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Delito de Opinião

E que tal exibirem a bandeira no Irão?

Pedro Correia, 25.10.23

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Estes fervorosos fãs do Hamas que se manifestam no Rio de Janeiro contra Israel e a favor dos terroristas islâmicos, para serem consequentes, deviam exibir aquela bandeira arco-íris em qualquer dos 22 países árabes.

E também, claro, no Irão.

Voltariam certamente de lá com histórias interessantes para contar. Se voltassem.

Gritam «Alá é grande» e matam

Pedro Correia, 16.10.23

Cobardia física e miopia moral

Pedro Correia, 07.10.23

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Salman Rushdie fotografado por Murdo Macleod

 

Como era óbvio, mais um ano transcorrido, Salman Rushdie não foi distinguido com o Prémio Nobel da Literatura. Nem o será. O Comité Nobel está infectado há muito tempo pelos vírus da cobardia física e da miopia moral. Se dois tradutores foram assassinados por terem ousado verter os Versículos Satânicos para outros idiomas, mais ameaçados ficariam os membros do aludido comité se prestassem justiça a um escritor que já merece o galardão desde 1981, quando publicou esse extraordinário romance que é Os Filhos da Meia-Noite

Como premiar um autor que caminha há décadas sob o fio da navalha, condenado à morte pelos inquisidores islâmicos e alvo de um miserável atentado em Agosto de 2022 que o deixou cego de um olho? Ninguém se atreverá a tanto. Sem desconsiderar Jon Fosse, o norueguês distinguido este ano, a sua reiterada omissão da lista de galardoados acaba por enobrecer o romancista britânico nascido em Bombaim -- «o sobrevivente», como acertadamente lhe chamou a revista Le Point.

Está muito bem acompanhado nesta vergonhosa omissão, integrando um longo cortejo dos melhores do século XX, de Joyce a Borges, de Ibsen a Kafka, de Tolstoi a Orwell, de Malraux a Virginia Woolf. Todos superaram o maior dos desafios: o decurso do tempo. «Se conseguir passar no teste de mais uma ou duas gerações, poderá perdurar», escreveu Rushdie, precisamente n'Os Filhos da Meia-Noite, a propósito de outro assunto. Os prémios passam, os júris eclipsam-se, a obra fica.

Nice

Sérgio de Almeida Correia, 30.10.20

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A motivação, o pretexto, se quiserem, é cada vez menos compreensível. E pela forma como se exprime, saindo violento das entranhas guturais das bestas, resume-se a uma frase banalizada. A grandeza Dele é ofuscada pela sua miséria moral.

O que aconteceu em Nice e regularmente se repete numa espiral incontrolável, muito mais em França, também na Bélgica e noutros locais outrora marcados pela aceitação do vizinho, de quipá ou com turbante, e pela outorga de um espaço de liberdade e responsabilidade a cada um, numa fraternidade serena e acolhedora mesmo quando as marcas da vida tornaram os dias mais longos e as noites difíceis e sofridas, tornou-se uma distante recordação.

Agora já não se trata de recebermos o outro com fraternidade e igualdade. O outro vai obrigar-nos a repensar a nossa relação, a deixar tudo o que se construiu para trás. Porque na violência insana nada se constrói, e nem mesmo o que foi erguido com o sacrifício de todos se mantém de pé.

Quando uma igreja, local de entrega, reflexão e paz se torna em local de emboscada para os indefesos, quando a loucura faz dela um talho onde o cutelo processa a degola dos sacrificados inocentes, e as bestas se comprazem vendo o sangue fresco escorrer pela pedra fria e silenciosa, não há diálogo possível.

Deixou de ser um problema de diálogo intercultural ou inter-religioso para se tornar num problema de sobrevivência. De todas as civilizações. Da humanidade.

Sim, porque se a violência, a barbárie, o terror, tudo isso a que estamos a assistir e cujo nome já não faz a diferença, é afinal, como escreveu Camus, "l'hommage que de haineux solitaires finissent par rendre à la fraternité des hommes", então não se poderá continuar a assistir à homenagem passivamente, deixando que a indiferença, o relativismo moral e ético e a banalização do mal, de que falava Hannah Arendt, façam apodrecer o que ainda resta de saudável para se voltar a construir.

É preciso matar o caruncho que se apoderou das estruturas e subiu pelas colunas dos templos. Há que domar a besta, trazê-la de novo ao caminho da razão. Sem vacilar.

A esperança é um pranto. A tolerância está de luto.

Vergonha

Pedro Correia, 07.01.19

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Por sete milhões de euros, ou de petrodólares, os responsáveis máximos do futebol italiano acederam em deslocar do seu país para a Arábia Saudita o jogo da Supertaça que vai disputar-se entre as equipas da Juventus (onde pontifica Cristiano Ronaldo) e do AC Milan. O desafio decorrerá no próximo dia 16, no estádio Cidade Desportiva Rei Abdullah.

Tudo bem? Não: tudo mal. Assim preparam-se para caucionar a chocante discriminação existente nos estádios sauditas, onde as mulheres só em 2018 foram autorizadas a assistir pela primeira vez a jogos de futebol, mas sem se misturarem com homens, permanecendo confinadas aos lugares mais recuados das bancadas. Assim acontecerá novamente nesta Supertaça. Tapadinhas, caladinhas - e lá para trás.

«O desporto precisa de plateias globais para crescer», alega o dono da bola italiana. Está profundamente equivocado: destas plateias não precisa mesmo. Até porque são a antítese do espírito desportivo. Como fervoroso adepto de futebol, sinto vergonha destes dirigentes desportivos europeus que se põem de cócoras e chegam mesmo a rastejar mal atravessam o Mar Vermelho, convivendo alegremente com as mais inaceitáveis segregações em terras de Maomé.

A realidade ultrapassa a ficção - cortesia da al-Qaeda

Diogo Noivo, 14.09.18

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 Última edição da revista Beituki, páginas 10 e 11, com conselhos matrimoniais

 

 

Sempre preocupada com o bem-estar do lar, a revista feminina Beituki ("A Tua Casa"), editada pela al-Qaeda, sugere às mulheres 17 maneiras de evitar o divórcio. É díficil escolher dois exemplos no meio de tantas pérolas, mas optei por estes:   

 

- Não invejar as restantes esposas;

- Se não engravidar por culpa do marido, aceite a situação e console-o.

 

Sim, há secção de correio sentimental. E não, não é piada.

O primeiro atentado

Diogo Noivo, 18.08.17

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Era mais um dia normal de serviço no restaurante. Mas em poucos segundos tudo mudou: um engenho explosivo colocado junto ao balcão foi detonado matando 18 pessoas e destruindo uma parte importante do restaurante "El Descanso", situado no quilómetro 14 da estrada Madrid-Barcelona. Foi no dia 12 de Abril de 1985. Cerca de 16 anos antes dos atentados de 11 de Setembro, nos Estados Unidos da América, Espanha sofria o seu primeiro ataque jihadista. Esta acção terrorista foi reivindicada por uma organização intitulada Jihad Islâmica, embora os detalhes da operação - autores materiais e morais, propósito, perfil da organização, etc - ainda hoje estejam por esclarecer.
O atentado de ontem em Barcelona é mais um episódio repugnante e condenável de uma longa e tortuosa história. Em Espanha, a Catalunha é a região com maior incidência de actividade jihadista desde há bastantes anos. De resto, como refere Ignacio Cembrero no livro La España de Alá, 50 das 98 mesquitas e oratórios salafistas sinalizados pelo Ministério do Interior estão na Catalunha. Por lá passaram organizações terroristas de diferentes países, da Argélia ao Paquistão. O problema é grave, mas não é novo. Em suma, e enquanto a poeira não assenta, importa evitar análises apocalípticas e especialistas de ocasião.

Os pregadores do modo de vida

Inês Pedrosa, 25.05.17

Em contraponto aos hábitos do islamismo radical, é comum ouvirmos a expressão “o nosso modo de vida”. Ora uma das alegrias fundadoras das sociedades democráticas e laicas é a de, ao contrário das ditaduras (de esquerda ou de direita, se é que esta distinção faz algum sentido prático para alguém), não definirem nenhum “modo de vida” – nem sequer, para raiva dos invejosos de serviço, “estilos de vida”. O estreitamento da democracia que temos vindo a sofrer nas últimas décadas, alegadamente por causa da crise financeira internacional, tem feito o seu caminho nos corredores mentais das pessoas, afunilando-os também. A ideia, milhões de vezes repetida, de que não há alternativa à austeridade, acabou por diminuir os sonhos e as expectativas de populações inteiras, empurrando-as para os caminhos da desistência – esse monstro que nos impede de criar verdadeiras alternativas.

 As ciências e as artes têm demonstrado, desde o início do mundo, que a vida é um mar de possibilidades. Da invenção da agricultura à luz eléctrica, da anestesia às viagens a Marte, a humanidade não parou de encontrar outros “modos de vida” diferentes dos estabelecidos. Há um problema de base quando quase metade da riqueza mundial está nas mãos de 1% dos seres humanos – e um estudo recente da Oxfam prevê o agravamento deste descalabro nos próximos dois. Garantir um equilíbrio mundial que passa por uma redistribuição da riqueza não é uma questão de “modo de vida”, mas de civilização. À medida que o conceito de “competição” se foi tornando central e obrigatório na cartilha económica e ética dos tempos modernos, descartou-se o termo “civilização” para abolir a ideia, tida por primária, de comparação. Interessante paradoxo, que entretanto faz muito mal a muita gente.

 Na sequência do massacre à redacção do Charlie Hebdo, esgotada a união inicial em torno do choque, entrou-se no tempo do “mas” com o seu cortejo de elucubrações filosóficas escapistas – incluindo aquela, aventada por boas e cultas almas, de que a “nossa liberdade de expressão”, descendente de Lutero e de especificidades europeias, deve parar à porta da não-liberdade dos outros, que não têm a mesma genealogia. É o esplendor do paternalismo condescendente (e cobardolas, pormenor pouco filosófico mas pertinente). Recordo que hoje mesmo (se nada mudar entre a terça-feira em que escrevo e a sexta em que este texto é publicado) será de novo chicoteado em praça pública, na Arábia Saudita, um homem que entendeu, apesar de árabe, ter direito a pensar pela sua própria cabeça. E que milhões de seres humanos são torturados e mortos apenas por quererem pensar e viver livremente. A liberdade não admite “mas” – e, sobretudo, não pode continuar a ter filhos e enteados, consoante as culturas. O terrorismo de Estado é tão terrorista quanto aquele que não tem sede nem nação.

 Um conjunto de opinadores supostamente liberais aproveitou o massacre para dizer que ele resulta da atenção da Europa às chamadas “causas fracturantes” em vez de se preocupar com a segurança e a economia. Como se a atribuição de direitos a mulheres e homossexuais impedisse os restantes aspectos da governação. A mensagem implícita é a de que a manutenção de sociedades mais “tradicionais” não excitaria tanto os radicais islâmicos. A eterna mensagem do medinho e da resignação. Não, isso é que não é modo de vida.

      

Publicado no jornal Sol,23.5.2015

As jihads

Diogo Noivo, 20.07.16

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Assistimos quase diariamente a indivíduos que se dizem muçulmanos evocar conceitos e práticas do Islão para cometer ou justificar atrocidades indizíveis. Esta atitude, para além de merecer um repúdio sem paliativos, deve convidar-nos a um esforço de escrutínio pois só compreendendo a ameaça poderemos encontrar formas para a eliminar. Vejamos os exemplos da jihad e do suicídio, práticas que o terrorismo contemporâneo colocou sob o foco da atenção mediática – e que, curiosamente, tanto os terroristas como os detractores do Islão vêem como dogmas religiosos.

 

Ao contrário da convicção comum, a palavra jihad é pré-islâmica. No idioma árabe moderno, esta palavra abrange um amplo espectro semântico, que vai da «luta de classes» ao conflito clássico entre o que é novo e o que é antigo. No Corão e nas demais fontes religiosas, a jihad assume duas formas: a jihad maior (jihad al-akbar) e a jihad menor (jihad al-ashgar). A jihad maior consiste no esforço reflexão e auto-crítica que qualquer crente deve empreender com vista a tornar-se um melhor muçulmano. Por sua vez, na jihad menor cabe a conversão dos não-crentes – o esforço de proselitismo comum à generalidade das religiões – e a defesa da comunidade muçulmana face a uma agressão externa. A importância de cada uma destas duas facetas da jihad, bem como a maneira como foram interpretadas, variou enormemente ao longo da História em função do contexto político vivido e consoante a região em causa. Assim, aquilo que os extremos (islâmicos e anti-islâmicos) dizem ser um dogma indeclinável é na verdade um conceito heterodoxo bastante sensível à vida social e política em cada momento.

 

Tal como a jihad, o suicídio está longe de ser consensual na doutrina e na jurisprudência islâmica. O historiador Bernard Lewis afirma não existir qualquer fundamento doutrinário ou legal no Islão que valide os autores morais e materiais dos atentados de 11 de Setembro de 2001, nos Estados Unidos da América. A opinião de Lewis é especialmente interessante pois, para além de ser um dos mais conceituados estudiosos do mundo islâmico (e, na minha modesta opinião, um dos melhores), foi ele quem cunhou a ideia de «choque das civilizações», mais tarde desenvolvida e popularizada por Samuel Huntington. Lewis, que confere à História e à tradição um peso substancial na observação do mundo árabe, e por isso é frequentemente acusado de ser partidário da "excepção árabe"*, demonstra que, de acordo com os cânones do Islão, a violência contra mulheres e crianças é expressamente proibida. Por outro lado, refere Lewis, o suicídio é um pecado punido com a condenação eterna do pecador à repetição incessante do seu acto. Assim, e sendo muito resumido, de acordo com Bernard Lewis este e outros atentados, para além de crimes hediondos, são também actos de blasfémia do ponto de vista islâmico, já que os suicídios e a violência são perpetrados em nome de Alá.

 

As evocações religiosas apresentadas por jihadistas para legitimar o terror em nome de Alá têm objectivos essencialmente políticos e resultam de uma leitura deturpada e sectária do Islão (motivada por ignorância ou por oportunismo), o que faz desta religião uma espécie de teste de Rorschach: a interpretação diz-nos mais sobre o intérprete do que propriamente sobre aquilo que é interpretado.

 

 * Por vezes designada “casulo árabe” ou “maleita árabe”. Segundo esta linha de argumentação, os antecedentes históricos do povo árabe e a herança doutrinária do Islão impedem o aparecimento de formas de governo democráticas. Por outras palavras, há um atavismo no espaço geo-linguístico composto pelo Norte de África e pelo Médio Oriente que é contrário às liberdades individuais e à participação política dos cidadãos.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 04.06.16

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Livro um: O Islão e o Ocidente, de Jaime Nogueira Pinto

Edição D. Quixote, 2015

350 páginas

 

Muito se fala no fundamentalismo de matriz islâmica e nas atrocidades do Dito Estado Dito Islâmico (fórmula cunhada por Nuno Rogeiro que adopto com a devida vénia). Mas poucos sabem explicar, com minúcia e clareza, a dimensão histórica, social e religiosa dos devotos do profeta Maomé, que rivalizam com a fé cristã em expansão global.

Religião maioritária em largas dezenas de países que se estendem de Marrocos à Indonésia, o islamismo continua a ser lamentavelmente ignorado nas suas múltiplas facetas, reduzidas à vulgata caricatural pelo jornalismo dominante, cada vez mais superficial e preguiçoso. É por isso de saudar este ensaio sério, isento e muito bem informado que Jaime Nogueira Pinto nos traz em 13 capítulos densos mas de fácil e apelativa leitura proporcionada pelo estilo fluente do autor, que nunca sacrifica o rigor dos factos às suas opiniões sobre a matéria nem transige com qualquer proselitismo de pacotilha inspirado pelo ar dos tempos.

O Islão e o Ocidente é uma visão serena e lúcida, embora não isenta de perspectiva crítica, aos dramáticos desafios que nos são lançados pelo antigo Islão armado com novíssima e sofisticada tecnologia. Sem esquecer que dentro das vastas fronteiras do mapa islâmico se agita um mundo multipolar, longe do monolitismo que a indústria mediática tantas vezes apregoa.

Chegamos ao fim desta obra mais esclarecidos, mais bem informados e mais dotados de pistas de análise para entender o perturbante vínculo entre política e fé sob a bandeira do crescente muçulmano. De raros livros actuais se pode dizer o mesmo.

A luta pela verdadeira jihad

Diogo Noivo, 12.01.16

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Aparentemente, Gaza é o mais recente palco das antigas e recorrentes lutas fratricidas entre jihadistas. Num artigo publicado na New York Review of Books, Sarah Helm relata o conflito entre o Hamas e o auto-denominado Estado Islâmico – ou Daesh, preferência do nosso Pedro Correia –, uma disputa que pode empurrar a região para uma espiral de violência com consequências imprevisíveis.

O desafio não é novo para o Hamas. Em 2009 publiquei um artigo [download] onde, entre outros aspectos, analiso o conflito entre o Hamas e a organização jihadista Jund Ansar Allah (JAA). Numa primeira fase, não apenas por afinidade ideológica, mas também por convergência de interesses, o Hamas contemporizou com vários grupos jihadistas, entre os quais o JAA, um pequeno grupo próximo da al-Qaeda. Quando este último, para além de atacar Israel, pôs em causa a autoridade política e as credenciais islamistas do Hamas, o assunto acabou em banho de sangue. Naquela altura o Hamas saiu vitorioso. Fazendo fé no relato de Sarah Helm, a história repetiu-se na transigência e pode estar prestes a repetir-se no desfecho sangrento. Acontece que o Daesh, ao contrário do JAA, não é uma pequena organização e, por isso, está por saber quem sairá vencedor.

Há, contudo, uma curiosidade que creio valer a pena mencionar. Dá-se a ironia de que o Hamas esteja a ser vítima do seu próprio veneno. Durante anos, sempre que a Fatah/Autoridade Palestiniana iniciava negociações com Tel Aviv, terroristas do Hamas lançavam rockets contra Israel, dinamitando assim qualquer hipótese de diálogo. Agora que o Hamas tem responsabilidades de governo e parece estar disposto a dialogar com Israel, são os grupos pró-Daesh a recorrer à velha táctica bombista do Hamas. A vida na oposição é sempre mais inconsequente.

Ainda que o chamado “islamismo radical” seja frequentemente entendido de maneira indiferenciada, como um todo coerente e homogéneo, a verdade é que existem profundas diferenças entre as várias organizações e movimentos que se inscrevem no espaço do radicalismo de inspiração islâmica. É essa diversidade que explica o habitual arremesso de acusações de apostasia e de conduta herética entre radicais, especialmente entre aqueles que seguem a via terrorista. Deserções, conspirações e cisões são marca identitárias do jihadismo contemporâneo, o que nos deve obrigar a reflectir sobre a tão propalada ideia de uma frente jihadista comum contra o Ocidente. Aqui, como na maior parte das coisas, a realidade insiste em ser mais complexa.

Submissão - a história de um suicídio

Teresa Ribeiro, 03.05.15

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Quando Michel Houellebecq foi fustigado nas redes sociais e nos media com acusações de xenofobia e de incentivo à islamofobia por ocasião do lançamento, em França, de "Submissão", defendeu-se afirmando que o seu novo romance não era uma provocação, na medida em que nele não dizia coisas que considerasse fundamentalmente falsas só para irritar.

E o que ele dizia em "Submissão" é que em 2022, depois de um conturbado segundo mandato de François Hollande, o líder do novo partido Fraternidade Muçulmana chegaria ao poder após a segunda volta das presidenciais. Um feito só possível graças à aliança que propôs aos socialistas e à UMP, de centro-direita, para derrotar Marine Le Pen, vencedora da primeira volta. Com instinto político e sentido de oportunidade, o islamita conseguia o impensável.

A par de insultos, Houellebecq também recebeu louvores e houve mesmo quem o considerasse um visionário, colocando-o a par de George Orwell e Aldous Huxley. "Afinal" - argumentaram os seus apoiantes mais entusiastas - "numa Europa devastada pela crise económica, social e de valores, cansada dos seus políticos e já sem fé na democracia seria assim tão absurdo o islão penetrar, qual cavalo de troia, no sistema politico-partidário tradicional e conquistar o poder?"

O romancista francês mais traduzido no mundo, vencedor do prémio Goncourt, bestial e besta conforme as opiniões, em "Submissão" fala sobretudo da decadência da Europa. A ideia da reconquista do ocidente pelo islão é uma hipótese académica de que se serve para incendiar o circo (apesar de o ter negado) e também pretexto para regressar ao seu tema preferido: a irreformável natureza humana.

Se Houellebecq tivesse imaginado um assalto ao poder pela força, "Submissão" não seria tão interessante. Bem mais  insidiosa é a doce passagem de testemunho por via democrática que descreve e a sugestão de  que o islamismo pode vencer as reservas ocidentais com mais facilidade do que seria de supor desde que administrado em doses certas:

"Ben Abbes evitara sempre comprometer-se com a esquerda anticapitalista; compreendera perfeitamente que a direita liberal ganhara a "batalha das ideias", que os jovens se tornaram empreendedores e que hoje em dia o carácter incontornável da economia de mercado era unanimemente aceite. O verdadeiro traço de génio do líder muçulmano era ter percebido que as eleições não se iam decidir no campo da economia mas no campo dos valores e que, também a esse nível, a direita se preparava para ganhar a "batalha das ideias", sem sequer precisar de combater (...) No respeitante à reabilitação da família, da moral tradicional e implicitamente do patriarcado, abria-se à sua frente toda uma avenida, que a direita não podia aproveitar, e a Frente Nacional muito menos, sem ficarem com o carimbo de reaccionárias ou mesmo de fascistas (...) Só ele, Ben Abbes, estava ao abrigo de qualquer perigo. Paralisada pelo seu anti-racismo essencial, a esquerda nunca fora capaz de o combater, ou sequer de mencionar".(pág. 135) 

Habituados que estamos a considerar as teocracias islamitas a anos-luz da nossa superioridade civilizacional admitir, ainda que teoricamente, alguma vulnerabilidade do nosso sistema é reconhecer que a distância que nos separa é reversível. Como? A  natureza humana, esse traço de união entre civilizações, será sempre a chave para todos os enigmas, sugere o autor.

De que forma poderiam as elites políticas e intelectuais sucumbir ao charme do islão? Houellebecq explica, tal como explica o que levaria o povo a aceitar a mudança sem levantar grandes ondas:

"Provavelmente é impossível, para as pessoas que viveram e prosperaram num determinado sistema social, imaginarem-se na pele daqueles que, nunca tendo podido esperar nada desse mesmo sistema, encaram a sua destruição sem especial receio" (pág.53), cogita o personagem que conduz esta história, um intelectual autocentrado, que nunca se interessou por política, que a bem dizer nunca se interessou por nada e cuja relação mais próxima que mantém é com o escritor do século XIX que foi tema da sua tese de doutoramento.

Este tom desapaixonado contamina toda a narrativa passando nas entrelinhas l'air du temps, um misto de apatia, individualismo e alheamento cívico. Mas é quando cita Arnold Toynbee, através de um outro personagem, um professor universitário de meia idade rendido ao dinheiro dos sauditas e às delícias da poligamia, que Houellebecq transmite a mensagem essencial do livro: "as nações não morrem assassinadas, suicidam-se". E a estocada vai para as elites que nos governam, não para os muçulmanos.

Quem levou a sério e acusou a sua tese de falta de consistência política não considerou que a ambivalência desta obra, que mistura referências reais com pura ficção, e acontecimentos plausíveis com desfechos improváveis, é um objectivo. Sendo o islão, nos tempos que correm, "o outro" o escritor usa-o simplesmente para nos confrontar. Para nos falar do que está podre no reino da civilidade e da democracia, mas como é de seu timbre fá-lo sem moralismos ou quaisquer outros constrangimentos. 

A viver com escolta policial desde que o Charlie Hebdo sofreu um atentado (a capa da edição que então estava nas bancas era sobre o recém-lançado "Submissão"), Michel Houllebecq  é odiado pelos islamitas mas também, sem surpresa, pelas elites intelectuais mais engagées, tanto à direita como à esquerda. Penso que pelas contas dele não se terá saído nada mal, até porque com este seu sexto romance está a facturar como nunca...

O veneno do medo

Pedro Correia, 20.02.15

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 Foto AFP

 

É, desde já, uma das imagens mais terríveis deste ano ainda no início: um homem queimado vivo dentro de uma jaula onde estava preso como se fosse um animal selvagem.

Foi outra vítima do autoproclamado Estado Islâmico, o mais sanguinário movimento terrorista contemporâneo, que recua no terreno – como sucedeu há dias, em Kobane, numa batalha ganha pelas forças curdas – mas vai progredindo nos circuitos mediáticos. Porque cada vídeo com estes homicídios difundido nas redes sociais constitui um marco na estratégia de propaganda do fundamentalismo islamita que injecta nas sociedades contemporâneas aquilo a que o poeta mexicano Octavio Paz chamava “o veneno do medo”.

Vídeo após vídeo, fotografia após fotografia, somos inoculados pelo veneno do medo ministrado pelas bestas totalitárias. Que no Iraque, na Síria, no Níger, na Nigéria, no Iémene e em tantos outros países lapidam mulheres, desmembram homossexuais, crucificam cristãos, enterram crianças vivas. Com um ódio letal que nenhuma crença religiosa autoriza, nenhuma ideologia justifica, nenhuma doutrina é capaz de explicar.

O homem, um piloto jordano, chamava-se Moaz al Kasasbeh. Foi assassinado da forma mais bárbara – “executado”, como lhe chamaram os cultores de sofismas. E morto milhares de vezes depois disso nas redes sociais que reproduziram aquela cena macabra com a tranquila frivolidade utilizada dias mais tarde para difundir imagens do aniversário de Cristiano Ronaldo. Como se o culto da morte e a festa da vida fossem a mesma coisa.

 

Publicado originalmente no jornal i

Intolerância

Teresa Ribeiro, 13.01.15

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Quando se fala de intolerância relativamente aos imigrantes, por norma aponta-se o dedo aos povos anfitriões, partindo do princípio discutível de que é a quem recebe e está em maioria que devem ser cobradas as responsabilidades relativas ao bom convívio com as comunidades acolhidas. Mas o multiculturalismo deve pressupor uma abertura recíproca.

Não duvido que a esmagadora maioria dos muçulmanos emigrados no ocidente aspiram a viver em paz com os seus vizinhos infiéis, mas ao seguirem valores que antagonizam os nossos torna-se difícil evitar reservas de parte a parte. Quando vou à loja do indiano e encontro lá regularmente a mulher e a filha púbere, ambas de cabeça tapada e olhos no chão, sinto que aos olhos dele elas são mulheres puras enquanto que eu e a minha filha, que nos deixamos tocar descaradamente pelos olhos de todos os homens com quem nos cruzamos na rua, o não somos.

Confesso. Tenho uma relação de ódio com todas essas vestes que simbolizam a submissão feminina. Não odeio o indiano, que até é bem simpático para a freguesia, mas odeio alguns dos seus valores. Do lado de lá, não duvido, passa-se o mesmo. Quando se seguem princípios de vida incompatíveis, os choques culturais são inevitáveis.

Já li muitos textos a tentar justificar as pulsões assassinas dos putativos jihadistas nados e criados no ocidente. Todos falam da nossa intolerância e arrogância, politizam o discurso enumerando exemplos de atrocidades cometidas no passado e no presente, como se a maldade fosse um exclusivo nosso. Mas convém não esquecer que apesar das diferenças partilhamos a mesma natureza. A semente do mal faz parte do ADN  de "fiéis e infiéis" - para usar a terminologia deles. E se nós, ocidentais - recorrendo agora ao léxico dos católicos - pecamos pela soberba por nos acharmos superiores ao nível científico, tecnológico, cultural e civilizacional também eles o fazem quando reclamam para si mais do que a superioridade ética e moral, a superioridade tout court.

A nossa intolerância tem as costas largas. 

Da complacência do mundo muçulmano

Teresa Ribeiro, 11.01.15

A propósito do massacre do Charlie Hebdo, dos jihadistas que o perpetraram e dos extremistas islâmicos em geral, escreve Miguel Sousa Tavares:

"Deus é apenas a desculpa e o pretexto para a sua imensa cobardia. A deles e a de todos os muçulmanos, clérigos ou leigos que, pelo silêncio ou pela conivência ideológica, deixaram que a imagem do Islão esteja hoje irremediavelmente associada em muitos espíritos à da simples bestialidade humana"

(...)"O que temos de levar a sério é a complacência do mundo muçulmano para com aqueles que invocam a sua fé e a sua doutrina para espalhar o terror e minar os fundamentos das sociedades livres em que vivemos" - excertos da sua crónica da edição de ontem do Expresso