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Delito de Opinião

Futebol surreal

Cristina Torrão, 02.12.22

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O Mundial do Catar tem sido um fiasco em questão de audiências televisivas, na Alemanha. E, agora que a Mannschaft já deixou as arábias, até me pergunto se os canais estatais ARD e ZDF continuarão a transmitir os jogos.

Algo se passa na selecção alemã. Um tipo de futebol que deixou de funcionar? Falta de adaptação dos seleccionadores (sempre alemães) ao novo estilo de jogadores com origem migrante, como Serge Gnabri, Leroy Sané e Jamal Musiala? Enfim, nem sequer sou treinadora de bancada, não me compete dar respostas, muito menos, encontrar soluções. Mas a maneira como a Alemanha foi eliminada, desta vez, foi muito deprimente. O jogo de ontem teve momentos surreais.

A Alemanha tinha de ganhar. Mas estava, ao mesmo tempo, dependente de uma vitória da Espanha. Os primeiros golos foram marcados quase ao mesmo tempo: a Alemanha aos 10 minutos, a Espanha aos 11 minutos. Estava tudo a correr bem. Mas, aos 48, o Japão empatou e aos 51 pôs-se em vantagem. Logo a seguir, aos 58 minutos, a Costa Rica empatou. Aqui, o meu marido e eu passámos a torcer por uma vitória da Costa Rica. E note-se que o meu marido é alemão! Porquê? Se a Alemanha já não tinha praticamente hipóteses, que fosse a Espanha também eliminada. E não é que a Costa Rica marca o segundo golo aos 70 minutos?

Alegria efémera. Três minutos depois, Havertz empatou o jogo. Maldito Havertz! Ficámos numa situação muito ingrata, não me lembrava de já ter vivido semelhante, a assistir a um jogo de futebol. Deveríamos torcer pelo terceiro golo da Costa Rica? Mas: e se a Espanha ainda conseguisse virar o resultado?

O que veio a seguir foi surreal. A Alemanha começou a marcar golos e a Costa Rica desesperava. Tudo em vão. O marcador do Japão-Espanha congelara naquele fatal 2:1. Foi penoso ver a Alemanha a aumentar a sua vantagem, sabendo que tal vitória beneficiava apenas a Espanha.

Só nos resta esperar que “Marruecos” trate da saúde a “nuestros hermanos”.

E, de resto, viva Portugal!

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Ao trabalho

Sérgio de Almeida Correia, 27.04.22

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O novo Embaixador de Portugal entregou ontem a sua Lettre de créance ao Imperador do Japão. É o início de um novo ciclo da diplomacia portuguesa em terras longínquas e num período conturbado das relações internacionais.

O formalismo a que esse acto está sujeito ficou bem patente na breve mas excelente e ilustrativa reportagem conduzida pelo Filipe Santos Costa (CNN Portugal).

Daqui, ao novo representante diplomático e à sua equipa desejamos as maiores fortunas. Que o trabalho seja profícuo e as relações entre os dois países continuem a progredir, fortalecendo-se os laços de amizade e boa cooperação.

Ao Vítor Sereno, cujo trabalho em Macau e no Senegal foi a vários títulos notável, quer pela dedicação à função, quer pela atenção constante a tudo e a todos, inclusive aos emmerdeurs de várias linhagens, aqui ficam os meus votos para que continue a cumprir e a fazer aquilo que de melhor sabe e para que está fadado. Para bem de todos nós.

Amigos de aluguer

Ana CB, 21.01.22

Li num artigo que em Tóquio é possível alugar amigos. Ou seja, pagar a alguém para ser nosso amigo durante umas horas. Os “amigos de aluguer” entrevistados contam as histórias mais variadas, desde serem contratados para passarem por familiares de uma noiva, posarem para selfies no Instagram, fingirem ser um namorado ou namorada, ou serem apenas correspondentes por email. No entanto, a grande maioria das pessoas que os contratam apenas querem companhia: para ver TV, ir às compras, ou simplesmente conversar.

Para quem trabalha nesta área, a motivação não parece ser o dinheiro – o valor que recebem por hora não é assim tão alto quanto isso (sobretudo num país caro como é o Japão), e a procura destes serviços é sempre incerta. Há quem diga que é o desejo de ajudar quem precisa de algumas horas de conforto emocional, ou quem o faça para quebrar a rotina de um emprego estável mas algo monótono. Alugar a nossa amizade a estranhos em troca de dinheiro parece estar algures entre um passatempo e a prestação de cuidados paliativos.

O que é que isso diz de uma cidade como Tóquio, tida como superdesenvolvida e onde há lugar para todas as excentricidades? E o que é que diz sobre a sociedade japonesa, que é supostamente tão correcta e amigável? A explicação dada no artigo é que no Japão, o importante é a fachada, o exterior impecável, a aparência de que está tudo bem. As pessoas não estão habituadas a mostrar o seu lado mais vulnerável, têm dificuldade em abrir-se com os outros. Não se tocam. Não exprimem as suas emoções. Psicologicamente, não estão bem, mas não partilham o que sentem, e não procuram ajuda – porque há um estoicismo, transversal a toda a cultura japonesa, que faz com que se vejam obrigados a aguentar tudo sem darem parte de fracos. Nas redes sociais podem até mostrar uma vida feliz, alegre e preenchida, mas muitas vezes tudo não passa de uma mentira.

Num país onde é normal ter um horário laboral diário de 10 horas e frequentemente o convívio se resume à família e aos colegas de trabalho – com o habitual distanciamento físico e emocional já firmemente incorporado nos hábitos sociais – sobra pouco espaço e tempo para construir amizades verdadeiras, e menos ainda duradouras. Num país que é tecnologicamente muito desenvolvido, culturalmente avançado (e esta é a explicação mais invocada para as reduzidas taxas de infecção e morte por covid-19 que o Japão tem mostrado), hiperprodutivo, politicamente estável e etnicamente homogéneo, esta incapacidade de ter e manter amigos parece coisa de ficção científica – e daquela mais pessimista.

Como latinos que somos (e optimista que sou), estou em crer que por cá a “moda” não irá pegar. Mas… este retraimento a que somos forçados há quase dois anos, somado à apetência cada vez maior pelos smartphones e à substituição de formas de entretenimento interactivas por quilómetros de scroll e horas passadas a jogar ou nas redes sociais, não são um bom indicador do que poderá ser o futuro próximo, sobretudo para as gerações mais jovens – que desconhecem o poder reconfortante das tardes à conversa com os amigos num qualquer café de bairro.

Miyazaki em Agosto

João Campos, 31.07.16

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Não será só Kubrick a regressar às salas de cinema lisboetas em Agosto: numa excelente iniciativa do Museu do Oriente, a cada domingo do mês serão exibidas obras dos Estúdios Ghibli, a grande casa da animação japonesa, tornada numa referência de culto pelo talento do realizador Hayao Miyazaki. Do mestre poderemos assistir ao seu último filme, The Wind Rises (que estreou há não muito tempo), e aqueles que serão talvez os seus dois filmes maiores: Spirited Away, que lhe valeu um Óscar, e (o meu preferido) Princess Mononoke, que envergonha qualquer filme feito em qualquer parte do mundo sobre o eterno conflito entre o mundo natural e o mundo tecnológico. Que se desengane quem (ainda) pensar que a animação é coisa de miúdos: por detrás da animação vibrante e colorida de Miyazaki em Mononoke está uma história adulta, ambígua e multifacetada, cujas questões que suscita não têm respostas fáceis, cuja violência em momento algum surge de forma gratuita, e cujo desfecho memorável não podia estar mais longe dos desenlaces delicodoces que fizeram escola no Ocidente com a Disney. Para quem, como eu, só teve a oportunidade de ver este filme num ecrã de televisão ou de computador, esta será uma oportunidade rara para poder apreciar a melhor animação japonesa no grande ecrã; quem nunca viu, ou quem desconheça a obra de Miyazaki, terá aqui a possibilidade de descobrir um dos grandes realizadores do nosso tempo. Garanto que valerá a pena. 

Quentes, rápidos e longos (3)

Sérgio de Almeida Correia, 14.08.15

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Com uma esplendorosa manhã de sol, uma temperatura amena para aquilo que foram os últimos dias, esta teria sido uma óptima ocasião para dar um passeio pela região de Fuji, fazer uma visita aos grandes lagos e dar um salto a Hakone.

Situada na parte leste de Shizuoka, com um clima agradável durante os meses de Verão, região de vilegiatura de muitos estrangeiros e locais, Gotemba é a cidade onde Akira Kurosawa se retirava para descansar durante largos meses. Nas proximidades da estação há um parque que noutros tempos serviu de morada à família imperial, e a meia hora de caminho fica o Fuji Safari Park. Apesar disso tudo, e de segundo me disseram ter centenas de lojas de marcas famosas, o que eu não fazia tenção de visitar, a cidade é mais conhecida por constituir a porta de entrada na região de montanha do Fuji. No centro da cidade é possível arranjar com facilidade transporte para passeios aos pontos mais elevados. Conhecida como a montanha onde vive um deus, foi a partir do final do século VIII que se tornou famosa. Nessa época, a Fuji-ko, uma seita religiosa cujo objectivo era escalar a montanha, inseria essa subida na sua preparação ascética. No chamado período Edo, entre o século XVII e meados do século XIX, o Fuji popularizou-se entre os habitantes da cidade. A forma actual da montanha terá sido adquirida há cinco mil anos, tendo sido fonte inspiradora de poetas e pintores. Com quatro vias principais de acesso (Yoshida, Subashiri, Fujinomiya e Gotemba), a melhor altura do ano para lá ir é entre Julho e Setembro. Todos os anos é fixado o período de ascensão, que varia em função das condições atmosféricas e da via de acesso, pelo que quem quiser lá ir convém estar prevenido. Entre a base e o topo há em regra uma diferença de 20 a 23.º Celsius (Gotemba está a 450 m de altitude). Há imensa informação, há hotéis e ryokans em fartura, mas que em determinadas alturas do ano esgotam rapidamente, convindo por isso reservar com antecedência. Esta foi uma dessas ocasiões, já que Gotemba não é só porta de entrada da montanha mas também a via mais fácil para chegar à pista que fica no seu sopé.

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Sem tempo nem companhia para a subida, em dia de corridas, cheguei ao circuito ainda a tempo do warm-up. Com tempos idênticos aos da véspera que serviram para a qualificação, os pilotos da Gainer estavam confiantes e bem dispostos. Depois seguiu-se a segunda corrida da Porsche Super Cup e, entretanto, aproveitei para circular pelo interior da pista, usufruindo das vistas, do azul do céu, e observando os espectadores. No exterior prosseguia a animação, com espectáculos musicais, sessões em simuladores e sorteios, logo antes de começar a romaria de espectadores para a volta pelo paddock e pelas boxes. Verifiquei depois que a maioria dos que ali estavam eram coleccionadores em busca de autógrafos e de memorabilia diversa, a maior parte dela inútil aos meus olhos, como leques de plástico com fotografias dos carros e das starlets, sacos de plástico, autocolantes da banda desenhada japonesa alusiva ao evento e aos carros, tralha que é oferecida em quantidades industriais pelas equipas e seus patrocinadores, um pouco à semelhança do que acontece noutras provas como no WTCC.

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Com uma carreira construída a pulso e fora de portas desde 1995, quando participou na Fórmula Opel Euroseries, vencendo no Estoril, a que se seguiu F3 na Alemanha e em Itália, a vitória na Taça do Mundo de 2000, em Macau, a Fórmula 3000, com um terceiro lugar em Nurburgring, e depois de ainda ter andado pela Fórmula Nippon, as World Series da Nissan e o ETCC, em 2004 o André participou pela primeira vez nos GT 500. Entre 2005 e 2012 competiu igualmente nalgumas provas do WTCC, conduzindo para a Alfa Romeo, a Honda e a Seat, mas foi nos Super GT que terá encontrado alguma estabilidade. Em 2014 esteve também presente na Blancpain Endurance Series.

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Durante muitos anos, apesar de ser um piloto extraordinariamente rápido e combativo, fosse por falta de carros e equipa suficientemente competitiva, por excesso de impulsividade ou simples falta de sorte, não mereceu em Portugal a atenção e o apoio devido da comunicação social nacional e de alguns patrocinadores. Nunca teve a projecção que o seu talento exigia e talvez por isso muitos portugueses não saibam quem é. No final de 2010 ainda passou pela provação de perder o seu filho Afonso, com sete anos, vítima de leucemia, num combate que ainda perdurará na memória de muitos pela solidariedade que mereceu dos colegas em todo o mundo e de milhares de anónimos para a causa do combate à doença e pela criação de bancos de dadores de medula. Apesar disso, o André não esmoreceu, fazendo jus ao seu profissionalismo e espírito de luta. Aquele que o trouxe até aqui. Pelo meio, para além das vitórias já referidas, registem-se o 2.º lugar no GT 500, em 2004, a vitória em 2005 nos 1000 Km de Suzuka e o 2.º lugar na Audi R8 LMS Cup China, em 2014, ano em que fez 21 corridas, conquistou cinco vitórias, esteve sete vezes no pódio, fez cinco pole positions e quatro vezes a volta mais rápida.

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Este ano, com um carro competitivo no Super GT, numa equipa de primeira linha e com colegas de equipa igualmente rápidos, com pistas com muitos milhares (este domingo foram 54.000), os resultados não podiam deixar de continuar a aparecer. A televisão e a imprensa japonesa e de outros países asiáticos acompanham. Popular em Macau, onde cresceu desde os 4 anos e foi o primeiro piloto local a vencer a corrida de F3, confesso que não esperava ver o que vi. Fui testemunha da popularidade de que o André goza no Japão, entre velhos e novos, dos ajuntamentos na traseira da boxe para o saudarem, da simplicidade e simpatia com que a todos atende. Registo em particular o modo como recebeu um pequeno fã, talvez com não mais de 6 anos, tímido na aproximação ao ídolo, com o seu caderno de autógrafos e a caneta na mão, e a quem o André chamou, colocando-o à-vontade, bem como a visita de um seguidor tailandês, fabricante de cristais, que fez questão de lhe ir oferecer duas peças com inscrições alusivas às corridas anteriores.

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Quanto à corrida, propriamente, depois de tocados os acordes do hino japonês, momento para o qual já me havia chamado a atenção pelo silêncio que o antecede, o André partiu em 11.º lugar da grelha e atacava o 5.º lugar quando recebeu um toque de um GT 500 que o atirou para o 12.º. Voltou à luta e quando terminou o seu turno de condução antes de passar o volante a Katsumasa Chiyo, colega de equipa que é acompanhado desde muito cedo pela Nissan, já estava de novo em 7.º lugar. Não é para todos. O GT-R terminou em 6.º. Sem o toque que levou teria chegado ao pódio, atento o seu andamento. O outro carro do Team Gainer Tanax, um Mercedes SLS AMG-GT3 conduzido pela dupla Hiranaka/Wirdheim, subiu ao 3.º posto.

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Com 78 kg a mais no carro, em consequência dos bons resultados anteriores que penalizam os melhores para a corrida seguinte, de forma a que seja mantido o interesse no campeonato, o Nissan GT-R com o número 10 conseguiu um excelente resultado. Com este resultado, o André, que tinha começado a corrida com um ponto de avanço sobre o 2.º classificado, saiu de Fuji 300 com mais cinco, aumentando a liderança no campeonato. A próxima prova é Suzuka e vai ser decisiva. Nunca um piloto português esteve tão próximo de chegar a um título do Super GT. Vamos todos torcer para que esse momento aconteça e esperar que nessa altura, já agora, as televisões nacionais consigam passar imagens dessa prova.

Eram quase 20h quando nos despedimos na estação de Mishima. Ele a caminho de Haneda. Eu de Shizuoka. Depois de um par de dias que nasciam muito cedo e passaram depressa, com muita adrenalina e muito calor. Na minha memória ficaram as felicitações que o André recebeu da equipa, de colegas e de adversários, e o quadro electrónico que a televisão apresentara horas antes. Quadro visto por milhões nos muitos países da Ásia/Pacífico para onde a corrida foi transmitida em directo. 

Os portugueses mereciam conhecer melhor um dos seus melhores. E que é, seguramente, depois de Venceslau de Morais, um dos que mostrando a sua arte mais tem engrandecido o nome de Portugal em paragens tão longínquas.

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Quentes, rápidos e longos (2)

Sérgio de Almeida Correia, 13.08.15

20150808_211956.jpgHá uns meses, pouco depois da inauguração de uma cervejaria de uma conhecida cadeia nacional, com as 21:30 a baterem e na sequência de um jantar ocorrido na semana anterior nesse mesmo local com um grupo de amigos alargado, quisemos repetir a dose na semana seguinte, embora fôssemos somente quatro. Assim que entrámos o empregado olhou para o relógio e a primeira coisa que nos transmitiu foi que não podiam dar-nos de jantar porque a cozinha fechava às 22:00. Um amigo comentou com a sua habitual bonomia e perspicácia que o tipo devia ser o delegado sindical, pelo que imediatamente saímos e fomos jantar à porta do lado. Dias volvidos, os jornais relatavam uma zaragata com o cozinheiro, com facas pelo ar, os empregados em debandada pela rua fora e a polícia a entrar por ali. História semelhante aconteceu-me em Faro, numa sexta-feira, há uns anos, mas aí tivemos melhor sorte do que um grupo de espanhóis que chegou depois de nós. Estávamos em Junho, numa capital de distrito dedicada ao turismo. Não tardou para que chegasse a crise e nessa altura começaram a fechar ainda mais cedo, ao mesmo tempo que se queixavam da governança. Alguns fecharam de vez.

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Lembrei-me disto porque ontem me atrasei a arrumar a papelada e a mandar as habituais mensagens para casa e quando saí do hotel já passava das 23h. Vi duas ou três portas abertas e acabei por entrar numa que me pareceu mais movimentada e acolhedora, exibindo numa pequena mesa um menu com fotografias, o que me facilitava a vida. Duas simpáticas camareiras desfizeram-se numa cantilena de boas-vindas incompreensível para os meus ouvidos, encaminhando-me para uma das salas do estabelecimento decorada com umas lanternas iguais às da fachada. Receoso, perguntei em inglês e gesticulando se me davam de jantar. É claro, estamos cá para isso, foi a resposta. O que quer beber? Já passava da meia-noite e meia, petiscados que estavam uns banais camarões e vegetais de tempura, e despachadas duas Kyrin, quando me lembrei da fotografia do crème brûlée que vira na ementa e quis encerrar a solitária refeição. À saída reparei que a hora de encerramento da cozinha era às 23.30 mas ainda entrou mais um casal quando recebia o troco. Enfim, diferenças.

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Infalivelmente, às seis da matina, tocaram o despertador e o telemóvel, que por aquelas bandas não há serviço de despertar na recepção. Pelo que, ainda mal refeito da chinfrineira das cigarras durante toda a noite, que nem o ar condicionado do quarto abafava, e de tal forma que cheguei a pensar serem pássaros noctívagos ou com as horas trocadas, a muito custo levantei-me. O jet lag ficará para outra altura. Havia que me pôr ao caminho. Primeiro o comboio até Numazu, depois a mudança de linha até Gotemba, onde pela primeira vez, depois de várias tentativas, consegui vislumbrar em toda a sua plenitude os 3776 metros do Fuji-san, desde 2013 declarado património mundial. Sem nuvens, mas também sem neve para grande desconsolo. Só um farrapo sobrava na vertente sul. 

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Há muito que sonhava em fazer esta viagem. Quando em 1976, o título mundial de Fórmula 1 se discutiu na lendária pista de Fuji, num duelo em péssimas condições atmosféricas entre Nikki Lauda e James Hunt, que viria a dar o título ao segundo depois de uma corrida em que acabou em 3.º lugar, jurara a mim mesmo ir um dia ir a Fuji, num dia grande. E esse dia surgiu quando vi o calendário do campeonato japonês de Super GT. Havia a alternativa de ir a Suzuka, no final do mês, mas a perspectiva de poder acompanhar em Fuji o actual líder do campeonato não me permitiu pensar duas vezes. Com o segundo lugar obtido na corrida de Buriram (Tailândia) só havia uma hipótese: é para Fuji e é já.

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Depois de recolhido o meu passe junto ao West Gate do Fuji Speedway, e de uma volta rápida pela parte principal do circuito, junto à bancada principal, onde estão expostas as novidades, se vende de tudo e há animação e sessões de autógrafos das novas estrelas, as meninas ao serviço das marcas, vestidas (ou despidas) a rigor, e que têm direito a atenção própria, fui à procura do meu "anfitrião", a quem devo a generosidade de, tendo sabido da minha deslocação e interesse no Super GT se prontificou de imediato a dar-me preciosas indicações e a tratar do mais importante: a minha liberdade de circulação e visão integral do evento. Pelo caminho reparei na quantidade de famílias completas – avós, pais e filhos, alguns ainda nos carrinhos de bebé – que se iam instalando, desde muito cedo, montando tendas e cadeiras, preparando os canhões fotográficos, num espectáculo como há muito não via, habituado que estava ao desolador deserto das pistas portuguesas. Quando em Maio passado soube que na prova que aqui se disputara tinham estado mais de 90 mil espectadores, ou seja, mais 40 mil do que na prova idêntica em SPA Francorchamps (Bélgica), perdi as poucas dúvidas que ainda poderia ter sobre a grandeza do Super GT. Como então alguém escreveu, “é Super GT por alguma razão”!  

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Convém dizer que o campeonato de Super GT, criado inicialmente em 1994 com o nome de All-Japan GT Championship, viu as suas regras técnicas serem unificadas com as do DTM em 2014. Actualmente, os seus carros da categoria 500 são mais rápidos do que os do campeonato alemão, pelo que será aceitável dizer-se que é o mais competitivo campeonato de carros de GT (Grand Touring) do mundo. Com duas classes, uma de 500 e outra de 300, para se perceber o grau de competitividade bastará verificar que é normal haver mais de uma dezena de carros a fazerem tempos por volta dentro do mesmo segundo, isto é, com diferenças de milésimos. Este sábado, na classe GT 500, houve dez carros a rodarem com diferenças por volta inferiores a um segundo, e na classe GT 300 foram 13. Basicamente, os GT são carros de grande potência, capazes de rodarem a alta velocidade em longas distâncias, razão pela qual há corridas de 300, 500 e 1000 KM, com dois ou três pilotos por carro e muito movimento nas boxes. Estão lá todos os maiores construtores japoneses (Lexus, Toyota, Honda, Nissan e Subaru), mais alguns europeus (Mercedes, BMW, Porsche, Audi, Lamborghini, Lotus e Ferrari), entre equipas de fábrica, oficiais, semi-oficiais e privados. As equipas são todas profissionais, a tecnologia é a mais desenvolvida que se possa imaginar, com directores de equipa e patrões que foram antigos pilotos de Fórmula 1, de carros de turismo e de protótipos, encontrando-se por vezes na mesma equipa duas gerações da mesma família. Nomes como Nakajima, Suzuki (Yutaka e Aguri), Kondo, Hoshino ou Noda são habituais nestas andanças. E ao contrário do que se possa pensar, o Super GT não tem só participantes japoneses. Neste momento também correm regularmente italianos – Quintarelli e Caldarelli -, alemães – Jorg Muller, Michael Krumm, Christian Mamerow –, ingleses – Rossiter e Oliver Turvey –, um belga – Bertrand Baguette, um finlandês – Heikki Kovalainen –, um suíço – Alexandre Imperatori –, um sueco – Bjorn Wirdheim, um brasileiro – João Paulo de Oliveira – e, last but not the least – o português André Couto, que corre sob bandeira de Macau, por razões perfeitamente compreensivas e que mais adiante veremos, mas que continua a ser identificado como piloto nacional. O catálogo oficial não enganava pela bandeira colocada à frente do seu nome, bandeira que não é a que ele transporta no carro nem no seu fato de competição.

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O programa incluía ainda uma corrida da Porsche Super Cup e outra de Fórmula 4, mais os respectivos treinos, sendo que a segunda se trata de uma fórmula de promoção de jovens pilotos, colocada no patamar logo a seguir ao karting, com veículos de fabrico local em que a maior parte dos componentes são ainda em alumínio e não em carbono ou de outro material mais sofisticado. Depois de terem andado a importar carros de outras latitudes, os japoneses e a sua poderosa indústria automóvel optaram por criar uma fórmula local que está a ser um êxito.

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O enquadramento do circuito é fabuloso, em plena comunhão com a natureza e com um traçado que me fez recordar a nossa magnífica pista de Portimão.

Feitas as apresentações e passada uma primeira vista de olhos pelos carros, circuito e instalações, onde ressaltava a boa organização, o rigor no cumprimento dos horários e a forma como tudo se encaixava e evoluía, pude então começar a ver as coisas com mais atenção.

20150809_122038.jpgDurante todo o dia de sábado acompanhei os treinos do Super GT com a equipa Gainer Tanax GT-R, aquela onde corre o homónimo do nosso companheiro daqui do Delito de Opinião, e que foi a razão maior da minha deslocação a Fuji. É que o André Couto é o líder do campeonato japonês de Super GT 300. Há algumas semanas, um outro piloto nacional que tem mostrado a sua classe nas pistas europeias, venceu uma prova do campeonato alemão DTM. Não foi um escândalo porque o António Félix da Costa tem muita categoria. De outra forma não estava lá, como também não estaria o André na Gainer. Mas agora imaginem o que seria se um português fosse à quarta prova o líder do DTM correndo num carro de uma equipa semi-oficial. Pois bem, salvaguardadas as distâncias, é o que neste momento acontece no Super GT 300. Sobre isso e André Couto deixarei aqui umas linhas noutra altura. Até lá ficam algumas imagens do Super GT.

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Quentes, rápidos e longos (1)

Sérgio de Almeida Correia, 12.08.15

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É sempre estranho chegar a locais que não são conhecidos pelo frio de rachar ou calor de morrer que por lá costumam fazer, como foi o caso, e sentir que tinha acabado de entrar numa estufa. Já antes sentira calor em Tóquio, mas chegar ao Aeroporto de Narita, num final de tarde, com 38.º Célsius e a sensação de mais de 40.º era para mim algo de inimaginável. Mas aconteceu. Tirando isso, regressar ao Japão é sempre motivo de satisfação. Pela simpatia desse povo, pelo seu altíssimo grau civilizacional e pela beleza das suas paisagens.

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Desta vez ia com um propósito bem definido, e embora com tempo limitado teria de aproveitar os 4 dias em que por lá estaria para me aperceber de eventuais mudanças que entretanto tivessem ocorrido desde a minha última viagem, há 15 anos. A minha chegada ocorreu no dia seguinte àquele em que se completavam 70 anos sobre o lançamento da primeira bomba em Hiroshima. Desta vez não fui até esta cidade, tendo-me limitado a fazer o percurso de cerca de 200 quilómetros entre Tóquio a região do Fuji, no município de Shizuoka.

Logo à chegada, verifiquei que o asseio e a organização eram os mesmos de sempre. Apesar de num espaço de tempo curtíssimo terem aterrado uma dúzia de aviões, não estive mais de quinze minutos para me desenvencilhar das formalidades do passaporte. É claro que viajando sozinho, com um documento de viagem europeu e praticamente sem bagagem, fui convidado a esclarecer no controlo alfandegário o que ia lá fazer e a mostrar a minha, não fosse eu, com a minha tez estival a dar ares de marroquino, ser um perigoso bombista ou traficante. Sempre com simpatia, educação e desmesuradas desculpas pelo incómodo. Assim que se apercebeu das minhas intenções, o funcionário imediatamente me arrumou a bagagem, ao contrário do que noutros países sucede em que depois de tudo desarrumarem despacham o viajante de mala ainda aberta, com os pertences desalinhados e não raro espalhados pela bancada, ao mesmo tempo que me desejava uma boa estadia.

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Segui então o meu caminho, coisa fácil num país cujo sistema de transportes, públicos e privados, continua a merecer a minha admiração. Numa cidade de milhões em que jamais me perdi e não há papéis pelo chão, nem beatas, embora continue a haver fumadores e se possa fumar nos restaurantes, por sinal todos com excelentes extracções de fumo e de onde não se sai a cheirar a fumo ou a fritos, nem incomodado pelo tabaco do vizinho, continua a ser um prazer utilizar os seus transportes. Continuo a pensar que pela organização, a higiene e os modos no trato se vê o alto nível civilizacional de um povo. E nisto os japoneses são exemplares. Quando me recordo do espectáculo de algumas casas de banho do Alfa Pendular, logo à saída de Faro, ou das reclamações que tive de fazer na Portela e em áreas de serviço das auto-estradas portuguesas em razão da falta de higiene das casas de banho, uma pessoa não pode deixar de pensar no nosso endémico atraso perante instalações que servem diariamente milhares de utentes mas onde não faltam dispensadores automáticos de sabonete líquido, com conteúdo, onde tudo brilha e funciona e não se sente nojo em entrar. Este nível cívico reflecte-se nas carruagens dos comboios, nas paredes das suas estações de comboios, edifícios e monumentos, onde não se vê um grafito. E, no entanto, são milhares e milhares de jovens, com ar asseado, desprendido e descontraído, sorridentes, alguns muito compostos nos seus uniformes, elas de minissaias muito curtas, orgulhosas na sua elegância, outros com o cabelo pintado de louro, com madeixas azuis ou verdes, a caminho das escolas ou de instalações desportivas, com os seus sacos, as suas raquetes de ténis – a nova loucura da juventude japonesa estimulada pelos êxitos de alguns dos seus nos circuitos do ATP –, bolas de futebol e equipamentos de basebol. Uns conversando, outros ouvindo música, ou divertindo-se com os seus smartphones do último grito.

Gente composta, gente que fala em tom moderado, gente que sabe comportar-se, seja na fila do autocarro ou nos apertos do comboio, gente disponível, apesar de nem sempre parecer muito aberta e de muitas vezes, em especial fora das regiões mais desenvolvidas e com maior afluxo de turistas, não dizer uma palavra de inglês.

O caminho até Shizuoka, no Hikari 539 com destino a Nagoia, uma verdadeira bala da última geração de comboios, e depois para Shimizu, devido ao facto de não haver em Gotemba um quarto disponível há várias semanas, num comboio suburbano tão cheio quanto o TGV deles, passou num ápice. Sempre à tabela, num estado democrático.

No meu destino, já com menos uns graus do que aqueles que encontrara em Tóquio, fui para o hotel. Recebido pelo meu nome próprio e um sorriso de orelha a orelha num modesto mas muito decente hotel de província, com todo o conforto de que um viajante precisa, rumei ao meu quarto. Era altura de tomar um duche e preparar o dia seguinte, que se previa longo, antes de poder iniciar a aventura do jantar e começar a respirar o ar puro da região.

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Abenomics

José António Abreu, 02.05.13

O termo deriva do nome do primeiro-ministro japonês eleito em Dezembro passado, Shinzo Abe. Tentando contrariar duas décadas de marasmo da economia, afogada em dívida e deflação, presa a um iene demasiado forte para os interesses das empresas locais (quase todos os grandes grupos japoneses têm apresentado prejuízos e perdido terreno para os seus congéneres coreanos e chineses), Abe propõe-se aumentar a concorrência em sectores até agora protegidos (a energia, três vezes mais cara do que na Coreia do Sul, é fornecida em regime de quase monopólio por um conjunto de empresas regionais; existem barreiras à entrada de produtos agrícolas, sendo os agricultores o grupo que mais contesta a eventual adesão do país à Parceria Trans-Pacífico), bem como aplicar um conjunto de medidas radicalmente expansionistas, das quais se destacam um estímulo fiscal de 107 biliões de dólares e uma atitude mais interventiva por parte do Banco do Japão – cujo novo presidente, Haruhiko Kuroda (uma escolha de Abe), anunciou há cerca de um mês pretender comprar 70% de todos os novos títulos de dívida pública e duplicar o dinheiro em circulação no prazo de dois anos. Abe tem ainda pedido às empresas privadas para aumentarem salários mas sem grande êxito.

 

Como seria de esperar, Paul Krugman aplaudiu. Outros economistas da escola keynesiana também. Naturalmente, há vozes menos entusiásticas, algumas das quais afirmam que o Japão apenas acelerou o trajecto para a bancarrota. Veremos. Para já, tanto os mercados como os empresários locais estão satisfeitos. Desde Novembro, o iene desvalorizou cerca de 25% em relação ao dólar e o índice Nikkei subiu mais de 50%. Mas estas eram reacções expectáveis. Primeiro pela tão falada questão da psicologia dos mercados. Depois por quase ainda não se ter saído da fase da retórica. Finalmente porque, a existir, a factura demorará algum tempo a chegar. Seja como for, não obstante todas as particularidades da situação japonesa (deflação, mais de 90% da dívida detida internamente, capacidade de inovação de muitas empresas, diferenças culturais que se reflectem na preferência por produtos nacionais, forte possibilidade de atritos políticos e comerciais com a China, etc.), trata-se de uma experiência que outras partes do mundo, igualmente atoladas em dívida (e, no caso europeu, com assimetrias difíceis de gerir no quadro de uma moeda única), acompanharão com interesse. Seja para acabarem cedendo às vozes dos que nelas desejam fazer o mesmo (e entenda-se por «o mesmo» a parte pública e expansionista do plano, não a da liberalização de mercados), seja para validarem a posição oposta e aproveitarem os fluxos de capitais em fuga.

 


Dois artigos sintéticos sobre o assunto: um do Economist (razoavelmente entusiasta), outro da edição em inglês da Der Spiegel (razoavelmente neutro). Numa espécie de comentário à discussão sobre o estado da imprensa portuguesa que, entre outros colaboradores e vários comentadores do Delito, a Patrícia Reis e o João Campos tiveram mais abaixo (1, 2), devo dizer que encontrei muito pouca informação sobre este assunto nos sites dos principais jornais portugueses (a excepção será o Jornal de Negócios mas num artigo para assinantes).

 

Imagem daqui, através do Bing.

Ali mesmo no meio

José Navarro de Andrade, 22.11.12

 

Quem aterrasse nos anos 80 no antigo aeroporto de Hong Kong tinha direito a pelo menos dois pavores. O primeiro era temer que o avião se despenhasse sobre as casas. De tal modo se rasavam os telhados que havia quem jurasse ter visto o branco dos olhos da senhora que pendurava roupa no último terraço antes da pista. O segundo era a pista, propriamente dita, uma fitinha de cimento a entrar pelo mar adentro. A mais leve guinada e o mergulho era certo.

Dado a outro tipo de impressões, o que me chamou a atenção foram uns armazéns de carga ostentando o nome de Far East Company – onde fica o extremo oriente quando já estamos no extremo-oriente?

Há poucos países que se designam pela sua posição geográfica; assim de repente ocorre a famosa República Centro Africana. Mas há outros casos, muito mais subtis porque bem disfarçados pelo nosso própria cultura. “China” por exemplo é um nome de origem sânscrita que aparece no Ocidente pelo punho de um navegador português, designando um país até aí conhecido como o reino de Cataio. Toda esta nomenclatura é, evidentemente, estranha aos locais, que chamam à sua terra Zhongguo, uma palavra que significa Império do Meio. No meio, no centro, de quê? No centro do mundo, claro.

E se alguém julgar que isto é vaidade de autóctones fique sabendo que até os vizinhos acatam esta assumida centralidade. Nomeadamente os daquele reino que por se encontrar a leste do centro se denomina como “terra do sol nascente”, ou nippon na língua local, que gerou o exónimo Japão.

planisferio japones.png

mapa mundi escolar japonês 

planisfério chinês

 

Sendo a cartografia uma pura convenção, nós, ocidentais, decidimos partir o planeta pela Linha Internacional de Data (outra pura convenção) que a norte passa pelo estreito de Bering. Esta dobra é inconveniente senão insultuosa a quem considera, com toda a legitimidade, que está no centro e assim se vê remetido a um canto. Donde que noutros lugares a cartografia tenha uma feição bem diferente da nossa como se pode ver nos exemplos acima.

Uma certa senhora, um pouco menos desinformada do que destrambelhada, começou por dizer que “nós não estamos na periferia de nada”, uma frase vacuamente patriótica, embora não de todo insensata. Mas nas justificações, como de costume, foi ter à farsa. A seguir exclama: “nós estamos no centro do mundo” e depois aponta: “se olhar bem a nossa posição geográfica no globo, estamos no meio.”

Havendo mais alguém que presuma ser possível estar no meio da superfície de um globo, faça o favor de levantar a mão.