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Delito de Opinião

Ceder energia, arder por indiferença

João Pedro Pimenta, 22.07.22
Felizmente já estão em fase de resolução (espero, porque em dois casos voltaram), mas os grandes incêndios da última semana, tirando o da Guarda e o do Fundão, foram todos em Trás os Montes. E à parte de um perto de Bragança, todos no distrito de Vila Real - Chaves, Vila Pouca, Murça, até o de Baião invadiu o Marão. Entre aldeias habitadas por idosos, que por isso mesmo têm mais dificuldade em limpar as suas propriedades, fragas difíceis de alcançar e pinhais dispersos, arderam milhares de hectares, inúmeras árvores que eram o sustento das populações, algumas casas e morreram inúmeros animais e três pessoas (apesar de tudo muito menos do que em 2017).
 
Tudo isso poderia levar-nos para a discussão do abandono, desertificação e envelhecimento do interior, mas houve um pormenor em que poucos notaram: a não muitos quilómetros dos incêndios, em Ribeira de Pena, António Costa inaugurava esta semana a nova central hidroeléctrica do Tâmega, três albufeiras que se destinam à produção de electricidade. Ou seja, um empreendimento que sacrificando parte das terras em redor, por norma do interior, pretende fornecer energia a parte do país, mas aparentemente sem grandes contrapartidas às populações da região. Vimos o mesmo com as barragens no Planalto Mirandês, vendidas sem que os municípios recebessem o que quer que fosse. Ou com as enormes albufeiras no Barroso, que poucos benefícios palpáveis vieram trazer à região. Os tais "empregos" e "oportunidades" não passaram de ilusões e a população decresceu a olhos vistos.
 
Este é o drama permanente do interior, particularmente de Trás os Montes: continuamente desbastado para fornecer energia ao resto do país, mas esquecido em tudo o resto e notícia apenas quando há tragédias como os fogos, consequência do abandono e do desinteresse por parte de sucessivas administrações que sempre olharam para a região apenas como reserva de energia. E vamos lá a ver se não abrem umas crateras para explorar lítio a mando do secretário de estado Galamba, o perfeito exemplo do governante que se está nas tintas para o território desde que tire de lá benefícios (nem contrapartidas se lhes pode chamar). Suprema e cruel ironia, a da zona que usa a água para o fornecimento de energia necessitar tanto dela para salvar o seu território.
 
Fogo em Murça possui uma frente ativa e lavra em zona sem acessos

As ovelhas

João Campos, 15.07.19

Fui passar o fim-de-semana à terra, aproveitando a passagem por lá tanto da minha irmã como de um amigo de infância emigrado. Normalmente, a ida à aldeia não serviria de pretexto à bloga (só talvez pela açorda de marisco na Zambujeira do Mar, que continua extraordinária), mas quando ontem já preparava o regresso a Lisboa esta notícia do Público fez-me pensar se a viagem de Intercidades prevista para as 19:25 não se revelaria atribulada. 

Comboio Intercidades atropela ovelhas e fica parado quatro horas

O comboio saiu de Lisboa pouco depois das 14h e chegará ao Algarve com quatro horas de atraso.

Em circunstâncias normais, um acidente desta natureza com o comboio que faz o percurso Lisboa - Faro não devia causar atrasos na composição que faria o percurso inverso horas mais tarde, mas quem viaja com frequência na CP sabe que hoje em dia as circunstâncias da ferroviária serão tudo menos normais. Se o comboio acidentado a ir para baixo fosse o mesmo comboio que devia voltar para cima mais tarde, e se não houvesse uma composição de reserva, o atraso seria inevitável. Sabendo que a minha namorada estava nas imediações de Sete Rios, pedi-lhe que passasse na estação e tentasse saber alguma coisa. 

"Aqui não têm qualquer informação de atraso", diz ela pelo telefone. "Dizem que os comboios não são os mesmos, e que o comboio não bateu num rebanho de ovelhas, mas apenas numa ovelha".

Não fiquei especialmente descansado, mas não havia muito mais a fazer (e dei por mim a pensar quão grande teria de ser uma ovelha capaz de rebentar com uma locomotiva). Perto da hora fui para a estação, encontrei um antigo colega de escola e entretemo-nos à conversa. Como era de esperar, às 19:25 não vimos nenhum comboio atravessar o arco da ponte da muito arruinada Estrada Nacional 266, logo antes de entrar na estação de Santa Clara - Sabóia. Os minutos foram passando. Nada de comboio, e nada de informação - a estação encontra-se há muito encerrada, funcionando apenas como apeadeiro, pelo que não há um empregado a quem se possa perguntar algo. Os altifalantes permaneceram em silêncio. O aparelho de contacto estava avariado ou desligado - premia-se um botão, ouvia-se um pi-pi-pi, e nada. A "linha de apoio" da CP continua muda - imagino que seja mais fácil comunicar com Proxima Centauri do que obter "apoio" da ferroviária. Perto das 20:00 (já com meia hora de atraso, portanto), lá soou qualquer coisa nos altifalantes roucos da estação: que ia chegar um comboio Intercidades às 20:30, perdão, às 20:10, e mais algumas palavras imperceptíveis. Mas era melhor do que nada - era, finalmente, uma informação. 

Só quando vimos um comboio a vir de Norte quando devia vir de Sul é que percebemos mesmo o que se passava.

O comboio parou e, em menos de nada o revisor viu-se rodeado por todos os passageiros que aguardavam em Santa Clara - Sabóia. E esclareceu: aquele era o comboio que saíra de Lisboa pouco depois das 14:00 e que tivera o tal incidente com a ovelha ou as ovelhas. E aquele era também o comboio que partiria de Faro com destino a Lisboa, e que devia parar naquela estação às 19:25 (estaríamos perto das 20:15). Considerando que a viagem entre Sabóia e Faro leva uma hora e quinze minutos, é fazer as contas (para recordar as sábias palavras do Guterres) ao tempo que ainda teríamos de esperar ali, no meio de nenhures, numa estação fechada e muito pouco abrigada, com a noite já a cair. Perante os protestos, lá balbuciou um "eu entendo, mas não é culpa minha", enfiou-se na carruagem e partiu rumo ao Algarve.

Sendo da terra, pude voltar a casa dos meus pais para jantar (os outros passageiros não tiveram a mesma sorte), antes de regressar à estação para tentar a única alternativa a uma espera longa e incerta, ou ao adiar da viagem para o dia seguinte: apanhar um comboio "especial" que a CP faz às Sextas de Lisboa para Faro, e aos Domingos de Faro para Lisboa, e que devia parar ali às 21:25. Lá chegou com cinco minutos de atraso: uma automotora de três carruagens com todos os lugares ocupados e com dezenas de passageiros amontoados pelo chão. Foi assim que voltei da província para a capital neste Verão de 2019: sentado no chão de uma automotora, felizmente entretido a ler banda desenhada (ao contrário dos telemóveis e dos tablets, os livros e as bandas desenhadas nunca ficam sem rede ou sem bateria); à minha frente, um velhote de pé - saiu na Funcheira, sorte dele -, um homem de meia idade sentado no chão a olhar para o vazio e outro, de pernas cruzadas no chão, a fazer qualquer coisa num computador portátil. Dois estudantes sentavam-se nos degraus da porta e falavam de futebol, passando de craques recentes a partidas disputadas décadas antes de terem nascido. Havia crianças e idosos a permanecer de pé, gente sentada em cima de malas e no chão, a desviar-se sempre que alguém queria chegar à casa de banho, a levantar-se quando a posição se tornava insuportável. O revisor, esse, nunca apareceu - e imagino que terá mantido o mínimo contacto possível com os passageiros. 

Lá cheguei a Lisboa minutos antes da meia-noite. E em Sete Rios, onde ninguém iria embarcar naquele comboio, já se sabia qualquer coisa: que o comboio Intercidades procedente de Faro com destino a Lisboa Oriente circulava com um atraso de três horas e trinta e tal minutos, e que a hora prevista de chegada seria à uma e dezoito da manhã (mais o pedido de desculpas "pelos incómodos causados"). Uma informação que, cinco horas antes, teria decerto sido útil para os passageiros que esperavam em Sabóia - e, imagino, nas Amoreiras e nas Ermidas (talvez na Funcheira ou em Messines se soubesse de alguma coisa, o que não será de todo garantido), mas que ali pouca utilidade teria. Quem habita no interior - naquele interior só lembrado quando há desgraças - não merece comboios pontuais, e muito menos informação sobre os atrasos. Esperem ou amontoem-se nos comboios, se quiserem. Da próxima vez que o Marcelo e o Costa se lembrarem de ir fazer propaganda para o interior, sugiro que viajem como eu e muitos outros viajámos hoje: sentados durante no chão sujo de uma automotora durante horas. Talvez lhes servisse de lição antes de dizerem asneiras e fazerem promessas vazias. 

O amigo emigrado que encontrei no fim-de-semana disse-me que na Alemanha, onde vive, os passageiros ficam fulos se um comboio se atrasa dois minutos. Pensei muito nisso hoje (ontem) à tarde. Talvez a culpa de todos estes atropelos até seja nossa: bufamos pelos atrasos e pelas supressões constantes, mas acomodamo-nos. Não reclamamos, não partimos a loiça, não abanamos umas carruagens, não fazemos um motim numa bilheteira, não cobrimos um ministro ou um secretário de estado de alcatrão e penas. Nada. Encolhemos os ombros a cada declaração autista de um (ir)responsável político. Gracejamos quando o atraso se repete (e repete). Cagamos umas larachas - para usar uma expressão da terra - nas redes sociais e ficamos por aí, apaziguados pela falsa empatia dos likes e dos emojis furiosos. Enfim, seremos ovelhas, também - e nesse sentido até teremos talvez sorte pelo atraso dos comboios, que pelo menos assim não nos colhem na linha. 

 

ADENDA: Devia ter transcrito este post para as folhas do livro de reclamações, já que me saiu bem melhor. Pormenor interessante: um utente que queira fazer uma reclamação na Estação de Sete Rios terá de escrever de pé, sobre o balcão estreito, quase em cima de quem precisar de utilizar a bilheteira. Enfim, dadas as condições de viagem que a CP me proporcionou ontem, não deixa de ser ironicamente adequado ver-me obrigado a passar longos minutos de pé a preencher os formulários e a descrever o ocorrido. 

O interior que arde*

Adolfo Mesquita Nunes, 22.08.17

Se os fogos que consomem o interior fossem à entrada de Lisboa ou do Porto, com a sua devastação, olharíamos com a mesma complacência para as falhas de coordenação e afectação de meios? Continuaríamos a aceitar que ninguém assumisse responsabilidades? Deixaríamos que as explicações fossem de modo a tratar tudo isto como uma enorme fatalidade que não pode ser evitada?

À hora que escrevo, o fogo anda à solta na Serra da Estrela e às portas da minha terra, a Covilhã. Foi na Covilhã, ainda na parte urbana, que o fogo começou, sem eucaliptos, e dali se espalhou, até em zona de pinhal limpo e ordenado. Na semana passada, o fogo consumiu a bem ordenada Serra da Gardunha, levando uma parte da produção agroalimentar da Cova da Beira.

Conheço as justificações que correm para que tudo isto seja tratado como uma enorme fatalidade num ano extraordinariamente severo com demasiadas ocorrências, muitas delas simultâneas.

Sucede que essas explicações são desmentidas no recente relatório do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), que faz uma análise comparativa do período de janeiro a 15 de agosto dos últimos dez anos.

 

 

O provincianismo chegou à província

João Campos, 10.06.16

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Durante muitos anos, a Pousada de Santa Clara terá talvez sido o único bastião do escasso turismo que se aventurava para o interior de Odemira (entenda-se aqui por interior tudo o que fica para lá do parque natural do sudoeste alentejano, que chega quase à própria vila). Eram outros tempos: o turismo rural ainda não tinha virado moda, e a ASAE ainda não tinha aniquilado a restauração local ao inviabilizar a gastronomia assente na caça e na pesca da região - se hoje não temos um restaurante digno desse nome em todo o interior do concelho, tempos houve em que as caldeiradas de achigã tinham fama suficiente para levar lá gente de bastante longe. Enfim, os preços proibitivos para os habitantes locais, o declínio das Pousadas de Portugal e a progressiva desertificação da região - a aldeia de Santa Clara é hoje uma sombra daquilo que era há vinte anos - acabaram por levar ao abandono da Pousada. Ficou apenas a sua vista espantosa para a barragem e para a serrania envolvente (a foto não é minha, note-se), e a interrogação permanente sobre aquilo que seria necessário para que uma terra com tanto para dar pudesse aproveitar o turismo da moda. 

 

Não sei se alguém já encontrou resposta para esta pergunta, mas a verdade é que após vários anos abandonada, parece que a Pousada de Santa Clara vai finalmente reabrir. Não sei se por iniciativa pública, privada, ou um misto das duas. Não sei se com gerência local ou com forasteiros (não é relevante). Não sei se com os preços exorbitantes de outrora ou se com uma oferta mais convidativa para quem quiser simplesmente subir a colina, tomar um café e apreciar a beleza daquele interior alentejano, ao mesmo tempo tão próximo e tão distante da costa. Mas, a fazer fé nas ofertas de emprego da zona, sei que a parvidade de Lisboa e do Al(l)garve já chegou aos montes que anunciam a norte o início da Serra de Monchique. Não podendo por algum motivo manter a designação de "pousada", a nova gerência podia ter optado por um dos vários sinónimos que a língua portuguesa oferece: estalagem, albergue, hospedaria. Mas não: como não podia deixar de ser, parece que a antiga Pousada de Santa Clara irá abrir com o mui lusitano nome de Santa Clara Country Hotel. O progresso até pode não chegar à minha Sabóia, à vizinha Santa Clara, e às outras aldeias da região; mas o provincianismo de importação lesboeta, esse, não falha.