O sol da meia-noite
Saímos do aeroporto para uma via rápida, asfalto cinza antracite delimitado por barreiras metálicas e o habitual tracejado branco entre faixas. Tínhamos pela frente quase 40 quilómetros de estrada praticamente recta e deserta, o brilho de uns faróis traseiros algumas centenas de metros à nossa frente, e o dos faróis dianteiros de um ou outro carro que se cruzava connosco muito de vez em quando. De ambos os lados da estrada, terra plana e nua, e ao fundo, longe como uma miragem, a fiada de luzes que indiciava os arredores da cidade grande, o nosso destino.
Por cima de nós, muito baixas, nuvens cinzentas em rebanhos ou emprateleiradas, diáfanas umas, outras mais escuras, com formas achatadas, estranhas, nitidamente estrangeiras. Acima dos estratocúmulos, o céu desdobrava-se em gradientes de azul até ao rosa-quase-branco, um brilho a prometer raios de sol aberto para breve – assim as nuvens o deixassem. O carro ia comendo quilómetros, o motor a ronronar suavemente, e eu estava como que hipnotizada por aquele céu surreal. Eram duas horas da manhã, íamos a caminho de Reiquiavique e eu via, pela primeira vez na minha vida, o sol da meia-noite.
Num Verão da minha infância, os meus pais ausentaram-se durante algum tempo para irem num cruzeiro à Escandinávia. Regressaram satisfeitos, cheios de histórias com palavras novas e conceitos estranhos, como “fiorde”, “tivoli”, ou “sol da meia-noite”. Para uma criança de poucos anos, associar sol e noite é uma ideia inconcebível, e devo ter feito o que fazia com tudo aquilo que ultrapassava a minha compreensão: registei e arrumei na memória, sem pensar mais no assunto. Depois cresci, nas aulas de Geografia aprendi que o eixo da Terra é inclinado e que é essa a razão da existência das estações do ano, e o que são equinócios e solstícios, meridianos e círculos polares. Percebi finalmente o que é que significava, na teoria, “sol da meia-noite”. A hora de Verão, que só apareceu para mim quando já era adolescente, mostrou-me o que era ter claridade no céu até quase à hora de ir dormir; e numa viagem de comboio entre São Petersburgo e Moscovo assisti, às quatro da manhã, a um fascinante nascer-do-sol filtrado pela neblina que se desprendia de uma floresta interminável. Mas nada nem ninguém me preparou para a tremenda emoção causada pela beleza daquele meu primeiro verdadeiro sol da meia-noite.
É essencialmente pela visão que me apercebo do mundo. Nenhum estímulo é para mim tão forte como o visual. Os sons, cheiros e sabores complementam o que vejo, e o toque é o motor de certas reacções físicas – mas o deslumbramento, a fascinação, esses chegam-me pelo nervo óptico. E esta viagem que fiz na Islândia foi um festim para os meus olhos. Nuvens criativas, com formas bizarras, em colunas, em camadas, umas quase transparentes, outras de um cinzento carregado, às vezes tão baixas que parecia que bastava esticar o braço para lhes tocar, envolvendo os picos das montanhas como chantilly num bolo, ou confundindo-se com a água do oceano. Mar chão a fingir-se de espelho, reflectindo casas e barcos de cores berrantes, tornadas baças pela neblina parada. Ou em serpentinas brilhantes ondulando sobre a areia da praia na maré baixa. Cascatas magníficas de águas revoltas, despenhando-se em quantidades inimagináveis, espumando de ferocidade, mesmerizantes. Gelo de um azul inacreditável, ou muito branco mas raiado de negro, como se alguém tivesse deixado escorrer tinta-da-china, ou transparente como cristal. Montanhas nuas, pintalgadas de cores tão inesperadas que mais parecem uma tela saída das mãos de Cézanne, ocres e laranjas misturados com branco, cinzento-azulado ou antracite, verde-musgo, amarelo-desbotado e negro-lava. Nuvens de vapor a brotarem da terra fervente com aspecto de paisagem marciana. Se há lugares onde a expressão “excesso de beleza” é bem aplicada, a Islândia é um deles.
Viajar pela “terra de fogo e gelo” foi um carrocel – de trilhos e de emoções. Na maior parte do tempo éramos só nós, a estrada e a paisagem, ora contornando fiordes compridos, entrando pela terra adentro como garras de um qualquer dragão imaginário (ou não, quem sabe… no país das sagas, tudo é possível), ora subindo e descendo entre montanhas, percorrendo desfiladeiros que nos levavam, em menos de um ai, do verde dos pastos ao branco da neve, da atmosfera límpida à neblina fantasmagórica, do asfalto em espaço aberto ao caminho de cabras trepidante à beira de uma ravina. De vez em quando lá surgia um carro, uma caravana, um ciclista solitário, um trio de ovelhas, uma quinta rodeada de fardos de feno embrulhados em plástico verde-menta ou rosa-bombom. Depois chegávamos a uma cidade com ar de aldeia, casas baixas forradas a chapa perfilada, mais raramente de madeira, dispostas a espaços ao longo de ruas desenhadas a régua e esquadro, um pequeno supermercado, uma bomba de gasolina, uma igreja minimalista, uma quase ausência de pessoas. Nada que nos fizesse apetecer parar, por isso seguíamos rapidamente de volta à magnífica solidão das paisagens sem vivalma. Ou então encontrávamos uma localidade daquelas saídas directamente de um cartão-postal: à beira de um fiorde, com casinhas coloridas, um jardim, uma igreja original, arte urbana a animar as ruas – aqueles sítios onde apetece ficar.
Houve um sem-fim de momentos inesquecíveis nesta viagem. Houve dias luminosos, em que o sol nos aqueceu o suficiente para ignorarmos os casacos durante algum tempo. Houve dias gélidos, em que o frio ou o vento nos impeliam a voltar para o abrigo morno do carro, apesar de nos apetecer ficar mais uns minutos (ou horas!) a passear. Houve um final de dia de viagem dentro de uma piscina de água quente, com vistas para o mar e para a ilha de Drangey. Houve dias em que o sol nunca se mostrou, e menos ainda nas supostas horas nocturnas: o céu mantinha-se cinzento, só percebíamos que estava na hora de recolher apenas pela ligeira diminuição da luminosidade e pelos números digitais no relógio do carro.
E houve outros sóis da meia-noite, com o céu pintado de rosa e roxo, ou tingido com cores de fogo sobre o branco-fosco do glaciar Vatnajökull. Mas nenhum deles foi para mim tão emocionante como aquele meu primeiro sol da meia-noite.