Quando Michel Houellebecq foi fustigado nas redes sociais e nos media com acusações de xenofobia e de incentivo à islamofobia por ocasião do lançamento, em França, de "Submissão", defendeu-se afirmando que o seu novo romance não era uma provocação, na medida em que nele não dizia coisas que considerasse fundamentalmente falsas só para irritar.
E o que ele dizia em "Submissão" é que em 2022, depois de um conturbado segundo mandato de François Hollande, o líder do novo partido Fraternidade Muçulmana chegaria ao poder após a segunda volta das presidenciais. Um feito só possível graças à aliança que propôs aos socialistas e à UMP, de centro-direita, para derrotar Marine Le Pen, vencedora da primeira volta. Com instinto político e sentido de oportunidade, o islamita conseguia o impensável.
A par de insultos, Houellebecq também recebeu louvores e houve mesmo quem o considerasse um visionário, colocando-o a par de George Orwell e Aldous Huxley. "Afinal" - argumentaram os seus apoiantes mais entusiastas - "numa Europa devastada pela crise económica, social e de valores, cansada dos seus políticos e já sem fé na democracia seria assim tão absurdo o islão penetrar, qual cavalo de troia, no sistema politico-partidário tradicional e conquistar o poder?"
O romancista francês mais traduzido no mundo, vencedor do prémio Goncourt, bestial e besta conforme as opiniões, em "Submissão" fala sobretudo da decadência da Europa. A ideia da reconquista do ocidente pelo islão é uma hipótese académica de que se serve para incendiar o circo (apesar de o ter negado) e também pretexto para regressar ao seu tema preferido: a irreformável natureza humana.
Se Houellebecq tivesse imaginado um assalto ao poder pela força, "Submissão" não seria tão interessante. Bem mais insidiosa é a doce passagem de testemunho por via democrática que descreve e a sugestão de que o islamismo pode vencer as reservas ocidentais com mais facilidade do que seria de supor desde que administrado em doses certas:
"Ben Abbes evitara sempre comprometer-se com a esquerda anticapitalista; compreendera perfeitamente que a direita liberal ganhara a "batalha das ideias", que os jovens se tornaram empreendedores e que hoje em dia o carácter incontornável da economia de mercado era unanimemente aceite. O verdadeiro traço de génio do líder muçulmano era ter percebido que as eleições não se iam decidir no campo da economia mas no campo dos valores e que, também a esse nível, a direita se preparava para ganhar a "batalha das ideias", sem sequer precisar de combater (...) No respeitante à reabilitação da família, da moral tradicional e implicitamente do patriarcado, abria-se à sua frente toda uma avenida, que a direita não podia aproveitar, e a Frente Nacional muito menos, sem ficarem com o carimbo de reaccionárias ou mesmo de fascistas (...) Só ele, Ben Abbes, estava ao abrigo de qualquer perigo. Paralisada pelo seu anti-racismo essencial, a esquerda nunca fora capaz de o combater, ou sequer de mencionar".(pág. 135)
Habituados que estamos a considerar as teocracias islamitas a anos-luz da nossa superioridade civilizacional admitir, ainda que teoricamente, alguma vulnerabilidade do nosso sistema é reconhecer que a distância que nos separa é reversível. Como? A natureza humana, esse traço de união entre civilizações, será sempre a chave para todos os enigmas, sugere o autor.
De que forma poderiam as elites políticas e intelectuais sucumbir ao charme do islão? Houellebecq explica, tal como explica o que levaria o povo a aceitar a mudança sem levantar grandes ondas:
"Provavelmente é impossível, para as pessoas que viveram e prosperaram num determinado sistema social, imaginarem-se na pele daqueles que, nunca tendo podido esperar nada desse mesmo sistema, encaram a sua destruição sem especial receio" (pág.53), cogita o personagem que conduz esta história, um intelectual autocentrado, que nunca se interessou por política, que a bem dizer nunca se interessou por nada e cuja relação mais próxima que mantém é com o escritor do século XIX que foi tema da sua tese de doutoramento.
Este tom desapaixonado contamina toda a narrativa passando nas entrelinhas l'air du temps, um misto de apatia, individualismo e alheamento cívico. Mas é quando cita Arnold Toynbee, através de um outro personagem, um professor universitário de meia idade rendido ao dinheiro dos sauditas e às delícias da poligamia, que Houellebecq transmite a mensagem essencial do livro: "as nações não morrem assassinadas, suicidam-se". E a estocada vai para as elites que nos governam, não para os muçulmanos.
Quem levou a sério e acusou a sua tese de falta de consistência política não considerou que a ambivalência desta obra, que mistura referências reais com pura ficção, e acontecimentos plausíveis com desfechos improváveis, é um objectivo. Sendo o islão, nos tempos que correm, "o outro" o escritor usa-o simplesmente para nos confrontar. Para nos falar do que está podre no reino da civilidade e da democracia, mas como é de seu timbre fá-lo sem moralismos ou quaisquer outros constrangimentos.
A viver com escolta policial desde que o Charlie Hebdo sofreu um atentado (a capa da edição que então estava nas bancas era sobre o recém-lançado "Submissão"), Michel Houllebecq é odiado pelos islamitas mas também, sem surpresa, pelas elites intelectuais mais engagées, tanto à direita como à esquerda. Penso que pelas contas dele não se terá saído nada mal, até porque com este seu sexto romance está a facturar como nunca...