A tua própria casa bem poderia ser o reduto último da calma e do sossego. Mas, como bem sabes, isso é praticamente impossível enquanto não tomares a decisão de entaipar portas e janelas e de, sobretudo, desligar definitivamente a internet, o rádio e a televisão. Até ao dia em que o fizeres, arriscas-te a topar, como ainda ontem aconteceu, com Isaltino de Morais e Não Menos Virtudes na tua própria sala, ali bem ao lado do retrato do teu avô Matias. Que só não se arruinou quando foi presidente da junta por teimar em ajudar alguns mais carenciados à custa do seu próprio bolso porque a tua avó Palmira lhe pôs os pontos nos is e, como isso não fosse suficiente, as malas à porta. É assim por tua única responsabilidade que tens de o ouvir, a ele Isaltino, que sempre verás esteja ou não a fumar, atrás de um charuto, a explicar que não, que quatro milhões de euros para estátuas no Parque dos Poetas não são por aí além e que o povo precisa de espaços ao ar livre para gozar a vida e a cultura. A ele, a esse mesmo, que enquanto investe os recursos públicos na nobre missão de dar destaque ao elemento água, esgota quantos recursos existem para cá de Alfa Centauro com o não menos louvável intuito de desviar os costados de um espaço razoavelmente confinado. E tu, e só tu, és o responsável por o veres já na gruta, não aquela onde os seus quarenta colegas escondiam o tesouro do Ali Babá, mas na de Camões, a afivelar o riso com que se vai burlando de ti e dos outros dez milhões de papalvos. Claro que tudo isto já era suficiente. Mas ainda tens direito a que o serviço impudico de televisão te informe, para isso o pagas, que já com a lua a aparecer, José Fanha declamou não sei o quê, pasme-se que não acompanhado de bandoleiros, mas de um bandolim. E que o Represas também lá esteve, rebentando o dique para dar corpo à "Bunda Engraçada" do Drummond e entoar o Amor é Fogo do Camões. Tudo isto ainda antes de se ter dado início ao espectáculo de luz na Fonte Cibernética. É claro que não era por aqui necessário que os políticos corruptos se suicidassem, como fazem alguns no Japão. Mas também não existe nenhum motivo que justifique que um tipo seja obrigado a quase morrer de vergonha por os ver, impávidos impunes, a laurear a pevide na televisão.