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Delito de Opinião

Isabel

José Meireles Graça, 29.01.20

ACTO I

Fernandes é causídico prestigiado, primeiro nome da conhecida sociedade que conta com dezenas de advogados e que faz parte do Olimpo das dez mais. Navegou na política partidária no tempo em que era preciso assegurar que Portugal não seria uma Cuba com bacalhau e o galo de Barcelos, mas afastou-se ao fim de poucos anos de exercício: a competição era feroz, a carreira incerta, a recompensa magra e o estatuto de has-been e senador muito mais apetecível. O seu clube era o PS mas a rede de amigos e contactos, cuidadosamente cultivada, é de vasto espectro: inclui quem tenha sido ou possa vir a ser alguém no que foi cunhado como o arco do poder. De meia-idade, tem um aspecto distinto e veste discretamente – uma casa na Saville Road tem as suas medidas. Hoje recebe à porta do elevador, acompanhado da secretária que abre prestimosamente as portas e que tomará nota do pedido de café e um sumo de laranja, uma cliente especial.

CENA ÚNICA

- O senhor general Keza, meu distinto amigo, disse-me que a sra. engª estaria interessada em contratar os serviços do meu escritório para a assessorar em várias iniciativas que pretende tomar para ampliar o seu leque de posições de relevo em empresas e instituições portuguesas. Devo desde já dizer, perdoe-me a brutalidade e a franqueza, que aceito desde que não me peça que a ajude a cometer infracções.

- Infracções, eu? Mas tem conhecimento de alguma de que eu esteja a ser acusada?

- Não, não tenho, e se tivesse aceitaria defendê-la. Refiro-me a ilícitos a praticar no futuro, visto que, honestamente, como admito que a origem da fortuna da senhora engª decorra de ligações familiares, não posso ajudá-la se em Portugal achar que pode agir como em Angola. Nós somos o país mais africano da Europa mas o que nos EUA e na Europa se pode descrever como corrupção, aqui, a última vez que funcionou com à-vontade foi no tempo do engº Sócrates, não sei se conhece. Agora, é preciso ver bem onde se põem os pés. Não digo que não se possa dar um jeitinho, e arredondar uns cantos, mas… não sei se está a ver.

- Estou. E sim, conheço esse, um que veste bem e tem um nariz batatudo. Mas esteja descansado. A origem dos meus fundos só é duvidosa para elementos da Oposição bem identificados. O que pretendo é agir dentro da maior legalidade. De resto, tenho razões para pensar que o vosso Governo vê com bons olhos o reforço da presença angolana na economia portuguesa.

- Não ignoro isso, claro, e sei que a senhora engª é muito apreciada e estimada ao mais alto nível. Está tudo bem, então. Resta-me acrescentar que, quanto aos meus honorários, sabe, este escritório é caro: temos aí uma nuvem de estagiários, moças e moços novos, que são quem realmente trabalha (nós é mais almoços, workshops e telefonemas) e só com a parcerística para o Estado, serviços e coisas assim ganhamos balúrdios, mas as despesas são muito grandes.

- Isso não é problema. Deal?

- Deal, senhora engª.

ACTO II

Bernardo suou as estopinhas para tirar a merda do curso, que aquela coisa da História da Economia nem sabia o que estava ali a fazer, fez um doutoramento em Berkeley com um trabalho sobre a correlação entre a população de cagarras nas Selvagens e a taxa de desemprego na Madeira e Porto Santo – séries longas, e deu aulas durante algum tempo nos Estates. Mas regressou: aquela coisa de só se poder atender as alunas de pós-graduação com a porta escancarada e as saudades do bacalhau assado na brasa deram-lhe um poderoso incentivo.

De regresso à pátria, arranjou colocação numa universidade privada e dedicou-se à consultadoria na área do investimento, sem todavia descurar a carreira académica, sendo autor de numerosos papers com seminais estudos econométricos, publicados nos sites da especialidade. Mas rapidamente concluiu que carecia de uma formação complementar, razão pela qual se inscreveu no PS, sob cujo patrocínio começou regularmente a participar em seminários e cerimónias oficiais.

Foi esta última graduação que lhe abriu as portas do Banco de Portugal e o acesso a escritórios de advogados especializados em negócios internacionais. Com um deles passou a uma íntima colaboração, dado que a extensa rede de investidores estrangeiros, mormente nacionais angolanos, russos e chineses, requeria a sua expertise e os seus contactos no sistema bancário e nos ministérios envolvidos.

De meia-idade, baixote e sobre o anafado, usa fatos de armazém aos quadrados e a gravata invariavelmente solta sob um colarinho que nunca aperta, por ter um pescoço taurino. Os amigos dizem-lhe que não parece um economista de sucesso, mas um guarda-livros. E ele sorri, concordando, acrescentando seraficamente que é um guarda-livros que ganha bem a vida.

CENA ÚNICA

- Ó sr. dr., fala-me numa participação estratégica de 25%. Mas tem a certeza de que isso me garante um grau de influência suficiente? Constato que o capital não está suficientemente pulverizado e não me parece que os accionistas engº Fulano e dr. Sicrano – pelo menos esses – não coloquem reservas. É que não vejo maneira de recuperar este investimento sem utilizar o banco para apoio às empresas onde já tenho interesses e algumas – aquela de que já falamos na Suíça, por exemplo, sabe? – onde pretendo vir a ter. De resto, como sabe, o meu propósito não é tanto parquear capitais – interessa-me a expansão dos negócios. E a si também, não sei se me entende.

- Entendo perfeitamente. Tanto que já tomei providências para lhe assegurar maioria no Conselho. Não maioria formal, bem entendido, mas maioria – como hei-de dizer? – decisória. Os custos indirectos envolvidos ainda não estão calculados, mas previno-a de que vão representar sempre à volta de 10% do custo da operação propriamente dita, para garantir as boa-vontades necessárias. Tenciono, quando tiver o estudo completo, dar-lhe conhecimento.

- Óptimo. Envia-me isso como?

- Ahahah, sra. engª. Não envio, como sabe não se remetem coisas que não podem ser lidas senão pelos seus olhos ou alguém de absoluta confiança. Acho melhor, quando chegar ao momento, telefonar ao dr. Beltrão. Dir-me-á depois se nos encontramos para discutir o assunto ou com quem devo discuti-lo.

- Não me parece mal. De quanto tempo precisa?

- Um mês deve chegar. Até lá, sra. engª.

ACTO III

Iiiih, rebentou o escândalo Luandaleaks. 715.000 documentos pirateados provam que o regime angolano era corrupto, parte da sua classe dirigente uma quadrilha e Isabel uma bandoleira. A nova autoridade angolana foi recrutada entre os membros da antiga que se distinguiam por um par de asas nas costas. Portugal aparece como receptador de bens roubados e, suspeita-se, numerosas personalidades portuguesas foram colaboracionistas, a troco de gordas prebendas. A comunicação social, farejando sangue, está em cima do assunto. Mas não muito, porque na enxurrada também podem ser arrastados os jornalistas avençados do grupo BES, cujos nomes talvez venham a ser revelados um destes lustros; e saírem feridos os partidos que têm sido, e são, de poder, em particular o PS, que é estruturante da democracia e não sei quê.

CENA I

- Precisamos de falar, sra. engª, com a maior urgência. Já viu as notícias de hoje?

- Vi, dr. Fernandes. Só estarei em Portugal na próxima semana, mas na segunda-feira posso aparecer, aí pelas 10H00. Acha bem?

- Perfeitamente. Cá a espero.

CENA II

- Faz favor de entrar. Muito bom dia sra. eng.ª, desculpe tê-la feito esperar um bocadinho mas estava com uma chamada urgente. De qualquer maneira, o que tenho para lhe dizer é rápido, pelo que não a vou demorar muito.

- Faça favor de dizer, então.

- Bom, basicamente é isto: Este processo do Luandaleaks não vai parar, porque já estão as instâncias europeias envolvidas e as autoridades portuguesas não terão outro remédio senão juntar-se à matilha. Os nossos amigos não podem ajudá-la por causa do contágio e já estão, desculpe dizê-lo mas sei que prefere a franqueza, a afastar-se para evitarem salpicos. De modo que se lhe posso ainda dar um conselho é que liquide as suas posições o mais depressa possível e vá pensando em encontrar um pouso longe daqui e de Angola – ouvi dizer que tem excelentes contactos na Rússia. Entretanto, devo preservar este escritório, que não quero ver associado a práticas menos claras, pelo que veríamos com bons olhos que encarasse a hipótese de confiar a representação dos seus interesses a algum dos seus outros advogados.

- Percebo, dr. Fernandes. Passar bem.

- Um muito bom dia, sra. engª, acredite que foi um gosto trabalhar consigo.

CENA III

- E então, dr. Bernardo, já analisou as propostas de compra que lhe enviei?

- Já, sra. engª. Mas tenho andado aqui a magicar e não sei bem como lhe dizer isto mas os meus associados são de parecer que não é do interesse da nossa sociedade continuar a prestar-lhe serviços de assessoria porque queremos evitar danos reputacionais. Fui instruído no sentido de sugerir que transfira os dossiers em curso para os seus consultores no Mónaco, que são perfeitamente capazes de lidar com a situação.

- No Mónaco?! Mas não estão ao corrente senão muito pela rama da situação em Portugal…

- Tanto melhor. Pelo menos estão ao abrigo de pressões. Nós não estamos, não sei se me entende.

- Entendo perfeitamente, dr. Bernardo. Passar bem. Saio sozinha, conheço o caminho.

- Adeus, sra. engª.

ACTO IV

O apartamento tem a frieza de uma casa raramente habitada e está deserto, salvo a criadagem. Do quarto vê-se o parque Eduardo VII. Isabel tira os brincos e vê-se ao espelho a dizer em voz alta: Piores que pretos, estes portugueses.

 

CAI O PANO

m'espanto às vezes

Diogo Noivo, 22.01.20

Há algo que me fascina no caso de Isabel dos Santos: aqueles que a apoiaram, que enalteceram o seu investimento na economia portuguesa, que se desdobraram em vénias, que acusaram de provincianismo quem recomendava prudência (troque “Isabel dos Santos” por “República Popular da China” e verá o futuro, caro leitor), desapareceram. Pura e simplesmente desapareceram. A Helena Matos escreve no Blasfémias que esta gente lhe dá asco. Eu ainda estou na fase da estupefacção.

Em defesa da corrupção

José Meireles Graça, 17.01.20

Pessoas em geral de bom conselho dizem-me, a respeito do meu hábito persistente de ver a Circulatura do Quadrado: O quê, esses marretas? Deixei de os ver há anos.

Se deixaram, deixaram mal. Porque nenhum daqueles três tipos é um idiota. À sua maneira, representam três formas convencionais e tradicionais de ver as coisas; e são um espelho vivo do bloqueio em que o nosso país se encontra. O eleitorado, porém, do nevoeiro da sua ignorância e distracção, fareja esse bloqueio e como não vê ninguém que lhe aponte algum caminho convincente diferente do de qualquer daqueles senhores (isto é, o PS tachista, o CDS europeísta e adepto do respeitinho e da missa dominical, e a esquerda bloquista sacrificando no altar da economia do endividamento, do calote e da redistribuição do que não há) enervantemente previsíveis, batidos e falhados, abstém-se.

Noutra maré, se calhar, escreverei sobre isso. Hoje, é só sobre o prato de resistência do último programa, relativo à corrupta (não tenho dúvidas de que o seja) Isabel dos Santos e a perseguição de que está a ser objecto por parte das novas autoridades angolanas. Aquelas luminárias pronunciaram-se do seguinte modo:

Jorge Coelho acha que o poder judicial angolano e o presidente Lourenço estão a desencadear um meritório esforço, já com impressionantes resultados (p. ex, ex-ministros presos) para combater a corrupção, e que as autoridades portuguesas acompanham esse esforço com simpatia. E que, tanto quanto sabe, aquando da transferência de fundos que Isabel fez para Portugal, todos os deveres de diligência das autoridades portuguesas foram cumpridos. As excessivas proclamações de Pacheco Pereira sobre o regime angolano e as suas realidades são uma manifestação de neocolonialismo, acrescentou (grande Coelho, às vezes tem-nas boas).

Lobo Xavier disse que, se a origem dos fundos de Isabel é duvidosa, hoje seria impossível passarem pelo crivo dos bancos, por causa do controle da circulação de capitais, da prova da legitimidade da origem dos fundos, e do combate ao branqueamento de capitais e ao tráfico de droga, acrescentando que Portugal tem um controle rigorosíssimo, para toda a gente sem excepção, e agravado para pessoas politicamente expostas. Ele, Xavier, aprova estas coisas, dá a entender, de mais a mais porque têm origem nas instâncias europeias, portanto ungidas de lucidez, da qual há um cruel défice nestas paragens do extremo ocidental dos Estados Unidos da Europa.

Pacheco entende que Angola é um país muitíssimo corrupto, que a sua classe dirigente é uma corja de ladrões, e dá, com generosidade, o benefício da dúvida a Lourenço, esperando para ver, mas sem grande fé. Em Portugal reina, além da corrupção, a hipocrisia, porque nunca ninguém teve dúvidas que os fundos de Isabel resultam de pilhagem e todavia sempre lhe estenderam a passadeira vermelha, a mesma que agora se apressam a retirar. Coisa que Pacheco também não acha bem, por não apreciar que se bata em quem está na mó de baixo (o bom do Pacheco acerta uma, de longe em longe).

Eu não acho nada disto, e pelo contrário sou adepto da hipocrisia, da aldrabice e da corrupção. Quer dizer que estou mais perto, mas mesmo assim ainda distante, de Coelho do que dos outros dois.

Explico:

O combate à fraude e evasão fiscais, pelo qual juram todos os responsáveis políticos, em toda a parte, esbarra na independência dos países, e não pode ser, e não é, universalmente assegurado. Há paraísos fiscais até mesmo nos Estados Unidos, incluindo garantias de absoluta confidencialidade, aproveitando o facto de aquele país ser federal e haver Estados federados que nisso encontram substanciais rendimentos. E a férrea, e muitíssimo estúpida e perigosa, ditadura do Banco Central Europeu, do qual o nosso Banco de Portugal é um miserável balcão, pode servir para liquidar a banca portuguesa, o que aliás já quase completamente sucedeu; mas não pode servir para combater senão a pequena evasão fiscal – os frutos da corrupção encontram, porque os há, outros caminhos, lá onde os Pachecos, e os Blocos desta vida, não fazem as regras nem desconfiam da riqueza por acharem que, salvo prova em contrário e mesmo assim, é suja.

A independência das nossas antigas colónias deveria recomendar a abstenção de atitudes de interferência nos assuntos internos desses países, como são as tentativas pueris do Ministério Público de incriminar cidadãos estrangeiros, próceres decaídos de regimes que achamos, e são, por boa parte ilegítimos, mas sobre os quais não temos, enquanto país, que ter opinião. De resto, se as relações entre Estados se norteiam pelos sãos princípios das credenciais democráticas dos regimes, conviria pôr o dinheiro chinês pela porta fora – a China pode ser descrita de muitas maneiras, mas como uma democracia não.

Afastar fundos de Portugal, sob pretexto de que o dinheiro, aqui, tem odor, e o a esturrado rejeitamos, poderia garantir uma medalha da ONU, se na ONU não mandassem países como a China ou os EUA, e outros que não têm interesse em promover ingenuidades e frescuras. Essa condecoração, porém, acompanharia as orelhas de burro que por direito próprio já temos, dado que a corrupção no mundo não diminui pelo facto de não a aceitarmos

Defendo, portanto, a corrupção – lá fora.

Portugal não é já, e há muito, um país independente (isto é, com aquele módico de independência que os países pequenos e pobres podem ter), porque está ligado à máquina do BCE para sobreviver, porque precisa dos fundos europeus para investimento e sustentar funcionários e agências parasitas, e porque é para os países ricos europeus que exporta os seus excedentes de mão-de-obra qualificada. Portanto, hostilizar as autoridades europeias não é viável, porque nem os portugueses o compreenderiam.

Defendo portanto a aldrabice: os responsáveis políticos devem defender em público todos estes combates virtuosos, e sapá-los o mais que possa ser, incluindo o abandono da condição de bom aluno. Bom aluno só na medida necessária para que o professor não tope que estamos a aldrabar nos exames.

Pergunta-se: Sendo evidente que o interesse nacional não fica defendido pelo efeito de termos todos um par de asas nas costas, mas provável que o eleitor médio, movido pelo ódio que tem aos nossos ricos, que já quase não existem, o torne extensivo aos ricos dos outros, que deve o político responsável e patriota fazer?

Ser hipócrita: pregar uma coisa e fazer outra. Suspeito que é isso que acha Coelho provavelmente, Lobo Xavier talvez, e Pacheco não.

Defendo portanto a hipocrisia.