Teu irmão, teu rival
Outro dia, li uma publicação no Facebook sobre um tema que me é caro: a rivalidade entre irmãos. O foco eram os irmãos alemães Rudolf Dassler (1896 – 1974) e Adolf Dassler (1900 – 1978), fundadores da Adidas e da Puma (Adidas vem do nome pelo qual o irmão mais novo era conhecido na família: “Adi”, de Adolf, a que se juntaram as três primeiras letras do apelido: “das” de Dassler). Apesar de não ter havido nenhum crime, eles foram comparados a Caim e Abel, por causa da rivalidade que marcou a sua relação. Começaram aliás por fundar a Adidas juntos, mas haveriam de se separar, completamente incompatíveis (daí a fundação da Puma, por Rudolf Dassler).
Nessa menção a Caim e Abel, Paulo Marques, o autor do postal, dizia: “trágica e tristemente, foi entre dois irmãos que se deu o primeiro homicídio da história da humanidade”. Na minha opinião, porém, e num contexto criminal, o acontecimento não é, nem especialmente trágico, nem especialmente triste. Vejo-o como um símbolo muito forte, como o são praticamente todos os acontecimentos relatados na Bíblia. Sejamos crentes, ou não, a sua leitura despoleta (ou “espoleta”, para os mais puristas) reflexões sem fim. A Bíblia é a história da condição humana: conflitos, lutas, ciúmes, traições, tristezas, alegrias, desesperos, obediência cega, heroicidades e, last but not least, a nossa impotência perante as forças da Natureza, venham elas em forma de dilúvio, secas, pragas ou outras, independentemente de acreditarmos, ou não, serem baseadas em castigos divinos.
O crime de Caim sobre Abel é, por isso, um símbolo fortíssimo, ao lado de tantos outros. Irmãos eram, são e serão sempre rivais. Mesmo que se dêem bem, há sempre algo por resolver, algo de inquieto, desconfortável, na base do seu "amor". E os pais são os principais responsáveis por essa instabilidade latente. As comparações, as preferências, a vontade de irritar um deles e elogiar o outro (sempre os mesmos, nisso, os pais não alternam), tudo isso, levado ao extremo, pode desembocar numa grande tragédia. Tudo depende da intensidade que os pais põem nessas suas, digamos, inconstâncias. O carácter inato dos irmãos representa um papel bem mais pequeno, pois é, acima de tudo, manipulado pelos pais (mesmo que inconscientemente).
Acham que estou a exagerar? Vamos então à Bíblia! O que gerou tão grande ódio em Caim? A diferença com que Deus o tratou, em relação ao irmão. Sem ser explicada a razão, Deus preferiu as oferendas de Abel, desprezando as de Caim, apesar de este tentar, por todos os meios, agradar-Lhe. Sim, os pais biológicos eram Adão e Eva, mas, na Bíblia, Deus é definido, inclusive por Jesus Cristo, como o Pai por excelência, o Pai da Humanidade.
No seu romance Caim, Saramago mostra compaixão pelo assassino, levado a exercer um crime por Aquele que devia ser o símbolo máximo da Justiça. Porém, na Bíblia, assim como na vida real, ninguém quer saber das razões que levam um irmão a odiar outro. O insatisfeito, aquele que reclama, é sempre apelidado de ciumento, invejoso, violento e sabe-se mais lá o quê. Parece ser-nos mais confortável enchê-lo de epítetos negativos, vê-lo como uma figura fraca, reles, desprezível. Sim, é muito confortável. Dá-nos a ilusão de sermos superiores, justos, cândidos.
Podemos perguntarmo-nos qual a razão de Deus ser tão injusto, neste episódio. Como já o disse acima, temos motivos de sobra para reflectir. Mas é pena que, na maior parte das reflexões, a atitude de Deus não seja identificada com a de muitos pais. Podiam evitar-se infelicidades e até crimes. Seria para isso que o autor nos tentava chamar a atenção?
Nota: o título deste postal foi inspirado no título de um capítulo do meu romance Dom Dinis, a quem chamaram o Lavrador. Sim, também o nosso rei-poeta, um rei caracterizado como justo e culto, nunca conseguiu estabilizar a sua relação com o irmão mais novo. Chegaram mesmo a guerrear-se.