Todos os anos a empresa onde trabalho tem um dia dedicado a criar novas ideias tecnológicas que possam ser usadas. Várias empresas são convidadas para apresentar ideias que sejam interessantes e, se existir potencial, poderão ser convidadas a participar de um projecto. Isto, claro, à parte quaisquer ideias ou projectos de I&D que sejam desenvolvidos internamente ou em colaboração com parceiros. O objectivo é apenas ter um dia dedicado a descobrir o melhor que existe em oferta no mercado.
No início do dia há sempre um convidado que faz um "discurso motivacional". Desta vez tivemos um convidado que falou sobre inovação em grandes empresas e como as grandes empresas frequentemente ficam tão presas no seu ciclo de sucessos passados e modelos de negócio que (até ver) funcionam perfeitamente, e deixam de investir em inovação. Para ilustrar o seu ponto de vista, pegou no relatório da PwC sobre inovação e apresentou alguns números.
Fê-lo também usando comparações entre empresas de indústrias semelhantes. Volkswagen vs Tesla, IBM vs Apple, Microsoft vs Google (Alphabet...), etc; e ia pedindo para indicar qual seria a empresa com mais orçamento de I&D e a mais inovadora. O top-10 em ambas as categorias na lista da PwC está abaixo.
Valores em milhares de milhões de dólares.
Nesta comparação, sublinhou como a VW tem o orçamento de I&D mais elevado do mundo, mas não consegue surgir nas empresas mais inovadoras. Foi aqui que me comecei a irritar com a apresentação. É já comum este tipo de "gurus" apresentarem conclusões baseadas em conceitos que formaram antes de elaborarem hipóteses, mas este caso aborreceu-me mais que o habitual. A razão para isso é simples: quis fazê-lo para demonstrar que investimento em I&D, mesmo como proporção das receitas, não correspondem a mais e/ou melhor inovação.
Nas palavras imortais do Dr. Homer Simpson: Duh!... Penso que qualquer pessoa o poderia dizer. Gastar dinheiro, só por si, não significa nada. Num caso absurdo, se a VW gastar mil milhões de dólares em bancos de células, poderia dizer que o gastava em I&D, mas provavelmente não melhoraria em nada a sua inovação.
O que falta na análise são duas coisas: a) como se define inovação e, b) como se qualifica o investimento de I&D?
Inovação
O livro do apresentador dá uma definição e muitas outras poderão ser usadas. No entanto, o ranking da PwC foi criado após consultas com especialistas em inovação. Ou seja, é um ranking completamente qualitativo e subjectivo e provavelmente ignorará os muitos milhares de empresas que são essencialmente desconhecidas e muito mais inovadoras que uma Apple ou uma Tesla.
Pense-se na Tesla. Qual a sua inovação? Não criou o conceito de carro eléctrico. Não produziu sequer o primeiro para venda. É um carro tecnologicamente avançado, mas não tem nada de excepcionalmente novo. Muitos "especialistas" em gestão de inovação apontam para o seu software, mas mesmo este nada tem de especialmente inovador. A principal inovação da Tesla foi no seu modelo de negócio - vender directamente ao consumidor - e mesmo este está a ser parcialmente abandonado. Há muitas outras inovações, é certo, mas não serão, no seu alcance e conceito, diferentes das de uma Ford que produz um novo motor a gasolina de 1.000 cc com 100 hp ou de uma Mercedes que cria um novo sistema de estacionamento automático.
O mesmo se pode apontar em parte para a Apple. O iPod não foi inovador pelo que trouxe - já existiam leitores de MP3 - mas pela sua qualidade e design e, essencialmente, pela sua ligação ao iTunes. O iPad não foi novo - a Microsoft tinha apresentado o seu Tablet PC em 2001 - mas foi apresentado não como um novo tipo de PC mas antes como um novo produto. Quando a Apple trouxe o iPhone para o mercado foi a primeira verdadeira e completa inovação tecnológica revolucionária que apresentou na sua i-Family. Não foi pequena e não pretendo menorizar o que foi feito, mas a percepção da inovação na Apple é influenciada pela forma como alterou a cultura popular. No entanto, a maior inovação que a Apple trouxe foi diferente e económica: o seu modelo de negócio. Conta, obviamente, como inovação, mas outras empresas que terão feito o mesmo e de forma mais influente (Google, Amazon, Facebook) aparecem abaixo da Apple.
Ou seja: na impossibilidade de colocar números no ranking de inovação, as empresas foras classificadas em função do élan que possuem. Dificilmente a melhor forma d emedir inovação.
O investimento em I&D
Este é um aspecto mais difícil de avaliar. Comparando com a VW com a Tesla, chegamos à conclusão que o orçamento da Tesla é cerca de 5% do da VW. Em parte isto deve-se ao tamanho das empresas. A Tesla tem cerca de 5% dos empregados da VW e um alcance das operações mais pequeno. Além disso, a VW está distribuída também no negócio das partes, tem divisões de serviços, logística, etc.
Além disso, a VW provavelmente terá uma forma diferente de qualificar os orçamentos, mais em linha com o de outras empresas alemãs (das que conheci). As empresas alemãs têm o hábito de considerar uma despesa de I&D tudo o que esteja tangencialmente relacionado com tal. Um novo equipamento, mesmo que já em tamanho industrial, será pago desse orçamento. O mesmo para todos os custos com ele relacionado (instalação, teste, início de funções, avaliação, manutenção, etc). O mesmo se pode dizer para actividades de debottlenecking, troubleshooting, (lamento mas não conheço termos portugueses) ou simples melhorias incrementais nos seus processos ou sistemas.
Outras empresas poderão não o fazer. Conheci empresas (especialmente americanas) que preferiam colocar qualquer investimento acima de um determinado valor (por exemplo, 200 mil dólares) na categoria de "investimentos", mesmo quando destinado a I&D. Isso automaticamente baixa o valor investido em I&D. Se a Tesla usar esta prática (e creio que a usa, olhando para o seu orçamento de I&D - baixíssimo), isto ajuda a explicar a sua diferença para a VW. Algumas outras empresas fazem outsourcing da investigação, decidindo quais as áreas interessantes e escolhendo parceiros. Isso transfere o investimento em I&D, que é indirecto, para categorias como "parcerias" ou "serviços".
Por outro lado, o investimento da VW em I&D é de 11,6% das suas receitas (12.3 mil milhões a dividir por 105,651 mil milhões), enquanto que o da Tesla é de 17,7%. O da Apple, no entanto, é de apenas 3,5%, o que pode ser resultado de receitas elevadíssimas ou de outras práticas de contabilidade financeira.
Eu não concluo nada de diferente de todos os gurus que decidem que não existe relação entre orçamento de I&D e inovação (por outro lado não sou nenhum guru nem aspiro a sê-lo). Só que olho para os valores de forma crítica. A VW ou a Microsoft são empresas líderes nas suas indústrias e que têm sabido reinventar-se constantemente, mesmo quando enfrentam revezes graves. Uma Tesla já poderá ser muito inovadora, mas não sei se existirá daqui por 10 anos (prevê ter quase todos os seus lucros para lá de 2020).
Quando se tenta avaliar inovação, convém, antes de tudo, olhar para tendências históricas e descobrir aquilo que foi feito de forma correcta no passado e tentar adaptar tais lições ao presente. A gestão eficaz não muda só porque a tecnologia muda. No entanto, para quem quer vender um livro, o mais importante são os próximos 50 minutos mais 10 minutos para perguntas.