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Delito de Opinião

A democracia e a liberdade de expressão

José Gomes André, 20.02.13

Não tenho apreço político por Miguel Relvas. Não lhe vislumbro qualidades assinaláveis e considero-o um elemento tóxico no Governo, pelas polémicas em que se viu (e vê) envolvido, às quais ainda não deu resposta esclarecedora. Todavia, o que aconteceu no Clube dos Pensadores, em Gaia, e no ISCTE, em Lisboa, não pode merecer elogios. Uma coisa é manifestar-se desagrado público pela governação, algo perfeitamente legítimo e até elogiável em várias circunstâncias. Outra coisa diferente é utilizar uma manifestação para intimidar fisicamente uma pessoa ou impedi-la de exercer a sua liberdade de expressão.

E se o primeiro exemplo não me incomoda especialmente (é um caso de polícia ou porventura dos tribunais), o segundo deixa-me muito incomodado. O orador pode ser um crápula, um imbecil, até mesmo um "fascista" (como lhe chamaram), mas aquilo que distingue uma democracia consolidada é a sua capacidade para proteger os valores democráticos em qualquer circunstância. Calar um homem porque se discorda dele, com o objectivo de "proteger a democracia", é tão idiota quanto pretender extinguir o oxigénio do planeta para acabar com os fogos.

Sim, estou a parafrasear James Madison. Ele sabia muito bem que a liberdade de expressão não existe para que os tiranos sejam silenciados. Existe para que os tiranos falem e nós lhes possamos responder, denunciando as suas falácias. Isso - e não a limitação de uns para benefício de outros - é que é a democracia.

James Madison, pioneiro intelectual

José Gomes André, 18.05.12

Vai animada a discussão na blogosfera sobre o liberalismo americano e a figura de James Madison (entre o Samuel Paiva Pires e o Miguel Castelo Branco), que aliás até começou por se centrar na importância do contributo americano para um hipótetico federalismo europeu (ver Paulo Marcelo,Samuel Paiva PiresNuno Pombo e João Vacas, entre outros).

 

Em relação a Madison - e depois de ter escrito 400 páginas sobre o senhor - tenho dificuldade em avançar com opiniões sintéticas. Mas vale a pena tentar, pelo menos para sublinhar quão injusto é descrever a sua obra como "menor" ou "pouco original". Tal visão deriva de um erro comum - associar Madison quase exclusivamente ao "The Federalist" (1787-88) - quando, na verdade, a sua obra completa preenche mais de 50 volumes, com milhares de discursos, artigos de jornal, panfletos, cartas e peças de ocasião. Com efeito, os 29 textos que Madison escreveu para o "The Federalist" correspondem a menos de 1% da sua obra, que se espraia até 1836! Só quando consideramos esta imensa vastidão podemos apreciar verdadeiramente a sua relevante herança teórica.

 

Na realidade, Madison foi o primeiro autor a tematizar a ideia de federalismo, na sua dimensão teórico-conceptual e prática. Foi também o primeiro pensador a defender claramente as virtudes do pluralismo para uma sociedade livre, quebrando com o preconceito europeu nesta matéria (que fazia equivaler eficácia a homogeneidade). Madison foi ainda um dos primeiros autores a advogar o paradigma activo da liberdade religiosa (direito natural do indivíduo) por oposição ao conceito passivo da "tolerância" (mera concessão do governante). Foi o primeiro autor a defender abertamente as vantagens dos partidos para a vivência democrática. E foi um dos primeiros a abordar questões-chave do pensamento político moderno como o constitucionalismo, a ideia de cidadania, o princípio do "filtro representativo" e as virtudes da liberdade de imprensa. Já chega para pertencer ao Panteão dos grandes pensadores do Ocidente?

 

Quanto ao federalismo europeu e o "exemplo americano", remeto para um texto que escrevi há uns meses, destacando o seguinte trecho: "A preferir um verdadeiro federalismo, a Europa não se pode dar ao luxo de rejeitar um profundo debate teórico sobre os seus fundamentos. Neste contexto, é particularmente importante reaprender com o passado, enquanto se prepara um futuro alicerçado em soluções próprias. O caso norte-americano deve ser aqui peça modelar essencial, pelas suas inúmeras lições. Umas, históricas (federalismo americano também se ergueu sobre a cacofonia de treze Estados independentes e com poucas ligações entre si, após uma espinhosa crise institucional que se seguiu à Revolução). Outras, conceptuais: a importância de criar equilíbrios institucionais numa república federal (para não tornar opressiva nenhuma das estruturas políticas envolvidas); a necessidade de alicerçar a união política numa sanção popular; e o elogio do pluralismo, uma vez que a diversidade não é um obstáculo, é uma bênção."

 

[também no Era uma vez na América]