oliver Turvey –, um belga – Bertrand Baguette, um finlandês – Heikki Kovalainen –, um suíço – Alexandre Imperatori –, um sueco – Bjorn Wirdheim, um brasileiro – João Paulo de Oliveira – e, last but not the least – o português André Couto, que corre sob bandeira de Macau, por razões perfeitamente compreensivas e que mais adiante veremos, mas que continua a ser identificado como piloto nacional. O catálogo oficial não enganava pela bandeira colocada à frente do seu nome, bandeira que não é a que ele transporta no carro nem no seu fato de competição.
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O programa incluía ainda uma corrida da Porsche Super Cup e outra de Fórmula 4, mais os respectivos treinos, sendo que a segunda se trata de uma fórmula de promoção de jovens pilotos, colocada no patamar logo a seguir ao karting, com veículos de fabrico local em que a maior parte dos componentes são ainda em alumínio e não em carbono ou de outro material mais sofisticado. Depois de terem andado a importar carros de outras latitudes, os japoneses e a sua poderosa indústria automóvel optaram por criar uma fórmula local que está a ser um êxito.
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O enquadramento do circuito é fabuloso, em plena comunhão com a natureza e com um traçado que me fez recordar a nossa magnífica pista de Portimão.
Feitas as apresentações e passada uma primeira vista de olhos pelos carros, circuito e instalações, onde ressaltava a boa organização, o rigor no cumprimento dos horários e a forma como tudo se encaixava e evoluía, pude então começar a ver as coisas com mais atenção.
Durante todo o dia de sábado acompanhei os treinos do Super GT com a equipa Gainer Tanax GT-R, aquela onde corre o homónimo do nosso companheiro daqui do Delito de Opinião, e que foi a razão maior da minha deslocação a Fuji. É que o André Couto é o líder do campeonato japonês de Super GT 300. Há algumas semanas, um outro piloto nacional que tem mostrado a sua classe nas pistas europeias, venceu uma prova do campeonato alemão DTM. Não foi um escândalo porque o António Félix da Costa tem muita categoria. De outra forma não estava lá, como também não estaria o André na Gainer. Mas agora imaginem o que seria se um português fosse à quarta prova o líder do DTM correndo num carro de uma equipa semi-oficial. Pois bem, salvaguardadas as distâncias, é o que neste momento acontece no Super GT 300. Sobre isso e André Couto deixarei aqui umas linhas noutra altura. Até lá ficam algumas imagens do Super GT.
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