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Delito de Opinião

As malvadas democracias

jpt, 03.09.24

Espada de D. Afonso Henriques em foco - Portal de notícias do Porto. Ponto.

(A espada "de D. Afonso Henriques", imagem não gerada por Inteligência Artificial)

 

São-nos constantes as mistificações sobre passado e presente - cônscias ou involuntárias, cândidas ou interesseiras (parelhas cujos pólos não têm quaisquer correlações). Como deverá ser evidente, para a sua criação, sua reprodução e sua cremação é fundamental a liberdade de expressão. Em particular a liberdade de publicação, de imprensa e não só. As sociedades democráticas têm maiores quinhões dessa liberdade. E as digitalizadas exponenciaram-na. 

Ela é manipulável, nisso sendo moldadas as percepções do real, sendo até agente do antes dito "obscurantismo". Os exemplos são imensos e continuados. Cada um reconhecerá alguns mas de tantos outros nem dará conta, e assim desses sendo fruto. É um molde muito constituído pelas práticas da comunicação social, tanta dela pertencente a grupos económicos, nacionais ou globais, mais ou menos pessoalizados, e deles instrumentos mais lineares (veja-se o simbólico "Citizen Kane", já com 80 anos...) ou mais matizados. Na sua adesão a interesses privados específicos (como a junção siamesa de décadas entre o popular "A Bola" e a empresa Sport Lisboa e Benfica). Na militância seguidora do "a verdade a que temos direito" dos orgãos partidários, oficiais ou oficiosos (que não se restringem aos explícitos "Avante", "Portugal Socialista" ou quejandos). No controlo estatal, directo e indirecto, da imprensa pública e privada (quais os casos da prima e do filho do futuro presidente do Conselho Europeu, para além das pressões avulsas, mas constantes, das plêiades de "administradores não executivos"). E reforça-se pelo conúbio, assalariado ou avençado, dos profissionais da palavra pública (olhai o episódio da animadora do serviço público televisivo, Cautela, literalmente esfregando-se no deputado socialista Magalhães, em horário nobre apregoando-lhe a lei tão censória que teve de ser emendada; ou o caso dos prostitutos socratistas dos blogs "Jugular" e "Câmara Corporativa", alguns dos quais ainda "por aí andam" nos círculos do poder). E um imenso etc. de configurações.

Mas é também neste feixe de imprensa - ainda que esta muito menos rizomática do que possa parecer - típico das sociedades democráticas que grassa a contraposição, a possibilidade de nos depurarmos de muita da tralha que é disseminada. Esclarecendo um pouco, no mitigar do tal "obscurantismo", da velha "alienação" a la Marx. Ora, se (já) não sendo monopólio do "ocidente", estas liberdades predominam no tal "mundo ocidental", as democracias liberais de tipo "europeu".

É agora interessante assistir a serem os avessos a este tipo de sistemas políticos, os efectivos - mesmo que não explícitos - adeptos de regimes autoritários e/ou ditatoriais, que surgem em constantes "denúncias" do iminente apocalipse da liberdade. Anunciando como sintoma desse "fim de ciclo" o facto de as suas opiniões não serem maioritárias e queridas.

A nossa agenda noticiosa - e, de facto, também a política - está dominada por duas guerras, já desgraçadamente rotineiras. A de Israel, sobre a qual já disse estar cansado, pois há mais de 50 anos que aparece na tv. Resmunguei apenas ser a reacção israelita completamente destemperada, e gigantescos serão os seus custos, para aquele país e seus aliados. E parece-me óbvio - mesmo sem ser grande adepto de teorias conspiratórias - que aquele extemporâneo ataque do fascismo islâmico foi uma magistral jogada geoestratégica.

Pois liga-se (qual bater de asas de borboleta) à outra guerra afamada, a ucraniana. Sobre esta não tive ilusões, a Ucrânia seria vencida. Mas, e sem detalhar aquela alvorada bélica, lembro alguns episódios, pois significativos para hoje: a perspectiva russa de uma rápida vitória, assente na ideia da inexistência ucraniana - com as suas tropas de imediato "às portas" de Kiev, Putin apelava à adesão dos "ucranianos" (e uso aspas porque toda a manobra, militar e discursiva, sinalizava a crença na artificialidade, ilegitimadora ,daquele país) à investida russa, como se esta "libertadora". E o seu apodar do poder de Kiev como conjunto de "nazis" e "drogados" (e, por vezes, "judeus"), "golpista", acinte apontando à sua ilegitimidade.

Argumentos e epítetos que colheram apoio entre os adversários das democracias - desse rol lembro o escritor Agualusa clamando na imprensa brasileira "estou na Ilha de  Moçambique" (fica sempre bem dizer isso) "contra os nazis que alguns dizem defenderem a democracia" (+/- sic). A forma barrasca como o execrável António Filipe do PCP referiu  Zelensky quando este visitou verbalmente São Bento. Ou a comunista Mortágua, acusando os americanos pela crise, e defendendo o direito  da Rússia defender o seu "espaço vital" - um argumento, esse sim, nazi. Logo recompensada pelo seu partido com a promoção à sua chefia, sintoma do estado degenerado daquela amálgama esquerdista. Entre os antidemocratas europeus "à direita" grassou o mesmo repúdio ucraniófobo, ainda que por cá entre as figuras mais públicas, para além de um ou outro patusco Tânger, tenha reinado o silêncio. 

É também de lembrar a heterogénea reacção "ocidental" (da NATO e seus aliados), então tão dita como sintomática de "fragilidade" e "decadência". Nada li agora de especial sobre o assunto, as relações internacionais não são o meu ofício, mas até a esta vista desarmada, e memória distraída, foram notórias algumas diferenças: o prolongado esforço diplomático de Macron junto a Putin, as delongas alemãs no apoio militar, o peculiar rumo turco, o susto báltico e escandinavo, a bem posterior investida papal, etc.

São distinções relevantes pois os antidemocratas - à "esquerda" e à "direita" -, insistem ser a culpa desta guerra do "ocidente", das sociedades democráticas. Sempre tomadas como um todo, homogéneo e agressivo. O que é denotativo: os adversários da democracia são, por associação, antieuropeístas. E sempre apontam à "Europa" a fragilidade da sua multilateralidade, da sua complexa arquitectura política-administrativa. Disso ilustração foi o caso do arrogante sofá de Erdogan. Mais ainda o desprezo de Trump diante de uma "Europa" que segue sem um presidente. Sobrancerias próprias dos ideários autocráticos, sempre apreciadores de poderes armados de único (e enorme) falo. Ou - pois nesta era de igualdade de género - de também único (se ávido de voluptuoso) clitóris. Mas estes "inimigos internos" depois surgem como se cegos à diversidade entre as dezenas de democracias, reduzindo-as a uma unicidade. O que não lhes é contradição analítica, mas apenas efeito das retóricas por cardápio, embrulhadas como se augúrios fossem. Pois a escatologia tem sempre algum apelo.

Um dos tópicos deste pensamento mágico antidemocrático, de índole comunista ou de índole fascista, é a tal proclamação do estertor das "liberdades". A este propósito aqui mesmo Luís Naves proclama o fim - no tal "ocidente" das democracias, presume-se, pois é o único contexto aludido - da liberdade de imprensa e o baixar da liberdade de expressão aos cuidados paliativos. Tudo por culpa, e nisso vem insistindo, da perfídia europeia/democrática - e da "emasculação" (passe o termo) dos títeres seus dirigentes, ilegitimados eleitoralmente e assim fragilizados face a oponentes, esses sim verdadeiros líderes pois untados de legitimidades, históricas presume-se.

Ao ler isto lembrei-me de um caso semelhante. Há dois anos e meio 20 intelectuais portugueses, oriundos, grosso modo, do "espectro do comunismo", disseram o mesmo sobre o fim da liberdade. Queixaram-se de serem silenciados, perseguidos e até criminalizados, devido ao seu efectivo apoio (vá lá, pelo menos afectiva complacência) aos inimigos da NATO. Eu sobre isso escrevi o "A Empáfia Hipócrita", irado com o desplante daquele grupo. Conviria, passados estes dois anos e meio, indagar sobre quais e quantos desses intelectuais portugueses foram, de facto, efectivamente silenciados, perseguidos. E criminalizados. Devido à sua sanha antiamericana e antieuropeísta. À sua militância antidemocrática. E quando se encontram agora os veementes clamores sobre o estertor da democracia, cá e alhures, será de comparar com este caso.

Ou então, e de modo muito mais abrangente, questionarmo-nos sobre nós próprios. Cada um, com os respectivos defeitos, incompreensões, vieses, paixões, limites, "desinformação" em suma, está com a Orbe? Ou com Orban? É uma pergunta relevante, pois - e independentemente dessa mediocridade de cada um de nós -, nesses pontos de (tomada) de vista defendem-se coisas diferentes. Amam-se coisas diferentes. Mais do que tudo, pensam-se futuros diferentes. E, mais importante, é nesses limites, apenas sob eles, que é possível pensar.

Sobre Israel aqui

jpt, 15.12.23

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Nunca me dediquei a leituras detalhadas sobre a temática Israel, pois nunca me foi assunto prioritário. Nem mesmo apenas relevante. Nunca visitei a região - o mais perto que cheguei foi Chipre... A minha atenção sobre temas internacionais, que não é profissional, ancorou-se noutros sítios, noutros continentes. Pouco sei sobre a história daquela área, e pouco sei sobre as últimas décadas, as do pós-II Guerra Mundial, as do estabelecimento do país Israel, e de vários outros vizinhos... E o estado crónico daquele conflito - do qual fui vendo notícias desde a mais tenra idade, pois lembro-me de estar perto do meu avô materno, que morreu aos meus 8 anos, assistindo a Moshe Dayan e Arafat no telejornal - também me convocou a um fastio sobre tudo aquilo.

Escrevo em blogs. É uma escrita amadora. Ou seja, não é remunerada, economica ou estatutariamente. E não tem agenda, nem própria nem, muito menos, encomendada. É diarística, sem intimismos. Escrevo sobre os temas que me interessam, muitas vezes reactivamente, outras vezes radicado nos meus gostos ou no meu quotidiano. Assim sendo é uma escrita irresponsável - ainda que às vezes possa procurar um objectivo (como hoje, no meu blog pessoal proponho aos leitores uma boa prenda natalícia, um recente livro de um bom amigo meu). Mas é irresponsável pois não tem a tal "agenda" - não é militante (ou "activista", como agora se diz) -, não é lucrativa - ninguém me arranja trabalho remunerado através desta verborreia -, e, acima de tudo, porque não é editada. Ou seja, não é publicada num órgão de comunicação social, assim difusamente subordinada a algum tipo de responsabilidade social, de cariz noticioso por exemplo. Em suma, escrevo em blogs sobre o que me apetece. E ninguém tem rigorosamente nada a ver com isso, com o meu cardápio.

Dito tudo isto, é totalmente absurdo que os leitores me venham a cobrar (e a outrem) o não ter escrito sobre um qualquer assunto. Sim, é normal, e até simpático, que os leitores do meu blog, ou do colectivo no  qual participo, proponham temas. E/ou perguntem a opinião do bloguista sobre algum assunto. Mas é anormal, e até grotesco, que reclamem que não se escreva sobre determinada matéria. E isso por defeito, entenda-se: por característica essencial... pois trata-se de um blog.

Pior ainda, mais grotesco, quando se invectiva um silêncio quando  este inexiste. Nos meus últimos postais - e não só nos meus - há comentários (normalmente anónimos) reclamando, como se defeito digno de opróbrio, o meu silêncio sobre a questão de Israel e Gaza. E fazem-no com acinte. Tendo eu ontem publicado um postal comovido, dado o assassínio de alguém que conheci pessoalmente, amigo de amigos, meu editor durante anos num jornal em Moçambique, recebi comentários desse tipo - até mesmo num postal com esse conteúdo, caramba! Um energúmeno  anónimo atreve-se mesmo a dizer que "me fica mal" escrever sobre o assassínio de um conhecido, companheiro, dado que não falo sobre Gaza e suas cercanias. Outros comentadores habituais vão no mesmo rosário.

Ora, e mesmo para além de tudo o que já avancei, desde o vil ataque terrorista do partido fascista Hamas eu deixei aqui quatro postais sobre o assunto: recomendei um excelente e assisado documentário sobre a história da região, transmitido na SIC Notícias, o "A Origem de um Conflito", relevante para evitar interpretações acaloradas sobre tudo aquilo; recomendei a leitura dos livros de Joe Sacco sobre a história e actualidade de Gaza, de indiscutível denúncia daquela situação (e lembrei que até escrevera um texto longo sobre essa abordagem de Sacco); referi a necessidade de tino na tomada de posições favoráveis à causa palestina; e explicitei o meu estupor diante da reacção militar israelita. Ainda assim, no país onde vivi 18 anos, espancam até à morte o meu antigo editor, isto enquanto a polícia abate jovens manifestantes na sequência de umas eleições reconhecidamente aldrabadas, e há aqui energúmenos, vis anónimos, que se atrevem a colocar em causa a decência e a legitimidade do que coloco. Devido a não escrever sobre o que eles querem, a não dizer o que eles querem...

Avanço então duas ideias: a primeira é sobre que penso sobre a actual situação em Israel, não para julgar a história mas para pensar presente e futuro. Está explícito nas declarações do vice-chanceler alemão Robert Habeck e do primeiro-ministro britânico Rishi Sunak (no seu segundo filme a partir dos 4 minutos...)

Israel/Palestina? A reler Sacco

jpt, 27.11.23

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Não é postal político, nem quero deixar transparecer qualquer opinião sobre a desgraçada situação em Israel - e já aqui deixei nota sobre o meu estupor diante daquela realidade. Mas a sucessão de notícias levaram-me às estantes, no regresso aos livros do grande Joe Sacco - que também escreveu/desenhou sobre a Bósnia onde trabalhei. Sacco é um autor muito empenhado, defensor da causa palestiniana - o que agradará a uns e desagradará a outros. Pouco (me) importa, os seus livros são preciosos. Sem que com isso me sejam cartilhas.

Comecei pelo "Palestina na Faixa de Gaza" (cá publicado em 2003, com prefácio de Edward Said). Depois passei ao "Palestina, Uma Nação Ocupada" (cá publicado em 2004, com prefácio de Mário Soares). E ainda ando dentro do calhamaço em francês ("Gaza 1956").

E entretanto lembrei-me de incómodo que tenho com o olhar de Joe Sacco. Pois, mesmo muito apreciando-o. Ou melhor, exactamente por muito o apreciar. Pois é esse um dos maiores sinais de apreço, o incómodo recebido na leitura... Há quase uma década deixei um texto, feito numa rápida abordagem, sobre as relações que encontrava entre a obra de Sacco, a recepção (entusiástica) que ele colhe e as práticas actuais da antropologia. Chamei-lhe "Joe Sacco: o engajamento denunciatório". Deixo a ligação para quem tenha paciência...

Marcelo e o Hamas

José Meireles Graça, 06.11.23

Marcelo vai, vem, pára, volta a andar, olha para o infinito, para a calçada, para a câmara ou para a plateia, sempre rodeado de gente e sempre a falar. Continuamente assim fez desde o seu primeiro mandato e só não conhecemos o que realmente pensa das qualidades e defeitos do motor Wankel, ou das vantagens e inconvenientes das bombas de calor, porque nunca ninguém perguntou.

Maçador. Mas seria injusto não constatar que com isso dá prova de grande inteligência e argúcia: não consegue estar só consigo mesmo em silêncio por ter noção, conhecendo-se, de que a sua pessoa não tem nada para dizer que lhe valha a pena ouvir. Por isso fala, e fala, e fala, sem prejuízo de às vezes lhe acontecer dizer alguma coisa.

Quase sempre asneiras, infelizmente. Considere-se este caso: Marcelo foi ao Bazar Diplomático no Centro de Congressos em Lisboa e envolveu-se em discussão com o chefe da missão diplomática da Palestina (nomeado pela Cisjordânia, o que para a economia do caso interessa nada),  a quem disse algo como "desta vez foi alguém do vosso lado que começou. Não deviam."

O palavreado é de cantina de moços imberbes, senão de infantário: desta vez foi ele, sotôra!, como se um assunto desta natureza pudesse ser assim descrito, como se Israel tivesse uma tradição de atacar sem provocação e como se a diplomacia pudesse ser feita às escâncaras, no meio da multidão. Nabil Abuznaid manifestou-se desapontado, e teve sorte: que da próxima pode ceder à tentação de esmurrar Marcelo, um infiel, e o serviço de segurança da presidência dar-lhe uns cascudos. Assim com’àssim, se o assunto é para tratar como garotada, não é impossível que haja tropelias no recreio.

Vale a pena ver o vídeo porque Marcelo, no esforço de agradar, dá de barato que o Hamas não representa os palestinianos, aceita como factual a alegação do número de mortos e da ocupação durante 56 anos, e murmuraria decerto “allahu akbar” se com isso garantisse aplausos frenéticos.

As declarações suscitaram alguma comoção (a deputada Mariana Mortágua veio classificá-las como “lamentáveis”, esperando que o Governo nelas não se reveja, e a fronda esquerdista, que a envolve em conjunto com os primos comunistas, o intelectual Pacheco e outros magistrados sortidos da opinião, tem feito um grande berreiro) e Marcelo aproveitou uma visita à feira nacional do cavalo na Golegã (noticiada no mesmo vídeo, mais à frente) para esclarecer: “o ataque terrorista não representa o povo palestiniano”, “… como se deu, serviu como um pretexto”… “que não facilitava a nossa finalidade, que é ter um Estado palestiniano e um Estado israelita”,  e “dava pretexto àqueles que são adversários disto”.

Dito de outro modo: o ataque foi terrorista, Israel tem o direito de reagir desde que não haja vítimas civis, isto é, desde que os terroristas do Hamas se separem das populações com as quais estão misturados, para o efeito de poderem ser liquidados higienicamente, e, bem vistas as coisas, é bem possível que a extrema-direita israelita tenha ganho com isto, de modo que tem decerto culpas no cartório.

Não fosse quase completamente irrelevante o que Marcelo diz ou deixa de dizer e a gente limitava-se a sorrir com bonomia: o homem incomoda-se muito com opiniões divergentes em torno da sua consensual pessoa, razão pela qual está permanentemente disposto, qualquer que seja o assunto, a fazer uma espargata retórica com duplo salto mortal à retaguarda, seguida de um mergulho empranchado.

A história, porém, continua: Ontem houve uma manifestação pró-palestina em frente ao palácio de Belém – a meia dúzia de gatos do costume, com as palavras de ordem do costume. E o bom do Marcelo foi lá para o meio, incrédulo perante a possibilidade de haver quem seja suficientemente radical para não gostar dele, que gosta de toda a gente, e explicando mais uma vez, perante a incompreensão geral, que o Hamas não representa o povo palestiniano, e que ataques terroristas nunca mas uma democracia “tem de actuar, mesmo em caso de guerra, no quadro da democracia”, que “estamos firmes atrás do eng.º Guterres”, e outras piedades.

Um jornalista perguntou se Marcelo também estará presente na manifestação pró-Israel, mas não obteve resposta, nem podia: a presença do homem ali só podia significar apoio à “causa palestiniana”, que por sua vez é indistinguível, no caso estrito deste conflito, da do Hamas – senão os manifestantes, ali em frente a Belém em toda a parte, reclamavam ao menos a realização de eleições na faixa de Gaza e a suspensão da ofensiva israelita desde que contra a libertação imediata de todos os reféns.

Há momentos em que a aparência do equilíbrio, da equidistância, e os apelos à paz e à concórdia, são apenas o outro nome da cobardia intelectual: um grupo terrorista matou mais de um milhar de cidadãos israelitas e capturou, e detém como reféns, mais de 100. Os apelos à paz unilateral, se seguidos, representam uma capitulação e portanto uma vitória do Hamas.

O apoio homossexual à Palestina

jpt, 04.11.23

 
 
Via Whatsapp um amigo envia-me este curto filme, que decerto por aí anda rodopiando. Não percebo o conteúdo, que sinto grotesco, e pergunto-lhe "O que é isto, pá?!". Diz-me "é uma coisa chamada Fado Bicha a apoiar a Palestina!". E vem implícito o remoque, que também está generalizado, aos homossexuais que se afadigam em declarações públicas deste teor - sabendo-se bem que face ao mundo islâmico, ainda que esse bastante diverso, a liberalidade legislativa e de costumes israelita é um oásis para as sexualidades, hetero e homo (e as outras que agora andam a ser indexadas com afã).
 
Sorrio. Já o disse, aos ademanes em palco sinto-os como grotescos. Sinto-os ainda mais assim - que quereis?, sou um homem nascido nos anos 1960s, justifico-me, glosando o abissal sábio de Coimbra -, do que quando diante daquelas dançarinas dos play-back pimbas nos programas televisivos da tarde, elas bojudas "como deve ser", pulando e gingando, seus refegos, lascas de celulite e proto-varizes ressaltando sob as minissaias. E destes Fado Bicha apenas tomara conhecimento ao sabê-los apoiantes - ou mesmo inspiradores - daquele prostituto brasileiro que invadiu um teatro municipal lisboeta. Apresentando-se apenas em cuecas e com os implantes mamários desnudados, algo que considerava suficiente para ali exigir um emprego - para desvelo de alguma "comunidade artística" -, ainda que, como se soube depois, considere o teatro uma chatice e prefira ir ao futebol com o namorado.
 
Não seja por isso. Esta rapaziada (ou raparigada, como preferirem, que não quero parecer preconceituoso) não inova grande coisa. De facto, sabendo-o ou não, seguem o Papa Foucault, esse "grande educador da classe genderária", o que se desunhou em apoios e viagens solidárias para com o fascismo teocrático de Teerão enquanto gozava a liberdade existencial americana. "They love Teheran but they fuck in Frisco", resumi eu em postal de blog, aludindo literalmente à foucauldiana deriva.
 
Mas o que se pode criticar a esta malta histriónica do "género" (ou lá o que é) é o facto de sempre se calarem com as maldades (e que maldades) "alheias" enquanto sempre anunciam hiperbólicos horrores nas sociedades "ocidentais". "Nós" demónios, os "outros" húmus multiculturais, por assim dizer. É uma pantomina, travestida de pensamento, e por vezes - como neste caso - mesmo por trajes. Um patético "anti-capitalismo", de facto nada mais do que um esparvoado "anti-americanismo". Dará prestígio, entre a "comunidade" que lhes é "público" e entre "instituições" e "câmaras" que contratam e financiam. É uma incongruência, de hipocrisias e dislates feita.
 
Mas tudo isso não impede uma outra faceta. É perfeitamente legítimo - até honroso - que alguém defenda outrem que dele não gosta ou até persegue. Se se reconhece a esse outrem pertinência nas reclamações como evitar expressar solidariedade? Especialmente em momentos dramaticos? "Faz o bem sem olhar a quem"... está escrito num qualquer texto judaico, julgo. Ou seja, é errado criticar os homossexuais por defenderem causas ou posições oriundas de países islâmicos. Pode-se discordar. Mas é perfeitamente legítimo - insisto, até honroso. Mas o que é inadmissível é que tantos desses movimentos, e seus locutores, demonizem as sociedades liberais. Porque essa atitude, verdadeira contradição - que é tão generalizada, tão constante -, não passa de um pobre e ordinário travesti de cidadania.
 
Quanto a estes Fado Bicha que me atiraram ao telefone só tenho uma coisa a dizer, pois sou muito reaccionário. Há algo fundamental, nisso obrigatório, quando se ergue a bandeira de alguém, em especial se a nacional, para se lhe demonstrar apoio. Não se arrasta essa bandeira pelo chão.
 
(Um pequeno detalhe, alguns dirão. Sim, é um pequeno detalhe. Mas bem demonstra a abjecta pantomina que é tanto "disto", quase tudo disto "genderístico".)

Israel e Gaza: Are you out of your fucking mind?

jpt, 04.11.23

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Resha'im Arurim (Maldita gente má) - é uma imprecação celebrizada do folhetim televisivo Shtisel

Não sou muito versado em línguas bárbaras, imunes ou demasiado afastadas do latim - ainda que por vezes com este algo mescladas. E detesto a mania dos estrangeirismos - os anglicismos de agora, os galicismos de antanho -, que sendo uma arrivista estratégia pessoal de "distinção" é também, o que é muito  pior, uma estratégia empresarial de obscurecimento de realidades lesivas dos incautos monoglotas - e que melhor exemplo actual desse aldrabismo do que o uso  bancário do termo "spread"?

Mas ainda assim há momentos em que termos ou expressões idiomáticas se impõem, pelo seu conteúdo ou ênfase tornando-se inultrapassáveis para descreverem alguma realidade insuficientemente descrita pela nossa língua. Por exemplo, alguém poderá compreender a política do primeiro quartel do XXI português sem utilizar o galicismo - de origem norte-americana, ao que consta - "bobo" (bourgeois-bohème)?

Vem-me isto a propósito da situação em Gaza. Não tenho grande apreço pelas teorias conspiratórias - e contra elas sempre me procuro disciplinar. Seja como for, a verdade é que naquele Israel, um nicho com um quarto do tamanho do "pequeno" Portugal, se congregam as atenções de imensa Resha'im Arurim, essa maldita gente má. Residentes, vizinhos. E poderosos "influencers", mais um anglicismo aproveitável. Pois não recuso a hipótese de que o inopinado ataque aos israelitas não teve como única causa o exaspero da teodiceia fascista do Hamas. Deixo aos especialistas - que são muitos - levantar as hipóteses da influência no acontecido daquele mudo conflito (extra-futebolístico) entre Catar e Arábia Saudita. E da coalizão multicultural entre Teerão e as estepes siberianas, estas envoltas num longínquo e atabalhoado guerrear. 

Mas para além de tudo isso - ou melhor dizendo, também por causa de tudo isso -, ao assistir-se a esta "operação militar especial" de Israel na Faixa de Gaza um tipo  só pode perguntar, invectivar, às gentes israelitas "Are you out of your fucking mind?" - pois não há em português expressão com celsitude e ênfase comparáveis.

Israel e Palestina, as causas de um conflito

jpt, 02.11.23

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Já aqui deixei nota que - com a minha vetusta idade, a qual me permite lembrar de Moshe Dayan, Golda Meir e Yasser Arafat -, não tenho qualquer disponibilidade para escutar/ler os doutos que  na imprensa se afadigam a explicar o que se passa lá no longínquo Mediterrâneo.
 
Mas tenho solidariedade e piedade. Solidariedade com as vítimas dos estrategas do fascismo palestino. E, concomitantemente (que bela articulação retórica me sai aqui), com as dos "falcões" israelitas - esses que desta não se safarão durante as próximas décadas. E julgo que após ter exarado esta profunda opinião, arguto diagnóstico da situação, o mundo melhorará.
 
E tenho piedade - cristã, a do cristianismo ateu - por tantos dos meus compatriotas (ou de países aliados) que têm enchido o meu Facebook com as suas aceradas opiniões, quase sempre comprovadas com indiscutíveis fontes bibliográficas ou filmográficas.
 
Entre estes há os mais arqueológicos, que se desdobram na partilha de "mapas étnicos" dos tempos bíblicos - comprovando que os "judeus" já então eram os "donos da terra", assim julgando resolver as coisas de hoje. E há os mais sociológicos, incansáveis na proclamação da justeza das reclamações históricas da também imorredoira "nação palestiniana". Gentes futebolistas, estas minhas ligações-FB, sempre adeptos fervorosos sobre tudo o que mexa, seja qual for o campeonato em causa, fiéis ao mandamento do grande holigão René Descartes, fundador da claque do Paris-St. Germain, e autor do lendário lema "Torço, logo existo!".
 
Entretanto, sobre o continuado confronto entre israelitas e palestinianos, no canal Sic Notícias, no programa Toda a Verdade, está a ser transmitido este esplêndido documento "A Origem de um Conflito". Tem três episódios, são transmitidos a cada domingo (dá para recuar e ir ver). Já passou o segundo. É muito recomendável.
 
Mas será, também, um desperdício de tempo para judeófilos e para palestinianófilos. Para esses recomendo o canal Onze - que está porreiro. Em especial o aprazível programa "Sagrado Balneário", charlas sobre velhas histórias dos jogadores e treinadores de futebol,

O Ocidente sob fogo no sofá

Pedro Belo Moraes, 27.10.23

Habituados ao fast food, os ocidentais só toleram a fast war. Viciados na transacção de emoções, na partilha de sentimentos, os ocidentais pululam entre Apps. Num dia ficam esmagados pelos pushes da torrente de notificações que dão acesso às imagens horríficas do terror do Hamas no dia 7 de Outubro; nos outros indignam-se, revoltam-se, enfurecem-se com a operação militar israelita que “ocupou” a miríade de Apps.

De palas nos olhos, os ocidentais passam a ver apenas a destruição de Gaza e o drama humano por ela provocado. E a emoção mais recente é a que os move. Comove. E tudo à distância de um clique num ecrã do telemóvel ou do lesto polegar carregando nas teclas do comando remoto do televisor. E o comando ser remoto é o eufemismo disto tudo.

É o Ocidente no sofá. Sempre descansado porque mero mirone a salvo das injustiças que o ofendem. Insurgido com as atrocidades cometidas sobre inocentes, claro!, mas raras vezes assustado, raríssimas vezes vislumbrando que a peça que o ofende é, apenas e só, uma pequena parte de um puzzle que uma vez construído - e o dito está em construção - destruirá a ordem mundial que nos coloca a nós Ocidente como a única representação dos valores da tolerância, liberdade, democracia, diversidade. Os mesmos que estão sob fogo porque como as normas que nos regem há séculos o Ocidente está sob fogo. E tem de se defender.

Mas voltemos às emoções. Lembremo-nos da comoção geral nos Parlamentos vários, muitos, das democracias liberais, de cada vez que foram bradadas declarações do tipo: “Os ucranianos estão a lutar por nós.”; “É a Ucrânia que combate aquele que ameaça o nosso estilo de vida.”; “Uma vez derrotadas as forças de Kiev, o imperialismo vai querer expandir-se Europa fora.” Tudo isto, claro, replicado, retuitado, reencaminhado redes sociais fora. A necessária e tão desejada ração de emoção servida minuto-a-minuto, hora a hora. Like it!

Não tenhamos dúvida: como os ucranianos, também os israelitas estão a defender-nos. A destruição de uns e outros faz parte de um puzzle. A invasão russa da Ucrânia e o ataque do Hamas a Israel (a única democracia liberal da região) fazem parte de um plano que tem como objetivo primeiro e último destruir o referencial de civilização que é o Ocidente.

Os que nos ameaçam e acossam, os nossos inimigos, são os mesmos numa guerra e noutra. Uns às claras, outros na sombra, juntos compõem um eixo anti-Ocidente, anti-democracia liberal. Reúnem-se, negoceiam, recebem-se com honras de Estado o presidente que se eterniza no poder e invade um país soberano; as lideranças do regime dos ayatollah detentores do poder supremo; os obreiros da aparente benevolente mas omnipresente e poderosa nova rota da seda. Todos estão às claras ou na sombra por detrás das duas guerras que emocionam, comovem e revoltam as sociedades ocidentais.

Não há coincidências. Não há.

As repetidas barbaridades cometidas pelo Hamas no interior de casas onde executaram com fúria famílias inteiras, violaram mulheres, degolaram bebés, e nas ruas onde espancaram homens até à morte e cujos cadáveres sobre os quais cuspiram com raiva e não menos desprezo, e mais ainda o massacre levado a cabo num festival igual em música, idêntico no espírito e na liberdade que sentimos nos festivais em que estivemos inteiros e seguros; tudo isso, tudo isto, no seu horror mais íntimo que acabou por provocar um grito de terror mundial, tudo isto coincidiu com a proximidade da assinatura de um acordo de normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita. Uma aproximação geopolítica, geoestratégica que ameaçava de morte o plano de poder regional do Irão, essa teocracia que – rufem os tambores! – é o grande financiador do Hamas. E também não há coincidências quando a Rússia quis aprovar uma resolução no Conselho de Segurança da ONU sem condenar o acto terrorista do Hamas. E não é mesmo coincidência a dependência russa dos drones iranianos na guerra da Ucrânia. Facto que coincide com outro: Irão e Rússia vêem nos EUA o Grande Satã. Expressão que não tenho tempo para traduzir para mandarim, mas que estou seguro será dita à boca cheia nos gabinetes de Pequim.

Sim, o Ocidente extravasa o mero hemisfério ocidental. É a NATO, a UE, e está na Austrália, no Japão, na Coreia do Sul, as democracias liberais na Ásia, etc. E não disputa o domínio dos EUA. Antes aceita que o Ocidente domina os valores que não são respeitados por quem disputa a civilização ocidental, desprezando a liberdade religiosa, os direitos das mulheres, a liberdade de imprensa, a democracia, a tolerância, a defesa das minorias.

Os ocidentais produzem e consomem muito entretenimento sobre ameaças terroristas ou conspirações de países e protagonistas com planos maléficos para destruir a antiga ordem mundial, fazendo nascer uma nova na qual são a força dominante.

O entretenimento é tanto melhor quanto mais verosímil for. Quem o consome sabe-o mas fica-se pelas pipocas. Quanto muito, entre tramas, passa para as bolachas e chocolates e, na medida do possível, mexendo-se pouco, pouquíssimo do sofá. Isso, quanto muito, fará para receber à porta de casa um Glovo ou um UberEats, pedidos feitos na App e pelos quais esperará enquanto recebe e abre as notificações dos horrores cometidos porque foi atacado e ataca. De verdade. Enquanto se comove com o drama de quem trava uma guerra existencial contra quem não lhe reconhece a existência. O direito a existir.

Convençamo-nos e preparemo-nos: não há fast-war. As guerras que existem não acabam, não se resolvem mudando de canal de TV ou apagando as notificações no telemóvel. E quem lançou os dois conflitos sangrentos que hoje minam a estabilidade mundial despreza as cadeias de fast-food e mais que isso considera abjectas as fast war. Mas amam as longas. As guerras que travam e alimentam são antigas, longas e preparadas. As que grassam no Médio Oriente e no Leste da Europa são disso exemplo.

E nós, Ocidente, temos de nos preparar e acordar para isso mesmo. Não podemos mais continuar apenas no sofá.

 

(Artigo de opinião publicado no dia 20 de Outubro na página da CNN Portugal)

Êxodos, massacres, genocídios e omissões

Pedro Correia, 26.10.23

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Crianças arménias refugiadas em 1915: o primeiro genocídio documentado do século XX

 

Também em matéria de "catástrofes humanitárias" (como agora tantos dizem, numa tradução imbecil do 'amaricano') há umas mais iguais do que outras.

A Arménia, lá nos confins do Cáucaso, sem jornalismo nem "activismo" nas redondezas, pode ser chutada para o rodapé pelo supremo responsável da segurança global (atenção: as cinco anteriores palavras são em registo irónico).

 

Convém nunca esquecer que os arménios sofreram o primeiro genocídio documentado dos tempos modernos. Há pouco mais de cem anos, cerca de milhão e meio foram massacrados pelo já decadente Império Otomano, avô da Turquia actual - incluindo deportações e assassínios em massa.

Seguiu-se o tenebroso Holodomor - a condenação de um povo inteiro à morte pela fome. Neste caso ucranianos, submetidos à mais cruel pena capital colectiva pela URSS de Estaline em 1932/1933.

 

Massacres étnicos originaram também grandes êxodos - de dezenas de milhões de pessoas. É outro dramático legado do século XX.

Entre 1944 e 1949, 1,7 milhões foram expulsos da Polónia para a Ucrânia - e vice-versa.

Após 1945, cerca de 8 milhões de alemães foram evacuados dos chamados "territórios de Leste" para o perímetro da actual fronteira alemã - e, depois, muitos fugiram da RDA para Ocidente.

O desmembramento do Hindustão britânico originou entre 1947 e 1951 o êxodo cruzado de 15 milhões de pessoas da União Indiana para o Paquistão - e vice-versa. Nessa traumática jornada entre fronteiras recém-estabelecidas, terão morrido cerca de dois milhões de pessoas.

O genocídio ocorrido no Camboja submetido ao domínio totalitário comunista de Pol Pot, entre 1975 e 1979, custou pelo menos dois milhões de vidas humanas.

A disputa pelo enclave que acaba agora de mudar de mãos no Cáucaso originou em 1994 a deslocação forçada de cerca de 400 mil arménios e de mais de um milhão de azeris.

Menos expressivo, mas não menos doloroso, foi o êxodo ocorrido em Chipre na sequência do golpe ilegal ali protagonizado pela Turquia em 1974 que dividiu a ilha até hoje: 200 mil gregos e 60 mil turcos desalojados.

Viria a acontecer, em escala maior, nas guerras dos Balcãs da década de 90 - ainda cheia de chagas por cicatrizar.

E no Ruanda, na sanguinária guerra civil de 1994: cerca de um milhão de mortos em apenas três meses apenas por pertencerem à "etnia errada" (tútsis, sobretudo).

Sem esquecer a guerra no Sudão, culminada na "limpeza" étnica no Darfur, em 2003: pelo menos 2 milhões de mortos e 6 milhões de refugiados nos vinte anos seguintes. Primeiro genocídio documentado deste já tão triste século XXI.

 

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Guterres na fronteira entre Gaza e o Egipto (20 de Outubro)

 

Existirá, nos casos de grandes êxodos, uma figura da justiça internacional denominada "direito ao regresso" dos desalojados, apenas invocada no caso da Palestina?

Fica à consideração dos especialistas.

Ao secretário-geral da ONU nem é preciso perguntar: dirá logo que sim. Num reflexo condicionado semelhante ao que no passado dia 20 o levou a mostrar-se aos repórteres do lado da fronteira egípcia com Gaza numa arenga cheia de bonitas frases humanitárias que esqueceram os mais de 200 reféns israelitas e de outras nacionalidades levados à força pelo Hamas, em circunstâncias bárbaras.

Também se peca por omissão. Eis um destes casos.

Como engoliram a propaganda do Hamas

Pedro Correia, 24.10.23

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New York Times foi reproduzindo propaganda do Hamas, em versões diferentes, na sua manchete digital

 

A 17 de Outubro, o New York Times engoliu a propaganda do Hamas - via Al-Jazeera - dando nota de que Israel tinha "bombardeado" um hospital na Faixa de Gaza e provocado ali "mais de 500 mortos". Número redondo, para ter ainda mais impacto, e que lamentavelmente alguma imprensa de referência reproduziu de imediato, em cascata, a partir daí. Acriticamente, sem nada questionar, como se estivesse perante uma fonte credível, independente e desinteressada.

Nem faltou, logo a seguir, uma "conferência de imprensa" debitada pelo «Ministério da Saúde de Gaza" (totalmente controlado pelo Hamas) com médicos envergando imaculadas batas brancas, munidos de um púlpito e bem iluminados por luzes de projectores e holofotes (aparentemente sem o menor receio de voltarem a ser "bombardeados", com toda aquela sinalização luminosa a meio da noite).

 

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Tresandava a aldrabice. Fake news, como se diz agora. Mas os papagaios de turno repetiram-na até à exaustão. Procurando derrotar Israel na guerra da propaganda, em benefício dos terroristas do Hamas, que têm inscrito na sua carta de princípios o mandamento de que é preciso «matar judeus» seja onde for e quando for.

Ontem, num inequívoco gesto de honestidade intelectual, o mais influente diário norte-americano reconheceu ter errado. Numa nota editorial sobre o assunto, que passo a citar na íntegra até pelo seu valor documental:

 

«On Oct. 17, The New York Times published news of an explosion at a hospital in Gaza City, leading its coverage with claims by Hamas government officials that an Israeli airstrike was the cause and that hundreds of people were dead or injured. The report included a large headline at the top of The Times’s website.

Israel subsequently denied being at fault and blamed an errant rocket launch by the Palestinian faction group Islamic Jihad, which has in turn denied responsibility. American and other international officials have said their evidence indicates that the rocket came from Palestinian fighter positions.

The Times’s initial accounts attributed the claim of Israeli responsibility to Palestinian officials, and noted that the Israeli military said it was investigating the blast. However, the early versions of the coverage — and the prominence it received in a headline, news alert and social media channels — relied too heavily on claims by Hamas, and did not make clear that those claims could not immediately be verified. The report left readers with an incorrect impression about what was known and how credible the account was.

The Times continued to update its coverage as more information became available, reporting the disputed claims of responsibility and noting that the death toll might be lower than initially reported. Within two hours, the headline and other text at the top of the website reflected the scope of the explosion and the dispute over responsibility.

Given the sensitive nature of the news during a widening conflict, and the prominent promotion it received, Times editors should have taken more care with the initial presentation, and been more explicit about what information could be verified. Newsroom leaders continue to examine procedures around the biggest breaking news events — including for the use of the largest headlines in the digital report — to determine what additional safeguards may be warranted.»

 

Traduzo a frase sublinhada: 

«Os editores deveriam ter sido mais cuidadosos na divulgação inicial e mais explícitos sobre o tipo de informação realmente confirmada.»

Rectificar quando se erra é um imperativo deontológico, ético e moral. Que o New York Times cumpriu, embora com vários dias de atraso.

Falta agora que a líder do Bloco de Esquerda faça o mesmo.

Convém recordar aquilo que Mariana Mortágua se apressou a verter na rede social X, ecoando - também ela - as trombetas da propaganda do Hamas:

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Ainda vai a tempo. Vale mais tarde que nunca.

Pensamento da semana

Pedro Correia, 22.10.23

É inaceitável a equiparação moral do grupo terrorista Hamas ao Estado de Israel, reconhecido (e aliás fundado) pela ONU. Mais inaceitável ainda por ter ocorrido quando nem estavam sepultados os cadáveres da carnificina de 7 de Outubro, que terá provocado 1500 vítimas - o maior massacre de judeus desde a II Guerra Mundial, talvez até «o mais brutal acto isolado cometido de qualquer lado deste conflito secular», como escreve Hussein Ibish num ensaio na revista The Atlantic.

Vítimas indefesas da barbárie anti-semita, em glorificação póstuma da camarilha nazi. Barbárie que aliás prossegue com a tomada de "reféns" de 34 nacionalidades, não apenas israelitas. Em Gaza, território também sequestrado pelo próprio Hamas, que ali instaura a lei do terror - desde logo contra mulheres e homossexuais.

Esta equiparação define quem a pratica. Da mesma forma que definiu todos aqueles que têm justificado e até defendido os crimes de guerra cometidos por Putin na Ucrânia. O relativismo moral, que invoca a história, a geopolítica e as identidades étnicas para "compreender" e tolerar holocaustos, é simplesmente obsceno.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

«Se há um judeu atrás da árvore, mata-o»

Pedro Correia, 19.10.23

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Dizei aos que não crêem: "Sereis, sem dúvida, derrotados e reunidos no Inferno. O vosso lugar de descanso será o mais terrível".»

Alcorão, 37: 171-173

 

Este 7 de Outubro será sempre conhecido como dia da infâmia em Israel. O dia da incursão de cerca de dois mil terroristas do Hamas em território israelita que provocou 1500 mortos e mais de três mil feridos, além de 300 pessoas de mais de 30 nacionalidades tomadas como "reféns". Ignora-se se ainda estarão vivas.

Ainda nem uma das vítimas tinha sido enterrada, já havia por cá quem relativizasse o massacre, invertendo o ónus da culpa, que terá sido das vítimas. Seguindo a lógica daquele juiz desembargador que absolveu o violador alegando que a jovem violada usava uma saia demasiado curta e, portanto, estava mesmo a pedi-las...

Para tal gente toda a barbárie, singular ou colectiva, assenta neste axioma que desafia a lógica mais elementar. Inocentar os criminosos, culpar as vítimas. Daí, no próprio dia 7, não ter faltado logo quem estabelecesse equivalência moral entre a Alemanha nazi e o Estado judaico. Qual o efeito prático de tudo isto? Branquear a página mais negra da história humana, que se traduziu no assassínio sistemático e meticuloso de seis milhões de pessoas às ordens de um estado totalitário, onde qualquer dissidência equivalia a morte.

 

Não faltou até, nesta linha de raciocínio cada vez mais alucinada, quem metesse Gaza e Auschwitz no mesmo saco. Omitindo, desde logo, toda a cartilha xenófoba e racista do Hamas - declaração de ódio visceral não apenas ao Estado de Israel mas ao conjunto do povo judeu. 

Esta cartilha está disponível na rede, para quem queira ficar elucidado.

Proclama coisas como estas:

«Não há solução para o problema palestino a não ser pela guerra santa. Iniciativas de paz, propostas e conferências internacionais são perda de tempo e uma farsa.»

«Os hipócritas não podem ser superiores aos crentes, e devem morrer em desgraça e aflição.»

«Os sionistas estiveram por detrás da I Guerra Mundial, por meio da qual obtiveram a destruição do Califado Islâmico, tiveram altos ganhos materiais, passaram a controlar numerosos recursos naturais, obtiveram a Declaração Balfour e criaram a Liga das Nações Unidas (assim no original), para poderem governar o mundo por meio dessa Organização. Estiveram, também, por detrás da II Guerra Mundial, através da qual juntaram um tremendo lucro com o comércio de materiais de guerra e abriram caminho para o estabelecimento do seu Estado.»

Destaco sobretudo esta: 

«A hora do julgamento não chegará até que os muçulmanos combatam os judeus e terminem por matá-los e mesmo que os judeus se abriguem por detrás de árvores e pedras, cada árvore e cada pedra gritará: "Oh! Muçulmanos, Oh! Servos de Alá, há um judeu por detrás de mim, venham e matem-no!"»

 

Ao menos não enganam ninguém: dizem exactamente o que pensam - se é que podemos chamar pensamento a isto.

Tal como fez Hitler há cem anos, quando publicou esse execrável panfleto antijudaico chamado Mein Kampf. Sabemos muito bem o que aconteceu depois.

Jamais se repetirá. Os judeus não voltarão a deixar que o inimigo os conduza ao matadouro. Tenha esse inimigo o rótulo que tiver, chame-se ele como se chamar.

Israel

José Meireles Graça, 16.10.23

Há seis posições principais sobre a guerra Israel-Hamas.

Uma é a dos países muçulmanos: o Estado de Israel é uma verruga na face do Islamismo porque a sua criação implicou a deslocação de Palestinianos, que ganharam o estatuto de refugiados (que passou para os descendentes – já quase não há vivos nascidos antes de 1948, sendo que hoje são cinco vezes mais numerosos do que inicialmente) e o nascimento de um enclave de infiéis no mar de países árabes – que são, em área e população, respectivamente, mais de 500 e mais de 40 vezes a israelita. O grau de hostilidade não é o mesmo para todos, e alguns estão longe de exaltados na sua rejeição, mas se a estes números acrescentarmos os do Irão, que não é Árabe e é o mais consistente no ódio ao Judeu, a desproporção é ainda maior.

Outra é a do Ocidente: Os Judeus pagaram, por o serem, um preço demasiado alto na II Guerra Mundial e os poderes vitoriosos de então acabaram, ao cabo de uma tortuosa história, por reconhecer a independência declarada em 1948, com os Estados Unidos e a URSS à cabeça. A URSS não fazia parte, como hoje a Rússia não faz, do que se denomina o Ocidente, e a sua posição foi evoluindo, no contexto da Guerra Fria, para o decaimento do apoio – já lá vamos. Israel é um Estado de Direito e uma democracia, tudo o que não são os Estados inimigos, e conta com o apoio, com frequência envergonhado, das outras democracias, salvo o dos EUA, que é e sempre foi franco e solidário.

Outra é a da Rússia e da China, que vão dizendo coisas piedosas sobre a barbaridade do conflito enquanto fazem contas sobre os ganhos e perdas potenciais da situação.

O resto do mundo não conta. Ignoro o que acham a Indonésia e o Vanuatu, mas por certo acharão qualquer coisa.

Quanto às pessoas, naqueles sítios onde se pode exprimir livremente, há a direita, a esquerda e, onde se encontrarem comunidades muçulmanas com expressão, a rua e as mesquitas.

A esquerda de hoje tem reflexos condicionados: o fraco tem sempre razão contra o forte, o pobre contra o rico, o trabalhador contra o patrão, a mulher contra o homem, o imigrante contra o natural, os LGBT contra os straight, o preto contra o branco, etc. Foi para estas dicotomias que evoluiu o marxismo que, derrotado, ficou fora de moda. Sucede que Israel é forte, comparativamente rico, e absurdamente bem-sucedido numa parte do mundo sem petróleo, que entregue apenas aos palestinianos seria fatalmente pobreta e retrógrada. Acresce que tem o patrocínio quase incondicional da meca do capitalismo “sem freios”, e portanto a aversão automática da esquerda. A qual, se for moderada, reconhece a agressão do Hamas mas coloca tais obstáculos humanitários à reacção israelita que esta só pode perseguir os militantes do Hamas devidamente fardados e isolados nos quartéis que não existem, por estarem os terroristas convenientemente dissolvidos na população. Donde esta parte do espectro político encontra razões na génese do Estado Judeu, e na longa lista de medidas de defesa que implicaram e implicam sofrimento para palestinianos, para recomendar que Israel mude de orientação para o efeito de, com grande humanidade, se suicidar.

A direita procura desesperadamente uma saída para o imbróglio, que permita pôr fim a uma guerra que pode derrapar envolvendo o Irão e outras peças do dominó geoestratégico, que vem somar-se à da Ucrânia, e que conduza, sem que Israel perca a face, a pôr cobro aos perigos da escalada do preço do petróleo e outras disrupções que façam com que as nossas tranquilas sociedades sejam abanadas no seu relativo conforto. E, nisto como noutras matérias, não falta quem ame tanto os exercícios de equilibrismo que perde de vista o essencial.

As comunidades islâmicas no Ocidente manifestam-se aos gritos – os seus campeões não são os que detêm os mesmos valores das sociedades que os acolhem. E talvez este berreiro faça perceber que os imigrantes, necessários aliás para o funcionamento das nossas economias sem jovens em número suficiente, não são todos iguais nem todos susceptíveis de integração.

E então, qual a solução definitiva? Haveria duas, se estivéssemos nos tempos expeditos do Império Romano ou do III Reich, por exemplo: uma era o genocídio do povo palestiniano; e outra afogar todos os Judeus no mar, como declaram desejar inúmeros líderes religiosos muçulmanos, o qual mar está convenientemente situado mesmo ao lado.

Nenhuma das duas é desejável ou exequível. E, em que pese às quintas-colunas que enxundiam as hostes do comentariado, os Israelitas, em se defendendo, defendem-nos a nós e aos nossos valores. Uma vitória, mesmo que parcial, de um grupo terrorista que nega a igualdade dos cidadãos perante a lei (salvo a divina, na versão revelada ao Profeta), a igualdade entre os sexos, a democracia, e a litania de direitos e modos livres de viver a que o Ocidente chegou ao cabo de uma longa evolução que o Islão deixou de acompanhar há séculos, não faria mais do que alimentar o monstro fundamentalista.

De modo que pode e deve haver critério nas escolhas dos meios, mas aquele não pode ser o da equivalência, como reclamam alguns ingénuos, e outros nem tanto, entre nós. O mais, para quem for crente, pertence a Deus; e, para quem não for, basta a serena convicção de que “aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança”.

Como dizer pogrom em árabe?

João André, 13.10.23

Amanhã passará uma semana desde o maior massacre de judeus desde a II GUerra Mundial. A palavra pogrom, que se desejaria banida depois da criação do Estado de Israel, voultou a ser invocada para fazer referência ao massacre de mais de 1.200 pessoas - note-se, pessoas - por uma organização não apenas terrorista mas, especialmente depois de 7 de Outubro de 2023 (o qual já vi referido como Sábado Negro) - uma organização que pode ser cada vez mais descrita como fascista ou até nazi.

Não há desculpas para o que aconteceu e procurá-las nos últimos anos de política israelita (ou de outros países no Médio Oriente) é menorizar o sofrimento de quem morreu ou foi ferido ou raptado, é familiar destas vítimas ou qualquer outra pessoa com coração que não esteja demasiado dessensibilizada para reconhecer o sofrimento de pessoas que nada fizeram para ser assim atacadas.

Quando olhamos para estes actos é normal para certas pessoas procurar justificações e para outras apontar o dedo simplesmente ao Mal. A realidade é que há sempre explicações, por preversas e repugnantes que sejam, como neste caso, que são vendidas pelos responsáveis como "justificação". Se a política de Israel em relação à Palestina não tem sido justa há já décadas, não há forma de justificar a "retaliação" do Hamas à mesma. Especialmente quando, pelo que vou lendo de comentadores que se debruçam sobre as políticas na região e mais dela sabem que eu, o Hamas pretendia especialmente evitar uma aproximação da Arábia Saudita a Israel.

Há 9 anos escrevi sobre este assunto em dois posts, numa altura em que Israel entrou em Gaza. Na altura considerei que a ameaça do Hamas era menor. Talvez tivesse razão na altura, mas obviamente que o tempo ou me explicou o quanto estava enganado ou mudou a equação. O que não muda são as consequências: após massacre de israelitas que nada mais faziam que viver as suas vidas, o exército israelita (Forças de Defesa de Israel, FDI) vai entrar num território onde a esmagadora maioria das pessoas também apenas pretende o mesmo. Como li hoje num artigo, "o Anjo da Morte lambe os beiços".

Note-se que isto poderá também ser parte do que pretende o Hamas. Se o FDI empurrar os palestinianos para o Egipto, vai possivelmente acabar a colocá-los entre a espada e a parede e a levar à indignação do mundo árabe. Suponho que seja essa a intenção do Hamas, para quem a população palestiniana não mais é que um campo de recrutamento e fonte de mártires da causa. O ódio do Hamas levou ao massacre de israelitas inocentes*. Uma retaliação cega de Israel, especialmente por odem de um fraco e incompetente Netanyahu, poderá fazer o mesmo a palestinianos. O Anjo da Morte, de facto.

Pergunto-me então, se no meio do sangue que já foi derramado e à espera daquele que ainda correrá, se os facínoras do Hamas saberão como dizer pogrom em árabe.

 

* Nota: não aceitarei qualquer comentário que seja ofensivo para com judeus, israelitas em geral ou palestinianos. Posso aceitar pontos de vista distintos em relação ao conflito, mas não sobre a moralidade do massacre. Quem não quiser respeitar este ponto de vista terá o comentário eliminado.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 12.10.23

«A violência desmedida dos guerrilheiros da UPA em 1961 contra os portugueses [no norte de Angola] teve exactamente o mesmo objectivo da violência desmedida dos guerrilheiros do Hamas contra os israelitas: chocar o país e o mundo; aterrorizar a população; destruir qualquer sensação de segurança; obrigar a uma intervenção militar capaz de quebrar a situação de impasse; torná-la o mais desgastante possível, de forma a conduzir a uma clarificação política e à vitória final. Esta é a lógica. Esta é a estratégia. A partir daqui, as pessoas dividem-se em dois grupos: 1) O grupo dos que aceitam este nível de violência porque a luta é justa. 2) O grupo dos que não aceitam este tipo de violência mesmo que a luta seja justa. Não tenho dúvidas a que grupo pertenço. E também não tenho grandes dúvidas do grupo a que pertencem aqueles que decidem manifestar-se a favor da Palestina antes sequer de os inocentes irem a enterrar.»

 

João Miguel Tavares, hoje, no Público

Vida de filme

Sérgio de Almeida Correia, 20.04.20

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O livro não é muito recente, mas só agora me chegou às mãos graças à generosidade de um amigo.

Histórias de espionagem e agentes secretos sempre constituíram um tema interessante, em especial quando relacionadas com situações políticas reais de que apenas se tomou conhecimento por curtas notícias da televisão ou dos jornais. Quando o tema se prestava, por vezes, dava origem a interessantes filmes/documentários para televisão ou cinema.

O que este livro tem de diferente, um pouco como nas memórias de Forsyth, é que todas as histórias são verdadeiras. Independentemente da perspectiva que nos dão do interminável conflito israelo-palestiniano, os operacionais, os heróis e os mortos existiram mesmo, e alguns dos primeiros ainda estão vivos para trazerem o passado até nós e acenderem algumas luzes que nos ajudam a compor o puzzle, completando memórias anteriores.

Longe da imagem de uma Mata Hari, Sylvia Rafael, de seu nome, ou Patrícia Roxenburg, a identidade que assumiu após chegar ao Canadá, foi uma das lendas da Mossad, participando em numerosas operações sob diversos disfarces.

Feita agente clandestina, dotada de uma vontade férrea, educada, culta, com a classe e o charme suficientes para despertar paixões, o seu nome sempre foi uma dor de cabeça para a Fatah, o Setembro Negro e em particular para Ali Hassan Salameh, o cérebro da Força 17, responsável pelos atentados de Munique, pelo desvio de aviões comerciais e um rasto de atentados e inocentes mortos ao longo de vários anos.

Depois do fiasco da operação Lillehammer, recuperaria a sua identidade, acabando por casar com o advogado que a defendeu no processo de Oslo, Annaeus Schjødt, e a acompanhou até ao fim dos seus dias.

Foi este quem, no dia do seu funeral no kibbutz onde Sylvia foi voluntária durante os seus primeiros anos em Israel, sugeriu a elaboração do livro a Moti Kfir. Doutorado em História pela Sorbonne, tendo dirigido a Escola de Operações Especiais da Mossad, Kfir foi o seu recrutador, e hoje empresta o seu know-how a uma empresa portuguesa, pelo que se um destes dias se cruzarem com ele não se admirem.

Enquanto o filme não chega, e outras versões não aparecerem ("No story ever truly ends, and no account of a person's life can be all-inclusive"),  fiquemos com o documentário que entretanto se fez, e com o muito interessante livro de Kfir e do jornalista Ram Oren sobre a vida de Sylvia Rafael. O prefácio é do reformado Major-General Shlomo Gazit, ex-director dos serviços de inteligência militar e ex-presidente da Universidade de Ben Gurion.

Desconstruir análises

Alexandre Guerra, 07.02.20

Meses depois do conselheiro especial da Casa Branca, Jared Kuschner, ter apresentado ao mundo árabe a componente económica do plano de paz americano para o Médio Oriente, durante um "workshop" em Manama, Bahrein, recentemente foi a vez do Presidente Donald Trump revelar os contornos políticos e mais "quentes" daquilo que ele classifica de "Visão" (Vision for Peace, Prosperity and a Brighter Future) para a resolução do conflito israelo-palestinino. Se na vertente económica já era sabido que se estava perante um potencial investimento de cerca de 50 mil milhões de dólares,  no patamar político, o documento com a "Visão" de Trump apresentado há semanas concretiza muito claramente os intentos de Washington e Telavive para a "sua" solução de "dois Estados.

Não se pretende aqui analisar em detalhe todos os contornos do plano apresentado, mas sim desconstruir as análises erradas que se fizeram na imprensa, porque aquilo que alguns comentadores vêem como (novas) consequências provocadas pelo plano de Trump, são na verdade realidades que existem "de facto" desde a intifada de al Aqsa, em Setembro de 2000: a questão da descontinuidade territorial; a criação do sistema de "apartheid"; e o isolamento dos territórios palestinianos com os Estados limítrofes. 

Com o ressurgimento da violência israelo-palestiniana, em Setembro de 2000, espoletada pela provocatória visita do então primeiro-minsitro, Ariel Sharon, ao Monte do Templo (para os judeus) ou Haram al-Sharif (para os muçulmanos), o território da Cisjordânia foi sendo asfixiado e fragmentado pela política de colonatos judaicos e de segurança israelita. São várias as localidades e cidades dentro da Cisjordânia que, desde estão, ficaram totalmente controladas pelas IDF, sendo que, em muitos casos, a liberdade de circulação está limitada pelos inúmeros checkpoints levantados pelas IDF. A intensidade desta realidade vai sempre variando e dependendo do grau de violência que se vai vivendo no âmbito do conflito israelo-palestiniano. Por exemplo, durante os anos da intifada de al-Aqsa, os checkpoints entre a capital Ramalhah e a localidade universitária de Bir Zeit, a 20 minutos de carro, eram recorrentes a várias horas do dia. 

E quando há uns analistas que falam num novo “apartheid”, estão a ignorar por completo o que se passa há vinte anos na Cisjordânia, onde existem estradas que ligam directamente Israel aos colonatos, sem que os palestinianos possam utilizá-las, apesar de atravessarem território palestiniano. Estão a ignorar que os checkpoints são impostos discricionariamente de acordo com a vontade das IDF, muitas vezes de uma hora para o outra, impedindo que muitos palestinianos regressem as suas casas ou não possam deslocar-se de um local para outro, obrigando-os a esperar horas e até dias. Estes mesmos analistas, que agora vêem nesta “Visão” a fonte de todos os males, ignoram a realidade de duas décadas, onde milhares de palestinianos ficaram impedidos de atravessar a “fronteira” em Jerusalém para irem trabalhar diariamente em Israel. Ignoram ainda que desde 2000, Israel cortou com a ligação entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, provocando, nalguns casos, a separação de famílias. Muito dificilmente um palestiniano da Cisjordânia conseguirá chegar à Faixa de Gaza através de Israel. Quanto muito, terá que sair da Cisjordânia pela Jordânia e entrar em Gaza pelo Egipto.   

Recuperemos então algumas passagens do documento apresentado por Donald Trump. Na sua introdução, é referido que: "Gaza and the West Bank are politically divided." É verdade, mas como foi acima sublinhado, é omitido que também estão fisicamente separados desde o início da intifada de al Aqsa, em Setembro de 2000, por imposição das IDF. Ainda de acordo com a mesma introdução, lê-se: "Since 1946, there have been close to 700 United Nations General Assembly resolutions and over 100 United Nations Security Council resolutions in connection with this conflict." É obra, mas é revelador da ineficácia completa da comunidade internacional na tentativa de resolução desta questão. E como é que Trump vê estas resoluções da ONU? "This Vision is not a recitation of General Assembly, Security Council and other international resolutions on this topic because such resolutions have not and will not resolve the conflict."

Sendo os “males” potenciais identificados por muitos analistas, na verdade, evidências bem reais há vários anos, não será de estranhar que o plano de paz de Washington seja uma ferramenta diplomática tendenciosa para os interesses de Israel. A determinada altura lê-se: "It must be recognized that the State of Israel has already withdrawn from at least 88% of the territory it captured in 1967." Ora, depende da interpretação que se fizer e do território em causa. É que em 1967, Israel ocupou a Cisjordânia, Gaza, Montes Golã e um enclave ao Líbano e Síria (Shebaa Farms). Entretanto, retirou as IDF de Gaza, mas manteve o controlo fronteiriço; retirou a presença militar dos Golã, mas manteve a soberania e não devolveu à Síria (tal como as Shebaa Farms). Na Cisjordânia, recuou nalgumas zonas, mas isolou outras e fragmentou o território, enchendo-o de colonatos.

Um dos pontos mais importantes deste documento e mais estratégico para a sobrevivência de Israel tem a ver com algo a que não vi qualquer analista fazer referência: “The State of Israel will retain sovereignty over territorial waters, which are vital to Israel’s security and which provides stability to the region.” Ao contrário de outras matérias em disputa, como a questão da capital em Jerusalém (mais simbólica do que estratégica) ou dos colonatos (mais ideológica do que securitária), há dois temas que ameaçam directamente a existência de Israel (não, não é o Hamas nem o Irão): o acesso à água e o factor demográfico. Este tema ficará para um próximo texto.

Viagem a Israel (11).

Luís Menezes Leitão, 04.01.20

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Impressionante a visita à Fortaleza de Massada, junto ao Mar Morto, onde os Judeus foram cercados pelos Romanos em 72 d.C., logo após a destruição de Jerusalém. Tomaram a decisão de ali morrer pois preferiram a morte à escravatura. Um símbolo da liberdade e da resistência ao opressor que ainda hoje é recordado.