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Delito de Opinião

Este já não oprime mais ninguém

Pedro Correia, 10.12.24

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Aquilo que se convencionou chamar Síria era desde 2011 uma ficção político-jurídica há muito fragmentada em vários territórios com diversas esferas de influência. Era também uma falsa república: funcionava como monarquia absoluta, corrupta e opressora. Com a família Assad no poder desde 1971 - primeiro Hafez (1971-2000), depois o filho mais novo, Bachar, após o falecimento do primogénito. Ambos elegeram a violência extrema contra a população e a implacável perseguição aos opositores como instrumento político.

Este bárbaro regime sobreviveu por um fio à vaga das chamadas "Primaveras árabes" de 2011. Caídos os déspotas da Tunísia, do Egipto, da Líbia e do Iémene, só Assad júnior se aguentou, mantido por conveniência da Rússia, que fez daquela proto-colónia um posto geoestratégico garantindo-lhe um dos cinco ou seis votos incondicionais que Moscovo sempre granjeou em sua defesa e louvor na Assembleia Geral da ONU. 

Assad funcionou como fantoche útil de Moscovo até a férrea resistência ucraniana forçar Vladimir Putin a concentrar ali o esforço de guerra, desviando tropa e logística militar para defender Kursk e atacar no Donbass. A sua queda não causa apenas danos políticos e reputacionais à Rússia: também a teocracia de Teerão acaba de sofrer dura derrota ao ver este fiel aliado derrubado pela insurreição popular. Caiu de podre, sem nenhum sírio a defendê-lo na hora da derrocada.

O torcionário deposto serviu o Kremlin enquanto lá estava, mas perdeu utilidade. Dar-lhe guarida por "motivos humanitários", como diz Putin, é retórica vazia de conteúdo. O ditador russo ignora o significado do termo humanitário e manda assassinar com a naturalidade de um capo mafioso. Se quer preservar a pele no exilio de Moscovo, Assad deve abster-se de tomar chá e manfter-se afastado de varandas ou janelas.

Inaceitável símbolo de submissão

Pedro Correia, 16.04.24

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No Irão, milhões de mulheres - sobretudo jovens - protestam contra a camarilha de clérigos que as forçam a sair à rua de cabeça tapada com o véu islâmico, o hijabe. É-lhes negado algo irrestrito entre nós: passear de cabelo descoberto.

Há sempre alguém que diz não. Mas aquelas que o fazem arriscam severas medidas punitivas, incluindo chibatadas e prisão até dois meses, segundo prevê o código penal decretado pela teocracia de Teerão. Várias têm sido assassinadas pelos esbirros da famigerada Polícia da Moralidade. Foi o que aconteceu em Setembro de 2022 à malograda curda iraniana Jina Amin, distinguida a título póstumo com o Prémio Sakharov, do Parlamento Europeu.

Por tudo isto, chocou-me ver ontem uma jornalista portuguesa, ao serviço de um canal televisivo, deslocar-se à legação diplomática do Irão em Lisboa de hijabe no cabelo para entrevistar o embaixador. Presumo que lhe tenha sido ditada essa condição para chegar à fala com o representante daquele regime totalitário. Se assim foi, devia ter recusado de imediato. Em solidariedade com as vítimas da brutal repressão imposta por uma clique de velhos fanáticos que odeiam as mulheres. Torturam-nas, violam-nas, matam-nas. Como se não fossem gente. Como se não fossem ninguém.

Anda tudo trocado. Elas, que são obrigadas a usar aquilo, rebelam-se dignamente contra tal dogma. As de cá, livres como o vento, aceitam envergar aquele inaceitável símbolo de submissão sem que nada as force a isso. Nas mesmas televisões que já nos falam até à exaustão do 25 de Abril mas se esquecem sempre de assinalar quais são os países onde nenhum 25 de Abril chegou ainda.

Quando um véu vale mais do que uma vida

Pedro Correia, 20.10.23

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O Hamas é financiado, treinado e armado pelo Irão, Estado teocrático e homicida.

Inimigo n.º 1 do Ocidente.

Inimigo n.º 1 do seu próprio povo.

Capaz de liquidar jovens indefesas, como a curda Jina Mahsa Amina, ontem justamente distinguida (a título póstumo) com o Prémio Sakharov pelo Parlamento Europeu. Morta após três dias de cruel detenção pela polícia religiosa por se ter alegadamente atrevido a sair à rua com o véu islâmico mal posto.

É indispensável que as jovens portuguesas de 22 anos (idade da infeliz Jina, assassinada em Setembro de 2022) saibam que ainda existem ideologias totalitárias prontas a pôr um pedaço de tecido acima da vida humana.

Raras vezes um prémio foi tão merecido e comovente como este, extensivo ao movimento de libertação das mulheres iranianas. O Parlamento Europeu - que nele honra a prestigiada memória de Andrei Sakharov, outra vítima do totalitarismo - volta a ser digno de elogio.

 

Leitura complementar:

- Os barbudos que odeiam as mulheres (25 de Setembro de 2022)

- Onde estão as feministas? (18 de Outubro de 2022)

Ainda o Dia Internacional da Mulher

Pedro Correia, 09.03.23

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No Afeganistão:

O brutal regime de Cabul discrimina as mulheres de todas as idades, começando pelas mais jovens, impedidas de frequentar o ensino secundário e universitário. Os casamentos forçados e as violações são frequentes no Afeganistão, onde a camarilha talibã tomou o poder em Agosto de 2021. Após 20 anos de inédita liberdade neste país, as mulheres voltaram a ser banidas da política: até esse Verão, preenchiam 27% dos assentos parlamentares. Hoje não são autorizadas a usar transportes públicos excepto na companhia de um homem da sua família. Em regra, só podem sair de casa devido a assuntos urgentes, mas terão de usar burca. Activistas dos direitos das mulheres são sistematicamente detidas e agredidas nas esquadras policiais. O Ministério dos Assuntos Femininos deu lugar ao Ministério da Propagação da Virtude e da Prevenção do Vício.

 

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No Irão:

O brutal regime de Teerão discrimina as mulheres, tratando-as como cidadãs de segunda classe. Permite a violência contra mulheres e tolera a exploração sexual de meninas. Prende, multa e açoita mulheres por aparecerem em público sem cobrir os cabelos com o véu islâmico. Reprime ferozmente as activistas pelos direitos das mulheres. Pune desproporcionalmente as mulheres no sistema judicial. Nega às mulheres todas as oportunidades políticas e económicas. Favorece os homens em detrimento das mulheres nas lei de família e sucessões. As mulheres que forem apanhadas de cabelo descoberto e roupas consideradas "imorais" podem ser presas durante dois meses pela Polícia da Moralidade criada após a implantação da ditadura teocrática, em 1979. Em alternativa, o código penal iraniano prevê que recebam «até chicotadas».

Rushdie Comes Again

jpt, 08.02.23

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(Fotografia de Richard Burbridge)

Na The New Yorker um grande artigo - "The Defiance of Salman Rushdie", escrito por David Remnick - sobre o regresso de Rushdie, debilitado mas recuperado do fanático atentado que sofreu há meses.... Encontro-o na página da revista no Twitter, na qual a este propósito abundam os comentários pejados da sanha assassina dos fascistas idólatras da superstição, uma coisa pavorosa.
 
(Uma viscosa aberração que é também "muito cá de casa". Pois não propôs há tão pouco tempo o PS de Costa um candidato ao Tribunal Constitucional, antigo governante de Guterres, íntimo correligionário de Sócrates, que como deputado dizia no parlamento serem os terroristas islamitas iguais aos artistas ditos iconoclastas - e isso diante do silêncio geringôncico, que para esse indivíduo não houve escrutínio"woke" nem "causas" libertárias?).

Irão e China em luta pela liberdade

Pedro Correia, 05.12.22

«A palavra "revolucionário" só pode aplicar-se a revoluções cujo objectivo é a liberdade.»

Hannah Arendt

 

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Foi preciso morrerem pelo menos 500 pessoas - incluindo muitas crianças - nos protestos iniciados em 16 de Setembro no Irão devido à fúria repressora da ditadura teocrática que ali vigora desde 1979, para os aiatolás recuarem, atemorizados pela imparável vaga de manifestações populares. O regime de Teerão acaba de anunciar a dissolução da sinistra "polícia da moralidade" que perseguia, torturava e matava mulheres só por não cobrirem todo o cabelo com o véu islâmico. É o princípio do fim da tirania, graças à imensa coragem cívica de largos milhares de jovens que correm o risco de ser condenados à morte pelo simples facto de reclamarem direitos, liberdades e garantias considerados banais em diversas outras parcelas do globo - incluindo, felizmente, em Portugal.

 

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Também em Pequim a ditadura está em recuo. Pressionada igualmente por gigantescos protestos em várias cidades e vilas do país. Da parte de gente que vai perdendo o medo e ousa desafiar os mecanismos de repressão do estado policial chinês, controlado desde 1949 em monopólio absoluto pelo Partido Comunista. Destituídos dos mais básicos direitos, incluindo o direito de sair de casa e de circular na rua a pretexto de um "controlo sanitário" que dura há quase dois anos, os chineses atrevem-se a dizer "basta". Muitos já exigem não apenas o fim das restrições impostas a pretexto do combate ao covid-19 mas a demissão do líder supremo, Xi Jinping. Acossado pelos protestos, o regime começou a suavizar as normas sanitárias. Enquanto a proscrita palavra "liberdade" vai ecoando cada vez com mais força em praças e avenidas por multidões de jovens

Catar 2 - Irão - Inglaterra

jpt, 21.11.22

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No final do jogo estava 2-6. Mas estes tipos ganharam, e por muitos. (Sim, sei que foucauldianos, decoloniais, caçadores de epistemicidas, neo-feministas, abissófilos, racialistas e racializados, no fundo "@s de todo mundo, uni-vos" não lhes ligam muito. Mas, já agora, os outros também não!).

Onde estão as feministas?

Pedro Correia, 18.10.22

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Fez anteontem um mês que Mahsa Amani, jovem curda 22 anos, foi morta num estabelecimento prisional iraniano. Havia sido detida pela imoral Polícia da Moralidade, acusada de um enorme pecado: não tinha o véu a cobrir-lhe parte do cabelo.

É assim que as mulheres são tratadas no Irão dos nossos dias. Como se ali vivessem mergulhadas nas trevas medievais. 

Mahsa não foi a primeira, nem a décima, nem a centésima vítima da repressão do totalitarismo islâmico que vigora em Teerão desde 1979, com a complacência de muitas bempensâncias do Ocidente. O simples facto de os trogloditas iranianos serem anti-americanos primários é quanto basta para lhes merecer simpatias junto de círculos académicos e jornalísticos na Europa Ocidental - incluindo Portugal

 

Acontece que aquele cobarde homicídio funcionou como um rastilho de revolta que se revela torrencial.

Qual a diferença desta vez? Vem resumida num excelente título da BBC: «As gerações mais jovens estão a iniciar uma revolução.»

Sem temor reverencial face aos aiatolás barbudos que odeiam as mulheres

 

Os esbirros do regime pensaram que tudo se resolveria como sempre: com repressão impiedosa contra quem se atreveu a reclamar nas ruas. Enganaram-se: os protestos alastraram a todas as províncias do Irão. O simples facto de uma mulher ousar tirar o véu que os clérigos lhe impõem a todo o momento no espaço público já é uma forma de dizer não.

Como escreveu o Guardian, algo nunca visto estava a concretizar-se: iranianos de várias idades e condições sociais começaram a arriscar tudo pelos protestos.

Os gritos de revolta inicial contra a brutal teocracia misógina transformaram-se num imparável coro contra a tirania. Em vaga espontânea e crescente, provocando amplos movimentos grevistas nas indústrias de extracção de petróleo e gás natural, fundamentais para o regime. Sem medo. Apesar da impiedosa reacção da camarilha que ocupa sem legitimidade o poder em Teerão há 43 anos. E que já provocou pelo menos duzentas vítimas mortais - incluindo 23 menores.

 

Enquanto isto acontece, e suscita manchetes em todo o mundo, surpreendo-me com o silêncio cúmplice de tantas vozes em Portugal.

Onde estão as nossas feministas?

Por que motivo tantas mulheres com acesso às tribunas de opinião nos espaços mediáticos portugueses, designadamente nos jornais e nas televisões, ainda não esboçaram sequer um sussurro de protesto contra a vaga repressiva que se abate sobre as principais vítimas da violência governamental no Irão, que são mulheres também?

Algo vergonhoso - e que as desacredita para sempre. Até para as indignações selectivas devia haver limites, mas pelos vistos não há.

Com o Irão?

jpt, 28.09.22

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Há dias aqui deixei ligação à minha análise do Chéquia-Portugal (0-4): na qual me limitei a expressar a minha estupefacção pela ausência de uma acção simbólica dos jogadores em solidariedade para com Mahsa Amini, a iraniana assassinada pela polícia por não cobrir devidamente os cabelos, e para com os inúmeros iranianos entretanto assassinados nos protestos subsequentes. Tal como referi algum espanto pelo silêncio do jornal da SONAE, carregado de identitaristas activistas, bem como dos sempre tão solidários em causas anti-americanas BE e LIVRE, que não se aprestaram à mobilização de arruadas contra estes factos. Em parte é compreensível, consabida que é a soez hipocrisia destes esquerdistas de "campus" e avenças... Mas o mesmo não se esperaria dos nossos jogadores, lestos a ajoelhar-se por uma morte masculina americana, mas agora prontos a encolher os ombros diante de inúmeras mortes iranianas. Por isso titulei o postal com um "O Futebol Não É Para Mulheres!".
 
Fica agora a notícia que os jogadores da selecção do Irão têm a coragem de afrontar a sua vil ditadura, simbolicamente usando casacos negros sobre o equipamento. Está dado o mote - não a@s esquerdalh@s lus@s, que continuam algo silenciosos face a estas ocorrências, encerrados na sua vilania de prosápia identitarista. Mas sim aos jogadores da bola... 

Os barbudos que odeiam as mulheres

Pedro Correia, 25.09.22

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Teocracia islâmica oprime o Irão há 43 anos

 

O Irão está em pé de guerra. Não contra outro país, mas contra si próprio. Ou antes: o Estado teocrático dos aiatolás declarou guerra ao povo iraniano. Sobretudo às mulheres. Pelo simples facto de serem mulheres. 

Há estados totalitários onde impera o ódio de classe ou o ódio racial. No Irão sob a bota dos clérigos barbudos impera o ódio sexual. Os aiatolás - alvos de tanta tolerância e "compreensão" em círculos bem-pensantes do Ocidente - odeiam as mulheres. E agem em conformidade, exercendo sobre elas uma repressão permanente, que agora suscita um gigantesco levantamento popular neste país sujeito há 43 anos a uma das mais ferozes ditaduras do planeta.

 

Tudo começou no dia 16 com a morte de uma jovem iraniana curda, detida e agredida pela imoral "Polícia da Moralidade" por mostrar parte do cabelo na via pública, algo interdito neste Estado que em 1979 mergulhou nas trevas medievais.

Mahsa Amini, de apenas 22 anos, sucumbiu à violência policial. As suas imagens, já agonizante, indignaram milhões de jovens de ambos os sexos que agora arriscam a vida nas ruas. Revoltam-se contra a brutalidade do totalitarismo islâmico neste país onde nascer mulher é sofrer dupla indignidade.

 

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Mahsa Amini, assassinada aos 22 anos no Irão por «mostrar o cabelo»

 

Os clérigos, assustados com a revolta popular em todas as províncias do país, fizeram aquilo em que mais se especializaram: ordenaram aos esbirros do poder que atirassem a matar. Pelo menos 50 pessoas já tombaram sob as balas assassinas. A tropa está a ser mobilizada para esmagar a rebelião civil, entre apelos públicos da ala mais extremista do regime à execução sumária dos jovens que se atrevem a desafiar o Governo.

Mas a rebelião cívica continua: mulheres sem véu exibem com orgulho o cabelo na via pública, jovens registam imagens que divulgam nas redes sociais apesar de o Governo ter imposto sérias restrições à internet. Nas ruas, a palavra mais escutada é «liberdade».

 

A nova vaga de protestos pode ser afogada em sangue, como aconteceu em 1999 e 2009, às ordens de um regime repugnante, que apenas subsiste pelo aparelho repressivo montado ao longo destas quatro décadas. Detenções ilegais de opositores e a prática de tortura nas prisões tornaram-se banais no Irão, como tem denunciado a Amnistia Internacional.

Estes barbudos que odeiam as mulheres são hoje fortes aliados de Vladimir Putin e da sua corte de oligarcas, algo que faz todo o sentido. Estão bem uns para os outros.

Aquilo do Irão

jpt, 08.01.20

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Não sei o que se passa no Irão/Iraque - e estou certo que não serei o único. Creio que dentro de alguns anos um Oliver Stone mais ou menos o demonstrará, num ritmo mais ou menos trepidante, e com uma visão mais ou menos crítica do sistema americano, e elegendo como herói protagonista e exemplo salvífico um funcionário mais ou menos desalinhado. Trata-se do molde western da (auto)crítica dominante no indústria cinematográfica, de facto seguidora do corberismo de Lampedusa, aquilo mais ou menos do tem que se mudar algo para não se mudar nada ...

Dito tudo isto, e face à iraniofilia que grassa na esquerda portuguesa, muito gostei deste cartoon. O autor é o renomado iraniano Mana Neyestani, há anos exilado em França. É evidente o que o eixo BE-PCP-Livre-PS (MES) dele diz ou diria (se o conhecesse): é um "dissidente", um "agente da Voz da América". 

Os mais novos não se lembrarão desta retórica. Os mais velhos lembram-se, decerto. Dominou durante décadas, de apoio às piores das ditaduras em nome do anti-americanismo e, de facto, da aversão à democracia. Serviu para tudo justificar, para a tantos insultar e perseguir. Continua viçosa, vê-se, pois ""não há nada de novo sob o sol" (Eclesiastes 1:9).

 

Fora a árbitra

Pedro Correia, 20.02.19

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Vejo contínuas referências no discurso informativo corrente à chamada "revolução iraniana", consumada em 1979. Raras vezes numa perspectiva crítica - começando pela terminologia adoptada, induzindo o leitor ou o telespectador a pensar que em Teerão, há 40 anos, se registou um salto qualitativo em vez de uma manifesta regressão social e cultural. O Irão contemporâneo é uma feroz teocracia que prende, tortura, exila, violenta e mata. Mas estes verbos só costumam ser associados, no tal discurso jornalístico corrente, ao regime anterior, o da monarquia derrubada pelos aiatolás e as suas turbas fanatizadas.

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Acabo de saber que a televisão pública do Irão proibiu, em cima da hora, a transmissão do jogo entre o Bayern de Munique e o Augsburgo, referente ao campeonato alemão, porque esta partida era arbitrada por uma mulher. De calções e cabelo solto, contrariando os decretos dos imãs, que continuam a mandar velar cabeças e corpos das iranianas a partir do momento em que deixam de ser crianças: só podem aparecer em público de rosto e mãos a descoberto. 

É a este regime que alguns, por cá, continuam a conceder o epíteto de "revolucionário", por ter derrubado a "tirania do Xá". Como se não tivesse instaurado uma tirania muito pior, com a sua polícia religiosa, o seu vergonhoso cortejo de presos de consciência e o seu veto sistemático à participação das mulheres na vida política, nomeadamente como candidatas às eleições presidenciais.

Afinal, porquê tanta benevolência noticiosa? Apenas porque o Irão é um dos maiores inimigos públicos dos EUA e alguns, possuídos da mais primária ideologia anti-americana, ainda medem o seu posicionamento em função deste critério, decorrente da Guerra Fria. Nada mais absurdo, nada mais anacrónico. E o mais caricato é que muitos destes companheiros de estrada da teocracia iraniana passam o tempo a bater a mão no peito em invocação dos direitos humanos e das liberdades, negando na prática aquilo que apregoam na teoria.

Israel admite operação secreta sob o manto da "doutrina Begin"

Alexandre Guerra, 21.03.18

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Um dos F-16 israelitas da Esquadra 253, momentos antes de levantar voo na noite de 5 de Setembro de 2007, com destino ao complexo de Al Kibar em Deir Ezzor na Síria/ Foto:IDF

 

Em relação ao programa nuclear iraniano, tive sempre a convicção de que estaria muito longe de representar qualquer ameaça imediata para a região do Médio Oriente. Mesmo quando este tema estava no topo da agenda das preocupações de Washington, poucas dúvidas tinha de que os esforços de Teerão se limitavam a pouco mais do que a instalação de centrifugadoras em cascata. Esta quase certeza não tinha como base qualquer fonte privilegiada de “intelligence” junto do regime dos ayatollahs, mas apenas um facto muito simples, embora revelador: se houvesse o menor indício de ameaça a curto ou a médio prazo por parte do Irão, os caças-bombardeiros israelitas não perderiam tempo na destruição de qualquer alvo suspeito. Porque, a partir do momento em que os serviços de “intelligence” israelitas reunissem informação que colocasse o Irão na iminência de alcançar a bomba atómica, Israel atacaria cirurgicamente as várias instalações nucleares iranianas, sem qualquer aviso prévio, incluindo a Washington, que só deveria ter conhecimento da operação quando aquela já estivesse em curso.

 

Este princípio tanto se aplica ao Irão como a qualquer outro país da região, nomeadamente a Síria e o Iraque. A Mossad está sempre atenta a tudo o que se passa à sua volta, tal como sempre esteve em relação aos programas nucleares da Síria e do Iraque, tendo no passado agido preventiva e militarmente contra estes dois países a partir do momento em que se sentiu, efectivamente, ameaçada. Esta Quarta-feira, como forma de aviso ao Irão, o Governo israelita admitiu uma dessas operações secretas, ocorrida em 2007.

 

Na noite de 5 para 6 de Setembro de 2007, o primeiro-ministro, Ehud Olmert, pôs em prática a “doutrina Begin”, através de uma operação que Israel sempre negou, até hoje. Recordo que há uns anos, o New Yorker explicava como Israel tinha bombardeado secretamente o suposto reactor nuclear de Al Kibar sem que ninguém desse por isso e o assumisse posteriormente. “O ataque resultou de uma operação da Mossad em Viena, em Março de 2007, na qual recolheu 'intel' na casa de Ibrahim Otham, o director da Comissão Síria de Energia Atómica. As provas recolhidas, incluindo fotos do local do reactor, eram conclusivas. Washington foi informado, mas o Presidente George W. Bush não ficou muito convencido. Olmert, por seu lado, tinha poucas dúvidas e a 5 de Setembro, pouco antes da meia-noite, quatro F-15 e quatro F-16 levantaram voo de bases israelitas com destino à Síria.  Através de mecanismos electrónicos, os israelitas “cegaram” o sistema de defesa anti-aéreo sírio, entre as 00:40 e as 00:53, o suficiente para entrarem no espaço aéreo do inimigo sem serem vistos e lançaram várias toneladas de bombas sobre o alvo. Hoje, cinco anos depois, ninguém fala no assunto ou o reconhece, seja Israel ou a Síria”. Escrevi isto em Outubro de 2012, no entanto, este assunto nunca mais foi referido. Hoje, Israel assumiu este ataque, com as IDF a revelaram alguns detalhes, e avisou que nunca permitirá que qualquer país da região obtenha armas nucleares.

 

Texto publicado originalmente no Diplomata.  

Notas sobre as eleições no Irão

Rui Rocha, 16.06.13

A primeira nota muito relevante das eleições no Irão diz respeito ao nível de participação. Depois dos acontecimentos traumáticos de 2009, uma abstenção na ordem dos 25% (apenas) significa uma vontade profunda dos iranianos de não cederem a qualquer tipo de intimidação e de terem uma palavra na condução política dos destinos do país. A segunda nota sublinha a vontade de mudança. A escolha à primeira volta de Rohani é, antes de mais, um claro sinal para Khamenei e Amhadinejad que se conjuga com o pobre resultado obtido pelo candidato da linha radical Saed Jalili. A terceira nota é, todavia, de cautela. Khamanei continua a deter o poder efectivo no país. De tal forma que a pergunta que deve fazer-se é se o resultado destas eleições não acaba por ir ao encontro das suas intenções. A repressão de 2009 deixou profundas cicatrizes na sociedade iraniana. A eleição de um moderado, sem que todavia tenha margem de intervenção significativa, pode constituir-se como uma válvula de escape que permite transmitir uma ideia de mudança, mantendo-se o essencial na mesma, ao mesmo tempo que se renova a legitimidade do regime. Com a vantagem adicional de retirar da cena internacional e das relações com  os EUA a carga emocional protagonizada por Ahmadinejad da qual resultava, em última análise, uma justificação para os defensores de uma linha dura do lado americano.

Havendo sido cego, agora vejo

Pedro Correia, 10.03.13

 

Esta fotografia da agência France-Presse é candidata desde já a uma das imagens do ano. Por nos mostrar um extremista islâmico, que sonha com a dura lei alcorânica vigorando no mundo inteiro, ao lado do caixão do presidente da Venezuela, tendo a poucos metros a imagem de Cristo na cruz, símbolo supremo de uma religião que Mahmud Ahmadinejad combate com tenaz proselitismo.

Ironia das ironias. Um assumido marxista, amigo e aliado de todos os comunistas que restam em postos dirigentes no planeta, conseguiu este quase-milagre durante as honras fúnebres que lhe foram prestadas como devoto da mensagem cristã: o fanático que negou o Holocausto, quis riscar Israel do mapa, considerou o 11 de Setembro uma "enorme mentira" e se gaba de não haver homossexuais no Irão prestou homenagem ao amigo Hugo Chávez na Academia Militar, em Caracas, numa cerimónia presidida pelo bispo de San Cristóbal, Mario Moronta, que leu trechos do Evangelho de São João. Segundo relata a imprensa, Ahmadinejad era o líder estrangeiro mais comovido, com as lágrimas a correrem-lhe pela cara.

Se há fotos que são notícia, por falarem mais que mil discursos, esta é uma delas. "Havendo sido cego, agora vejo" - como se lê precisamente no Evangelho de João.